segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A (RE)EMBROMAÇÃO DE ANA FANI: O PROCESSO DE REALIZAÇÃO

A (RE)EMBROMAÇÃO DE ANA FANI: O PROCESSO DE REALIZAÇÃO

Autor: João Monti

Se em “A produção da produção”, comentário do artigo “Novas” contradições do espaço, de Ana Fani Carlos, defini o texto comentado como uma macaqueação de um artigo acadêmico; neste, em que comento A reprodução da cidade como ‘negócio’ (“Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole”, Carlos & Carreras [org.], São Paulo, Contexto, 2005 – Novas abordagens, Geousp; v. 4), da mesma autora, penso que o termo mais adequado para qualificá-lo seria bizarro. Sim, o texto é bizarro: um amontoado de ideias baseadas no ouvi dizer, costuradas quase ao acaso e sem relação nenhuma, tendo por pano de fundo a opinião unipessoal e presunçosa da autora.

De um modo geral, pode se dizer, seguramente, que os textos de Ana Fani não passam de uma coleção de pleonasmos. Seu método consiste em levantar uma cortina de fumaça através de uma redação prolixa, confusa, composta por frases desconexas encadeadas artificialmente por conjunções e, de quando em quando, acrescentadas pela palavra “espaço” a qualquer fenômeno descrito. E, embora espaço no seu texto não passe de um adereço, podendo ser suprimido sem alterar em nada o desenvolvimento da argumentação, Ana Fani afirma peremptoriamente – ao que parece, só para atender fins corporativos da geografia – que o espaço é uma categoria central para análise, essencial para se compreender a sociedade etc. Lógico! Nada existe fora do espaço... Mas isso todo mundo sabe! Então, de que espaço se refera a autora? Ana Fani jamais define o que quer dizer com espaço, introduzindo-o no texto por pura obrigação, sem a menor reflexão, podendo ser qualquer coisa. Para ilustrar este artifício retórico, diria ela que: “(...) as transformações econômicas serão acompanhadas por estratégias imobiliárias precisas capazes de orientar e reproduzir o investimento, neste momento histórico, no e através do espaço”. Seria o caso de se perguntar se em algum outro momento histórico transformações econômicas não se deram no e através do espaço”. Evidente que sim, não estariam a vagar no vácuo! (que, aliás, também é espaço) Na verdade, a passagem citada surtiria o mesmo efeito que, se por acaso, um romancista incluísse a expressões no e através do espaço a cada frase para lembrar aos leitores que os personagens não estão avulsos numa dimensão desconhecida e isenta da força gravitacional. Ficaria mais ou menos assim: “Durante as primeiras cobertas ela dissertou maravilhosamente acerca de suas companheiras, no e através do espaço. Maliciosa e picante, lançou sobre elas o ridículo, que manejava, e os sorrisos de Augusto, que com certeza desafiava, no e através do espaço. As únicas que lhe haviam escapado eram D. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito vizinha, e a irmã de Felipe, que estava defronte ou, como é modo dizer – vis-à-vis, no e através do espaço” (“Moreninha”). Com o perdão da palavra, se Joaquim Manuel de Macedo escrevesse de forma tão enfadonha, obviamente correria o sério risco de comprometer para sempre sua reputação de grande literato. Mas comparar Ana Fani a um escritor é um atentado à linguagem, pois Ana Fani escreve mal, muito mal mesmo, muito pior do que qualquer um destes redatorzinhos de quinta que abundam a imprensa marrom do jornalismo brasileiro. (Evidentemente, há bons jornalistas, mas estes são cada vez mais raros).

Vamos aos comentários do artigo:

Diz Ana Fani Carlos: “O processo de mundialização se realiza reproduzindo uma nova dinâmica espacial (...)” (p. 29, grifos meus).

É importante chamar atenção para estes pontos: “reproduzindo” e “nova dinâmica espacial”. De partida, a expressão causa estranheza, pois como pode o processo de mundialização (Ana Fani não gosta do termo globalização porque não é chique) reproduzir, ou seja, produzir de novo “uma nova dinâmica espacial”? Reprodução significa produzir uma cópia, isto é, nunca se produz nada original, mas sempre o mesmo tipo. Por exemplo, a espécie humana se reproduz por meio de indivíduos que pertencem exclusivamente à espécie humana e não aos equinos. Além disso, se a autora afirma ainda que há uma “nova dinâmica espacial”, o que pressupõe uma “velha dinâmica espacial”, então era de se esperar que ela explicasse não apenas a nova mas a velha também. A autora, no entanto, não explica nem uma nem outra. Ora, o leitor não sabe o que é a nova dinâmica espacial nem a velha dinâmica espacial e espera, com razão, que as duas dinâmicas sejam esclarecidas ao longo do texto. O que não ocorre.

No capítulo XXX, Terceira Parte de Ana Karênina, Tolstoi escreve sobre o personagem Liêvin: “Quanto à teoria, nada mais lhe restava que obter no estrangeiro provas irrefutáveis para concluir uma obra destinada, assim o supunha, a estabelecer as bases de uma nova ciência exata sobre as reinas da velha economia política”. Tolstoi deixa claro em sua obra-prima o que era a velha economia política; referia-se às teorias ocidentais, que não se aplicavam na Rússia, citando Herbert Spencer, portanto, o liberalismo clássico, e, também, seu antagonismo, a crítica socialista. Sobre a nova ciência exata, tratava-se de um projeto de Liêvin, ainda em amadurecimento, não concluído, de escrever um compêndio definitivo sobre economia agrícola etc. Ou seja, Tolstoi não está inventando nada de sua cabeça, pois, além de escritor genial, era também um intelectual responsável.

Mas, terminantemente, não é o caso do texto analisado. Pois bem, será que Ana Fani pelo menos vai-nos esclarecer esse ponto obscuro ou vai deixar a frase no ar como é de seu costume, em outros textos?

Prossegue Ana Fani, em seguida, na mesma frase: “(...) estas transformações podem ser analisadas em duas escalas; a primeira se refere, especificamente, às transformações no plano da metrópole – o modo como as mudanças do setor produtivo se realizam produzindo um ‘espaço novo’ consequência da imposição de uma nova divisão espacial do trabalho – o deslocamento do setor industrial se realiza com sua substituição pelas atividades de serviço e comércio modernos e com a consequente expansão do ‘eixo empresarial-comercial’ da metrópole” (p. 29, “se realiza” e “se realizam” foram grifados por mim).

