sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A rebelião de Kronstadt, por Alexander Berkman

Kronstadt

A REBELIÃO DE KRONSTADT

Alexander Berkman

Tradução: Ateneu Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP.

1. DESORDENS OPERÁRIAS EM PETROGRADO

Era o início de 1921. Os tempos de guerra mundial, de revolução e de guerra civil debilitaram a Rússia até o extremo e puseram o povo à beira do desespero. Porém, no fim, a guerra civil terminou: os numerosos frontes foram liquidados, e Wrangel – a última esperança de intervenção da Entente e da contrarrevolução russa – foi derrotado, concluindo sua atividade militar na Rússia. O povo esperava agora com confiança um alívio do severo regime bolchevique. Se esperava que os comunistas, terminando a guerra civil, aliviassem as pesadas cargas, abolissem as restrições introduzidas durante a guerra, instaurassem certas liberdades fundamentais e começassem a organização normal da vida. Longe de ser popular, o governo bolchevique era, pelo contrário, suportado pelos operários devido a seu plano, frequentemente anunciado, de empreender a reconstrução econômica do país logo que cessassem as operações militares. O povo estava ansioso para cooperar, para prestar sua iniciativa e seu esforço criador na obra de reconstrução do país arruinado.

Desgraçadamente, estas esperanças foram logo frustradas. O Estado comunista não evidenciou, de nenhum modo, ter a intenção de debilitar o jugo. Continuava a mesma política. A militarização do trabalho escravizava ainda mais o povo, e isso se exacerbava mais e mais pela opressão crescente e pela tirania. Tal estado de coisas paralisava toda possibilidade de um renascimento industrial.

Desaparecia a última esperança e se reforçava a convicção de que o partido comunista estava mais interessado em conservar o poder político do que em salvar a revolução.

O elemento mais revolucionário da Rússia, o proletariado de Petrogrado, foi o primeiro a protestar. Lançou a acusação de que, entre outras causas, a centralização bolchevique, a burocracia e a atitude totalitária para com os camponeses e os operários eram diretamente responsáveis, em grande parte, pela miséria e pelos sofrimentos do povo. Grande número de oficinas e fábricas de Petrogrado fecharam suas portas: os operários literalmente morriam de fome. Organizaram reuniões para considerar a situação, e foram dispersados pelo governo. O proletariado de Petrogrado, que suportou todo o peso das lutas revolucionárias, e cujos enormes sacrifícios e heroísmos salvaram a cidade contra Yudenitch, se irritaram com a manipulação do governo. A animosidade contra os métodos empregados pelos bolcheviques continuava crescendo. Os comunistas recusavam as menores concessões ao proletariado, oferecendo ao mesmo tempo entenderem-se com os capitalistas da Europa e da América. Os operários se indignaram. Com o fim de forçar o governo a examinar suas exigências, foram declaradas greves na fábrica de munições de Patronny, nas fábricas do Báltico e de Trubotchny, e na fábrica de Laferm. Porém em lugar de discutir a questão com os operários descontentes, o “Governo dos Operários e Camponeses” criou o Komitet Oborony (Comitê de Defesa) como no período da guerra, com Zinoviev – o homem mais odiado de Petrogrado – como Presidente. O fim desse comitê era o de estrangular o movimento grevista.

Em 24 de fevereiro foram declaradas as greves. No mesmo dia os bolcheviques enviaram os kursanti – os estudantes comunistas da academia militar que se preparavam para os graus de oficiais do exército e da marinha – para dispersar os trabalhadores que haviam se reunidos em Vassilievsky Ostrov, o bairro operário de Petrogrado. No dia seguinte, 25 de fevereiro, indignados, os grevistas de Vassilievsky Ostrov visitaram os estaleiros do Almirantado e as docas da Galernaya e persuadiram os operários a associarem-se contra a atitude autocrática do governo. A tentativa de manifestação dos grevistas nas ruas da cidade foi dispersada pelos soldados.

Em 26 de fevereiro, na reunião do Soviete de Petrogrado, um conhecido comunista, Laskevitch, membro do Comitê de Defesa e do Conselho Militar Soviético da República, denunciou o movimento grevista nos termos mais amargos. Acusou os operários da fábrica de Trubotchny de terem começado o descontentamento e de serem “homens que não pensavam mais que em sua vantagem pessoal (shkurniki) e que eram contrarrevolucionários”, e friamente propôs fechar a fábrica de Trubotchny, proposição aceitada pelo Comitê executivo do Soviete de Petrogrado, do qual Zinoviev era Presidente. Os grevistas de Trubotchny foram, então, bloqueados e privados automaticamente, por consequência, de sua ração de víveres.

As medidas do governo bolchevique serviram para azedar mais o antagonismo dos operários. Nas ruas de Petrogrado começaram a aparecer proclames de greve.

Algumas delas levavam já um caráter francamente político. O mais característico destes manifestos, colocado nos muros da cidade em 27 de fevereiro, dizia:

Se tornou necessário uma mudança completa na política do governo. Em primeiro lugar, os operários e camponeses têm necessidade de liberdade. Não querem viver segundo os decretos dos bolcheviques: querem controlar seus próprios destinos! Camaradas, mantenham a ordem revolucionária! Exijam de um modo organizado e decidido:

- A libertação de todos os socialistas e dos operários sem partido presos;

- A abolição do estado de sítio; a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião para todos os que trabalham;

- A eleição livre dos comitês de fábrica e dos representantes aos sindicatos e aos sovietes.

Organize reuniões, adote resoluções, envie vossos delegados às autoridades e trabalhe na realização de vossas exigências!

O governo respondeu efetuando numerosas detenções e suprimindo várias organizações operárias. Esta medida aumentou mais a efervescência do povo; as exigências reacionárias começaram a aparecer. Assim, um proclame dos “Operários Socialistas do Distrito de Nevsky” apareceu em 28 de fevereiro, terminando com um chamamento em favor da Assembleia Constituinte:

Sabemos quem tem medo da Assembleia Constituinte. São os que não poderão roubar o povo em seguida. Terão, ao contrário, que responder aos representantes do povo por suas mistificações, seus roubos e seus crimes.

Abaixo os comunistas odiados! Abaixo o governo soviético! Viva a Assembleia Constituinte!

Durante esse tempo, os bolcheviques concentraram em Petrogrado consideráveis forças militares levadas da província, e mandavam à capital do norte, a partir da linha de frente, os regimentos comunistas mais fiéis. Petrogrado foi declarada em “lei marcial extraordinária”. Os grevistas foram subjugados pela força e a agitação operária, esmagada com mãos de ferro.

2. O MOVIMENTO DE KRONSTADT

Os marinheiros de Kronstadt se alarmaram visivelmente antes dos acontecimentos de Petrogrado. Sua atitude para com as rigorosas medidas tomadas pelo governo contra os grevistas estava longe de ser amistosa. Sabiam o que teve que suportar o proletariado revolucionário da capital durante os primeiros dias da revolução, sua heroica luta contra Yudenitch, a paciência com que toleraram as privatizações e a miséria. Porém Kronstadt estava longe também de favorecer a Assembleia Constituinte, ou a experiência do comércio livre de que se falava em Petrogrado. Os marinheiros eram, tanto espiritualmente como na ação, antes de tudo, revolucionários. Eram os partidários mais decididos do sistema dos Sovietes, porém eram contrários à ditadura de um partido político qualquer.

O movimento de simpatia aos operários grevistas de Petrogrado começou primeiramente entre os marinheiros dos barcos de guerra Petropavlovsk e Sevastopol, os mesmos navios que em 1917 foram o apoio principal dos bolcheviques. O movimento se estendeu a toda a frota de Kronstadt, e depois aos regimentos do Exército Vermelho estacionados ali. No dia 28 de fevereiro a tripulação do Petropavlovsk adotou uma resolução que obteve também o consentimento dos marinheiros do Sevastopol. A resolução pedia, entre outras coisas, as reeleições livres do Soviete de Kronstadt, cujo mandato foi logo expirado. Ao mesmo tempo foi enviada a Petrogrado uma comissão de marinheiros para obter informações sobre a situação.

No dia 1º de março se celebrou uma reunião pública na praça da Âncora, em Kronstadt; foi convocada oficialmente pelas tripulações da primeira e da segunda esquadra da frota do Báltico. Dezesseis mil marinheiros, soldados do Exército Vermelho e trabalhadores vieram até ela; foi presidida pelo presidente do Comitê executivo do Soviete de Kronstadt, o comunista Vassiliev. O presidente da República socialista federativa dos Sovietes, Kalinin, e o comissário da frota do Báltico, Kuzmin, estavam presentes, e tomaram a palavra. Deve fazer-se notar aqui, como indicação da atitude amistosa dos marinheiros ao governo bolchevique, que Kalinin, a sua chegada a Kronstadt, foi recebido com as honras militares, com música e com bandeiras hasteadas.

