GUIA
“FÁCIL” PARA UMA AULA DA “CRÍTICA DA RAZÃO PURA”
por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
É comum alguns colegas da geografia me
perguntarem sobre a doutrina filosófica de Immanuel Kant. Como já estudei o
assunto muitas vezes e a todo momento, em meus estudos, me deparo com Kant,
resolvi elaborar um guia fácil para uma aula imaginária sobre a “Crítica da
razão pura”. Esta aula poderia ser ministrada informalmente, por um geógrafo –
no caso, eu – para outros geógrafos – meus colegas – e, quem sabe, se tal honra
me coubesse, curiosos em geral ou até mesmo estudantes de filosofia. Diante
destas perspectivas, achei oportuno publicar o guia aqui no blog.
De antemão peço desculpas pelas
repetições e o estilo da escrita, às vezes, fragmentado, ao modo de um rascunho.
É que na verdade, diante das constantes e não intencionais recaídas em Kant,
este guia foi escrito para organizar meus próprios estudos. Quero eu acreditar
que, se este guia me foi útil, talvez possa ajudar outros estudantes, tal como
eu, a toda hora, surpreendidos por Kant. Mas que fique aqui registrado uma
advertência: de modo algum este pequeno guia substitui a leitura do próprio
livro e seus comentadores, muito mais versados do que eu em filosofia.
1 - Apesar do título “Crítica da razão
pura” sugerir uma crítica à razão pura, isto é, à metafísica, representada pelo
racionalismo filosófico – poderia ter sido, ao contrário, “Crítica do empirismo
puro”, o que, em parte, também o é –, Kant é, todavia, um filósofo idealista.
Esta afirmação pode parecer um pouco estranha, pois, se Kant é idealista, a
razão não deveria ser alvo de sua crítica. Tal embaraço, provocado pelas
nomenclaturas taxonômicas, já nos dá pistas da engenhosa filosofia kantiana.
Observação: Em filosofia, idealismo e materialismo não tem nada a ver com o sentido que o senso comum comumente dá a essas palavras, de "sonhador" ou "pessoa apegada a bens materiais", respectivamente. Em filosofia os termos se referem aos pressupostos constitutivos de todo conhecer ou da própria realidade. Eis um dos grandes dilemas filosóficos: além da forma de conhecer, o mundo é um produto da consciência ou existe por si mesmo?
Idealismo
– a fonte de todo o conhecimento está no Eu, no pensamento, na consciência, no
sujeito ou, se se quiser, na subjetividade. (Ainda: nas ideias, no ideal).
Materialismo
– a fonte de todo o conhecimento está na matéria, no mundo (sensível), na
coisa, no objeto ou, se se quiser, na objetividade.
Idealismo e materialismo são conceitos
modernos que podem, porém, ser aplicados, de modo anacrônico, a toda a história
da filosofia ocidental, desde os atomistas, Platão (idealista) ou Aristóteles
(materialista), até os modernos.
Estes rótulos, embora válidos, até certo
ponto, na classificação filosófica, são sempre provisórios. Raramente uma
filosofia se adéqua totalmente a um “tipo ideal puro”, subjacente aos
megaconceitos. Além do mais, algumas concepções ganharam significados diferentes
conforme o desenvolvimento e contexto histórico. Para os escolásticos, por
exemplo, o idealismo platônico era realista, oposto ao nominalismo
aristotélico, pois as ideias, na filosofia de Platão, tem estatuto de
realidade. Para os modernos, no entanto, a exigência de todo o realismo é a
existência de objetos independentemente da consciência e, por isso, se opõe ao
idealismo.
Por isso, é preciso tomar cuidado com
rótulos, pois, nota-se que, paradoxalmente, apesar de idealista, a filosofia
kantiana é realista, isto é, supõe a existência de algo fora da consciência dos
sujeitos, diferentemente da filosofia aristotélica, também realista, mas que
poderia ser taxada de materialista (como fazem muitos manuais de filosofia). Em
Aristóteles, as ideias transcendentais, ou os universais, são inferidas das
coisas reais, sensíveis, tais como aparecem à nossa consciência; para Kant,
entretanto, o que está fora da consciência jamais é acessível ao conhecimento,
senão enquanto aparência objetiva (fenômeno), pela qual a objetividade é
constituída subjetivamente, por formas do pensamento, chamada por Kant de
categorias (equivalente as “ideias inatas”).
