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(RE)EMBROMAÇÃO DE ANA FANI: O PROCESSO DE REALIZAÇÃO
Autor:
João Monti
Se em “A produção da produção”,
comentário do artigo “Novas” contradições
do espaço, de Ana Fani Carlos, defini o texto comentado como uma macaqueação
de um artigo acadêmico; neste, em que comento A reprodução da cidade como ‘negócio’ (“Urbanização e
mundialização: estudos sobre a metrópole”, Carlos & Carreras [org.], São
Paulo, Contexto, 2005 – Novas abordagens, Geousp; v. 4), da mesma autora, penso
que o termo mais adequado para qualificá-lo seria bizarro. Sim, o texto é bizarro: um amontoado de ideias baseadas no
ouvi dizer, costuradas quase ao acaso e sem relação nenhuma, tendo por pano de
fundo a opinião unipessoal e presunçosa da autora.
De um modo geral, pode se dizer,
seguramente, que os textos de Ana Fani não passam de uma coleção de pleonasmos.
Seu método consiste em levantar uma cortina de fumaça através de uma redação
prolixa, confusa, composta por frases desconexas encadeadas artificialmente por
conjunções e, de quando em quando, acrescentadas pela palavra “espaço” a
qualquer fenômeno descrito. E, embora espaço
no seu texto não passe de um adereço, podendo ser suprimido sem alterar em nada
o desenvolvimento da argumentação, Ana Fani afirma peremptoriamente – ao que
parece, só para atender fins corporativos da geografia – que o espaço é uma
categoria central para análise, essencial para se compreender a sociedade etc.
Lógico! Nada existe fora do espaço... Mas isso todo mundo sabe! Então, de que
espaço se refera a autora? Ana Fani jamais define o que quer dizer com espaço,
introduzindo-o no texto por pura obrigação, sem a menor reflexão, podendo ser
qualquer coisa. Para ilustrar este artifício retórico, diria ela que: “(...) as
transformações econômicas serão acompanhadas por estratégias imobiliárias
precisas capazes de orientar e reproduzir o investimento, neste momento
histórico, no e através do espaço”. Seria o caso de se perguntar se em algum
outro momento histórico transformações econômicas não se deram no e através do espaço”. Evidente que
sim, não estariam a vagar no vácuo! (que, aliás, também é espaço) Na verdade, a
passagem citada surtiria o mesmo efeito que, se por acaso, um romancista
incluísse a expressões no e através do
espaço a cada frase para lembrar aos leitores que os personagens não estão
avulsos numa dimensão desconhecida e isenta da força gravitacional. Ficaria
mais ou menos assim: “Durante as primeiras cobertas ela dissertou
maravilhosamente acerca de suas companheiras, no e através do espaço. Maliciosa e picante, lançou sobre elas o
ridículo, que manejava, e os sorrisos de Augusto, que com certeza desafiava, no e através do espaço. As únicas que
lhe haviam escapado eram D. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito
vizinha, e a irmã de Felipe, que estava defronte ou, como é modo dizer –
vis-à-vis, no e através do espaço”
(“Moreninha”). Com o perdão da palavra, se Joaquim Manuel de Macedo escrevesse
de forma tão enfadonha, obviamente correria o sério risco de comprometer para
sempre sua reputação de grande literato. Mas comparar Ana Fani a um escritor é
um atentado à linguagem, pois Ana Fani escreve mal, muito mal mesmo, muito pior
do que qualquer um destes redatorzinhos de quinta que abundam a imprensa marrom
do jornalismo brasileiro. (Evidentemente, há bons jornalistas, mas estes são
cada vez mais raros).
Vamos aos comentários do artigo:
Diz Ana Fani Carlos: “O processo de mundialização se realiza
reproduzindo uma nova dinâmica espacial
(...)” (p. 29, grifos meus).
É importante chamar atenção para estes
pontos: “reproduzindo” e “nova dinâmica espacial”. De partida, a expressão
causa estranheza, pois como pode o processo de mundialização (Ana Fani não
gosta do termo globalização porque não é chique) reproduzir, ou seja, produzir de novo “uma nova dinâmica
espacial”? Reprodução significa produzir uma cópia, isto é, nunca se produz nada original, mas sempre o mesmo
tipo. Por exemplo, a espécie humana se reproduz por meio de indivíduos que
pertencem exclusivamente à espécie humana e não aos equinos. Além disso, se a
autora afirma ainda que há uma “nova dinâmica espacial”, o que pressupõe uma
“velha dinâmica espacial”, então era de se esperar que ela explicasse não
apenas a nova mas a velha também. A autora, no entanto, não explica nem uma nem
outra. Ora, o leitor não sabe o que é a nova dinâmica espacial nem a velha
dinâmica espacial e espera, com razão, que as duas dinâmicas sejam esclarecidas
ao longo do texto. O que não ocorre.
No capítulo XXX, Terceira Parte de Ana Karênina, Tolstoi escreve sobre o
personagem Liêvin: “Quanto à teoria, nada mais lhe restava que obter no
estrangeiro provas irrefutáveis para concluir uma obra destinada, assim o
supunha, a estabelecer as bases de uma nova ciência exata sobre as reinas da
velha economia política”. Tolstoi deixa claro em sua obra-prima o que era a velha economia política; referia-se às
teorias ocidentais, que não se aplicavam na Rússia, citando Herbert Spencer,
portanto, o liberalismo clássico, e, também, seu antagonismo, a crítica
socialista. Sobre a nova ciência exata,
tratava-se de um projeto de Liêvin, ainda em amadurecimento, não concluído, de
escrever um compêndio definitivo sobre economia agrícola etc. Ou seja, Tolstoi
não está inventando nada de sua cabeça, pois, além de escritor genial, era
também um intelectual responsável.
Mas, terminantemente, não é o caso do
texto analisado. Pois bem, será que Ana Fani pelo menos vai-nos esclarecer esse
ponto obscuro ou vai deixar a frase no ar como é de seu costume, em outros
textos?
Prossegue Ana Fani, em seguida, na mesma
frase: “(...) estas transformações podem ser analisadas em duas escalas; a primeira se refere, especificamente, às
transformações no plano da metrópole – o modo como as mudanças do setor
produtivo se realizam produzindo um
‘espaço novo’ consequência da imposição de uma nova divisão espacial do
trabalho – o deslocamento do setor industrial se realiza com sua substituição pelas atividades de serviço e
comércio modernos e com a consequente expansão do ‘eixo empresarial-comercial’
da metrópole” (p. 29, “se realiza” e “se realizam” foram grifados por mim).
Até aqui já temos pelo menos três
novidades: uma nova dinâmica espacial,
um novo espaço e uma nova divisão espacial do trabalho.