Até aqui já temos pelo menos três novidades: uma nova dinâmica espacial, um novo espaço e uma nova divisão espacial do trabalho. Ademais, nada de novo, apenas a velha cantinela, tão exaustivamente recitada nos livros didáticos do ensino básico, a saber, o aumento do terciário, a desconcentração do parque industrial, a expansão da mancha urbana etc., donde se conclui que a contribuição de Ana Fani até aqui é justamente a misteriosa nova trindade espacial.

Segue o texto: “Mas se as transformações constatadas na metrópole de São Paulo revelam de modo indiscutível, o crescimento do setor de serviços modernos é sobretudo o movimento da reprodução espacial que revela o conteúdo do processo de urbanização” (p. 29, “revelam”, “revela” e “processo de urbanização” foram grifados por mim).

Nessa passagem, a autora começa com uma adversativa e simplesmente não termina a oração: as transformações revelam o quê, cara pálida? Além disso, quais são os “serviços modernos”? Qual a diferença dos serviços antigos? Porém, nessa passagem, é possível distinguir algumas coisas interessantes. Vejamos. Ana Fani afirma que o movimento da reprodução espacial é o crescimento do setor de serviços modernos. Resta saber qual é a lógica que liga uma coisa e outra. O fato é que essa relação obscura revela, isto é, torna inteligível, explícito, descoberto, claro – aquilo que está no cerne da questão – o processo de urbanização. Ora, se o processo de urbanização fosse o movimento de reprodução espacial até faria sentido, mas do jeito que está construída a frase o movimento de reprodução espacial é meramente acessório e poderia ser perfeitamente suprimido da sentença. Ou seja, trocando em miúdos, o que a autora quer dizer, de modo tortuoso, é fato simples de que o crescimento do setor de serviços é o motor (movimento, conteúdo) do processo de urbanização.

Segue: “A segunda é a escala do território a partir da redefinição da centralidade da metrópole” (p. 29). Que redefinição da centralidade da metrópole? “Em ambas as escalas, a intervenção do estado assume papel central no sentido de criar as condições necessárias à realização do processo de acumulação (colocando-nos diante de uma nova relação Estado-espaço)” (p. 29, “realização” e “processo de acumulação” foram grifados por mim).

Novamente, choveu no molhado e a única novidade agora é a “nova relação Estado-espaço”. Novamente, vamos ficar sem saber o que é esse novo que ora aparece como dinâmica espacial, ora como espaço, ora como divisão espacial do trabalho, ora como relação Estado-espaço! (A nova relação Estado-espaço será pormenorizada pela autora mais à frente e sua resposta será surpreendente).

Sigamos: “O processo de mundialização sinaliza a extensão do capitalismo, sua realização em um plano cada vez mais ampliado espacialmente, sem todavia eliminar contradições na medida em que ao lado da integração dos espaços no sistema mundial há desintegração e deterioração de outros espaços” (p. 29, “processo de mundialização” e “realização” foram grifados por mim).

Esta frase é completamente oca e não diz absolutamente nada. Vejamos: O processo de mundialização sinaliza a extensão do capitalismo, ou melhor, o capitalismo se torna mundial, já que sua extensão é indicada pela mundialização. (Cá para nós, é no mínimo estranho o capitalismo ter uma extensão). A extensão do capitalismo se realiza em um plano cada vez mais ampliado espacialmente... [Ora, extensão e plano já são categorias espaciais! Essa frase é apenas redundante] (...) sem todavia eliminar contradições... A conjunção todavia aqui é completamente arbitrária e desnecessária, haja vista que nada indica que a extensão do capitalismo num plano cada vez mais ampliado integra espaços suprimindo contradições. Da mesma forma a locução na medida é arbitrária, porque integração dos espaços no sistema mundial e desintegração e deterioração de outros espaços não implica contradição e, sim, posição de oposição. Para que haja contradição, seria necessário haver a negação do mesmo espaço e não de espaços diferentes, como espaço A (no sistema mundial) e espaço B (outros). (A contradição deveria ser expressa pela seguinte fórmula: espaço A é espaço não-A: integração dos espaços no sistema mundial e desintegração dos espaços no sistema mundial). Afora isso, estes espaços não significam nada (são como bolhas de sabão); são apenas jogados no texto, visando atender, formalmente, uma determinação corporativa de uma área de conhecimento institucional, a geografia. Noutras palavras, apesar de serem espaços distintos, Ana Fani sonega qualquer informação a respeito de suas diferenças, deixando para o leitor adivinhar e resolver do que se trata tal proposição.

Segue o texto: “O processo de reprodução do capital realiza-se, hoje, através de setores importantes: o financeiro, o de lazer e turismo e o narcotráfico – todos através da produção do espaço” (p. 29, “processo de reprodução” e “realiza-se”, grifados por mim).

Segundo Ana Fani, o narcotráfico é um setor importante para o processo de reprodução do capital e “se realiza” através da produção do espaço. Seria interessante a autora explicar como o narcotráfico produz espaço, de preferência através de exemplos e dados. Mas, após esta menção en passant, a autora nada fala sobre o narcotráfico. Somente num parágrafo abaixo e no final do artigo vai mencioná-lo de novo, do mesmo modo, de forma superficial. Na verdade, esta frase é apenas uma frase de efeito.

“O setor financeiro se realiza através do setor imobiliário, investindo na compra da terra urbana para a produção dos edifícios corporativos que serão destinados ao mercado de locação” (p. 29, “se realiza”, grifado por mim).

Essa afirmação é no mínimo duvidosa. O setor financeiro não “se realiza através do setor imobiliário” apenas, suas atividades são muito mais amplas e complexas, desde a compra e venda de capitais até inversões nos primeiro e segundo setores. De fato, o leque de investimentos dos bancos e fundos é muito grande, auferindo grandes lucros na remuneração de títulos da divida pública e ações de grandes empresas, não se restringindo, portanto, somente ao setor imobiliário. Tampouco a especulação imobiliária é restrita somente à produção dos edifícios corporativos que serão destinados ao mercado de locação. Tal afirmação é no mínimo despropositada. O mercado imobiliário é mais muito amplo e se destina também a compra e venda a vista ou a prazo de imóveis residenciais, comerciais, grandes empreendimentos, mão de obra, materiais de construção, terrenos etc.

“O setor de turismo e lazer através da venda dos lugares para a realização de seu consumo produtivo, e o narcotráfico através da dominação de lugares da metrópole como condição da realização do comércio de drogas” (p. 29, “realização” e “realização” foram grifados por mim).

O setor de turismo não vende lugares e, sim, pacotes que oferecem uma gama muito variada de serviços de viagem e passeios. Quanto ao narcotráfico, seria interessante a autora apresentar dados que demonstrem como o tráfico de drogas é um setor importante para o processo de acumulação de capital em termos globais. Sem isso, essa afirmação é apenas leviana.