O filósofo irlandês Berkeley, de
ascendência inglesa, é um bom exemplo da fragilidade das classificações formais.
A filosofia de Berkeley, seguindo a tradição empirista inglesa, parte do
sensível e da experiência, o que, a princípio, a colocaria imediatamente entre
as filosofias materialistas. Todavia, é exatamente através do sensível que Berkeley
nega a matéria e dá uma guinada para um idealismo radical. Para Berkeley, não há
como pensar objetos materiais fora da consciência. Percebemos apenas qualidades
sensíveis e nunca uma substância misteriosa, a matéria, suporte inefável das
qualidades. As ideias são imagens tal como as apreendemos em nossa consciência.
“Não quero transformar as coisas em ideias, mas antes transformar as ideias em
coisas” (Berkeley). Há um certo realismo ingênuo em Berkeley, na medida em que
a realidade é exatamente como aparece. Mas se tudo se passasse como se as
coisas existissem ou deixassem de existir a partir do momento em que são percebidas
ou não por indivíduo, então como explicar a coincidência de percepção de um
mesmo objeto por diferentes sujeitos? Berkeley toma um expediente semelhante a Descartes,
embora partindo de uma fonte epistemológica oposta: Deus é bom e é o criador e
o mediador das ideias, responsável pela correspondência das ideias na mente dos
diferentes indivíduos.
Portanto, Kant é um idealista diferente
de um Berkeley, para quem o mundo e as coisas no mundo são ideias na mente
divina ou dos seres humanos. Não é um idealista para quem um gênio maligno
tenta induzir o filósofo a compreender o mundo como ilusão, um sonho, ou, como
disse fichtianamente Wittgenstein, no seu Tractatus,
“o mundo sou eu”. Para Kant, há alguma coisa real por trás de nossas
representações mentais.
(No entanto, como diz Schopenhauer, no
fundo, Kant jamais superou idealismo radical ao modo de Berkeley, pois, em
última análise, repete a cantilena de que “sem sujeito não há objeto”. Em um
texto sobre o “Nascimento da tragédia”, de Nietzsche, que pretendo publicar
aqui, voltaremos a abordar o problema).
Portanto, a princípio, para o idealismo
realista de Kant, existe um mundo real que está fora do sujeito (consciência).
2 – O projeto filosófico de Kant
consiste em conciliar, para depois superar, as duas principais escolas de
filosofia que estavam em voga em seu tampo: o racionalismo e o empirismo.
Tal como fizemos acima, podemos definir,
para fins didáticos, estas filosofias como subprodutos das duas correntes
filosóficas supracitadas (idealismo e materialismo). O racionalismo é idealista
e o empirismo, materialista.
Expoentes do racionalismo: Descartes,
Malebranche, Spinosa e Leibniz.
Expoentes do empirismo: filósofos
ingleses em geral; Bacon, Hobbes, Locke e Hume.
Idealismo e empirismo põem em xeque
mutuamente as bases epistemológicas uma da outra.
a) Descartes inaugura a filosofia
moderna. Para os filósofos escolásticos, a pedra angular da filosofia era o
dogma. A definição de dogma é uma revelação de Deus, escrita nos livros
sagrados, que não pode ser contestada ou posta em dúvida. Mas é exatamente a dúvida que
Descartes eleva à condição de método filosófico. Descartes duvida de tudo, da
existência do mundo, do corpo (o corpo do próprio filósofo que duvida), de Deus etc., mas não consegue duvidar da existência
daquilo que duvida, o pensamento. Duvidar daquilo que duvida seria uma
contradição e, portanto, a existência de um ente que dúvida é uma verdade
auto-evidente, indubitável. Assim, o pensamento preenche a primeira regra de seu
método: a evidência. Ao ser pensante (o pensamento puro), Descartes denominou res cogitans. A partir deste porto
seguro, Descartes pode provar racionalmente a existência de Deus e, a partir de
Deus, do corpo e do resto do mundo. Estes, Descartes chamou res extensa. Porém, o mundo é uma
multiplicidade confusa, está em constante devir e nossos sentidos nos enganam o
tempo todo. Do mundo só podemos inferir a extensão e o movimento, que são
ideias claras e universais.