Ademais, nada de novo, apenas a velha cantinela, tão exaustivamente recitada
nos livros didáticos do ensino básico, a saber, o aumento do terciário, a
desconcentração do parque industrial, a expansão da mancha urbana etc., donde
se conclui que a contribuição de Ana Fani até aqui é justamente a misteriosa nova trindade espacial.
Segue o texto: “Mas se as transformações
constatadas na metrópole de São Paulo revelam
de modo indiscutível, o crescimento do setor de serviços modernos é sobretudo o
movimento da reprodução espacial que revela
o conteúdo do processo de urbanização”
(p. 29, “revelam”, “revela” e “processo de urbanização” foram grifados por
mim).
Nessa passagem, a autora começa com uma
adversativa e simplesmente não termina a oração: as transformações revelam o
quê, cara pálida? Além disso, quais são os “serviços modernos”? Qual a
diferença dos serviços antigos?
Porém, nessa passagem, é possível distinguir algumas coisas interessantes.
Vejamos. Ana Fani afirma que o movimento
da reprodução espacial é o crescimento
do setor de serviços modernos. Resta saber qual é a lógica que liga uma
coisa e outra. O fato é que essa relação obscura revela, isto é, torna inteligível, explícito, descoberto, claro –
aquilo que está no cerne da questão – o processo de urbanização. Ora, se o
processo de urbanização fosse o movimento de reprodução espacial até faria
sentido, mas do jeito que está construída a frase o movimento de reprodução
espacial é meramente acessório e poderia ser perfeitamente suprimido da
sentença. Ou seja, trocando em miúdos, o que a autora quer dizer, de modo
tortuoso, é fato simples de que o crescimento do setor de serviços é o motor (movimento, conteúdo) do processo de urbanização.
Segue: “A segunda é a escala do território a partir da redefinição da
centralidade da metrópole” (p. 29). Que redefinição da centralidade da
metrópole? “Em ambas as escalas, a intervenção do estado assume papel central
no sentido de criar as condições necessárias à realização do processo de
acumulação (colocando-nos diante de uma nova relação Estado-espaço)” (p.
29, “realização” e “processo de acumulação” foram grifados por mim).
Novamente,
choveu no molhado e a única novidade agora é a “nova relação Estado-espaço”. Novamente, vamos ficar sem saber o que é
esse novo que ora aparece como dinâmica espacial, ora como espaço, ora como
divisão espacial do trabalho, ora como relação Estado-espaço! (A nova relação
Estado-espaço será pormenorizada pela autora mais à frente e sua resposta será
surpreendente).
Sigamos: “O processo de mundialização sinaliza a extensão do capitalismo, sua realização em um plano cada vez mais
ampliado espacialmente, sem todavia eliminar contradições na medida em que ao
lado da integração dos espaços no sistema mundial há desintegração e
deterioração de outros espaços” (p. 29, “processo de mundialização” e
“realização” foram grifados por mim).
Esta frase é completamente oca e não diz
absolutamente nada. Vejamos: O processo
de mundialização sinaliza a extensão do capitalismo, ou melhor, o
capitalismo se torna mundial, já que sua extensão é indicada pela
mundialização. (Cá para nós, é no mínimo estranho o capitalismo ter uma
extensão). A extensão do capitalismo se realiza
em um plano cada vez mais ampliado espacialmente... [Ora, extensão e plano
já são categorias espaciais! Essa frase é apenas redundante] (...) sem todavia eliminar contradições... A
conjunção todavia aqui é
completamente arbitrária e desnecessária, haja vista que nada indica que a extensão do capitalismo num plano cada vez
mais ampliado integra espaços suprimindo contradições. Da mesma forma a
locução na medida é arbitrária,
porque integração dos espaços no sistema
mundial e desintegração e
deterioração de outros espaços não implica contradição e, sim, posição de
oposição. Para que haja contradição, seria necessário haver a negação do mesmo
espaço e não de espaços diferentes, como espaço A (no sistema mundial) e espaço B
(outros). (A contradição deveria ser expressa pela seguinte fórmula: espaço A é espaço não-A: integração dos espaços no sistema mundial e desintegração
dos espaços no sistema mundial). Afora isso, estes espaços não significam nada
(são como bolhas de sabão); são apenas jogados no texto, visando atender,
formalmente, uma determinação corporativa de uma área de conhecimento
institucional, a geografia. Noutras palavras, apesar de serem espaços
distintos, Ana Fani sonega qualquer informação a respeito de suas diferenças,
deixando para o leitor adivinhar e resolver do que se trata tal proposição.
Segue o texto: “O processo de reprodução do capital realiza-se, hoje, através de setores importantes: o financeiro, o
de lazer e turismo e o narcotráfico – todos através da produção do espaço” (p. 29,
“processo de reprodução” e “realiza-se”, grifados por mim).
Segundo Ana Fani, o narcotráfico é um
setor importante para o processo de reprodução do capital e “se realiza”
através da produção do espaço. Seria interessante a autora explicar como o
narcotráfico produz espaço, de preferência através de exemplos e dados. Mas,
após esta menção en passant, a autora
nada fala sobre o narcotráfico. Somente num parágrafo abaixo e no final do
artigo vai mencioná-lo de novo, do mesmo modo, de forma superficial. Na
verdade, esta frase é apenas uma frase de efeito.
“O setor financeiro se realiza através do setor imobiliário, investindo na compra da
terra urbana para a produção dos edifícios corporativos que serão destinados ao
mercado de locação” (p. 29, “se realiza”, grifado por mim).
Essa afirmação é no mínimo duvidosa. O
setor financeiro não “se realiza através do setor imobiliário” apenas, suas
atividades são muito mais amplas e complexas, desde a compra e venda de
capitais até inversões nos primeiro e segundo setores. De fato, o leque de
investimentos dos bancos e fundos é muito grande, auferindo grandes lucros na
remuneração de títulos da divida pública e ações de grandes empresas, não se
restringindo, portanto, somente ao setor imobiliário. Tampouco a especulação
imobiliária é restrita somente à produção
dos edifícios corporativos que serão destinados ao mercado de locação. Tal
afirmação é no mínimo despropositada. O
mercado imobiliário é mais muito amplo e se destina também a compra e venda a
vista ou a prazo de imóveis residenciais, comerciais, grandes empreendimentos,
mão de obra, materiais de construção, terrenos etc.
“O setor de turismo e lazer através da
venda dos lugares para a realização
de seu consumo produtivo, e o narcotráfico através da dominação de lugares da
metrópole como condição da realização
do comércio de drogas” (p. 29, “realização” e “realização” foram grifados por
mim).
O setor de turismo não vende lugares e, sim, pacotes que oferecem uma gama muito
variada de serviços de viagem e passeios. Quanto ao narcotráfico, seria
interessante a autora apresentar dados que demonstrem como o tráfico de drogas
é um setor importante para o processo de acumulação de capital em termos
globais. Sem isso, essa afirmação é apenas leviana.