Continua a autora: “Como consequência, há uma profunda metamorfose no plano da vida cotidiana” (p. 29).

Seria de bom tom, também, até mesmo em respeito ao leitor, Ana Fani explicar como se dá essa metamorfose. Ou será que esta frase é mais uma de suas afirmações taxativas e definitivas, sem, no entanto, apresentar o mínimo de fundamentação?

“Em todos os níveis a produção do espaço assume papel central para o entendimento da reprodução da sociedade. O que significa dizer que, em seu processo de extensão, o capitalismo, longe de prescindir do espaço, realiza-se a partir e por meio deste – reproduzindo o espaço em um “novo patamar” (p. 30, “realiza-se” e “processo de extensão”, grifos meu).

Mais uma frase em que a autora reitera categoricamente o óbvio ululante, pois pode alguma coisa neste universo sem fim prescindir do espaço? O espaço é um atributo de todas as coisas: já diziam os cartesianos, todo corpo é extenso... O capitalismo é extenso, logo o capitalismo é um corpo! Melhor seria dizer, como faz todo mundo, processo de expansão do capitalismo. Mas Ana Fani quer ser diferente, apesar de dizer sempre aquilo que todo mundo já disse muito antes, com outras palavras. Por isso a primeira frase da citação acima é completamente supérflua, pois a autora diz que a produção do espaço assume papel central para o entendimento da reprodução da sociedade, porque, segundo ela, para se entender o capitalismo, enquanto fenômeno corpóreo, este necessita, para existir, de um espaço. O mesmo seria afirmar que um ser humano tem e precisa de um espaço para existir e isso é central para o entendimento do ser humano. Repito, é possível alguma coisa existir sem e fora do espaço? Claro que não! A espacialidade é um pressuposto a todas as coisas e está sempre subentendida em todo entendimento, porque é uma proposição evidente, isto é, apodítica. Em nada acrescenta a análise dizer que algo se realiza a partir e por meio do espaço. Tratar-se-ia antes de demonstrar o contrário, que algo não se realiza a partir e por meio do espaço, o que é impossível. Se, no entanto, o espaço, como um fenômeno social, contribui para a compreensão da sociedade, é preciso então discernir seu modus operandi e não afirmar taxativamente sem nenhuma contraprova. Ou seja, é preciso estabelecer do que se trata a natureza do espaço geográfico.

Enfim, novamente, encontramos mais uma nova novidade: um “novo patamar”. (Até agora já são cinco, todas encobertas por uma nuvem de mistério! Serão, ao todo, vinte e uma. Além das já citadas: “novo momento do processo produtivo”, “novos ramos”, “nova concentração”, “nova economia”, “novas estratégias”, “novo setor de serviços modernos”, “novo comportamento”, “novas exigências”, “novas atividades econômicas”, “novo momento do ciclo econômico”, “nova lógica”, “‘novos’”, “nova área”, “forma espacial nova”, “nova hierarquia”, “novo e poderoso setor da economia”).

“Na impossibilidade de dar conta desse processo em sua totalidade, o propósito deste trabalho é apresentar algumas questões para o entendimento do conteúdo da urbanização de São Paulo, hoje no movimento de passagem da hegemonia do capital industrial para o financeiro” (p. 30, “processo” grifado por mim).

Estamos ansiosos para que Ana Fani apresente estas questões para o entendimento do conteúdo da urbanização de São Paulo! Contudo, a passagem da hegemonia do capital industrial para o financeiro não é um movimento de hoje. O capital financeiro é uma realidade desde pelo menos os anos de 1929. Já na segunda metade do século XIX, o papel dos bancos como investidor da produção foi significativo e chamou atenção de Karl Marx – livro III, d’O Capital. Rosa de Luxemburgo e Lênin também analisaram a fusão do capital industrial e do financeiro, e suas implicações no imperialismo. E, é claro, não se poderia omitir a obra seminal de Rudolf Hilferding, “O capital financeiro”, de 1910. Ou seja, o “movimento” não é de hoje...

Segue o texto: “Assim, o processo de urbanização realiza-se como processo de reprodução da cidade e da vida na cidade que hoje, sob o signo da mundialização, revela profundas contradições. Neste momento, a produção da cidade aparece como necessidade da reprodução do capital financeiro e, nesta exigência, a produção de ‘um novo espaço’” (p. 30, “processo de urbanização”, “realiza-se” e “processo de reprodução da cidade” foram grifados por mim).

(Se você leva a sério o que está escrito aí, então desconfie seriamente que você tem um grave problema de déficit de Q.I.; ou busca angariar um outro tipo de Q.I., digamos assim, transcendental).

Ora, o processo de urbanização realiza-se como processo de reprodução da cidade e da vida na cidade é mais uma das redundâncias de Ana Fani. Sobre o fato de o processo de urbanização hoje, sob o signo da mundialização, revelar contradições profundas, pergunta-se quando o processo de urbanização não revelou profundas contradições? Quanto ao fato de o capital financeiro exigir a produção de” um novo espaço”, insisto, o que é esse “novo espaço”, até mesmo para que haja parâmetros de entendimento e comparação analítica! A Ana Fani não diz o que é esse novo espaço, mas trata-se de edifícios corporativos para a locação. Então por que dizer espaço? Por que não dizer textualmente edifícios corporativos para a locação? Não é trocar seis por meia dúzia? Ah, sim, a corporação: o espaço é o “objeto” de estudo da geografia, então o espaço tem de aparecer custe o que custar!

“(...) Este processo de transformação redefine a fluidez, estendendo a centralidade dentro da metrópole, articulando pólos diferenciados, com uma nova concentração das atividades de comércio, serviços e de lazer, fruto da mobilidade do capital que migra de um setor a outro da economia em função das necessidades de reprodução, redefinindo a produção do espaço metropolitano” (p 30, “processo de transformação” e “nova concentração” grifados por mim).

Umas das características mais notáveis dos textos da Fani é o fato de serem extremamente imprecisos e vagos em seus pormenores, formando, num crescente, um conjunto maior não menos vago. Nesta passagem, há algumas pequenas amostras. Por exemplo, a expressão “redefine a fluidez” não mereceria uma explicação de como se procede essa redefinição da fluidez? Um artigo científico não é um jogo de adivinhação! E que “polos” diferenciados são esses? O mesmo vale dizer a algumas notas sobre a “nova concentração”. Não se quer muito; duas ou três linhas explicativas ou uma apresentação de dados seriam suficientes. Mas Ana Fani não dá a menor satisfação de como as suas ideias vão brotando em seu texto, ao que parece, por combustão espontânea. Simplesmente o leitor deve engolir suas ideias caprichosas e pronto!