A comissão de marinheiros que havia sido enviada a Petrogrado apresentou seus informes no comício. Estes informes confirmaram as piores apreensões de Kronstadt. A reunião expressou abertamente sua indignação contra os métodos empregados pelos comunistas para sufocar as aspirações dos operários de Petrogrado. A resolução adotada pelo Petropavlovsk em 28 de fevereiro foi então apresentada aos reunidos. O presidente da república, Kalinin, e o comissário Kuzmin atacaram ferozmente a resolução, os grevistas de Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt. Porém seus argumentos não impressionaram a audiência e a resolução do Petropavlovsk foi adotada unanimemente.

Eis aqui o documento histórico:

RESOLUÇÃO DA REUNIÃO GERAL DA PRIMEIRA E SEGUNDA ESQURADRA DA FROTA DO BÁLTICO, CELEBRADA EM 19 DE MARÇO DE 1921.

Tendo ouvido o informe dos representantes enviados a Petrogrado pela reunião, decide:

1) dado que os Sovietes atuais não expressam a vontade dos operários e dos camponeses, celebrar imediatamente as novas eleições por voto secreto, tendo completa liberdade de agitação entre os operários e camponeses na campanha eleitoral;

2) estabelecer a liberdade de expressão e de imprensa para todos os operários e camponeses, para os anarquistas e para os partidários socialistas da esquerda;

3) assegurar a liberdade de reunião para os sindicatos e para as organizações camponesas;

4) convocar uma conferência independente dos operários, soldados do Exército Vermelho e marinheiros de Petrogrado, Kronstadt e da província de Kronstadt, antes de 10 de março de 1921;

5) libertação de todos os presos políticos socialistas e também de todos os operários, camponeses, soldados e marinheiros encarcerados pelo delito de participação nos movimentos operários e camponeses;

6) eleger uma comissão de revisão dos casos daqueles que se encontram nas prisões e nos campos de concentração;

7) abolir todos os politotdeli (gabinetes políticos), porque nenhum partido deve ter privilégios para a propaganda de seus ideais, nem receber ajuda financeira do governo para tais fins. Em seu lugar será necessário instituir comissões de educação e de cultura social, eleitas localmente e sustentadas materialmente pelo governo;

8) abolir imediatamente os zagryaditelniye otryadi (1) (destacamentos de pedágio);

9) igualar as rações para todos aqueles que trabalham em ofícios perigosos para saúde;

10) abolição dos destacamentos comunistas de guerra em todas as seções do exército, assim como da guarda comunista colocadas nas oficinas e nas fábricas; em caso de necessidade, estes destacamentos ou pelotões de guarda deverão ser designados pelo exército a partir das fileiras do mesmo, e nas fábricas segundo os desejos dos operários;

11) dar aos camponeses plena liberdade de ação no que diz respeito às suas terras, e também o direito a possuir gado, na condição de que os próprios camponeses administrem com seus próprios meios; isto é, sem contratar trabalho empregado;

12) pedir a todas as seções do exército e a nossos camaradas militares kursanti que aceitem nossas resoluções;

13) pedir à imprensa que dê a maior publicidade a nossas resoluções;

14) designar uma Comissão Itinerante de Controle;

15) permitir a livre kustarnoye (pequena indústria doméstica) que não empregue trabalho contratado.

Resolução aprovada por unanimidade pela reunião da brigada, abstendo-se de:

PETRITCHENKO

Presidente da Reunião da Brigada

PEREPELKIN

Secretário

Resolução aprovada por maioria esmagadora pela guarnição de Kronstadt.

VASSILIEV

Presidente

Junto com o camarada Kalinin, Vassiliev vota contra a resolução. Esta resolução que, como já dissemos, foi combatida ardentemente por Kalinin e Kuzmin, foi adotada apesar de seu protesto. Depois da reunião, Kalinin pôde voltar a Petrogrado sem ser incomodado.

Nesta mesma reunião se resolveu enviar a Petrogrado um comitê que explicaria para os trabalhadores e para a guarnição da capital as exigências de Kronstadt e pediria que delegados independentes (não pertencentes a nenhum partido) fossem enviados por eles a esta cidade para informarem-se sobre o estado verídico das coisas e sobre as exigências dos marinheiros. Este comitê, composto de trinta membros, foi detido em Petrogrado pelos bolcheviques; seu destino foi sempre um mistério.

Como a existência legal do Soviete de Kronstadt chegava ao seu término, a reunião da brigada decidiu convocar uma conferência de delegados para 2 de março, a fim de discutir o modo de celebrar as eleições. Na conferência tomavam parte representantes dos navios de guerra, da guarnição, das diferentes instituições soviéticas, dos sindicatos e das oficinas. Cada organização estava representada pelos delegados.

Celebrou-se a conferência de 2 de março na Casa de Educação (anteriormente Escola de Engenheiros de Kronstadt), assistindo a ela trezentos delegados, entre os quais se encontravam também comunistas. A reunião, aberta pelo marinheiro Petritchenko, elegeu uma presidência de cinco membros. A principal questão a ser resolvida pelos delegados dizia respeito às novas eleições do Soviete de Kronstadt, que deviam cumprir-se logo, e estabelecer os princípios sobre os quais deveriam celebrar-se.

A reunião teria também que colocar em prática as resoluções, adotadas na véspera, e acordar os melhores meios para ajudar o país a sair das condições lamentáveis criadas pela fome e pela falta de calefação.

O espírito da conferência era claramente soviético; Kronstadt exigia os Sovietes livres de toda intervenção e de todo partido político, Sovietes independentes que foram o reflexo das aspirações dos operários e camponeses e expressavam sua vontade. A atitude dos delegados era antagônica ao regime arbitrário dos comissários burocráticos, porém simpática para com a orientação do partido comunista como tal. Eram partidários dedicados do sistema dos Sovietes e sinceros em seu desejo de encontrar amistosa e pacificamente uma solução a estes problemas urgentes.

O comissário da frota do Báltico, Kuzmin, foi o primeiro a tomar a palavra.

Homem de maior energia do que de juízo, não se deu conta da grande importância do movimento. Não soube se pôr à altura da situação; conquistar os corações e os cérebros desses homens tão simples, marinheiros e trabalhadores, que haviam feito tantos sacrifícios pela revolução e que estavam esgotados e desesperados. Os delegados haviam se reunido para entenderem-se com os representantes do governo. Porém, em lugar desse espírito conciliador, o discurso de Kuzmin foi uma tocha acesa lançada sobre pólvora. Indignou a todos por sua arrogância e sua intolerância. Negou os tumultos operários de Petrogrado, dizendo que a cidade estava tranquila e os operários satisfeitos. Elogiou o trabalho dos comissários, pôs em dúvida os motivos revolucionários de Kronstadt e falou dos perigos que ameaçavam por parte da Polônia.

Chegou até a proferir insinuações indignas e a rugir ameaças. “Se quereis a guerra aberta”, concluiu Kuzmin, “a tereis, porque os comunistas não afrouxarão as rédeas do governo. Lutaremos até o fim”.

O discurso provocativo e desprovido de tato do comissário da frota do Báltico foi um insulto aos delegados. O discurso do presidente do Soviete de Kronstadt, o comunista Vassiliev, que falou depois de Kuzmin, não causou nenhuma impressão; foi impreciso e sem mérito. Quanto mais se desenvolvia o comício, mais francamente antibolchevique se tornava a atitude geral. E, com certeza, os delegados esperavam sempre o entendimento com os representantes do governo. Mas se advertia em seguida, dizia o informe oficial (2), que “não podíamos ter confiança em nossos camaradas Kuzmin e Vassiliev, e que havia sido necessário nos isolarmos temporariamente, sobretudo porque os comunistas estão de posse das armas e nós não temos acesso aos telefones. Os soldados têm medo dos comissários, do qual temos a prova na carta lida na reunião da guarnição”. Kuzmin e Vassiliev foram então afastados da reunião e aprisionados. Um traço característico do espírito da conferência está no fato de que uma moção que pedia a prisão dos demais comunistas presentes foi rejeitada pela imensa maioria.

Os delegados argumentaram que os comunistas deviam ser considerados de maneira igual aos representantes das outras organizações e deveriam gozar dos mesmos direitos e respeitos. Kronstadt estava sempre determinada a encontrar uma base de reconciliação com o partido comunista e com o governo bolchevique.

As resoluções de 19 de março foram lidas e adotadas com entusiasmo. Nesse momento a reunião se animou e se excitou vivamente ao declarar um delegado que quinze caminhões de soldados e de comunistas armados de fuzis e de metralhadoras haviam sido enviados pelos bolcheviques com ordem de atacar os reunidos. “Esta informação”, continua o informe do Izvestia, “promoveu um profundo ressentimento entre os delegados. A investigação feita demonstrou que o informe carecia de todo fundamento, porém persistiam os rumores de que um destacamento de kursanti com o famoso tchekista Dukiss no comando marchava já em direção ao forte de Krasnaya Gorka”. Em vista desses novos acontecimentos e das ameaças de Kuzmin e de Kalinin, a conferência decidiu imediatamente organizar a defesa de Kronstadt contra o ataque bolchevique. O tempo pressionava e decidiram transformar a presidência da conferência em um Comitê revolucionário provisório, que teria o dever de manter a ordem e a segurança da cidade. O Comitê devia se comprometer também com os preparativos necessários para celebrar as novas eleições do Soviete de Kronstadt.