Nota-se que, para que haja sensações ou percepções, é necessário um corpo. O corpo é o lugar dos sentidos. Sentimos frios ou calor, gostos e cheiros, vemos, ouvimos... Por isso, Descartes rebaixa a condição corporal, suprimindo-a, já que esta não oferece certezas apodíticas, senão como grandezas matemáticas: espaço e movimento. Somente a coisa ou o ser pensante é passível de certeza evidente. Surge na modernidade a força da razão, antessala do iluminismo. Hegel caracteriza a era Moderna como repleta de clivagens; dentre elas, mente e corpo é a mais profunda.
Nota-se que, para que haja sensações ou percepções, é necessário um corpo. O corpo é o lugar dos sentidos. Sentimos frios ou calor, gostos e cheiros, vemos, ouvimos... Por isso, Descartes rebaixa a condição corporal, suprimindo-a, já que esta não oferece certezas apodíticas, senão como grandezas matemáticas: espaço e movimento. Somente a coisa ou o ser pensante é passível de certeza evidente. Surge na modernidade a força da razão, antessala do iluminismo. Hegel caracteriza a era Moderna como repleta de clivagens; dentre elas, mente e corpo é a mais profunda.
Sendo assim, para os racionalistas, os
sentidos (sensações) nos enganam e a verdade está nas ideias, única realidade
constante e regular num mundo em constante devir (transformação). (O fundamental
é o intelecto).
Se o mundo está em devir, um livro,
depois de lido e descartado, pode vir a ser uma caixa de fósforo, após
reciclagem. Exemplo trivial que mostra a inconstância do mundo material. Para
os racionalistas, a única propriedade verdadeira, constante e segura do livro é
a extensão, que pode ser mensurada; a sua forma etc. Sim, 10 centímetros não
mudam, é igual aqui, no Brasil, como é na China, em Angola, ou em qualquer
lugar. Também os sentidos, que percebem o mundo sensível, não são confiáveis.
Para mim o dia está frio; para fulano, fresco. Eu vejo o Sol do tamanho de uma
bola atravessar a abóbada celeste quando na verdade é a Terra que gira sobre
uma estrela de tamanho incomensurável, o Sol. Etc., etc., etc.
b) Inversamente, para os empiristas, a
verdade está no mundo sensível, pois as ideia são inferidas da experiência e
não são mais que impressões do mundo em nossa consciência, a qual pode ser
comparada a uma tabula rasa (uma lousa). (O fundamental são os sentidos).
Obs.: Tabula rasa era uma tabuleta
emoldurada e preenchida com cera, onde os antigos escreviam um rascunho antes
de transcrever em definitivo nas folhas de papiro.
Exemplos: Nenhuma propriedade intrínseca
no sal me induz a compreender o conceito de salgado se eu não prová-lo antes.
Um ET que nunca viu uma laranja poderia ficar aterrorizado diante de uma. Se
nunca vi uma bola de bilhar indo de encontro a uma outra, nada me diz o que
aconteceria quando uma batesse na outra. Se eu sei que após o choque a segunda
bola entra em movimento, é porque vi isso acontecer muitas vezes. Mas nada me
leva a crer e deduzir uma ideia de causa e efeito do choque entre duas bolas de
bilhar se não houvesse o hábito de observar e experimentar os fenômenos no
mundo muitas vezes. (Pense numa criança que nunca jogou bolinha de gude. Ela
não pode ter a menor ideia do que acontece quando seu amiguinho atira uma
contra a outra). Etc., etc., etc.
O pressuposto de Locke é – nada existe
na mente que não tenha estado nos sentidos.
3 – O que está em jogo no embate destas
duas escolas de filosofia é onde está a verdade ou qual a origem do verdadeiro
conhecimento, o pensamento (ideias) ou o mundo (sensível)?
Enfim, o projeto filosófico kantiano se
propõe a colocar um meio termo entre as duas; Kant quer conciliá-las, realizar
uma síntese ente racionalismo e empirismo. Para realizar este projeto, Kant irá
estabelecer a crítica como método filosófico. Tudo se passa como se a crítica
kantiana fosse um tribunal que julgasse o mérito das duas escolas de filosofia
em questão e aplicasse uma sentença revogatória e conciliadora.
Kant dialoga o tempo todo com as
filosofias racionalista e empiristas.