Continua a autora: “Como consequência,
há uma profunda metamorfose no plano da vida cotidiana” (p. 29).
Seria de bom tom, também, até mesmo em
respeito ao leitor, Ana Fani explicar como se dá essa metamorfose. Ou será que
esta frase é mais uma de suas afirmações taxativas e definitivas, sem, no
entanto, apresentar o mínimo de fundamentação?
“Em todos os níveis a produção do espaço
assume papel central para o entendimento da reprodução da sociedade. O que
significa dizer que, em seu processo de
extensão, o capitalismo, longe de prescindir do espaço, realiza-se a partir e por meio deste –
reproduzindo o espaço em um “novo patamar” (p. 30, “realiza-se” e “processo de
extensão”, grifos meu).
Mais uma frase em que a autora reitera
categoricamente o óbvio ululante, pois pode alguma coisa neste universo sem fim
prescindir do espaço? O espaço é um atributo de todas as coisas: já diziam os cartesianos,
todo corpo é extenso... O capitalismo
é extenso, logo o capitalismo é um corpo! Melhor seria dizer, como faz todo
mundo, processo de expansão do
capitalismo. Mas Ana Fani quer ser diferente, apesar de dizer sempre aquilo
que todo mundo já disse muito antes, com outras palavras. Por isso a primeira
frase da citação acima é completamente supérflua, pois a autora diz que a produção do espaço assume papel central
para o entendimento da reprodução da sociedade, porque, segundo ela, para
se entender o capitalismo, enquanto
fenômeno corpóreo, este necessita, para existir, de um espaço. O mesmo seria
afirmar que um ser humano tem e precisa de um espaço para existir e isso é
central para o entendimento do ser humano. Repito, é possível alguma coisa
existir sem e fora do espaço? Claro que não! A espacialidade é um pressuposto a
todas as coisas e está sempre subentendida em todo entendimento, porque é uma
proposição evidente, isto é, apodítica. Em nada acrescenta a análise dizer que
algo se realiza a partir e por meio
do espaço. Tratar-se-ia antes de demonstrar o contrário, que algo não se
realiza a partir e por meio do espaço, o que é impossível. Se, no entanto,
o espaço, como um fenômeno social, contribui para a compreensão da sociedade, é
preciso então discernir seu modus
operandi e não afirmar taxativamente sem nenhuma contraprova. Ou seja, é
preciso estabelecer do que se trata a natureza do espaço geográfico.
Enfim, novamente, encontramos mais uma nova
novidade: um “novo patamar”. (Até agora já são cinco, todas encobertas por
uma nuvem de mistério! Serão, ao todo, vinte e uma. Além das já citadas: “novo
momento do processo produtivo”, “novos ramos”, “nova concentração”, “nova
economia”, “novas estratégias”, “novo setor de serviços modernos”, “novo
comportamento”, “novas exigências”, “novas atividades econômicas”, “novo
momento do ciclo econômico”, “nova lógica”, “‘novos’”, “nova área”, “forma
espacial nova”, “nova hierarquia”, “novo e poderoso setor da economia”).
“Na impossibilidade de dar conta desse processo em sua totalidade, o propósito
deste trabalho é apresentar algumas questões para o entendimento do conteúdo da
urbanização de São Paulo, hoje no movimento de passagem da hegemonia do capital
industrial para o financeiro” (p. 30, “processo” grifado por mim).
Estamos ansiosos para que Ana Fani
apresente estas questões para o entendimento do conteúdo da urbanização de São
Paulo! Contudo, a passagem da hegemonia do capital industrial para o financeiro
não é um movimento de hoje. O capital financeiro é uma
realidade desde pelo menos os anos de 1929. Já na segunda metade do século XIX,
o papel dos bancos como investidor da produção foi significativo e chamou
atenção de Karl Marx – livro III, d’O
Capital. Rosa de Luxemburgo e Lênin também analisaram a fusão do capital
industrial e do financeiro, e suas implicações no imperialismo. E, é claro, não
se poderia omitir a obra seminal de Rudolf Hilferding, “O capital financeiro”,
de 1910. Ou seja, o “movimento” não é de hoje...
Segue o texto: “Assim, o processo de urbanização realiza-se como processo de reprodução da cidade e da vida na
cidade que hoje, sob o signo da mundialização, revela profundas contradições.
Neste momento, a produção da cidade aparece como necessidade da reprodução do
capital financeiro e, nesta exigência, a produção de ‘um novo espaço’” (p. 30,
“processo de urbanização”, “realiza-se” e “processo de reprodução da cidade”
foram grifados por mim).
(Se você leva a sério o que está escrito
aí, então desconfie seriamente que você tem um grave problema de déficit de Q.I.;
ou busca angariar um outro tipo de Q.I., digamos assim, transcendental).
Ora, o
processo de urbanização realiza-se como processo de reprodução da cidade e da
vida na cidade é mais uma das redundâncias de Ana Fani. Sobre o fato de o
processo de urbanização hoje, sob o signo
da mundialização, revelar contradições profundas, pergunta-se quando o
processo de urbanização não revelou profundas contradições? Quanto ao fato de o
capital financeiro exigir a produção
de” um novo espaço”, insisto, o que é esse “novo espaço”, até mesmo para que
haja parâmetros de entendimento e comparação analítica! A Ana Fani não diz o
que é esse novo espaço, mas trata-se
de edifícios corporativos para a locação.
Então por que dizer espaço? Por que não dizer textualmente edifícios corporativos para a locação? Não é trocar seis por meia
dúzia? Ah, sim, a corporação: o espaço é o “objeto” de estudo da geografia,
então o espaço tem de aparecer custe o que custar!
“(...) Este processo de transformação redefine a fluidez, estendendo a
centralidade dentro da metrópole, articulando pólos diferenciados, com uma nova concentração das atividades de
comércio, serviços e de lazer, fruto da mobilidade do capital que migra de um
setor a outro da economia em função das necessidades de reprodução, redefinindo
a produção do espaço metropolitano” (p 30, “processo de transformação” e “nova
concentração” grifados por mim).
Umas das características mais notáveis
dos textos da Fani é o fato de serem extremamente imprecisos e vagos em seus
pormenores, formando, num crescente, um conjunto maior não menos vago. Nesta passagem,
há algumas pequenas amostras. Por exemplo, a expressão “redefine a fluidez” não
mereceria uma explicação de como se procede essa redefinição da fluidez? Um artigo científico não é um jogo de
adivinhação! E que “polos” diferenciados são esses? O mesmo vale dizer a
algumas notas sobre a “nova concentração”. Não se quer muito; duas ou três
linhas explicativas ou uma apresentação de dados seriam suficientes. Mas Ana
Fani não dá a menor satisfação de como as suas ideias vão brotando em seu texto,
ao que parece, por combustão espontânea. Simplesmente o leitor deve engolir
suas ideias caprichosas e pronto!