3. A CAMPANHA BOLCHEVIQUE CONTRA KRONSTADT

Reinava, em Petrogrado, grande tensão nervosa. Estouravam novas greves e se difundiam persistentes rumores sobre tumultos operários ocorridos em Moscou e rebeliões agrárias surgidas no leste da Sibéria. A falta de imprensa em que se poderia confiar fazia com que a população prestasse atenção aos rumores mais exagerados e mais transparentemente falsos. Todos os olhares tinham se voltado para Kronstadt, na espera de importantes sucessos. Os bolcheviques não perderam um instante para organizar seu ataque a Kronstadt.

Já em 2 de março, o governo havia publicado uma prikaz (ordem), assinada por Lenin e Trotsky, denunciando o movimento de Kronstadt como um motim, uma rebelião contra as autoridades comunistas. Nesse documento, os marinheiros foram acusados de serem instrumentos de ex-generais czaristas que, junto com os traidores socialistas revolucionários, haviam preparado uma conspiração contrarrevolucionária contra a República proletária.

O movimento de Kronstadt foi qualificado por Lenin e Trotsky como “obra dos intervencionistas da Entente e de espiões franceses”. “Em 28 de fevereiro”, dizia a ordem, “os marinheiros do Petropavlovsk aprovaram resoluções que exaltam o espírito  da reação mais negra. Depois apareceu em cena o grupo do antigo general Kozlovzky. Três de seus oficiais, cujos nomes não são todavia desconhecidos, vão assumindo abertamente a direção da revolta. A explicação dos últimos acontecimentos, portanto, se faz coincidente. Atrás dos socialistas revolucionários se encontram de novo um general czarista. Tomando tudo isto em consideração, o Conselho do Trabalho e da Defesa ordena: 1) declarar o antigo general Kozlovzky e seus partidários fora da lei; 2) decretar o estado de guerra na cidade e na província de Petrogrado; 3) pôr o poder supremo de todo o distrito de Petrogrado nas mãos do Comitê de defesa de Petrogrado”.

Havia de fato um ex-general Kozlovzky em Kronstadt. Foi Trotsky quem o estabeleceu ali como um especialista em artilharia. Ele não desempenhou qualquer papel nos eventos de Kronstadt. Porém, os bolcheviques exploraram com habilidade seu nome para denunciar os marinheiros como inimigos da república soviética, e o movimento, como contrarrevolucionário. A imprensa oficial bolchevique começou então sua campanha de calúnias e difamações contra Kronstadt como “o ninho da conspiração Branca dirigida pelo general Kozlovzky”, e agitadores comunistas foram enviados aos operários das fábricas e das oficinas de Petrogrado e a Moscou com o fim de chamar o proletariado “a associar-se ao suporte e à defesa do Governo dos Operários e Camponeses contra a rebelião contrarrevolucionária de Kronstadt”.

Longe de terem o menor contato com generais e contrarrevolucionários, os marinheiros de Kronstadt recusaram a ajuda do próprio Partido Socialista Revolucionário. O chefe do partido, Victor Tchernov, que estava então em Reval, tentou inclinar os marinheiros a favor de seu partido e de suas reivindicações, porém não recebeu nenhum encorajamento do Comitê revolucionário provisório. Tchernov transmitiu a Kronstadt o seguinte comunicado por rádio (3):

O presidente da Assembleia Constituinte, Victor Tchernov, envia suas saudações fraternais aos camaradas marinheiros heroicos, aos soldados do Exército Vermelho e aos operários que, pela terceira vez depois de 1905, rompem o jugo da tirania. Oferecemos ajuda para o envio de reforços e de provisões a Kronstadt por intermédio das cooperativas russas no estrangeiro. Informem-nos do que lhes faz falta e da quantidade necessária. Estou disposto a ir pessoalmente e pôr minhas energias e minha autoridade ao serviço da revolução do povo. Tenho fé na vitória final das massas trabalhadoras... Honra àqueles que são os primeiros a hastear a bandeira da libertação do povo! Abaixo o despotismo da esquerda e da direita!

O Partido Socialista Revolucionário enviou, ao mesmo tempo, a seguinte mensagem a Kronstadt:

A delegação Socialista Revolucionária no estrangeiro..., agora que a taça de cólera do povo está transbordando, se oferece a ajudá-los por todos os meios à sua disposição na luta pela liberdade e pelo governo popular. Informem-nos sobre a ajuda de que necessitem. Viva a revolução do povo! Vivam os Sovietes livres e a Assembleia Constituinte!

O Comitê Revolucionário de Kronstadt negou a oferta dos socialistas revolucionários. Enviou a seguinte resposta a Victor Tchernov:

O Comitê Revolucionário de Kronstadt expressa a todos seus irmãos do estrangeiro sua profunda gratidão pela simpatia. O Comitê Revolucionário Provisório agradece ao camarada Tchernov seu oferecimento, porém se abstém de aceitá-lo no momento, quer dizer, até os próximos acontecimentos esclarecerem mais a situação. Enquanto isso, tudo será levado em consideração.

PETRITCHENKO

Presidente do Comitê Revolucionário Provisório

A campanha de insinuações continuou, não obstante, em Moscou, cuja estação T.S.F. enviou em 3 de março a seguinte mensagem ao mundo (algumas passagens são indecifráveis por causa da intervenção de outra estação):

Que a revolta armada do ex-general Kozlovzky foi organizada pelos espiões da Entente, como aconteceu em inúmeros complôs precedentes, se faz evidente pelo periódico burguês francês Matin, que, duas semanas antes da revolta, publicou o seguinte telegrama de Helsingfors: “Como resultado da recente rebelião de Kronstadt, as autoridades militares bolcheviques tomaram medidas a fim de isolar Kronstadt e impedir que os soldados e marinheiros de Kronstadt cheguem em Petrogrado”. É evidente que o motim de Kronstadt foi preparado em Paris e organizado pelo serviço secreto francês. Os socialistas revolucionários, controlados e dirigidos também por Paris, tramaram estas rebeliões contra o governo soviético, e não antes de que seus preparativos fossem completados, apareceu o mestre verdadeiro, o general czarista.

O caráter das outras numerosas informações enviadas por Moscou pode ser julgado pelo seguinte informativo por rádio:

Petrogrado está tranquila e calma, e mesmo as fábricas em que ultimamente haviam sido lançadas acusações contra o governo soviético compreendem agora que tudo era obra de provocadores. Compreendem aonde os agentes da Entente e da contrarrevolução os tinham levado. Justamente no momento em que na América o partido republicano assume de novo as rédeas do governo e se mostra inclinado a retomar as relações comerciais com a Rússia soviética, a difusão de falsos rumores e a organização de desordens em Kronstadt têm por único objetivo impressionar o novo presidente americano para que ele mude sua tática para com a Rússia. A Conferência de Londres foi celebrada neste mesmo período e a disseminação de semelhantes rumores influenciou a delegação turca e a tornou mais apta a ceder às exigências da Entente. A revolta da tripulação do Petropavlovsk é, sem dúvida alguma, um ponto da grande conspiração para criar dificuldades no interior da Rússia soviética e para desacreditar nossa situação internacional. Este plano é posto em execução na própria Rússia por um general czarista e por ex-oficiais, e suas atividades recebem o apoio dos mencheviques e dos social-revolucionários.

O comitê de defesa de Petrogrado, dirigido pelo seu presidente, Zinoviev, assumiu o controle completo da cidade e da província de Petrogrado. Todo o distrito norte foi declarado em estado de guerra e todas as reuniões estavam proibidas. Tomaram-se preocupações extraordinárias para proteger as instituições governamentais e foram colocadas metralhadoras no hotel Astoria, ocupado por Zinoviev e outros altos funcionários bolcheviques. Decretos colados nos muros ordenavam a volta imediata dos grevistas a suas fábricas, proibindo a suspensão do trabalho e prevenindo a população para que não se reunisse nas ruas. “Em caso semelhante” – se dizia na ordem – “os soldados recorrerão às armas. No caso de resistência, a ordem é fuzilar sumariamente”. O Comitê de Defesa tomou medidas sistemáticas “para limpar a cidade”.