4 – A TEORIA DOS JUÍZOS
Seguindo a tradição filosófica, Kant
retoma a teoria dos juízos.
Pode se definir juízo como uma “ação” do
pensamento ou ato mental pelo qual se formula um enunciado afirmativo ou
negativo. Em termos gramaticais e lógico os juízos apresentam a seguinte
estrutura: sujeito e predicado (verbo ser [cópula] e objeto).
O juízo estabelece uma relação de
identidade (A é A) ou de negação (A não é não-A).
Para Kant, os juízos de inerência são
aqueles em que o particular está subordinado ao universal.
Os juízos reflexivos, ao contrário, do
singular se infere o universal.
- Juízos analíticos
Análise: “Dividir cada uma das
dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis” (Descartes).
A definição lógica de juízo analítico é:
o predicado está contido no sujeito.
Os juízos do tipo racionalista
(matemática pura) prescindem da experiência e são chamados juízos analíticos. (Dedução).
Se fulano diz que é solteiro,
desnecessário vasculhar a sua vida para constatar o fato de que ele realmente não
é casado. Posso deduzir que “todo solteiro é um não casado” sem sair de casa. Ou
seja, o desmembramento (separação, análise) do predicado não informa nada mais
do que aquilo que já estava contido no sujeito.
O mesmo ocorre quando se diz que um “triângulo
é uma figura de três ângulos”. Figura de
três ângulos é apenas a separação das partes do todo – o procedimento
analítico.
Não é preciso desenhar um triângulo para
verificar que a figura do triângulo tem três ângulos. Posso conceber isto
apenas pelo pensamento. Tampouco tenho que procurar um homem solteiro para
verificar que de fato ele não é casado.
Ratificando: juízos analíticos são
proposições verdadeiras intuídas pelo pensamento, como a noção de axioma, e estão
fundamentados em ideias puras (inatas), como o conceito de infinito, de causa (se
há um efeito há uma causa), de que todo corpo é extenso etc.
Os juízos analíticos são proposições de
identidade (A é A), verdadeiras e vazias de conteúdo (tautologia); a análise
apenas repete aquilo que já é anunciado pelo sujeito da oração.
Portanto, os juízos analíticos são a priori, universais e necessários. A
priori porque anteriores e independentes de toda a experiência; universais porque
válidos em qualquer caso; e necessários porque não pode ser de outro modo: uma
figura de três ângulos não é um quadrado etc.
- Juízos sintéticos
Síntese: “Concluir por ordem meus
pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer
para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos”
(Descartes).
O juízo sintético une (síntese) o
conceito do predicado ao do sujeito, acrescentando uma nova informação.
A definição de juízo sintético é: o
predicado acrescenta algo ao sujeito.
Os juízos do tipo dos empiristas
(física, química etc.) surgem na experiência. (Indução).
Por exemplo, suponhamos que eu nunca
tivesse provado nada salgado ou doce. Então jamais poderia explicar o que é
salgado ou doce, ainda que eu tivesse a noção do seu conceito por meio de um
verbete de um dicionário. Por exemplo, o dicionário define salgado como aquilo
que tem sal (juízo analítico). Para saber o que é salgado, de nada me adianta
recorrer à leitura do verbete “sal”: não sinto seu gosto! Isto é, a definição
“composto químico que resulta da ação de um ácido sobre uma base” é
completamente insossa ao meu paladar. Munido apenas desta definição, jamais
saberia distinguir o sal do açúcar e explicar para um extraterrestre o que é
salgado ou doce. De fato, eu conheço o conceito mais nada sei realmente sobre o
sal. Para sabê-lo, é preciso prová-lo, experimentá-lo.
Outro exemplo: suponhamos que nunca vi
um gato e, portanto, nada sei sobre o animal gato. Se, inversamente, vi muitos
gatos, posso formular uma ideia ou um conceito geral sobre este animal e
nomeá-lo: “gato”. Se, por ventura, vejo um gato listrado, eu digo, “este gato é
listrado”. Pude formular este juízo porque a experiência me demonstrou isso. Mas
nem todos os gatos são listrados. Alguns são pardos, outros brancos, outros
pretos, outros malhados, alguns pequenos, outros grandes etc. Para formular o
juízo “o gato da minha vizinha é preto”, é necessário antes, através da
experiência, observar o gato da vizinha!