(...) “Sintetizando, podemos afirmar que o processo de reprodução do espaço da metrópole, no contexto mais amplo do processo de urbanização, a) marca a desconcentração do setor produtivo e a acentuação da centralização do capital na metrópole (...); b) sinaliza um novo momento do processo produtivo onde novos ramos da economia ganham importância – trata-se, particularmente, do que se chama ‘nova economia’ contemplando o setor de turismo e lazer e dos serviços para atender ao crescimento dessas atividades; c) o movimento da transformação do dinheiro em capital percorre agora, preferencialmente, outros caminhos. A criação dos fundos de investimento imobiliário atesta, por exemplo, que o ciclo de realização do capital se desloca para novos setores da economia, reproduzindo os lugares como condição de sua realização; d) revela uma nova relação Estado-espaço – que aparece, por exemplo, através das políticas públicas que orientam os investimentos em determinados setores e em determinadas áreas da metrópole com a produção de infra-estrutura e ‘reparcelamento’ do solo urbano através da realização de operações urbanas e da chamada requalificação de áreas – principalmente centrais – através de ‘parcerias’ entre a prefeitura e os setores privados acabam influenciando e orientando essas políticas; e) centralização do capital financeiro em São Paulo em relação ao restante do território brasileiro; f) redefinição da centralidade da metrópole no território nacional, além de aumentar a extensão na própria metrópole e g) introdução de profundas transformações na vida cotidiana como decorrência, (sic) de modificação na prática socioespaciais (sic), revelada nas transformações no uso do espaço, bem como das funções dos bairros no espaço metropolitano através de uma nova relação espaço-tempo” (pp. 30 e 31, “processo de reprodução do espaço”, “processo de urbanização”, “processo produtivo”, “novo momento”, “novos ramos”, “realização”, “revelada”, “nova relação espaço-tempo” foram grifados por mim).

Ao que parece, Ana Fani tem fixação por tudo que é novo! Contudo, ao contrário do que vinha fazendo até agora, ela define, pela primeira vez, uma expressão formada pelo adjetivo novo, a saber, a “nova economia”. Lamentavelmente, para nossa decepção, não é ela que define, mas aquilo que, por ser notório e de uso corrente, recebe esta designação. Em seguida, ela revela o que é afinal a nova relação Estado-espaço e, para a nossa surpresa, descobrimos que essa nova relação é mais velha do que andar para frente! Sim, pois, o poder público produz infraestrutura na cidade há pelo menos desde as reformas do barão Haussmann, entre 1852 e 1870, na cidade de Paris; e o planejamento moderno do uso do solo urbano data de pelo menos o início do século XX, com as leis de zoneamento nos EUA (1916) e a célebre Carta de Atenas (1933). (Porém a intervenção do Estado nas cidades é antiquíssima e marcou todas as épocas históricas, sendo talvez as mais famosas, no Ocidente, a reforma da Atenas de Péricles, no século V a.C., e a complexa rede de aqueduto do Império Romano). Aliás, esse é um dos graves problemas deste texto de Ana Fani: não há uma única data! Como estabelecer comparações se não há uma única descrição detalhada dos elementos pressupostos em seu contexto histórico? Então fica tudo no ar: novo momento, novos ramos, novo espaço... criando, assim, retoricamente, um texto sem referências para justamente não ser rebatido. Porém, o mais bizarro de todos estes “novos” é a “nova relação espaço-tempo”, afirmada categoricamente, sem margem de contestação, por ser tão bisonha. Um verdadeiro escárnio ao leitor! O restante não precisa ser comentado, pela superficialidade das informações. O que chama a atenção, entretanto, é a enorme recorrência de certas expressões e palavras no decorrer do artigo. Já vimos isso com respeito às expressões ligadas ao adjetivo “novo”. “Processo” talvez seja o campeão. Até aqui ela escreveu doze vezes a palavra processo (não há uma única página em que não aparece a palavra, num artigo de apenas oito! ao todo são 42 referências, dentre: “processo de mundialização”, “processo de urbanização”, “processo de acumulação”, “processo de reprodução”, “processo de extensão”, “processo de reprodução da cidade”, “processo de transformação”, “processo de reprodução do espaço”, “processo produtivo”, “processo de valorização”, “processos de globalização”, “processo ininterrupto”, “processo urbano”, “processo de realização”, “processo de “produção do espaço”, “processos construtivos”, “processo o [sic] valor de troca”, “processo de mudança”, “processo de desapropriação”, “processo econômica-financeiro”, “processo atual” – haja processo!), treze vezes o verbo realizar e suas variações, em apenas duas páginas! (Sem contar “sinalização”, “revela”, “redefinição”, “hoje”, “momento”, “movimento”, “transformação”, etc.). Ou seja, estilisticamente, a dissertação de Ana Fani é deplorável!

Segue o texto: “Neste quadro revelam-se as contradições que apontam o entendimento do processo de urbanização hoje. A primeira delas se refere à contradição entre integração (de São Paulo na economia mundial) e à desintegração da vida cotidiana pelo empobrecimento das relações sociais (como aquelas de vizinhança), ao enfraquecimento do pequeno comércio local (ponto de encontro e de reunião), ao esvaziamento das ruas pelos moradores, substituídos pelo automóvel. A segunda refere-se à contradição entre uma metrópole que se constrói cada vez mais sinalizando a importância do espaço enquanto valor de troca – elemento através do qual se realiza o capital sinalizando a construção da cidade enquanto negócio – e o espaço enquanto valor de uso, privilegiando o espaço da realização da vida cotidiana, enquanto espaço improdutivo, não submetido à troca e os (sic) processos de valorização” (p. 31).

Acho que esta passagem sinaliza o que disse no meu último comentário (e o pior é que esse texto foi traduzido para o espanhol – pobre do tradutor!).

A primeira contradição, integração de São Paulo à economia mundial-desintegração da vida cotidiana, nada fala, porém, sobre o empobrecimento das condições materiais do proletariado, da classe trabalhadora, contradição fundamental do capitalismo, retendo-se apenas na superfície do processo, que, aliás, é consensual (a antiga distinção sociológica entre comunidade e sociedade). A segunda contradição é equivocada. Desde que o capitalismo é capitalismo, a produção é voltada para o valor de troca (valorização do valor). A especulação imobiliária sempre se destinou à obtenção do lucro e o espaço enquanto valor de uso não significa que ele não está submetido à troca e aos processos de valorização, mas justamente o contrário, pois o valor de uso do espaço é a expressão fenomênica e singular de seu valor de troca. Conforme os ensinamentos mais básicos de economia política, o conceito de valor de uso é uma das duas determinações da mercadoria (a outra é o valor de troca), é a sua forma material, e, sem sombra de dúvida, não só está submetido como viabiliza o processo produtivo. Como vimos no meu texto anterior, “A produção da produção de Ana Fani”, Ana Fani interpreta mal os clássicos de economia política e utiliza seus conceitos de forma equivocada e idiossincrática. A autora reinventa os conceitos ao seu bel prazer. Sem dúvida, o valor de verdade de seus textos só pode advir da autoridade da posição em que ocupa na hierarquia universitária.