Numerosos operários, soldados e marinheiros suspeitos de simpatizar com Kronstadt foram encarcerados. Todos os marinheiros de Petrogrado e vários regimentos do exército, considerados “politicamente inconfiáveis”, foram enviados a pontos distantes, enquanto as famílias dos marinheiros de Kronstadt que viviam em Petrogrado foram detidas na qualidade de reféns. O Comitê de Defesa notificou a Kronstadt sua decisão por meio de uma proclamação difundida na cidade em 4 de março por um avião na qual se dizia: “O Comitê de Defesa declara que os encarcerados são tidos como reféns pelo comissário da frota do Báltico, N. N. Kuzmin, pelo presidente do Soviete de Kronstadt, T. Vassiliev, e outros comunistas. Ao menor dano que sofrerem nossos camaradas presos, os reféns pagarão com suas vidas”.

“Não queremos derramamento de sangue. Nem um único comunista foi fuzilado por nós”, foi a resposta de Kronstadt.

4. AS ASPIRAÇÕES DE KRONSTADT

Uma nova vida reanimou Kronstadt. O entusiasmo revolucionário se igualava ao das jornadas de outubro, quando o heroísmo e a decisão dos marinheiros desempenharam um papel decisivo. Pela primeira vez, depois do partido comunista ter tomado em suas mãos o controle exclusivo da revolução e dos destinos da Rússia, Kronstadt se sentia livre. Um novo espírito de solidariedade e fraternidade havia reunido os marinheiros, os soldados da guarnição, os operários das fábricas e aos elementos destacados que não pertenciam a nenhum partido, em um esforço comum pela causa de todos. Até os próprios comunistas se contagiaram com a fraternidade de toda a cidade e participaram dos preparativos para as eleições do Soviete de Kronstadt.

Entre as primeiras medidas tomadas pelo Comitê Revolucionário Provisório, deve-se mencionar as referentes à conservação da ordem revolucionária de Kronstadt e a publicação do órgão oficial do Comitê, o diário Izvestia. Seu primeiro apelo ao povo de Kronstadt (nº 1, 3 de março de 1921), caracterizava completamente a atitude e o espírito dos marinheiros. “O comitê revolucionário”, se dizia ali, se preocupa sobretudo com que não haja derramamento de sangue. Tem dedicado todos seus esforços para manter a ordem revolucionária na cidade, na fortaleza e nos fortes. Camaradas e cidadãos, não parem o trabalho! Operários, permaneçam em vossos estabelecimentos! Marinheiros e soldados, não abandonem vossos postos! Todos os funcionários, todas as instituições soviéticas devem continuar seu trabalho. O Comitê Revolucionário Provisório os chama, camaradas e cidadãos, para prestarem ajuda. Sua missão é organizar, em cooperação fraternal com vocês, as condições necessárias para as eleições justas e honestas do novo Soviete”.

As páginas do Izvestia trazem provas abundantes da profunda fé do Comitê revolucionário no povo de Kronstadt e em suas aspirações aos sovietes livres como verdadeiro caminho da emancipação do jugo opressivo da burocracia comunista. Em seu diário e nos informativos do rádio, o Comitê Revolucionário levava a sério, com indignação, a campanha de calúnias, e se dirigiu novamente ao proletariado da Rússia e do mundo em busca de compreensão, de sua simpatia e de sua ajuda. O informativo de rádio de 6 de março mostrava a ideia fundamental do chamado de Kronstadt:

Nossa causa é justa: defendemos o poder dos Sovietes, e não dos partidos. Nós defendemos representantes das classes laboriosas livremente eleitos. Os Sovietes substitutos, manipulados pelo Partido Comunista, sempre foram surdos às nossas necessidades e às nossas exigências; a única resposta que nós já recebemos foram tiros... Camaradas! Não apenas os enganam; eles deliberadamente pervertem a verdade e recorrem à difamação mais desprezível... Em Kronstadt, todo o poder está exclusivamente nas mãos dos marinheiros, dos soldados e dos trabalhadores revolucionários – não nas de contrarrevolucionários liderados por algum Kozlovsky, como a mentirosa rádio de Moscou tentar fazer vocês acreditarem... Não tardeis, camaradas! Unam-se a nós, entrem em contato conosco; exijam admissão de seus delegados em Kronstadt. Somente eles irão dizer-lhes toda a verdade e irão expor a calúnia cruel sobre o pão finlandês e as ofertas da Entente. Viva o proletariado e o campesinato revolucionários! Viva o poder dos Sovietes livremente eleitos!

O Comitê revolucionário provisório tinha a princípio sua sede a bordo do barco insígnia, o Petropavlovsk, porém depois de alguns dias foi transferida para a “Casa do Povo”, no centro de Kronstadt, de modo que estivera, como escreve o Izvestia, “em contato mais próximo com a população e para tornar mais fácil o acesso ao Comitê do que quando estava bordo do navio”.

Apesar da demência virulenta que continuava na imprensa comunista contra Kronstadt que a qualificava de “a rebelião contrarrevolucionária do general Kozlovsky”, a verdade é que o Comitê Revolucionário era exclusivamente proletário, estando composto, em sua maior parte, de operários de um passado revolucionário. O Comitê estava composto dos quinze membros seguintes:

1. Petritchenko, primeiro escrivão, pavilhão Petropavlovsk;

2. Yakovenko, telefonista, distrito de Kronstadt;

3. Ossossov, mecânico do Sevastopol;

4. Arkhipov, mecânico;

5. Perepelkin, mecânico do Sevastopol;

6. Patrushev, mecânico chefe do Petropavlovsk;

7. Kupolov, primeiro ajudante médico;

8. Vershinin, marinheiro do Sevastopol;

9. Tukin, eletricista;

10. Romanenko, guarda dos campos de aviação;

11. Oreshin, administrador da Terceira Escola Técnica;

12. Valk, carpinteiro;

13. Pavlov, operário das minas marinhas;

14. Baikov, carreteiro;

15. Kilgast, marinheiro.

Não sem senso de humor, Izvestia, de Kronstadt, comentou esta lista como se segue: “Eis aqui nossos generais, senhores Trotsky e Zinoviev, enquanto os Brussilovs, os Kamenevs, os Tukhachevskis e as outras celebridades do regime czarista estão em suas fileiras”.

O Comitê Revolucionário Provisório gozava da confiança de toda a população de Kronstadt. Conquistou o respeito geral estabelecendo o princípio de “direitos iguais para todos, privilégios para ninguém”, e o mantendo rigorosamente. A pahyok (ração de alimentos) foi igualada. Os marinheiros, que, sob o regime bolchevique, recebiam rações muito mais elevadas do que as estabelecidas aos operários, decidiram não aceitarem mais do que se dava ao cidadão e ao operário. Rações especiais e melhores eram distribuídas somente nos hospitais e entre as crianças.

A atitude generosa e justa do Comitê Revolucionário para com os membros do Partido Comunista em Kronstadt – dos quais poucos foram presos, apesar das repressões bolchevistas e da detenção das famílias dos marinheiros como reféns – ganhou o respeito até mesmo dos comunistas. As páginas do Izvestia contêm comunicações numerosas de agrupações e organizações comunistas de Kronstadt, que condenam a atitude do Governo Central e apoiam a linha de conduta e as medidas tomadas pelo Comitê Revolucionário Provisório. Grande número de comunistas de Kronstadt havia anunciado publicamente sua saída do partido em sinal de protesto contra seu despotismo e contra sua corrupção burocrática. Em diversos números do Izvestia foram publicados centenas de nomes de comunistas cujas consciências tornavam impossível “a permanência no partido do executor Trotsky”, como alguns se expressavam. As demissões do partido comunista foram em breve tão numerosas, que davam a impressão de um êxodo geral (4). As cartas seguintes, tomadas aleatoriamente dentre um grande monte, caracterizam suficientemente o sentimento dos comunistas de Kronstadt:

Compreendi afinal que a política do partido comunista levou o país a um abismo. O partido se tornou burocrático, não aprendeu nada e nada quer aprender. Recusou-se escutar a voz de 115 milhões de camponeses, e não quer compreender que unicamente a liberdade de expressão e a possibilidade de participar na reconstrução do país por meios de métodos de eleição diferentes podem despertar a nação de seu sono. Recuso-me de hoje em diante a me considerar membro do Partido Comunista Russo. Aprovo completamente a resolução adotada na reunião de toda a população em 19 de março e ponho de agora em diante minhas energias e minhas atitudes à disposição do Comitê Revolucionário Provisório.

HERMAN KARNEV

KRASNY KOMANDIR (Oficial do Exército Vermelho)

Filho de um exilado do Processo dos 1935.

Izvestia, nº 3, 5 de março de 1921

CAMARADAS, MEUS PUPILOS DAS ESCOLAS INDUSTRIAIS, NAVAIS E DO EXÉRCITO VERMELHO!