(...) “Sintetizando, podemos afirmar que
o processo de reprodução do espaço da
metrópole, no contexto mais amplo do processo
de urbanização, a) marca a desconcentração do setor produtivo e a
acentuação da centralização do capital na metrópole (...); b) sinaliza um novo momento do processo produtivo onde novos
ramos da economia ganham importância – trata-se, particularmente, do que se
chama ‘nova economia’ contemplando o setor de turismo e lazer e dos serviços
para atender ao crescimento dessas atividades; c) o movimento da transformação
do dinheiro em capital percorre agora, preferencialmente, outros caminhos. A
criação dos fundos de investimento imobiliário atesta, por exemplo, que o ciclo
de realização do capital se desloca
para novos setores da economia, reproduzindo os lugares como condição de sua realização; d) revela uma nova relação Estado-espaço – que
aparece, por exemplo, através das políticas públicas que orientam os
investimentos em determinados setores e em determinadas áreas da metrópole com
a produção de infra-estrutura e ‘reparcelamento’ do solo urbano através da
realização de operações urbanas e da chamada requalificação de áreas – principalmente
centrais – através de ‘parcerias’ entre a prefeitura e os setores privados
acabam influenciando e orientando essas políticas; e) centralização do capital
financeiro em São Paulo em relação ao restante do território brasileiro; f)
redefinição da centralidade da metrópole no território nacional, além de
aumentar a extensão na própria metrópole e g) introdução de profundas
transformações na vida cotidiana como decorrência, (sic) de modificação na
prática socioespaciais (sic), revelada nas transformações no uso do espaço, bem
como das funções dos bairros no espaço metropolitano através de uma nova relação espaço-tempo” (pp. 30 e 31,
“processo de reprodução do espaço”, “processo de urbanização”, “processo
produtivo”, “novo momento”, “novos ramos”, “realização”, “revelada”, “nova
relação espaço-tempo” foram grifados por mim).
Ao que parece, Ana Fani tem fixação por
tudo que é novo! Contudo, ao contrário do que vinha fazendo até agora, ela
define, pela primeira vez, uma expressão formada pelo adjetivo novo, a saber, a “nova economia”.
Lamentavelmente, para nossa decepção, não é ela que define, mas aquilo que, por
ser notório e de uso corrente, recebe esta designação. Em seguida, ela revela o
que é afinal a nova relação Estado-espaço e, para a nossa surpresa, descobrimos
que essa nova relação é mais velha do
que andar para frente! Sim, pois, o poder público produz infraestrutura na
cidade há pelo menos desde as reformas do barão Haussmann, entre 1852 e 1870,
na cidade de Paris; e o planejamento moderno do uso do solo urbano data de pelo
menos o início do século XX, com as leis de zoneamento nos EUA (1916) e a célebre
Carta de Atenas (1933). (Porém a intervenção do Estado nas cidades é
antiquíssima e marcou todas as épocas históricas, sendo talvez as mais famosas,
no Ocidente, a reforma da Atenas de Péricles, no século V a.C., e a complexa
rede de aqueduto do Império Romano). Aliás, esse é um dos graves problemas
deste texto de Ana Fani: não há uma única data! Como estabelecer comparações se
não há uma única descrição detalhada dos elementos pressupostos em seu contexto
histórico? Então fica tudo no ar: novo momento, novos ramos, novo espaço...
criando, assim, retoricamente, um texto sem referências para justamente não ser
rebatido. Porém, o mais bizarro de todos estes “novos” é a “nova relação
espaço-tempo”, afirmada categoricamente, sem margem de contestação, por ser tão
bisonha. Um verdadeiro escárnio ao leitor! O restante não precisa ser
comentado, pela superficialidade das informações. O que chama a atenção,
entretanto, é a enorme recorrência de certas expressões e palavras no decorrer
do artigo. Já vimos isso com respeito às expressões ligadas ao adjetivo “novo”.
“Processo” talvez seja o campeão. Até aqui ela escreveu doze vezes a palavra processo (não há uma única página em que
não aparece a palavra, num artigo de apenas oito! ao todo são 42 referências, dentre:
“processo de mundialização”, “processo de urbanização”, “processo de
acumulação”, “processo de reprodução”, “processo de extensão”, “processo de
reprodução da cidade”, “processo de transformação”, “processo de reprodução do
espaço”, “processo produtivo”, “processo de valorização”, “processos de
globalização”, “processo ininterrupto”, “processo urbano”, “processo de
realização”, “processo de “produção do espaço”, “processos construtivos”,
“processo o [sic] valor de troca”, “processo de mudança”, “processo de
desapropriação”, “processo econômica-financeiro”, “processo atual” – haja processo!),
treze vezes o verbo realizar e suas variações, em apenas duas páginas! (Sem
contar “sinalização”, “revela”, “redefinição”, “hoje”, “momento”, “movimento”,
“transformação”, etc.). Ou seja, estilisticamente, a dissertação de Ana Fani é
deplorável!
Segue o texto: “Neste quadro revelam-se
as contradições que apontam o entendimento do processo de urbanização hoje. A
primeira delas se refere à contradição entre integração (de São Paulo na
economia mundial) e à desintegração da vida cotidiana pelo empobrecimento das
relações sociais (como aquelas de vizinhança), ao enfraquecimento do pequeno
comércio local (ponto de encontro e de reunião), ao esvaziamento das ruas pelos
moradores, substituídos pelo automóvel. A segunda refere-se à contradição entre
uma metrópole que se constrói cada vez mais sinalizando a importância do espaço
enquanto valor de troca – elemento através do qual se realiza o capital
sinalizando a construção da cidade enquanto negócio – e o espaço enquanto valor
de uso, privilegiando o espaço da realização da vida cotidiana, enquanto espaço
improdutivo, não submetido à troca e os (sic) processos de valorização” (p.
31).
Acho que esta passagem sinaliza o que disse no meu último
comentário (e o pior é que esse texto foi traduzido para o espanhol – pobre do
tradutor!).
A primeira contradição, integração de São Paulo à economia
mundial-desintegração da vida cotidiana, nada fala, porém, sobre o
empobrecimento das condições materiais do proletariado, da classe trabalhadora,
contradição fundamental do capitalismo, retendo-se apenas na superfície do processo, que, aliás, é consensual (a
antiga distinção sociológica entre comunidade e sociedade). A segunda
contradição é equivocada. Desde que o capitalismo é capitalismo, a produção é
voltada para o valor de troca (valorização
do valor). A especulação imobiliária sempre se destinou à obtenção do lucro
e o espaço enquanto valor de uso não significa que ele não está submetido à troca e aos processos de valorização, mas
justamente o contrário, pois o valor de uso do espaço é a expressão fenomênica
e singular de seu valor de troca. Conforme os ensinamentos mais básicos de
economia política, o conceito de valor de uso é uma das duas determinações da
mercadoria (a outra é o valor de troca), é a sua forma material, e, sem sombra
de dúvida, não só está submetido como
viabiliza o processo produtivo. Como vimos no meu texto anterior, “A produção
da produção de Ana Fani”, Ana Fani interpreta mal os clássicos de economia
política e utiliza seus conceitos de forma equivocada e idiossincrática. A
autora reinventa os conceitos ao seu bel prazer. Sem dúvida, o valor de verdade de seus textos só pode
advir da autoridade da posição em que ocupa na hierarquia universitária.