Portanto, juízos sintéticos são a posteriori, particulares e
contingentes. A posteriori porque
dependem da experiência; particulares porque dizem respeito a casos individuais;
e contingentes porque só existem de um modo.
- juízos sintéticos analíticos
Todavia, Kant rejeita os juízos
analíticos e sintéticos. Os juízos analíticos não acrescentam nada ao
conhecimento e são redundâncias vazias, isto é, tautologias. Os juízos
sintéticos estão fadados às contingências individuais e nada pode estabelecer
de universal. Kant sugere um terceiro tipo de juízo que é muito mais importante
e que é, de certo modo, uma mistura dos dois: os juízos sintéticos analíticos.
Os juízos sintéticos analíticos são
proposições que nascem da experiência (a
posteriori, particular e contingente) mas adquirem propriedades analíticas
(a priori, universais e necessárias).
Ao realizar uma experiência, como, por
exemplo, o aquecimento da água, constato que, em um determinado momento, a água
muda do estado líquido para o gasoso. Daí, formulo um juízo sintético: a água
aquecida transforma-se em vapor. Porém, jamais poderia ter certeza de que a
água irá evaporar e em qual momento. Eu poderia suspeitar que uma água no Japão
não evaporasse. Mas, por ter visto muitas vezes a água aquecida evaporar,
apenas sei que, por habito, em algum momento a água muda de estado, ou seja,
entra em ebulição.
No entanto, ao mensurar a temperatura da
água com um termômetro (instrumento), verifico que sempre a água entra em
ebulição a 100º. C (ao nível do mar). Depois de muitas vezes realizada esta
experiência, posso extrair daqui um juízo analítico que independe da
experiência: (toda) água evapora a 100º. C (ao nível do mar).
Ora, a proposição “a água entra em
ebulição a 100º. C” é uma lei científica universal e necessária. Um professor
de química, por exemplo, não precisaria ferver a água e medir a temperatura de
seu ponto de ebulição e provar toda vez aos seus alunos que a água evapora a
100º. C.
O mesmo se poderia dizer sobre a sentença
“a ebulição da água foi causada pelo seu aquecimento” ou a ”causa da ebulição
da água é seu aquecimento”.
Não há nenhuma propriedade intrínseca na
água que leve o raciocínio a deduzir sua evaporação, independentemente da
experiência, assim como vimos com o sal.
Mas, se eu constato que a água evapora,
devo então procurar uma causa para isso: aquecimento.
A relação de causa e efeito pode ser
aplicada a n fenômenos (a posteriori,
particulares e acidentais) e é um juízo analítico (a priori, universal e necessário). (Outros exemplos: o raio é a
causa do trovão; uma fogueira é a causa da fumaça etc.).
De
certo modo, Kant visa pôr termo ao célebre aforismo XCV de Francis Bacon: “Os
que se dedicaram às ciências foram ou empíricos, ou dogmáticos. Os empíricos, à
maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira
das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha
representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do
jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é
diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das
forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história
natural ou pelas artes mecânicas, conservando intato na memória. Mas ele deve
ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da
aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas
faculdades, a experimental e a racional” (Novum Organum).
Com isso, Kant põe um meio termo entre o
dogmatismo racionalista e o ceticismo empirista. Todavia, a filosofia, em Kant,
sai de cena, pela porta dos fundos, para dar lugar à ciência. De fato, Kant
nada mais faz do que filosofar sobre o método científico. No mundo dos
fenômenos, apenas a matemática e a física tem lugar.
Então, como é possível o conhecimento?
5 – ESTÉTICA TRANSCENDENTAL
Da sensibilidade (empirismo)
Na tradição filosófica, a intuição pode
ser inteligível ou sensível.
A definição mais recorrente de intuição é
pressentimento ou capacidade de conhecer imediatamente. (do latim, intuitione, da preposição in [em, dentro de] e do verbo tuere [olhar, guardar] é “ver por
dentro”, “olhar de dentro”, “guardar de dentro”).