Por quase trinta anos eu vivi um amor profundo pelo povo, e levei a luz e o conhecimento, o máximo que estava em meu poder, para todos que tinham sede dos mesmos, até o momento atual. A Revolução de 1917 deu maior âmbito ao meu trabalho, aumentou minhas atividades, e eu me devotei com maior energia ao serviço do meu ideal. O lema comunista, “Tudo para o Povo”, me inspirou com sua nobreza e sua beleza, e em fevereiro de 1920, eu entrei no Partido Comunista Russo como candidato. Mas o “primeiro tiro” disparado contra a população pacífica, contra minhas queridas crianças, das quais há aproximadamente sete mil em Kronstadt, me preenche com horror de que possa ser considerado que eu compartilho a responsabilidade pelo sangue dos inocentes derramado de tal maneira. Eu sinto que não posso mais acreditar e propagar aquilo que se desgraçou por este ato vil. Portanto, com o primeiro tiro eu deixei de me considerar um membro do Partido Comunista.

MARIA NIKOLAYEVNA SHATEL

(Professora)

Izvestia, nº 6, 8 de março de 1921.

Declarações semelhantes apareceram quase em cada número do Izvestia. A declaração mais interessante foi a do Gabinete Provisório da Seção de Kronstadt do Partido Comunista; seu manifesto aos membros da seção foi publicado no Izvestia (nº 2, 4 de março):

Que cada camarada de nosso partido esteja à altura da importância do momento. Não dê nenhum crédito aos falsos rumores de que foram fuzilados comunistas e de que os comunistas de Kronstadt têm a intenção de rebelarem-se com armas em mãos. Esses rumores são difundidos com o propósito de provocar o derramamento de sangue.

Declaramos que nosso Partido tem defendido sempre as conquistas da classe operária contra todos os inimigos conhecidos e desconhecidos do poder dos Sovietes operários e camponeses e continuará os defendendo.

O Gabinete Provisório do Partido Comunista de Kronstadt reconhece a necessidade das novas eleições do Soviete e pede aos membros do partido comunista que participem nelas. O gabinete provisório ordena aos membros do partido que permaneçam em seus postos e não os impeçam e nem criem obstáculos às medidas do Comitê Revolucionário Provisório.

Viva o poder dos Sovietes!

Viva a união internacional dos trabalhadores!

GABINETE PROVISÓRIO DA SEÇÃO DE KRONSTADT DO

PARTIDO COMUNISTA RUSSO:

F. PERVUSHIN

Y. YLYIN

A. KABANOV

Diversas outras seções civis e militares expressaram em termos análogos sua oposição ao regime de Moscou e sua concordância com as exigências dos marinheiros de Kronstadt. Um grande número de resoluções nesse sentido foram também adotadas pelos regimentos do Exército Vermelho da guarnição de Kronstadt. A seguinte resolução expressa o espírito e a tendência geral:

Nós, soldados do Exército Vermelho do Forte Krasnoarmeetz, estamos em corpo e alma com o Comitê Revolucionário Provisório e defenderemos até o ultimo momento o Comitê Revolucionário, os operários e os camponeses. Que ninguém acredite nas mentiras das publicações comunistas disseminadas pelos aviões. Não temos aqui generais nem oficiais czaristas. Kronstadt foi sempre a cidade dos operários e dos camponeses, e seguirá sendo. Os generais estão a serviço dos comunistas. No momento atual, quando a sorte do país está na balança, nós que tomamos o poder em nossas mãos e que confiamos ao Comitê Revolucionário a liderança na luta, declaramos para a guarnição inteira e para todos os trabalhadores que estamos dispostos a morrer pela liberdade das classes laboriosas. Libertados do jugo e do terror comunista de três anos de idade, preferimos morrer ao invés retroceder um único passo.

Viva a Rússia Livre do Povo Operário!

O DESTACAMENTO DO FORTE KRASNOARMEETZ

Izvestia, nº 5, 7 de março de 1921

Kronstadt foi inspirada pelo amor apaixonado pela Rússia livre pela fé ilimitada em Sovietes verdadeiros. Estava certa de ganhar a ajuda de toda a Rússia, de Petrogrado sobretudo, realizando assim a libertação completa do país. O Izvestia de Kronstadt reitera essa esperança e essa atitude, e em numerosos artigos e manifestos trata de esclarecer sua posição frente aos bolcheviques e sua aspiração à fundação de uma nova vida livre para Kronstadt e para o resto da Rússia. Este grande ideal, a pureza de seus motivos e a fervente esperança de libertação se destacam de modo notável nas páginas do órgão oficial do Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt, e expressam integralmente o espírito dos soldados, dos marinheiros e dos operários. Aos ataques ferozes da imprensa bolchevique, às mentiras infames semeadas pela rádio de Moscou que acusava Kronstadt de contrarrevolução e de conspiração Branca, o Comitê Revolucionário respondia com dignidade. Reproduzia muitas vezes em seu órgão as proclamações de Moscou, de modo que a população de Kronstadt se desse conta de quão baixo os bolcheviques eram capazes de ir. Ocasionalmente, os métodos comunistas eram expostos e caracterizados pelo Izvestia com uma indignação legítima. Assim, lemos no número 6, de 8 de março, sob o título “Nós e eles”:

Não sabendo como reter o poder que têm nas mãos, os comunistas empregam as mais vis provocações. Sua imprensa desprezível tem mobilizado todas as forças para incitar as massas e para fazer o movimento de Kronstadt parecer uma conspiração da Guarda Branca. Neste momento, um bando de canalhas sem vergonha enviou ao mundo a infame notícia de que Kronstadt havia se vendido à Finlândia. Seus periódicos vomitaram fogo e veneno; tendo fracassado na tarefa de persuadir o proletariado de que Kronstadt está nas mãos dos contrarrevolucionários, tratam agora de apelar aos sentimentos nacionalistas. Todos os países já sabem, por nossos informativos de rádio, por que lutam a guarnição de Kronstadt e os operários. Porém, os comunistas tratam de desnaturalizar a importância dos acontecimentos, esperando deste modo induzir ao erro nossos irmãos de Petrogrado. Petrogrado está cercada pelas baionetas dos kursanti e dos “guardas” do Partido, e Maliuta Skuratov – Trotsky – não permite que os delegados dos operários e dos soldados independentes venham a Kronstadt. Teme que averiguem toda a verdade aqui, e que a verdade pare imediatamente os comunistas, dando para as massas operárias instruídas a possibilidade de tomar o poder em suas próprias mãos calosas. Essa é a razão pela qual o Petro-Soviete (Soviete de Petrogrado) não respondeu a nosso telegrama de rádio em que pedíamos que fossem enviados a Kronstadt camaradas verdadeiramente imparciais. Temendo por suas próprias peles, os chefes comunistas estrangulam a verdade e disseminam a mentira de que Guardas Brancos trabalham em Kronstadt, de que o proletariado de Kronstadt tem se vendido à Finlândia e aos espiões franceses, de que os finlandeses já têm seu exército organizado para atacar Petrogrado com a ajuda dos amotinados myatezhnbiki de Kronstadt, e assim sucessivamente. A tudo isso temos só uma coisa a responder: Todo o poder aos Sovietes! Retirem suas mãos deles, essas mãos que estão vermelhas com o sangue dos mártires da liberdade que morreram lutando contra os Guardas Brancos, contra os proprietários e contra a burguesia!

Em uma linguagem simples e franca, Kronstadt tratava de expressar a vontade do povo, que aspirava à liberdade e à possibilidade de determinar seu próprio destino. Sentia que era a vanguarda, por assim dizer, do proletariado da Rússia, disposto a se levantar para defender o grande ideal pelo qual o povo havia lutado e sofrido na Revolução do Outubro. A fé de Kronstadt no sistema dos Sovietes era profunda e persistente; seu lema universal, Todo o poder aos Sovietes e não aos partidos!, era seu programa; não havia tempo de desenvolvê-lo e nem de ocupar-se com teorias. Os esforços convergiam em direção à emancipação do povo do jugo comunista. Este jugo, já insuportável, fez necessária uma nova revolução, a Terceira Revolução. A rota para a liberdade e para a paz passava pelos Sovietes livremente eleitos; esta era a pedra fundamental da nova revolução. As páginas do Izvestia testemunharam amplamente a retidão incorruptível e a abnegação sem limites dos operários e dos marinheiros de Kronstadt, e a fé comovedora que teriam em sua missão de iniciadores da Terceira Revolução. Estas aspirações e estas esperanças estão claramente expostas no número 6 do Izvestia de 9 março, no artigo principal intitulado “Por Que Finalidade Combatemos”:

Com a Revolução de Outubro, a classe trabalhadora havia esperado alcançar sua emancipação. Porém dela resultou uma escravidão ainda maior da individualidade humana. O poder da monarquia policial e gendarme caiu nas mãos dos usurpadores – os comunistas – que, em lugar de dar liberdade ao povo, inspirou neles somente um medo terrível da Tcheka, a qual, por seus horrores, supera o regime policial do Czarismo... 

Porém o pior e mais criminoso de tudo é a maquinação espiritual dos comunistas: colocaram suas mãos também sobre o mundo interior das massas laboriosas, obrigando cada um a pensar segundo sua fórmula comunista. 

A Rússia dos trabalhadores, a primeira a hastear a bandeira vermelha da emancipação do trabalho, está inundada em sangue dos martirizados para a maior glória da dominação comunista. Os comunistas afogam nesse mar de sangue todas as belas promessas e possibilidades da revolução proletária. 