“Os processos de globalização não
ocultam a fragmentação do espaço [à parte meu: e por que deveriam ocultar?],
fundamento da segregação da metrópole tendo como pano de fundo o processo de
desconcentração industrial-centralização financeira. Neste sentido, o processo
urbano não sinaliza um movimento que iria do local ao global, mas uma
articulação de níveis de análise justapostos, tendo a metrópole como mediação
entre eles ” (p. 31).
Aqui dá para entender que, segundo Ana
Fani, o fundamento da segregação da
(na?) metrópole é a fragmentação do
espaço (mas o que é fragmentação do espaço?). Ora, o fundamento da
segregação (no espaço) não seria a própria dinâmica de exproração-expropriação
inerente às relações de produção no capitalismo? Fico com a segunda explicação.
Quanto à segunda frase, que se inicia
como uma continuidade lógica da frase antecedente, através da expressão “neste
sentido”, na verdade, não há nem pé nem cabeça. Vejamos: o processo urbano não sinaliza um movimento que iria do local ao global
[algum elemento subentenderia isso?], uma
articulação de níveis de análise justapostos; ou seja, o processo urbano sinaliza uma articulação de níveis de análise
justapostos... o que é níveis de
análise justapostos? Análise é um procedimento do entendimento, então,
quais são esses níveis que se justapõe? Dois níveis de pensamento que se
articulam justapostos? E como assim o processo de urbanização tem por mediação
a metrópole entre estes níveis de análise justapostos? Desculpe-me. Mas nem com
toda a boa vontade do mundo essa frase tem algum sentido. Ela simplesmente foi
escrita pelo simples dever de escrever por escrever.
Segue o texto: “Assim a espacialidade
não se define em si, e o espaço não se reduz a um quadro (como faz o
planejamento); ao contrário, indica um processo que ganha conteúdo na prática
socialespacial, cuja dinâmica revela o movimento da sociedade” (p.31).
O advérbio “assim” indica conclusão do
raciocínio anterior, que daria subsídios para tornar evidente que a espacialidade não se define em si.
Ora, não há nenhum argumento lógico no raciocínio anterior que levasse a essa
conclusão. Tampouco em que o espaço não
se reduz a um quadro; em nenhum momento sequer foi subtendido que o espaço
se reduziria a um quadro e que tal inferência foi desfeita pela argumentação de
Ana Fani. Segundo a autora, a espacialidade, que não é em si, indica um processo que ganha conteúdo na
prática socialespacial [mas uma de suas frases tautológicas]... cuja
dinâmica [que é movimento] revela o movimento da sociedade. Ana Fani está
dizendo que o movimento da sociedade é revelado pela prática socialespacial.
Então seria razoável que a autora ensinasse para nós um pouco que seja sobre a
dinâmica dessa prática socialespacial, que é, diga-se, de passagem, o conteúdo
da espacialidade. A autora, porém, se cala. Talvez porque não há nada a dizer
aqui.
Segue a autora: “Nesta direção a
metrópole aparece como um espaço-tempo; um mundo objetivo e real onde o
processo ininterrupto de produção realiza a reprodução da vida urbana em todos
os sentidos e, nesta condição, a metrópole se revela como possibilidade de
apropriação” (p. 31).
Ana Fani usa e abusa das conjunções
explicativas para ligar orações e frases desconexas, na tentativa de concatenar
ideias, pasmem, sem a menor sequência lógica. Por exemplo, ela escreve que a metrópole aparece como um espaço-tempo
e deixa esta sentença no mínimo insólita completamente solta no ar para logo em
seguida iniciar um argumento distinto. A propósito, nada fala como a metrópole
insere-se na teoria da relatividade – ironias à parte. A impressão que se tem é
que Ana Fani subestima a inteligência do leitor, valendo-se apenas da
autoridade auferida pelos seus títulos.
“Desse modo a cidade é espaço da
atividade, concretização da ação, da construção, pela ação, pela vida humana e
com isso é referência e elemento constitutivo de identidade do cidadão” (p.
31).
Que primor de pleonasmo!
“Nesta condição a memória produz-se
enquanto atividade” (p. 31).
Ora, concordamos com a sentença: memória
é atividade. A pergunta que não quer calar é o que seria a memória enquanto não atividade?
“Por isso mesmo é, também, o lugar e da
realização do desejo que extrapola a necessidade da mera sobrevivência” (p.
31).
(Essa frase é bastante discutível, mas
parece ser a única que faz um pouco de sentido no artigo inteiro).
Até aqui, reproduzimos quase
integralmente o texto. A partir de agora, destacaremos e comentaremos apenas as
passagens escolhidas quase ao acaso.
“Mas esse movimento se realiza
aprofundando contradições; o processo de reprodução continuada do espaço
metropolitano coloca em questão o plano do habitar decorrente das novas
exigências da reprodução das frações de capital na metrópole e de uma nova
relação entre Estado-espaço” (p. 32).
Onde está a contradição aí?
Curiosamente, Ana Fani se esquece ou finge esquecer da contradição fundamental
do capital, a saber, capital-trabalho. Esse esquecimento não é por acaso, pois
Ana Fani tem razões pessoais para se livrar desse inconveniente...
“Trata-se, aqui, do modo específico [?]
como o Estado atua diretamente no espaço da metrópole, construindo a
infra-estrutura necessária e as
condições para a realização das novas atividades econômicas, pois só ele é capaz
de atuar no espaço da cidade [por quê?] através de políticas que criam a
infra-estrutura necessária para realização desse ‘novo momento do ciclo
econômico’” (p. 32).
Parece que a fonte inspiradora de Ana
Fani é o “ouvir dizer”. Sua análise é simplista e repete o que é do saber comum.
Mas, tenho a impressão, que essa passagem já foi dita antes.
“O momento atual sinaliza, portanto, uma transformação no modo como o capital
financeiro se realiza na metrópole hoje;
a passagem da aplicação do dinheiro do setor produtivo industrial ao setor
imobiliário. Assim a mercadoria-espaço mudou
de sentido com a mudança de
orientação das aplicações financeiras, que produz o espaço enquanto ‘produto
imobiliário’” (p. 32, grifos meus).