Por meio de uma operação mental, concebem-se
ideias verdadeiras, como os axiomas. Ou, por meio da experiência sensorial, sem
conhecer o nexo lógico que está por trás de determinado fenômeno, portanto, de
modo inconsciente, uma ideia pode ser formulada abstratamente. O “ponto”, por
exemplo, é uma definição abstrata, intuída pelo pensamento, e que não existe na
realidade. (O ponto não é um furinho na parede ou sujeirinha no piso branco
etc.).
De maneira geral, os filósofos sempre se
ativeram à intuição inteligível.
A intuição sensível é a novidade
kantiana: Kant fala em intuição pura, sem objetos da sensação. Na estética
transcendental, a intuição sensível é a condição, a priori.
Nota-se: Estética é teoria da percepção
e transcendental é aquilo que está “fora do mundo” (ou melhor, puro, a priori) e não sofre mutações.
Kant está dizendo que há um modo de
perceber que é anterior e independente da experiência.
O que ele quer dizer com isso?
Que os juízos analíticos e sintéticos
não são realizados no nada. A experiência ou as linhas inferidas dos três
ângulos se encontram em um determinado lugar e em um determinado momento. No
espaço e no tempo.
Arquimedes demonstrava teoremas na areia
(geometria), ou seja, num “fundo” espacial e temporal.
Toda experiência e inferência estão
situadas num tempo e espaço. É impossível se livrar disso. Porém, para Kant,
tempo e espaço não estão situados fora do sujeito; ao contrário, tempo e espaço
são modos de intuição. Neste sentido, são categorias subjetivas. Segunda a
máxima kantiana: Eu posso imaginar um
espaço sem objetos mas não posso imaginar um objeto sem espaço; ou nada existe
fora do tempo mas eu posso imaginar o tempo sem acontecimentos. Quer dizer,
posso abstrair todos os objetos da minha mente. Menos espaço e tempo.
As categorias intuitivas e a priori espaço e tempo são condições de
toda experiência e raciocínio.
Nota-se que, novamente, Kant põe um meio
termo entre racionalistas e empiristas. Ao formular uma condição sensível a priori para o conhecimento, até a
matemática pura tem algo de sensível e, por outro lado, nenhuma experiência
seria possível sem estes “quadros” da subjetividade espaço e tempo.
Portanto, tempo e espaços são formas
subjetivas e inerentes ao sujeito cognoscente. Isto é, são categorias
transcendentais inerentes à subjetividade (estão fora do mundo e “dentro” do
sujeito).
Kant denomina tempo e espaço de
categorias a priori da intuição.
As categorias da intuição tem por
característica o fato de serem involuntárias, inconscientes. Elas são passivas,
receptoras. Espaço e tempo são quadros subjetivos onde o que é empírico é dado
como objetos sensíveis apreendidos na consciência.
As categorias a priori da intuição são como se fossem a tela no fundo de uma
câmara escura: receptora do mundo através da abertura dos sentidos. É através
delas que o conteúdo empírico é dado
ao sujeito. Portanto, tempo e espaço são como se fossem a moldura da tabula rasa dos empiristas.
Dito de outro modo, e a título de
ilustração, o objeto empírico é refletido, como num espelho, dentro do sujeito.
Ou seja, no sujeito, o conteúdo empírico é reproduzido enquanto objeto: uma
representação. O que significa dizer que não é o ente em presença (em “estado
bruto”, em si), mas o objeto enquanto
re-presentação (uma cópia da presença, se se quiser). O objeto é uma
manifestação na consciência, uma aparência; numa palavra, fenômeno.
Eis o fundamental: presença (coisa em si,
noumenon) e presença-ausente (representação,
phainomenon).
A presença está no mundo. O fenômeno é a
presença do mundo na consciência enquanto objeto representado subjetivamente.
Nota-se que enquanto o conteúdo da coisa
foi abstraído pelos quadros subjetivos espaço e tempo houve apenas uma duplicação
como objeto nos limites da subjetividade. A realidade concreta ficou de fora, inviolável
e inexpugnável, enquanto coisa-em-si.
6 – LÓGICA TRANSCENDENTAL
Do entendimento (racionalismo)
A partir do momento em que é
representado o objeto nas categorias espaço-tempo, uma faculdade do pensamento
(espírito) vai atuar sobre objeto: o intelecto.
O mundo sensível é completamente
caótico, uma multiplicidade de elementos confusos, infinitos, e não explicita
os nexos de seu funcionamento. Tudo isso é reproduzido nas categorias a priori da intuição: uma representação
objetiva do mundo caótico.