É evidente, na atualidade, que o partido comunista russo não é o defensor das massas operárias, como finge ser. Os interesses da classe operária lhe são estranhos. Uma vez obtido o poder, agora só tem o medo de perdê-lo, e considera, portanto, todos os meios permissíveis: difamação, enganação, violência, assassinato e vingança sobre as famílias dos rebeldes. Há um fim para a longa e sofrível paciência. Aqui e ali o país está iluminado pelo incêndio da rebelião na luta contra a opressão e a violência.

As greves dos operários se multiplicaram, porém o regime policialesco dos bolcheviques tomou todas as precauções contra a conflagração da inevitável Terceira Revolução. Porém, apesar de tudo isso, ela veio e é realizada pelas mãos das massas operárias. Os generais do comunismo veem claramente que foi o povo que se levantou, o povo que se convenceu de que os comunistas traíram as ideias do socialismo. Temendo por sua pele e sabendo que não poderão esconder-se em nenhuma parte para escapar da cólera dos trabalhadores, os comunistas ainda tentam aterrorizar os rebeldes com a prisão, com a execução e com outras barbaridades. Porém a vida sob a ditadura comunista é pior que a morte... Não existe um caminho intermediário. Triunfar ou morrer!

O exemplo está sendo dado por Kronstadt, o terror da contrarrevolução da direita e da esquerda. É aqui onde o grande ato revolucionário foi realizado. É aqui onde foi hasteada a bandeira da rebelião contra a tirania desses três anos e contra a opressão da autocracia comunista que fizeram empalidecer o despotismo monárquico dos últimos trezentos anos. É aqui, em Kronstadt, onde foi colocada a pedra fundamental da Terceira Revolução que romperá as últimas correntes do trabalhador e abrirá a nova e ampla rota para a criatividade socialista.

Esta nova revolução sublevará as grandes massas do Oriente e Ocidente e servirá de exemplo ao novo socialismo construtor, em oposição à “construção” comunista mecânica e governamental. As massas operárias vão saber que tudo o que tem sido feito até aqui em nome dos operários e camponeses não era o socialismo. O primeiro passo foi dado sem um único disparo de fuzil, sem o derramamento de uma só gota de sangue. Aqueles que trabalham não precisam de sangue. Eles só o derramarão em caso de autodefesa.

Os operários e camponeses avançam: deixam para trás a utchredilka (Assembleia Constituinte) com seu regime burguês e a Ditadura do Partido comunista com sua Tcheka e seu Capitalismo de Estado, que tem estreitado o nó em torno do pescoço dos trabalhadores e ameaça estrangulá-los. A mudança que acaba de ter lugar oferece às massas laboriosas a possibilidade de assegurar, por fim, os Sovietes livremente eleitos que poderão funcionar sem temor ao chicote do partido; eles podem agora reorganizar os sindicatos governamentalizados em associações voluntárias de operários, de camponeses e de trabalhadores intelectuais. A máquina policialesca da autocracia, por fim, foi quebrada.

Assim estava concebido o programa; estas foram as exigências imediatas, em resposta às quais o governo bolchevique começou o ataque a Kronstadt em 7 de março de 1921, às 6:45 da tarde.

5. ULTIMATO BOLCHEVIQUE A KRONSTADT

Kronstadt era generosa. Nem uma gota de sangue comunista foi derramada, apesar de todas as provocações, do bloqueio da cidade e das medidas repressivas do governo bolchevique. Desprezava imitar o exemplo comunista de vingança, e chegou até a avisar a população de Kronstadt de que não fosse culpada de excessos contra membros do partido comunista. O Comitê Revolucionário Provisório publicou um manifesto para a população de Kronstadt nesse sentido, mesmo depois que o governo bolchevique rejeitou a exigência dos marinheiros para a libertação dos reféns detidos em Petrogrado.

A exigência de Kronstadt, enviada por comunicado de rádio ao Soviete de Petrogrado, e o manifesto do Comitê Revolucionário foram publicados no mesmo dia, 7 de março. Os reproduzimos aqui:

Em nome da guarnição de Kronstadt, o Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt exige que as famílias dos marinheiros, operários e soldados do Exército Vermelho detidos como reféns pelo Petro-Soviete sejam postas em liberdade no prazo de vinte e quatro horas. A guarnição de Kronstadt declara que os comunistas gozam de plena liberdade em Kronstadt e que seus familiares estão absolutamente fora de todo perigo. O exemplo do Petro-Soviete não será seguido aqui, porque consideramos esses métodos [de fazer reféns] como os mais vergonhosos e bárbaros, mesmo que sejam provocados pelo desespero. A história não conhece tal infâmia.

MARINHEIRO PETRITCHENKO

Presidente do Comitê Revolucionário Provisório

KILGAST

Secretário

No manifesto para a população de Kronstadt era dito, entre outras coisas:

A opressão constante das massas laboriosas pela ditadura comunista tem produzido uma indignação e um ressentimento completamente natural na população. Como consequência desse estado de coisas, algumas pessoas, parentes de comunistas, foram dispensadas de suas posições e boicotadas em algumas instâncias. Isto não deve acontecer. Nós não buscamos a vingança – estamos defendendo nossos interesses operários.

Kronstadt vivia no espírito de sua santa cruzada. Tinha completa fé na justiça de sua causa e se considerava a verdadeira defensora da revolução. Neste estado mental, os marinheiros não queriam crer que o governo os atacaria com armas em punho. Nesses filhos do sol e do mar, persistia subconscientemente a ideia que a vitória não pode ser ganhada apenas com violência. A psicologia eslava parecia acreditar que a justiça de sua causa e a força do espírito revolucionário devem vencer. Em todo caso, Kronstadt recusou-se a tomar a iniciativa.

O Comitê Revolucionário não quis escutar a opinião persuasiva dos peritos militares em favor de um ataque imediato contra Oranienbaum, fortaleza de grande valor estratégico. Os soldados e os marinheiros de Kronstadt tinham por fim o estabelecimento dos Sovietes livres, e estavam dispostos a defenderem seus direitos contra qualquer ataque, porém se negavam a converterem-se em agressores. Em Petrogrado circulavam rumores persistentes de que o governo se preparava para agir militarmente contra Kronstadt. Porém a população não acreditava nesses rumores; a coisa parecia de tal modo repugnante, que já era considerada ridícula. Como foi dito anteriormente, o Comitê de Defesa (chamado oficialmente de Conselho de Trabalho e de Defesa) declarou a capital em “estado extraordinário de sítio”. Nenhuma assembleia era permitida, nenhuma reunião nas ruas. Os operários de Petrogrado não sabiam nada do que se passava em Kronstadt; as únicas informações eram procedentes da imprensa comunista e os frequentes boletins que falavam que “O general czarista Kozlovsky organizou uma rebelião contrarrevolucionária em Kronstadt”. A população esperava com ansiedade a sessão convocada pelo Soviete de Petrogrado que deveria decidir sobre a atitude frente a Kronstadt.

O Soviete de Petrogrado se reuniu em 4 de março; só podiam assistir a essa reunião os convidados, e estes, geralmente, eram os comunistas. O autor do presente trabalho – então em boas relações com os bolcheviques e sobretudo com Zinoviev – esteve presente nessa reunião. Como presidente do Soviete de Petrogrado, Zinoviev declarou aberta a seção e pronunciou um longo discurso sobre a situação de Kronstadt.

Confesso que havia ido para reunião bem mais disposto a favor do ponto de vista de Zinoviev; estava alerta contra o menor indício de uma tentativa contrarrevolucionária em Kronstadt. Porém o discurso de Zinoviev bastou para convencer-me de que as acusações comunistas contra os marinheiros eram uma pura invenção sem a menor sombra de veracidade. Tinha ouvido Zinoviev em várias ocasiões anteriores.

Considerava ele um palestrante convincente, uma vez que suas premissas fossem admitidas, porém nessa reunião todo o seu aspecto, a sua argumentação, o seu tom, as suas maneiras – tudo refletia a falsidade de suas palavras. Eu podia sentir o protesto de sua própria consciência.

A única “evidência” apresentada contra Kronstadt era a famosa resolução do 1º de março, cujas exigências eram justas e até moderadas. Foi somente com base nesse documento, apoiada pela denúncia veemente e quase histérica de Kalinin contra os marinheiros, que o passo fatal foi dado. Preparada de antemão e apresentada por  Yevdokimov, o braço direito de Zinoviev, dotado de uma voz retumbante, a resolução contra Kronstadt foi aceita pelos delegados envoltos por um alto grau de intolerância e sede de sangue – aceita em meio de um tumulto de protestos de vários delegados das fábricas de Petrogrado e do representante dos marinheiros. A resolução declarou Kronstadt culpada de um motim contrarrevolucionário contra o poder soviético e exigia sua rendição imediata.