Às vezes, eu me pergunto se esta redação
é produto de reflexão ou se surge das
leviandades de alguém que não tem a menor autocrítica. Se Ana Fani tivesse
compreendido as lições básicas de economia política, ela saberia que o capital
financeiro não pode subsistir sem seu correspondente material, a saber, o setor
produtivo (trabalho). Sem esta condição sine
qua non, o capital financeiro é capital fictício desprovido de valor. Na
verdade, a riqueza gerada pelo capital fictício é uma promessa que deve ser
cumprida, em última instância, pelo setor produtivo. Caso contrário, a especulação
fomentaria uma bolha financeira prestes a explodir, como ocorreu na crise
imobiliária de 2008, nos EUA. De que adiantaria os bancos ou fundos de
investimentos inverterem enorme capital no setor imobiliário se não há consumo
por causa da estagnação do capital produtivo, do desemprego etc.? No mundo
real, não existe galinha dos ovos de ouro. É o trabalho que gera valor e não os
papéis das operações financeiras. Quanto ao fato de a mercadoria-espaço mudar de sentido e se tornar produto imobiliário,
resta-nos saber qual era o sentido anterior da mercadoria-espaço. Mas, ao que
parece, a autora tenta esclarecer a seguir esse fato obscuro com mais uma de
suas conjunções e redundâncias:
“Nesse sentido, a reprodução do espaço
se realiza em um outro patamar: o espaço como momento significativo e
preferencial da realização do capital financeiro. Significa dizer que, de um
lado, o processo de reprodução da metrópole sinaliza um movimento em direção à
realização do mundial anunciado pela extensão do capitalismo a partir de novas
exigências; a principal indicaria o movimento da hegemonia do capital
industrial para o capital financeiro, trazendo como consequência a necessidade
da produção de lugares na metrópole capazes de criar as condições de sua
realização” (pp. 32 e 33).
Sem comentários. Essa passagem não
significa absolutamente nada! A julgar pelo texto, Ana Fani parece acreditar
que dinheiro nasce em árvore.
“É assim que na mesma medida em que os
estabelecimentos industriais deixam a metrópole, uma nova lógica [qual], agora
redefinida pelo capital financeiro, se instaura redefinindo os termos da
reprodução, agora centrada no espaço. Do ponto de vista da realização do ciclo
do capital industrial [qual], o crescimento da economia cria novas estratégias
para a reprodução com profundas mudanças [quais] no processo produtivo, bem
como no lugar de sua realização” (p. 33).
Insisto sempre no mesmo ponto: será que
a autora refletiu seriamente ao escrever essas esquisitices?
“O processo de produção do espaço
paulistano aponta uma tendência inequívoca, aquela que se volta à criação de
uma cidade voltada aos negócios. São Paulo, construída como ‘negócio’, realiza
a possibilidade de extensão do valor de troca [?] – revelando um movimento da
propriedade privada na metrópole como momento da reprodução do capital
financeiro que passa a investir na compra do solo urbano voltado à produção de
edifícios corporativos aos serviços modernos [quais?]” (p. 33).
Ana Fani bate na mesma tecla de seu
samba de uma nota só. Seria muito elucidativo se a autora explicasse o que
significa a extensão do valor de troca.
“Realiza-se aprofundando a contradição entre
extensão do valor de troca no espaço e a possibilidade de realização da
metrópole enquanto valor de uso, isto é, a construção do espaço voltado para a
realização da vida cotidiana” (p. 33).
Abecedário de economia política. 1ª.
lição: a mercadoria é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor de troca. Ou seja,
a mercadoria é um produto destinado à venda e à compra. Exemplo: um telefone celular
tem um valor de troca (expresso no preço vinculado ao produto) e um valor de
uso, isto é, sua utilidade, um fim: mobilidade de um aparelho telefônico,
calendário, despertador, jogos, câmera etc. Portanto, a determinação do valor
de uso não é incompatível ao valor de troca, embora ambas sejam de fato
categorias contraditórias. Mas é uma contradição dialética, que se resolve em
um terceiro termo, a realização do valor pelo trabalho abstrato.
“O que ocorre é que no processo o valor
de troca se autonomiza pela potencialização da propriedade como direito e
realidade e, com isso, redefinindo os usos e as funções dos lugares da
metrópole” (p. 33).
O
valor de troca se autonomiza pela potencialização da propriedade como direito e
realidade?! Em primeiro lugar, não há nexo nenhum entre o
valor de troca se autonomizar pela potencialização da propriedade! Não basta
apenas anunciar, é preciso demonstrar também (isto é ciência!). Em segundo
lugar, desde quando a propriedade não é potencialmente direito e realidade? Na
verdade, a propriedade é exatamente isso. Sobre o valor de troca se
autonomizar, isso significa que ele entraria no mercado apenas para cumprir sua
função venal, sem seu contraponto material, o que implicaria numa relação
tautológica da venda pela venda. Ou seja, implicaria em um consumo sem uma
contrapartida, onde consumidor compraria sem receber nada em troca. Por mais
que possamos questionar a materialidade de alguns serviços e produtos culturais
ou simbólicos, o fato é que eles cumprem uma função de uso. Quando uma pessoa
compra um ingresso para um show de uma dupla de sertanejo universitário, essa
pessoa compra a realização de um desejo, talvez, de assistir o seu ídolo,
dançar, paquerar etc. O dia em que a mercadoria perder sua determinação de
utilidade, o capitalismo deixará de existir.
“É através da atuação do Estado que o
espaço edificado da metrópole realizando a função da propriedade privada da
terra pode ser redefinido pelo processo de desapropriação; momento em que as
propriedades mudam de mãos, permitindo a expulsão da população residente dessas
áreas para outras, orientando a reocupação com outras formas e funções como
imperativo da reprodução” (p. 34).
Simplesmente, o espaço edificado da metrópole realizando a função da propriedade
privada da terra pode ser redefinido pelo processo de desapropriação não
faz sentido algum. (Talvez tenha até algum sentido o que ela quis dizer aqui,
mas, seja como for, não conseguiu expressá-lo).
Leia todo o texto de Ana Fani, depois
releia subtraindo a palavra espaço e o texto não mudará em absolutamente nada!
“No mercado imobiliário urbano, o solo
urbano [não seria o solo rural, não é?], tornado mercadoria [isso desde sempre
do capitalismo], se generaliza, assumindo uma expressão especulativa [isso
desde sempre do capitalismo], pelo desenvolvimento da troca e da
intercambialidade [troca e intercâmbio não são sinônimos?] de parcelas do
espaço [poderia ser substituído sem o menor problema por lotes], antes nas mãos
de pequenos proprietários urbanos [seriam por acaso proprietários rurais?],
gerando conflitos entre usos e o sentido que cada grupo social confere ao
espaço” (p. 34).
Isso é praxe do mercado imobiliário.
Nada de novo sob o sol!
“O desenvolvimento desse mercado de
imóveis de escritório tem, na raridade do espaço (o segmento de escritórios que
não pode se localizar em qualquer lugar do espaço metropolitano [por que
não?]), um ponto importante, definidor de suas estratégias e alianças [quais?]”