“Os processos de globalização não ocultam a fragmentação do espaço [à parte meu: e por que deveriam ocultar?], fundamento da segregação da metrópole tendo como pano de fundo o processo de desconcentração industrial-centralização financeira. Neste sentido, o processo urbano não sinaliza um movimento que iria do local ao global, mas uma articulação de níveis de análise justapostos, tendo a metrópole como mediação entre eles ” (p. 31).

Aqui dá para entender que, segundo Ana Fani, o fundamento da segregação da (na?) metrópole é a fragmentação do espaço (mas o que é fragmentação do espaço?). Ora, o fundamento da segregação (no espaço) não seria a própria dinâmica de exproração-expropriação inerente às relações de produção no capitalismo? Fico com a segunda explicação.

Quanto à segunda frase, que se inicia como uma continuidade lógica da frase antecedente, através da expressão “neste sentido”, na verdade, não há nem pé nem cabeça. Vejamos: o processo urbano não sinaliza um movimento que iria do local ao global [algum elemento subentenderia isso?], uma articulação de níveis de análise justapostos; ou seja, o processo urbano sinaliza uma articulação de níveis de análise justapostos... o que é níveis de análise justapostos? Análise é um procedimento do entendimento, então, quais são esses níveis que se justapõe? Dois níveis de pensamento que se articulam justapostos? E como assim o processo de urbanização tem por mediação a metrópole entre estes níveis de análise justapostos? Desculpe-me. Mas nem com toda a boa vontade do mundo essa frase tem algum sentido. Ela simplesmente foi escrita pelo simples dever de escrever por escrever.

Segue o texto: “Assim a espacialidade não se define em si, e o espaço não se reduz a um quadro (como faz o planejamento); ao contrário, indica um processo que ganha conteúdo na prática socialespacial, cuja dinâmica revela o movimento da sociedade” (p.31).

O advérbio “assim” indica conclusão do raciocínio anterior, que daria subsídios para tornar evidente que a espacialidade não se define em si. Ora, não há nenhum argumento lógico no raciocínio anterior que levasse a essa conclusão. Tampouco em que o espaço não se reduz a um quadro; em nenhum momento sequer foi subtendido que o espaço se reduziria a um quadro e que tal inferência foi desfeita pela argumentação de Ana Fani. Segundo a autora, a espacialidade, que não é em si, indica um processo que ganha conteúdo na prática socialespacial [mas uma de suas frases tautológicas]... cuja dinâmica [que é movimento] revela o movimento da sociedade. Ana Fani está dizendo que o movimento da sociedade é revelado pela prática socialespacial. Então seria razoável que a autora ensinasse para nós um pouco que seja sobre a dinâmica dessa prática socialespacial, que é, diga-se, de passagem, o conteúdo da espacialidade. A autora, porém, se cala. Talvez porque não há nada a dizer aqui.

Segue a autora: “Nesta direção a metrópole aparece como um espaço-tempo; um mundo objetivo e real onde o processo ininterrupto de produção realiza a reprodução da vida urbana em todos os sentidos e, nesta condição, a metrópole se revela como possibilidade de apropriação” (p. 31).

Ana Fani usa e abusa das conjunções explicativas para ligar orações e frases desconexas, na tentativa de concatenar ideias, pasmem, sem a menor sequência lógica. Por exemplo, ela escreve que a metrópole aparece como um espaço-tempo e deixa esta sentença no mínimo insólita completamente solta no ar para logo em seguida iniciar um argumento distinto. A propósito, nada fala como a metrópole insere-se na teoria da relatividade – ironias à parte. A impressão que se tem é que Ana Fani subestima a inteligência do leitor, valendo-se apenas da autoridade auferida pelos seus títulos.

“Desse modo a cidade é espaço da atividade, concretização da ação, da construção, pela ação, pela vida humana e com isso é referência e elemento constitutivo de identidade do cidadão” (p. 31).

Que primor de pleonasmo!

“Nesta condição a memória produz-se enquanto atividade” (p. 31).

Ora, concordamos com a sentença: memória é atividade. A pergunta que não quer calar é o que seria a memória enquanto não atividade?

“Por isso mesmo é, também, o lugar e da realização do desejo que extrapola a necessidade da mera sobrevivência” (p. 31).

(Essa frase é bastante discutível, mas parece ser a única que faz um pouco de sentido no artigo inteiro).

Até aqui, reproduzimos quase integralmente o texto. A partir de agora, destacaremos e comentaremos apenas as passagens escolhidas quase ao acaso. 

“Mas esse movimento se realiza aprofundando contradições; o processo de reprodução continuada do espaço metropolitano coloca em questão o plano do habitar decorrente das novas exigências da reprodução das frações de capital na metrópole e de uma nova relação entre Estado-espaço” (p. 32).

Onde está a contradição aí? Curiosamente, Ana Fani se esquece ou finge esquecer da contradição fundamental do capital, a saber, capital-trabalho. Esse esquecimento não é por acaso, pois Ana Fani tem razões pessoais para se livrar desse inconveniente...

“Trata-se, aqui, do modo específico [?] como o Estado atua diretamente no espaço da metrópole, construindo a infra-estrutura  necessária e as condições para a realização das novas atividades econômicas, pois só ele é capaz de atuar no espaço da cidade [por quê?] através de políticas que criam a infra-estrutura necessária para realização desse ‘novo momento do ciclo econômico’” (p. 32).

Parece que a fonte inspiradora de Ana Fani é o “ouvir dizer”. Sua análise é simplista e repete o que é do saber comum. Mas, tenho a impressão, que essa passagem já foi dita antes.

“O momento atual sinaliza, portanto, uma transformação no modo como o capital financeiro se realiza na metrópole hoje; a passagem da aplicação do dinheiro do setor produtivo industrial ao setor imobiliário. Assim a mercadoria-espaço mudou de sentido com a mudança de orientação das aplicações financeiras, que produz o espaço enquanto ‘produto imobiliário’” (p. 32, grifos meus).