Neste sentido, a intuição pura é incapaz
de estabelecer as relações, as regras e os nexos lógicos do juízo.
A partir daí, como foi dito, outra
faculdade do pensamento vai entrar em ação: o entendimento, definido como
faculdade de julgar. O entendimento vai tornar as representações sensíveis
inteligíveis, por meio da análise e de sínteses intelectuais. Ou seja, vai
separar, ordenar e organizar o conteúdo empírico em quantidade, qualidade,
modo, substância, causa, efeito, etc.
A partir do silogismo aristotélico, Kant
distinguiu doze categorias a priori
do entendimento. São elas que vão estabelecer relações e os nexos lógicos do
conhecimento.
Categorias a priori do entendimento:
1. Quantidade: Unidade, Pluralidade e
Totalidade...
2. Qualidade: Realidade, Negação e
Limitação...
3. Relação: Substância, Causalidade e
Comunidade...
4. Modalidade: Possibilidade, Existência
e Necessidade...
No entanto, Kant afirma que as
categorias do entendimento são centenas e não apenas dozes. Todavia, ele
próprio não se dá ao trabalho de enumerá-las, deixando para os filósofos que o
sucederão esta exaustiva tarefa como parte de seu legado filosófico.
Nota-se que Kant distingue a lógica
formal (pura), esta propriamente ligada à razão, da lógica transcendental.
A lógica formal prescinde dos objetos e
frequentemente, como vimos, formula proposições vazias (tautologias).
A lógica transcendental necessita dos
objetos. Ela é, ao contrario das categorias intuitivas, uma faculdade ativa.
Resumindo, as categorias do entendimento
“dissecam” o objeto, através da análise e da síntese, formulando leis
universais.
- O Eu Transcendental
As faculdades cognitivas a priori implicam um Eu transcendental
(ou sujeito), isto é, um eu que, enquanto repositório das categorias a priori, também está fora do mundo.
As categorias a priori são como se fossem as ideias inatas de Descartes e dos
idealistas. Isto é, já nascem com o sujeito.
Eu transcendental, portanto, é uma
instância em contraposição ao mundo e é comum e geral a todos os seres
racionais, ou melhor, aos seres humanos.
É este Eu transcendental que é dotado das
faculdades da razão.
Apesar de ser individual (é próprio de
cada sujeito) todos o seres racionais são dotados das categorias a priori.
Porém, a racionalidade é um modo
particular dos seres humanos. Se fizéssemos um exercício de imaginação e
pensássemos em extraterrestres com um outro modo de perceber e entender o
universo, o modo de conhecimento destes alienígenas seria completamente
diferente do nosso e estes amigos interestelares constituiriam um objeto
completamente diferente do nosso.
Assim, o conhecimento é subjetivo e
recebe o selo específico dos agentes que conhecem.
- Cisão entre fenômeno e coisa em si
Vimos que o objeto foi representado e
dissecado pelo sujeito (Eu transcendental). A presença (coisa-em-si, essência) do objeto, no entanto, foi deixada de lado,
fora do conhecimento, que se ateve à representação.
Ou seja, Kant traça os limites da razão.
Só é possível conhecer os fenômenos e nunca o númeno.
Para ilustrar o que foi dito, pensemos
numa projeção cartográfica. Ela é uma abstração e nunca reproduz o globo
terrestre tal como ele é. De fato, as distorções, a escala, as dimensões e as
formas dos continentes em um mapa são uma quintessência do planeta Terra. É
mais ou menos assim que se dá o divórcio do fenômeno e da coisa-em-si. Esta é
uma zona impenetrável.
Pois, Kant afirma que conhecemos apenas
o fenômeno (a representação) e nunca a coisa em si (presença real, numênica).
Tal embaraço criou um grande problema na
filosofia desde então. Schopenhauer chamou o fenômeno de o véu de Maia, isto é,
o véu das ilusões.
No fundo, Kant se divorcia do mundo, que
se torna inacessível ao conhecimento racional enquanto coisa-em-si, e, a partir
de uma atividade mental solitária (solipsismo), que é, ao mesmo tempo
compartilhada por todos os seres racionais, constrói, por meio das impressões
sensíveis e do entendimento, o objeto de seu saber.