(p. 34).
A julgar pelas afirmações de Ana Fani, o
mercado imobiliário só se interessa em construir escritórios, isto é, imóveis
comerciais. Nada fala, no entanto, sobre o lucrativo mercado de imóveis
residenciais, que mobiliza grandes incorporadoras e seu correspondente aparato
financeiro, e que está por trás de políticas públicas de grande envergadura,
como o Minha Casa, Minha vida, do
Governo Federal. Para Ana Fani, a produção de espaço é a produção de
escritórios; a metrópole, a metrópole de escritórios.
“É em função dessa lógica que as transformações
econômicas são acompanhadas por estratégias imobiliárias bem precisas [até
agora Ana Fani não precisou nenhuma delas!], capazes de direcionar os
investimentos no espaço em um momento em que, segundo analistas, no Brasil, o
imóvel deixa de ser hedge (nota) para virar investimento” (p. 34).
(Nota: “Com a estabilização da economia,
o imóvel perde o papel de hedge para
os compradores e, por isso, começa a haver uma tendência de demanda por espaço
de locação. Aí entra o investidor de longo prazo”. Cf. “Boletim da Bolsa de
Imóveis de São Paulo”, Boletim Databolsa
no. 20, São Paulo, 1998 – entrevista com Hermàn Martinez) (p. 37).
Todo o argumento de Ana Fani se baseia
nessa nota, de um entrevistado sem nenhuma referência, a não ser a do próprio
boletim. Corre à boca pequena o fato do marido de Ana Fani ser um empresário da
construção e, talvez, a fonte dos conhecimentos residuais de ortodoxia
econômica de que versa a esposa. Realmente, percebe-se que Ana Fani leu muito
mal Karl Marx e seus descendentes (leia-se, entre outros, Henri Lefebvre).
Aliás, a mesma nota aparece ipsis
litteris em outros artigos de Ana Fani (num pretenso “dialogo” com Harvey –
santa pretensão!). Porém, se a autora pesquisasse um pouquinho mais, saberia
que tal jargão mencionado é extraído da lavra do economista keynesiano Hyman
Philip Minsky para explicar tipos de credores que estariam por trás das dívidas
geradoras de ciclos de crise no capitalismo. Ou seja, não é em definitivo a
explicação marxista, em que a depreciação da categoria trabalho está no centro
da crise. Ora, mas a nossa Ana Fani quer distância de todo aquilo que está
associado à miséria da classe trabalhadora. Afinal, se o povo não tem pão, que
coma brioches!
“Significa dizer que o setor financeiro
opera na construção de edifícios de escritórios – como negócio –, visando à
realização do valor de troca – o que vai ocorrer pela locação e não na venda”
(p. 34).
Alguém tem que comprar, minha filha,
alguém tem que comprar, até mesmo para locar! Não confunda alhos com bugalhos!
A propósito, o valor de troca só se realiza através da venda. O aluguel está
relacionado com a renda da terra, a qual não é senão a redistribuição de
mais-valia entre capitalistas. O valor de troca, para um inquilino, é a compra
do uso temporário de um determinado imóvel. Esse valor, do aluguel, volta para
as mãos do capital, que, para realizá-lo efetivamente, deve empregá-lo
novamente na produção. Mas evidentemente, não é do aluguel que vem o grosso do
lucro do capital financeiro, e, sim, da venda a prazo, do crédito, das ações,
dos títulos e do retorno dos altos investimentos a curto, médio e longo prazo.
“Neste contexto, se liga o capital
industrial produzindo o imóvel e o setor financeiro que vai investir na sua
construção a partir da compra do solo visando seu retorno, o que se faz com
alto retorno para os investidores” (p. 35).
O capital industrial não produz imóveis,
mas a indústria da construção.
“Assim, a construção de escritórios
destinados ao mercado de locação visa à reprodução das frações do capital (o
industrial ligado ao setor da construção realizando o lucro e o financeiro como
realização do capital bancário e fundiário) e tem, como pressuposto
fundamental, a realização do valor de troca (objetivo último daqueles que
compram espaços de escritórios construídos com finalidade de investimentos),
pela possibilidade de realização do valor de uso em um momento em que as
empresas preferem diminuir os custos, alugando e não comprando imóveis” (p.
35).
Aqui a autora já se perdeu completamente
e trocou os pés pelas mãos. Todo investimento capitalista, seja qual for,
sempre tem como pressuposto fundamental a
realização do valor de troca. A finalidade da produção capitalista, ensina
Marx, é o valor de troca. Sobre o fato de o
capital industrial realiza o lucro e o financeiro a realização do capital
bancário e fundiário, essa afirmação é completamente falaciosa. A relação
de troca propriamente capitalista – configurada na fórmula D-M-D’
(dinheiro-mercadoria-mais dinheiro) – objetiva, ao final do circuito da
mercadoria, o valor que será reempregado na produção e mais o lucro. O capital
industrial e o financeiro aspiram apenas lucrar. Quanto pela possibilidade da
realização do valor de uso... isso não significa absolutamente nada. São apenas
palavras jogadas ao léu. A realização do valor de uso é a compra.
“É assim que o uso está em estado
latente [!!!] nesse tipo de investimento, ligado de modo inexorável à
realização do valor de troca” (p. 35).
Categoricamente, não é assim! Aliás, o
uso nunca está em estado latente, mas o contrário, ele é parte fenomênica da
mercadoria, aquilo que aparece. E também não é assim que ele está ligado de modo inexorável à realização do
valor de troca. Recomendo que Ana Fani volte a estudar o ABCD da economia
política, começando por Adam Smith, para aprender como o valor de uso está
ligado ao valor de troca.
“Por sua vez há um caráter
‘especulativo’ em jogo (como algo novo [o quê?]) que pressupõe o uso, mas seu
objetivo no ato da compra é o valor de troca que a operação intermediária de
locação vai realizar” (p. 35).
Seja lá o que Ana Fani quis dizer aqui,
ela acaba de reinventar a pólvora ao constar que o valor pressupõe o uso, mas
se equivoca inteiramente quando afirma que o valor de troca vai se realizar na
locação.
“O que se deve reassaltar é que o uso
pode vir a ter sentidos diversos; há uma diferença substancial entre a compra
de uma moradia e a compra de um escritório para ser alugado [qual?]” (p. 35).
Ora, o uso não pode ter sentidos diversos, pois é essa exatamente a sua
definição: o uso deve ter sentidos
diversos! O uso de um guarda-chuva não é o mesmo de uma panela, ou de um
automóvel etc. etc. etc.
“Significa, também, que há interesses
diversos envolvendo o uso do espaço, como básico em ambas as operações
imobiliárias – o habitante compra a moradia para o seu uso, enquanto o
investidor compra um imóvel para alugar, porque representa um uso para outrem e,
nesse processo, permite a realização do ciclo do capital financeiro investido na
construção do edifício” (p. 35).