Às vezes, eu me pergunto se esta redação é produto de reflexão ou se surge das leviandades de alguém que não tem a menor autocrítica. Se Ana Fani tivesse compreendido as lições básicas de economia política, ela saberia que o capital financeiro não pode subsistir sem seu correspondente material, a saber, o setor produtivo (trabalho). Sem esta condição sine qua non, o capital financeiro é capital fictício desprovido de valor. Na verdade, a riqueza gerada pelo capital fictício é uma promessa que deve ser cumprida, em última instância, pelo setor produtivo. Caso contrário, a especulação fomentaria uma bolha financeira prestes a explodir, como ocorreu na crise imobiliária de 2008, nos EUA. De que adiantaria os bancos ou fundos de investimentos inverterem enorme capital no setor imobiliário se não há consumo por causa da estagnação do capital produtivo, do desemprego etc.? No mundo real, não existe galinha dos ovos de ouro. É o trabalho que gera valor e não os papéis das operações financeiras. Quanto ao fato de a mercadoria-espaço mudar de sentido e se tornar produto imobiliário, resta-nos saber qual era o sentido anterior da mercadoria-espaço. Mas, ao que parece, a autora tenta esclarecer a seguir esse fato obscuro com mais uma de suas conjunções e redundâncias:

“Nesse sentido, a reprodução do espaço se realiza em um outro patamar: o espaço como momento significativo e preferencial da realização do capital financeiro. Significa dizer que, de um lado, o processo de reprodução da metrópole sinaliza um movimento em direção à realização do mundial anunciado pela extensão do capitalismo a partir de novas exigências; a principal indicaria o movimento da hegemonia do capital industrial para o capital financeiro, trazendo como consequência a necessidade da produção de lugares na metrópole capazes de criar as condições de sua realização” (pp. 32 e 33).

Sem comentários. Essa passagem não significa absolutamente nada! A julgar pelo texto, Ana Fani parece acreditar que dinheiro nasce em árvore.

“É assim que na mesma medida em que os estabelecimentos industriais deixam a metrópole, uma nova lógica [qual], agora redefinida pelo capital financeiro, se instaura redefinindo os termos da reprodução, agora centrada no espaço. Do ponto de vista da realização do ciclo do capital industrial [qual], o crescimento da economia cria novas estratégias para a reprodução com profundas mudanças [quais] no processo produtivo, bem como no lugar de sua realização” (p. 33).

Insisto sempre no mesmo ponto: será que a autora refletiu seriamente ao escrever essas esquisitices?

“O processo de produção do espaço paulistano aponta uma tendência inequívoca, aquela que se volta à criação de uma cidade voltada aos negócios. São Paulo, construída como ‘negócio’, realiza a possibilidade de extensão do valor de troca [?] – revelando um movimento da propriedade privada na metrópole como momento da reprodução do capital financeiro que passa a investir na compra do solo urbano voltado à produção de edifícios corporativos aos serviços modernos [quais?]” (p. 33).

Ana Fani bate na mesma tecla de seu samba de uma nota só. Seria muito elucidativo se a autora explicasse o que significa a extensão do valor de troca.

“Realiza-se aprofundando a contradição entre extensão do valor de troca no espaço e a possibilidade de realização da metrópole enquanto valor de uso, isto é, a construção do espaço voltado para a realização da vida cotidiana” (p. 33).

Abecedário de economia política. 1ª. lição: a mercadoria é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor de troca. Ou seja, a mercadoria é um produto destinado à venda e à compra. Exemplo: um telefone celular tem um valor de troca (expresso no preço vinculado ao produto) e um valor de uso, isto é, sua utilidade, um fim: mobilidade de um aparelho telefônico, calendário, despertador, jogos, câmera etc. Portanto, a determinação do valor de uso não é incompatível ao valor de troca, embora ambas sejam de fato categorias contraditórias. Mas é uma contradição dialética, que se resolve em um terceiro termo, a realização do valor pelo trabalho abstrato.

“O que ocorre é que no processo o valor de troca se autonomiza pela potencialização da propriedade como direito e realidade e, com isso, redefinindo os usos e as funções dos lugares da metrópole” (p. 33).

O valor de troca se autonomiza pela potencialização da propriedade como direito e realidade?! Em primeiro lugar, não há nexo nenhum entre o valor de troca se autonomizar pela potencialização da propriedade! Não basta apenas anunciar, é preciso demonstrar também (isto é ciência!). Em segundo lugar, desde quando a propriedade não é potencialmente direito e realidade? Na verdade, a propriedade é exatamente isso. Sobre o valor de troca se autonomizar, isso significa que ele entraria no mercado apenas para cumprir sua função venal, sem seu contraponto material, o que implicaria numa relação tautológica da venda pela venda. Ou seja, implicaria em um consumo sem uma contrapartida, onde consumidor compraria sem receber nada em troca. Por mais que possamos questionar a materialidade de alguns serviços e produtos culturais ou simbólicos, o fato é que eles cumprem uma função de uso. Quando uma pessoa compra um ingresso para um show de uma dupla de sertanejo universitário, essa pessoa compra a realização de um desejo, talvez, de assistir o seu ídolo, dançar, paquerar etc. O dia em que a mercadoria perder sua determinação de utilidade, o capitalismo deixará de existir.

“É através da atuação do Estado que o espaço edificado da metrópole realizando a função da propriedade privada da terra pode ser redefinido pelo processo de desapropriação; momento em que as propriedades mudam de mãos, permitindo a expulsão da população residente dessas áreas para outras, orientando a reocupação com outras formas e funções como imperativo da reprodução” (p. 34).

Simplesmente, o espaço edificado da metrópole realizando a função da propriedade privada da terra pode ser redefinido pelo processo de desapropriação não faz sentido algum. (Talvez tenha até algum sentido o que ela quis dizer aqui, mas, seja como for, não conseguiu expressá-lo).

Leia todo o texto de Ana Fani, depois releia subtraindo a palavra espaço e o texto não mudará em absolutamente nada!

“No mercado imobiliário urbano, o solo urbano [não seria o solo rural, não é?], tornado mercadoria [isso desde sempre do capitalismo], se generaliza, assumindo uma expressão especulativa [isso desde sempre do capitalismo], pelo desenvolvimento da troca e da intercambialidade [troca e intercâmbio não são sinônimos?] de parcelas do espaço [poderia ser substituído sem o menor problema por lotes], antes nas mãos de pequenos proprietários urbanos [seriam por acaso proprietários rurais?], gerando conflitos entre usos e o sentido que cada grupo social confere ao espaço” (p. 34).

Isso é praxe do mercado imobiliário. Nada de novo sob o sol!