Isso era uma declaração de guerra. Mesmo grande número dos comunistas se negavam a crer que a resolução seria posta em execução; era monstruoso atacar com força armada o orgulho e a glória da revolução russa, como Trotsky havia batizado os marinheiros de Kronstadt. No círculo de seus amigos, muitos comunistas sensatos ameaçavam se separarem do Partido caso se consumasse um ato tão sanguinário.

Trotsky devia se dirigir ao Soviete de Petrogrado, e sua ausência era interpretada por alguns como sinal de que a gravidade da situação era exagerada. Não obstante, chegou a Petrogrado durante a noite, e no dia seguinte, 5 de março, publicou seu ultimato a Kronstadt:

O governo dos operários e camponeses decretou que Kronstadt e os navios em rebelião devem se submeter imediatamente à autoridade da república soviética. Ordeno, por consequência, a todos aqueles que levantaram sua mão contra a pátria socialista que rendam imediatamente suas armas. Aqueles que resistirem devem ser desarmados e entregues às autoridades soviéticas. Os comissários e outros representantes do governo que se encontram presos devem ser postos em liberdade imediatamente. Só aqueles que se renderem incondicionalmente podem contar com o perdão da república soviética. Publico simultaneamente as ordens de preparar a repressão da revolta e a submissão dos amotinados pela força armada. Toda a responsabilidade dos danos que a população pacífica tiver que sofrer recairá inteiramente sobre a cabeça dos insurrectos contrarrevolucionários. Esta advertência é final.

TROTSKY

Presidente do Soviete Militar Revolucionário da República

KAMENEV

Comandante Chefe

A situação piorava. Forças militares consideráveis afluíam a Petrogrado e às suas redondezas. O ultimato de Trotsky foi seguido de uma ordem que continha a ameaça histórica: “Os abaterei como perdizes”. Vários anarquistas, então em Petrogrado, fizeram um último esforço para induzir os bolcheviques a desistirem de atacar Kronstadt. Consideravam ser seu dever, perante a revolução, a tentativa desse esforço, mesmo sem esperança, para impedir o massacre eminente da flor revolucionária da Rússia, os marinheiros e os operários de Kronstadt. Enviaram em 5 de março uma proposta ao Comitê de Defesa, indicando as intenções pacíficas e as justas exigências de Kronstadt, recordando os comunistas da história revolucionária heroica dos marinheiros e propondo um meio de resolver o conflito próprio de camaradas e revolucionários. Eis aqui o documento:

Ao Conselho de Trabalho e Defesa de Petrogrado

Presidente Zinoviev:

Permanecer em silêncio agora é impossível, e até criminoso. Os acontecimentos recentes nos compelem, como anarquistas, a falar francamente e a declarar nossa atitude na situação atual. O espírito de descontentamento e de inquietude presente entre os operários e marinheiros é o resultado de causas que exigem nossa mais séria atenção. O frio e a fome geraram o descontentamento, e a ausência da menor possibilidade de discussão e de critica está obrigando os marinheiros e os operários a declararem abertamente suas queixas.

Os bandos de Guardas Brancos querem e podem tentar explorar essa insatisfação em beneficio de seus próprios interesses de classe. Ocultando-se atrás dos marinheiros e dos operários, eles despejam lemas da Assembleia Constituinte, do mercado livre e de outras exigências do mesmo gênero. Nós, anarquistas, expusemos há muito tempo a ficção desses lemas, e declaramos ao mundo inteiro que lutaremos com armas em mãos contra qualquer tentativa contrarrevolucionária, em cooperação com todos os amigos da Revolução Soviética e lado a lado com os bolcheviques. A respeito do conflito entre o Governo Soviético e os operários e marinheiros, somos de opinião de que ele deveria ser liquidado não pelas armas, mas por meio de acordo revolucionário fraternal. Recorrer para o derramamento de sangue de parte do Governo Soviético não irá – na situação atual – intimidar nem apaziguar os operários. Pelo contrário, serviria apenas para agravar o assunto e para reforçar a manipulação da Entente e da contrarrevolução interior. Ainda mais importante, o emprego da força pelo Governo dos Operários e dos Camponeses contra operários e camponeses terá um efeito reacionário no movimento revolucionário internacional e resultará em todas as partes em um mal incalculável para a Revolução Social Camaradas bolcheviques, reflitam antes que seja tarde demais! Não brinquem com fogo: vocês estão prestes a dar um passo bastante sério e decisivo. Nós daqui em diante submetemos a vocês a seguinte proposta: deixem uma Comissão ser eleita consistindo de cinco pessoas, inclusive de dois anarquistas. A Comissão deve ir a Kronstadt para resolver a disputa por meios pacíficos. Na situação atual, esse é o método mais radical. Terá uma significância revolucionária internacional.

Petrogrado

5 de março de 1921

EMMA GOLDMAN

PERKUS

PETROVSKY

Zinoviev, que havia sido informado de que um documento sobre o problema de Kronstadt devia ser apresentado ao Soviete de Defesa, enviou seu representante pessoal para buscá-lo. Se a carta foi ou não discutida por esse Conselho o escritor não sabe. De qualquer modo, nenhuma ação sobre a questão foi tomada.

6. O PRIMEIRO TIRO

Kronstadt, heroica e generosa, sonhava com a libertação da Rússia pela Terceira Revolução, que estava orgulhosa de ter iniciado. Ela não formulou nenhum programa definitivo. Liberdade e fraternidade universal era seu lema. Considerava a Terceira Revolução como um processo gradual da emancipação, cujo primeiro passo era a ação livre dos Sovietes independentes, sem o controle de um partido político qualquer, e que expressassem a vontade e os interesses do povo. Estes marinheiros sinceros e ingênuos proclamavam aos operários do mundo seu grande ideal, e chamavam o proletariado para que unissem forças na luta, com plena confiança de que sua causa encontraria um apoio entusiástico e de que, sobretudo e antes de tudo, os operários de Petrogrado se apressariam para ajudar.

No intervalo, Trotsky reuniu suas forças. As divisões mais fieis de todas as frentes, os regimentos kursanti, os destacamentos da Tcheka e unidades militares compostas exclusivamente de comunistas, haviam se reunido nos fortes de Sestroretsk, Lissy Noss, Krasnaya Gorka e das posições vizinhas fortificadas. Os melhores técnicos militares russos foram enviados ao centro de operações para traçar os planos de bloqueio e de ataque a Kronstadt, enquanto o famoso Tukhachevski foi designado comandante chefe durante o cerco de Kronstadt.

Em 7 de março, às 6:45 da tarde, as baterias de Sestroretsk e de Lissy Noss descarregaram seus primeiros tiros sobre Kronstadt. Era o aniversário do Dia da Mulher Trabalhadora. Kronstadt, cercada e atacada, não esqueceu esse grande feriado. Debaixo de fogo de numerosas baterias, os bravos marinheiros enviaram uma saudação por rádio às mulheres trabalhadoras do mundo, ato característico do estado de espírito da Cidade Rebelde. Eis aqui a mensagem:

Hoje é um feriado universal – o Dia da Mulher Trabalhadora. Nós de Kronstadt enviamos, em meio ao estrondo dos canhões, nossas saudações fraternais às mulheres trabalhadoras do mundo. Que realizem em breve vossa libertação de toda forma de violência e de opressão. Viva as trabalhadoras livres revolucionárias! Viva a Revolução Social ao redor do mundo!

Não menos característico foi o grito de angústia de Kronstadt, “Que Todo o Mundo Saiba”, publicado depois do primeiro disparo de canhão, no número 6 do Izvestia de 8 de março:

Soou o primeiro disparo... O marechal Trotsky, manchado até os joelhos do sangue dos trabalhadores, foi o primeiro a disparar contra a Kronstadt revolucionária que se levantou contra a autocracia dos comunistas para estabelecer o verdadeiro poder dos Sovietes.

Sem termos derramado uma só gota de sangue, nós, soldados do Exército Vermelho, marinheiros e operários de Kronstadt, nos libertamos do jugo dos comunistas e até mesmo conservamos suas vidas. Com a ameaça dos canhões querem agora nos submeter, outra vez, à sua tirania.

Não querendo derramamento de sangue, pedimos que fossem enviados para nós delegados independentes do proletariado de Petrogrado, para verem que Kronstadt combate pelo Poder dos Sovietes. Porém os comunistas ocultaram nosso pedido dos operários de Petrogrado, e agora abriram fogo – a resposta ordinária do pseudo Governo dos Operários e Camponeses às demandas das massas laboriosas.

Que os operários do mundo inteiro saibam que nós, os defensores do Poder Soviético, estamos guardando as conquistas da Revolução Social. Venceremos ou pereceremos sobre as ruínas de Kronstadt, lutando pela justa causa das massas trabalhadoras. Os operários do mundo serão nossos juízes. O sangue dos inocentes cairá sobre a cabeça dos fanáticos comunistas embriagados pelo poder.

Viva o poder dos Sovietes!