Não significa nada disso. Significa, na
verdade, que, em primeiro lugar, o investidor também é um habitante; em
segundo, que ambos, ao comprarem um imóvel, são proprietários; em terceiro, que
ambos, na condição de proprietários, usam o imóvel como bem entenderem, ou como
residência própria, ou alienando o imóvel na forma da locação. A realização do
ciclo do capital financeiro investido na construção não se dá pelo aluguel e,
sim, pelo retorno do capital investido acrescido de altas taxas de lucro,
fomentadas pela exploração do trabalho, isto é, mais-valia.
“Esse processo revela o fato de que o
valor de troca tende a se impor à sociedade em um espaço onde os lugares de
apropriação diminuem até quase desaparecerem – como é o caso dos espaços
públicos” (p. 35).
O
valor de troca, minha filha, se impôs à sociedade desde que o capitalismo
surgiu. Com relação aos espaços públicos, se a senhora lê-se com atenção os
textos de Marx (e seus descendentes, como Lefebvre), saberia que o público é
uma alienação (política) e que os interesses privados dominam a sociedade.
“Portanto este processo implica em uma
contradição à realização do valor de troca realizado na construção da ‘cidade
dos negócios’. Nessa direção, a construção da cidade dos negócios ao realizar o
solo urbano como mercadoria indispensável à reprodução do capital financeiro o
faz em detrimento da realização do uso – aquela destinada aos espaços
residenciais e públicos. Aqui o espaço improdutivo (aquele da realização da
vida cujo uso dispensa a mediação do mercado, consequentemente, da troca) se
choca com as necessidades da construção dos espaços produtivos – da realização
do valor” (p. 35).
Com a palavra “detrimento”, Ana Fani
esgota todos os clichês do jargão acadêmico. Nota-se, entretanto, nesse
parágrafo algo de estarrecedor. Apesar de Ana Fani ter verdadeira fixação pela
palavra “reprodução”, nessa passagem ele demonstra ignorar completamente o seu
conceito. O que ela chama de “espaço improdutivo” é justamente a definição de reprodução.
É a esfera onde os trabalhadores irão repor a energia para perpetuar a jornada
de trabalho. O tempo livre é justamente a engrenagem do cotidiano, aquilo que
faz mover a máquina do capital.
“A construção desse ‘novo espaço’
revela-se enquanto ‘eixo empresarial-comercial’ que aponta para a fragmentação
do espaço, uma forma espacial nova [qual?], construída segundo a lógica da
reprodução – que alia as estratégias das frações do capital, sob a coordenação
do Estado, que cria as condições necessárias à realização da totalidade
enquanto tal [e qual?]. Mas a ‘produção de um novo espaço’ é apenas aparente
[???], trata-se, antes, do momento em que o espaço, produzido no momento
histórico atual, é completamente transformado, em função das novas estratégias
impostas pela continuidade do processo econômico-financeiro sob a égide da
modernização, apoiada em um amplo desenvolvimento técnico e acompanhado pela
flexibilização e pelo deslocamento dos setores produtivos no espaço
metropolitano, cria uma nova hierarquia dos lugares, na qual a centralidade,
potencializada, expande-se espacialmente. Assim a reprodução econômica
realiza-se por meio da reprodução espacial” (p. 36).
Ora aponta, ora sinaliza, e nunca
explica. Sem comentários!
“O uso produtivo da cidade se impondo ao
uso improdutivo revela a construção da cidade dos negócios, criando a cidade
enquanto exterioridade – onde os usos entram em confronto. Desse modo, os termos
em que a reprodução se realiza revela o conflito entre os espaços produtivos e
espaços improdutivos na metrópole, bem como as condições em que se constroem os
termos da cidadania” (p. 36).
O que Ana Fani quer dizer aqui é que a
cidade dos espaços produtivos, isto é, dos negócios, ou melhor, do aluguel,
expulsa a cidade dos espaços improdutivos, isto é, do uso, da moradia, para a
periferia. (A construção dos termos da cidadania é apenas um acessório aqui).
Noutras palavras, o espaço produtivo se justapõe ao improdutivo numa relação
mecânica. (O texto de Ana Fani é extremamente formal, ao ponto de formalizar o
“movimento” daquilo que se poderia chamar, no texto da autora,
pseudodialética).
“Portanto, a integração da metrópole ao
processo de mundialização dá-se pelo movimento dialético entre integração de
São Paulo ao capitalismo internacional – centralização financeira, com
crescimento do setor bancário e dos serviços modernos; pela desintegração do
modo de vida tradicional, da organização do trabalho, das relações de
vizinhança; pela deterioração dos espaços públicos, do centro histórico, das
condições de vida na metrópole. Integração/desintegração/deterioração revelam o
movimento do processo atual, dando conteúdo à urbanização” (p. 36).
Chega a ser chocante como uma professora
universitária que se apresenta como uma das maiores especialistas em Henri
Lefebvre no Brasil desconheça o método dialético. Ora, Ana Fani não faz mais
que enumerar três termos inferidos por mera dedução, sem demonstrar a relação
de negação determinada intrínseca aos elementos contraditórios e sua passagem,
pela negação da negação, em um terceiro termo, de síntese.
No meio acadêmico universitário há duas
trilhas possíveis: uma é o reconhecimento pelo mérito do trabalho científico;
outra, a atividade burocrática. Geralmente, os professores medíocres tendem
seguir pelo caminho fácil da burocracia, onde obtém êxitos imediatos. Nessa
esfera, a atuação de bastidores e de aliança formadas por certos grupos pode
sobrepor por algum tempo o verdadeiro mérito da pesquisa de qualidade. Porém,
não por muito tempo. Cedo ou tarde, aquilo que é forjado e postiço é
desmascarado e rejeitado para o limbo da história. O penoso trabalho
científico, pautado pela ética e que dispensa as articulações políticas, é
incompatível ao expediente burocrático, pois sua força consiste em sua verdade.
“Oh Deus! Por tudo quanto tenho lido ou das lendas e histórias escutado, em
tempo algum teve um tranquilo curso o verdadeiro amor” (Shakespeare).
A certa altura, a água turva torna-se
cristalina. Ana Fani nunca será Marilena Chauí, a distância que as separa é
abissal. Mas o fato de a geografia colher frutos na burocracia é um sintoma de
sua total falência. Quando se fala em banir a corrupção, é exatamente disso de
que se trata: passar a limpo todas as instituições e zelar pela idoneidade e
isenção de suas atividades, que, no caso da universidade, deve focar na
excelência da produção de conhecimento e não em forjar estatísticas
encomendadas para encher os relatórios de órgãos avaliadores de classificação.
Não é maquiando que se constrói o conhecimento.
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