“O desenvolvimento desse mercado de imóveis de escritório tem, na raridade do espaço (o segmento de escritórios que não pode se localizar em qualquer lugar do espaço metropolitano [por que não?]), um ponto importante, definidor de suas estratégias e alianças [quais?]” (p. 34).

A julgar pelas afirmações de Ana Fani, o mercado imobiliário só se interessa em construir escritórios, isto é, imóveis comerciais. Nada fala, no entanto, sobre o lucrativo mercado de imóveis residenciais, que mobiliza grandes incorporadoras e seu correspondente aparato financeiro, e que está por trás de políticas públicas de grande envergadura, como o Minha Casa, Minha vida, do Governo Federal. Para Ana Fani, a produção de espaço é a produção de escritórios; a metrópole, a metrópole de escritórios.

“É em função dessa lógica que as transformações econômicas são acompanhadas por estratégias imobiliárias bem precisas [até agora Ana Fani não precisou nenhuma delas!], capazes de direcionar os investimentos no espaço em um momento em que, segundo analistas, no Brasil, o imóvel deixa de ser hedge (nota) para virar investimento” (p. 34).

(Nota: “Com a estabilização da economia, o imóvel perde o papel de hedge para os compradores e, por isso, começa a haver uma tendência de demanda por espaço de locação. Aí entra o investidor de longo prazo”. Cf. “Boletim da Bolsa de Imóveis de São Paulo”, Boletim Databolsa no. 20, São Paulo, 1998 – entrevista com Hermàn Martinez) (p. 37).

Todo o argumento de Ana Fani se baseia nessa nota, de um entrevistado sem nenhuma referência, a não ser a do próprio boletim. Corre à boca pequena o fato do marido de Ana Fani ser um empresário da construção e, talvez, a fonte dos conhecimentos residuais de ortodoxia econômica de que versa a esposa. Realmente, percebe-se que Ana Fani leu muito mal Karl Marx e seus descendentes (leia-se, entre outros, Henri Lefebvre). Aliás, a mesma nota aparece ipsis litteris em outros artigos de Ana Fani (num pretenso “dialogo” com Harvey – santa pretensão!). Porém, se a autora pesquisasse um pouquinho mais, saberia que tal jargão mencionado é extraído da lavra do economista keynesiano Hyman Philip Minsky para explicar tipos de credores que estariam por trás das dívidas geradoras de ciclos de crise no capitalismo. Ou seja, não é em definitivo a explicação marxista, em que a depreciação da categoria trabalho está no centro da crise. Ora, mas a nossa Ana Fani quer distância de todo aquilo que está associado à miséria da classe trabalhadora. Afinal, se o povo não tem pão, que coma brioches!

“Significa dizer que o setor financeiro opera na construção de edifícios de escritórios – como negócio –, visando à realização do valor de troca – o que vai ocorrer pela locação e não na venda” (p. 34).

Alguém tem que comprar, minha filha, alguém tem que comprar, até mesmo para locar! Não confunda alhos com bugalhos! A propósito, o valor de troca só se realiza através da venda. O aluguel está relacionado com a renda da terra, a qual não é senão a redistribuição de mais-valia entre capitalistas. O valor de troca, para um inquilino, é a compra do uso temporário de um determinado imóvel. Esse valor, do aluguel, volta para as mãos do capital, que, para realizá-lo efetivamente, deve empregá-lo novamente na produção. Mas evidentemente, não é do aluguel que vem o grosso do lucro do capital financeiro, e, sim, da venda a prazo, do crédito, das ações, dos títulos e do retorno dos altos investimentos a curto, médio e longo prazo.

“Neste contexto, se liga o capital industrial produzindo o imóvel e o setor financeiro que vai investir na sua construção a partir da compra do solo visando seu retorno, o que se faz com alto retorno para os investidores” (p. 35).

O capital industrial não produz imóveis, mas a indústria da construção.

“Assim, a construção de escritórios destinados ao mercado de locação visa à reprodução das frações do capital (o industrial ligado ao setor da construção realizando o lucro e o financeiro como realização do capital bancário e fundiário) e tem, como pressuposto fundamental, a realização do valor de troca (objetivo último daqueles que compram espaços de escritórios construídos com finalidade de investimentos), pela possibilidade de realização do valor de uso em um momento em que as empresas preferem diminuir os custos, alugando e não comprando imóveis” (p. 35).

Aqui a autora já se perdeu completamente e trocou os pés pelas mãos. Todo investimento capitalista, seja qual for, sempre tem como pressuposto fundamental a realização do valor de troca. A finalidade da produção capitalista, ensina Marx, é o valor de troca. Sobre o fato de o capital industrial realiza o lucro e o financeiro a realização do capital bancário e fundiário, essa afirmação é completamente falaciosa. A relação de troca propriamente capitalista – configurada na fórmula D-M-D’ (dinheiro-mercadoria-mais dinheiro) – objetiva, ao final do circuito da mercadoria, o valor que será reempregado na produção e mais o lucro. O capital industrial e o financeiro aspiram apenas lucrar. Quanto pela possibilidade da realização do valor de uso... isso não significa absolutamente nada. São apenas palavras jogadas ao léu. A realização do valor de uso é a compra.

“É assim que o uso está em estado latente [!!!] nesse tipo de investimento, ligado de modo inexorável à realização do valor de troca” (p. 35).

Categoricamente, não é assim! Aliás, o uso nunca está em estado latente, mas o contrário, ele é parte fenomênica da mercadoria, aquilo que aparece. E também não é assim que ele está ligado de modo inexorável à realização do valor de troca. Recomendo que Ana Fani volte a estudar o ABCD da economia política, começando por Adam Smith, para aprender como o valor de uso está ligado ao valor de troca.

“Por sua vez há um caráter ‘especulativo’ em jogo (como algo novo [o quê?]) que pressupõe o uso, mas seu objetivo no ato da compra é o valor de troca que a operação intermediária de locação vai realizar” (p. 35).

Seja lá o que Ana Fani quis dizer aqui, ela acaba de reinventar a pólvora ao constar que o valor pressupõe o uso, mas se equivoca inteiramente quando afirma que o valor de troca vai se realizar na locação.

“O que se deve reassaltar é que o uso pode vir a ter sentidos diversos; há uma diferença substancial entre a compra de uma moradia e a compra de um escritório para ser alugado [qual?]” (p. 35).

Ora, o uso não pode ter sentidos diversos, pois é essa exatamente a sua definição: o uso deve ter sentidos diversos! O uso de um guarda-chuva não é o mesmo de uma panela, ou de um automóvel etc. etc. etc.

“Significa, também, que há interesses diversos envolvendo o uso do espaço, como básico em ambas as operações imobiliárias – o habitante compra a moradia para o seu uso, enquanto o investidor compra um imóvel para alugar, porque representa um uso para outrem e, nesse processo, permite a realização do ciclo do capital financeiro investido na construção do edifício” (p. 35).