7. A QUEDA DE KRONSTADT

O bombardeio de Kronstadt pela artilharia, começado na tarde de 7 de março, foi seguido de uma tentativa de tomar por assalto a fortaleza. O ataque foi feito do norte e do sul pela nata das tropas comunistas vestidas com lenços brancos, cuja cor se confundia com a neve que cobria o golfo gelado da Finlândia. Estas primeiras tentativas terríveis de tomar a fortaleza por assalto, mediante um sacrifício inconsequente de seres humanos, foram profundamente lastimadas pelos marinheiros com condolências comovedoras por seus irmãos de armas, enganados para que considerassem Kronstadt contrarrevolucionária. Em 8 de março o Izvestia de Kronstadt dizia:

Não queríamos derramar o sangue de nossos irmãos, e nos recusamos ao fogo até que nos obrigassem a ele. Devíamos defender a justa causa do povo operário e nos vimos forçados a disparar – disparar sobre nossos próprios irmãos enviados para a morte certa pelos comunistas, que engordaram às custas do povo.

Desgraçadamente para vocês, rompeu um terrível turbilhão de neve e uma noite negra embrulhou tudo em trevas. Não obstante, os executores comunistas os empurraram a todo preço sobre o gelo, ameaçando vocês a partir da retaguarda com suas metralhadoras manuseadas por destacamentos comunistas.

Muitos de vocês pereceram esta noite na vasta extensão gelada do golfo da Finlândia. E quando a madrugada chegou e a tempestade se apaziguou, somente os restos miseráveis dos seus destacamentos, esgotados e famintos, quase incapazes de marchar, vieram a nós com suas mortalhas brancas.

Contava-se um milhar de vocês até a madrugada, e no curso do dia já não se podia contar. Haveis pagado o preço de vosso sangue nessa aventura, e, depois de vossa derrota, Trotsky foi a Petrogrado para trazer mais vitimas para o massacre, por que o sangue de nossos operários e de nossos camponeses lhe custa pouco!

Kronstadt viveu na fé profunda de que o proletariado de Petrogrado acudiria em sua ajuda. Porém os operários da capital estavam aterrorizados e Kronstadt foi efetivamente bloqueada e isolada, de modo que na realidade não era possível socorro de nenhuma parte.

A guarnição de Kronstadt estava composta de menos de 14.000 homens, dos quais 10.000 eram marinheiros. Esta guarnição teria que defender uma frente extensa e grande número de fortes e baterias disseminadas pela extensão do golfo. Os ataques contínuos dos bolcheviques, que recebiam sem cessar reforços do governo central; a falta de abastecimento da cidade assediada; as longas noites de frio, tudo isto abrandava a vitalidade de Kronstadt. E, apesar de tudo, os marinheiros foram de uma perseverança heroica, confiando até o ultimo momento que seu nobre exemplo de libertação seria seguido por todo o país e lhes levariam assim, assim, ajuda e reforços.

Em seu “Manifesto aos Camaradas Operários e Camponeses”, o Comitê Revolucionário provisório declarou (Izvestia nº 9, 11 de março):

Camaradas operários: Kronstadt luta por vocês, pelos famintos, pelos que sofrem do frio, pelos sem casa. Kronstadt hasteou a bandeira da revolta, confiando que dezenas de milhões de operários e camponeses responderão à sua chamada. É preciso que a madrugada que acaba de sair em Kronstadt se converta no sol brilhante de toda a Rússia. É preciso que a explosão de Kronstadt reanime a Rússia inteira, e, em primeiro lugar, Petrogrado.

Porém a ajuda não acudia, e cada dia que passava deixava Kronstadt mais esgotada. Os bolcheviques continuavam reunindo tropas frescas contra a fortaleza assediada e a debilitavam com ataques constantes. Os comunistas iam conseguindo vantagem atrás de vantagem. Kronstadt não tem sido construída para sustentar um assalto por trás. Os bolcheviques difundiram o rumor de que os marinheiros queriam bombardear Petrogrado, e isso é de uma falsidade transparente. A famosa fortaleza tinha sido construída com o único fim de servir de defesa a Petrogrado contra os inimigos do exterior que a cercassem pelo mar. Aliás, caso caísse em poder do inimigo exterior, as baterias das costas e os fortes de Krasnaya Gorka foram calculados para uma batalha contra Kronstadt. Prevendo esta possibilidade, os construtores propositalmente não reforçaram a retaguarda de Kronstadt.

Os bolcheviques continuaram seus ataques quase todas as noites. Em toda a jornada de 10 de março, a artilharia dos comunistas bombardeou sem cessar partindo do litoral do sul e do norte. Na noite de 12¬13, os comunistas atacaram pelo sul, recorrendo novamente às mortalhas brancas e sacrificando várias centenas de kursanti.

Kronstadt contra-atacava desesperadamente, apesar das numerosas noites sem dormir e da falta de homens e de alimentos. Lutava com um heroísmo extraordinário contra os assaltos simultâneos do norte, do leste e do sul, mesmo com as baterias de Kronstadt sendo capazes de defender apenas seu lado ocidental. Os marinheiros não tinham nem mesmo um navio quebra-gelo para impossibilitar a aproximação das forças comunistas.

Em 16 de março, os bolcheviques dirigiram um ataque concentrado por três setores de uma vez: norte, sul e leste. “O plano de ataque”, descreveu mais tarde Dibenko, ex-comissário bolchevique da frota, e mais tarde ditador de Kronstadt, “foi elaborado em seus detalhes mais minuciosos segundo as diretrizes do comandante chefe, Tukhachevsky e do estado-maior das Forças do Sul. Ao chegar a noite, foi iniciado o ataque aos fortes. As mortalhas brancas e o valor dos kursanti nos deram a possibilidade de avançar em colunas”.

Na manhã de 17 de março, já haviam sido tomados vários fortes. Pelos portões de Petrogrado, o ponto mais débil de Kronstadt, os bolcheviques forçaram sua entrada na cidade, e então começou o massacre brutal. Os comunistas, cujas vidas haviam sido salvas pelos marinheiros, agora os traíam, atacando-os por trás. O comissário da frota do Báltico, Kuzmin, e o presidente do Soviete de Kronstadt, Vassiliev, libertados da prisão pelos comunistas, se lançaram ao combate fratricida. A luta desesperada dos marinheiros e soldados de Kronstadt contra forças de uma superioridade esmagadora continuou até chegar a noite. A cidade, que durante quinze dias não havia feito mal algum a nem um único comunista, estava agora inundada pelo sangue dos homens, das mulheres e das crianças de Kronstadt. Nomeado comissário de Kronstadt, Dibenko foi investido com plenos poderes para “limpar a cidade rebelde”. Seguiu-se uma orgia de vingança, e a Tcheka contava numerosas vítimas de suas noturnas execuções em massa.

Em 18 de março, o governo bolchevique e o Partido Comunista da Rússia festejavam publicamente a Comuna de Paris de 1871, afogada nos sangue dos operários franceses por Gallifet e Thiers. Celebraram ao mesmo tempo a “vitória” sobre Kronstadt.

Durante as semanas que se seguiram, as prisões de Petrogrado estiveram repletas de centenas de prisioneiros de Kronstadt. A cada noite, pequenos grupos destes prisioneiros eram removidos por ordem da Tcheka e desapareciam – para não mais serem vistos entre os vivos. Entre os últimos fuzilados estava Perepelkin, membro do Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt.

Nas prisões e nos campos de concentração da região glacial de Arkangelsk e nos desertos do distante Turquistão, morrem lentamente homens de Kronstadt que se levantaram contra a burocracia bolchevique e proclamaram, em março de 1921, a propaganda da Revolução de Outubro de 1917: “Todo o Poder aos Sovietes!”.

NOTAS

(1) Destacamentos armados organizados pelos bolcheviques para suprimir o tráfico e para confiscar rações e outros produtos. A irresponsabilidade e a arbitrariedade desses métodos eram proverbiais por toda a extensão do país. O governo aboliu estes destacamentos na província de Petrogrado na véspera de seus ataques a Kronstadt – uma propina ao proletariado de Petrogrado.

(2) Izvestia, do Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt, nº 9, 11 de março de 1921.

(3) Publicado em Revolutsionnaya Rossiya (Diário Socialista Revolucionário) nº 8, maio de 1921. Veja também Izvestia (comunista) de Moscou nº 154, 13 de julho de 1922.

(4) O Comitê Executivo do Partido Comunista considerou sua seção de Kronstadt de tal modo “desmoralizada” que, depois da derrota de Kronstadt, ordenou um novo registro completo de todos os comunistas de Kronstadt.

* Este texto é originalmente parte do livro The Kronstadt Rebellion (Berlin, Der Sindikalist, 1922). No Brasil, foi publicado como Kronstadt (Ateneu Diogo Giménez, 2011: http://anarkio.net/Pdf/kronstadt.pdf). Tradução: Ateneu Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP. Seleção e edição por Pablo Mizraji. ITHA, 2017.