E aqui voltamos ao realismo idealista de
Kant, pois, embora o filósofo tenha a convicção na existência de um mundo
exterior ao sujeito, a coisa-em-si, é
de fato o sujeito (o pensamento) a fonte do conhecimento.
7 – DIALÉTICA TRANSCENDENTAL
(Razão – crítica à metafísica)
A razão é faculdade dos princípios a priori, e que, através do
entendimento, produz ideias.
Os princípios a priori da razão podem
ser aplicados aos próprios princípios a priori, de modo especulativo.
Na seção intitulada dialética
transcendental, Kant vai aplicar os juízos à metafísica.
Até agora, o filósofo se ocupou com a
matemática (que para ele é aplicada) e a física.
Etimologicamente, metafísica significa
aquilo que está além da física.
A metafísica tradicionalmente refletiu
acerca de Deus, do ser, da liberdade, da alma, das essências etc.
Kant interdita a metafísica, enquanto
matéria do conhecimento, porque, segundo o filósofo, ela realiza sínteses que
vão além da experiência.
Como vimos, a razão está condicionada
aos limites das faculdades subjetivas e da experiência que se faz do mundo.
A coisa-em-si, esta zona fechada ao
conhecimento, para muitos significou um tiro no pé da própria filosofia, pois
declarava a impotência da filosofia na tarefa para a qual se propunha: o
conhecimento.
Contudo, para a doutrina kantiana, ela é
fundamental e estabelece os limites da razão, que é a experiência. Fora destes
limites, a razão produziria antinomias, isto é, afirmações verdadeiras mas, ao
mesmo tempo, contraditórias.
Kant compara a razão pura a uma pomba no
vácuo. No vácuo tudo está suspenso e à deriva. De nada adiantam as asas da
pomba. Apenas sob certas condições restritas, as formas aerodinâmicas da ave
surtem efeito, como o atrito do ar atmosférico e a gravidade terrestre.
Portanto, voar não é flutuar no vácuo.
A analogia é a seguinte: As asas da
pomba são como as condições a priori
do conhecimento; as condições atmosféricas e gravidade, a experiência.
É nas famosas antinomias que Kant
constrói seu argumento.
As antinomias são ideias transcendentais
que são antagônicas e nunca se resolvem (não é como na dialética hegeliana na
qual o contraditório se resolve, a partir da negação da negação, conservando os
termos negados num terceiro termo superior e distinto).
Todas as antinomias (quatro) kantianas
tem a mesma estrutura, fundada na lei da causalidade: 1ª.) tese: o mundo tem um
início no tempo e espaço (universo finito) – antítese: o mundo não tem início
no tempo e espaço (universo infinito); 2ª.) tese: o mundo é simples; antítese:
o mundo é composto; 3ª.) tese: liberdade; antítese: determinismo; 4ª.) tese:
necessidade; antítese: contingência.
Para os racionalistas, se isto existe ao
invés de não existir é porque é efeito de uma causa e no fim da cadeia de
causas e efeitos há uma causa que não é efeito e não necessita de causa, uma
causa suficiente: Deus.
Para os empiristas, se rastreássemos a
cadeia empírica de causa e efeito jamais encontraríamos Deus em sua origem,
pois nunca chegaríamos ao seu fim, pois uma causa sempre é efeito de outra
causa e assim por diante.
E aqui chegamos a um ponto central em
Kant.
Kant argumenta que não é possível provar
a existência de Deus porque o único conhecimento legítimo é aquele que faz uso
da experiência. É por isso que Kant nega a prova ontológica de Santo Anselmo, reabilitada
por Descartes, Hegel etc.
Ora, se acredito em Deus, não é porque
me deixei convencer por um argumento racional. A razão é limitada e somente a
ciência faz uso legítimo da causalidade, pois só o mundo é objeto de minha
experiência.
As proposição metafísicas, como a ideia
de Deus, estão no âmbito da coisa-em-si e jamais poderemos conhecê-las, dado os
limites da razão.
A partir daqui, Kant poderá construir
sua concepção estética do sublime e sua filosofia moral.
Quanto a coisa-em-si, esta foi uma batata quente que pulou de mão em mão.
Alguns tentando descartá-la, como Fichte, Schelling e Hegel. Outros, saboreando-a, como Schopenhauer e Nietzsche.
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