Não significa nada disso. Significa, na verdade, que, em primeiro lugar, o investidor também é um habitante; em segundo, que ambos, ao comprarem um imóvel, são proprietários; em terceiro, que ambos, na condição de proprietários, usam o imóvel como bem entenderem, ou como residência própria, ou alienando o imóvel na forma da locação. A realização do ciclo do capital financeiro investido na construção não se dá pelo aluguel e, sim, pelo retorno do capital investido acrescido de altas taxas de lucro, fomentadas pela exploração do trabalho, isto é, mais-valia.

“Esse processo revela o fato de que o valor de troca tende a se impor à sociedade em um espaço onde os lugares de apropriação diminuem até quase desaparecerem – como é o caso dos espaços públicos” (p. 35).

 O valor de troca, minha filha, se impôs à sociedade desde que o capitalismo surgiu. Com relação aos espaços públicos, se a senhora lê-se com atenção os textos de Marx (e seus descendentes, como Lefebvre), saberia que o público é uma alienação (política) e que os interesses privados dominam a sociedade.

“Portanto este processo implica em uma contradição à realização do valor de troca realizado na construção da ‘cidade dos negócios’. Nessa direção, a construção da cidade dos negócios ao realizar o solo urbano como mercadoria indispensável à reprodução do capital financeiro o faz em detrimento da realização do uso – aquela destinada aos espaços residenciais e públicos. Aqui o espaço improdutivo (aquele da realização da vida cujo uso dispensa a mediação do mercado, consequentemente, da troca) se choca com as necessidades da construção dos espaços produtivos – da realização do valor” (p. 35).

Com a palavra “detrimento”, Ana Fani esgota todos os clichês do jargão acadêmico. Nota-se, entretanto, nesse parágrafo algo de estarrecedor. Apesar de Ana Fani ter verdadeira fixação pela palavra “reprodução”, nessa passagem ele demonstra ignorar completamente o seu conceito. O que ela chama de “espaço improdutivo” é justamente a definição de reprodução. É a esfera onde os trabalhadores irão repor a energia para perpetuar a jornada de trabalho. O tempo livre é justamente a engrenagem do cotidiano, aquilo que faz mover a máquina do capital.

“A construção desse ‘novo espaço’ revela-se enquanto ‘eixo empresarial-comercial’ que aponta para a fragmentação do espaço, uma forma espacial nova [qual?], construída segundo a lógica da reprodução – que alia as estratégias das frações do capital, sob a coordenação do Estado, que cria as condições necessárias à realização da totalidade enquanto tal [e qual?]. Mas a ‘produção de um novo espaço’ é apenas aparente [???], trata-se, antes, do momento em que o espaço, produzido no momento histórico atual, é completamente transformado, em função das novas estratégias impostas pela continuidade do processo econômico-financeiro sob a égide da modernização, apoiada em um amplo desenvolvimento técnico e acompanhado pela flexibilização e pelo deslocamento dos setores produtivos no espaço metropolitano, cria uma nova hierarquia dos lugares, na qual a centralidade, potencializada, expande-se espacialmente. Assim a reprodução econômica realiza-se por meio da reprodução espacial” (p. 36).

Ora aponta, ora sinaliza, e nunca explica. Sem comentários!

“O uso produtivo da cidade se impondo ao uso improdutivo revela a construção da cidade dos negócios, criando a cidade enquanto exterioridade – onde os usos entram em confronto. Desse modo, os termos em que a reprodução se realiza revela o conflito entre os espaços produtivos e espaços improdutivos na metrópole, bem como as condições em que se constroem os termos da cidadania” (p. 36).

O que Ana Fani quer dizer aqui é que a cidade dos espaços produtivos, isto é, dos negócios, ou melhor, do aluguel, expulsa a cidade dos espaços improdutivos, isto é, do uso, da moradia, para a periferia. (A construção dos termos da cidadania é apenas um acessório aqui). Noutras palavras, o espaço produtivo se justapõe ao improdutivo numa relação mecânica. (O texto de Ana Fani é extremamente formal, ao ponto de formalizar o “movimento” daquilo que se poderia chamar, no texto da autora, pseudodialética).   

“Portanto, a integração da metrópole ao processo de mundialização dá-se pelo movimento dialético entre integração de São Paulo ao capitalismo internacional – centralização financeira, com crescimento do setor bancário e dos serviços modernos; pela desintegração do modo de vida tradicional, da organização do trabalho, das relações de vizinhança; pela deterioração dos espaços públicos, do centro histórico, das condições de vida na metrópole. Integração/desintegração/deterioração revelam o movimento do processo atual, dando conteúdo à urbanização” (p. 36).

Chega a ser chocante como uma professora universitária que se apresenta como uma das maiores especialistas em Henri Lefebvre no Brasil desconheça o método dialético. Ora, Ana Fani não faz mais que enumerar três termos inferidos por mera dedução, sem demonstrar a relação de negação determinada intrínseca aos elementos contraditórios e sua passagem, pela negação da negação, em um terceiro termo, de síntese.

No meio acadêmico universitário há duas trilhas possíveis: uma é o reconhecimento pelo mérito do trabalho científico; outra, a atividade burocrática. Geralmente, os professores medíocres tendem seguir pelo caminho fácil da burocracia, onde obtém êxitos imediatos. Nessa esfera, a atuação de bastidores e de aliança formadas por certos grupos pode sobrepor por algum tempo o verdadeiro mérito da pesquisa de qualidade. Porém, não por muito tempo. Cedo ou tarde, aquilo que é forjado e postiço é desmascarado e rejeitado para o limbo da história. O penoso trabalho científico, pautado pela ética e que dispensa as articulações políticas, é incompatível ao expediente burocrático, pois sua força consiste em sua verdade. “Oh Deus! Por tudo quanto tenho lido ou das lendas e histórias escutado, em tempo algum teve um tranquilo curso o verdadeiro amor” (Shakespeare).


A certa altura, a água turva torna-se cristalina. Ana Fani nunca será Marilena Chauí, a distância que as separa é abissal. Mas o fato de a geografia colher frutos na burocracia é um sintoma de sua total falência. Quando se fala em banir a corrupção, é exatamente disso de que se trata: passar a limpo todas as instituições e zelar pela idoneidade e isenção de suas atividades, que, no caso da universidade, deve focar na excelência da produção de conhecimento e não em forjar estatísticas encomendadas para encher os relatórios de órgãos avaliadores de classificação. Não é maquiando que se constrói o conhecimento.

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