Em memória do Centenário da Rebelião de Kronstadt,
durante todo este ano de 2021, publicamos textos relacionados com o tema que
podem ser encontrados no índice do blog (na lateral direita) através do tópico A Terceira Revolução. Para fechar as
homenagens ao movimento insurgente dos marinheiros da Frota do Báltico, esbocei
na introdução alguns pormenores históricos, geográficos e linguísticos; em
seguida, transcrevi uma discussão entre historiadores, militantes e estudiosos da
Revolução Russa; por último, tracei um
breve esboço sobre o qual lanço uma interpretação analítica em relação àquilo
que me parece o verdadeiro significado do dito socialismo real. Espero com isso
contribuir de algum modo para o debate sobre a Rebelião de Kronstadt, que, cem anos depois, ainda provoca
controvérsias e discussões acaloradas prós e contras.
Agradeço muito
fortemente a tod@s que chegaram até aqui.
I
- Introdução: Kronstadt
Kronstadt está
localizada na ilha de Kotlin, no Golfo da Finlândia, Mar Báltico.
Os primeiros registros
da ilha de Kotlin datam de contratos comerciais entre a Liga Hanseática e a
República de Novgorod, no século XIII, e desta cidade com o reino da Suécia, no
que concernia a demarcação de fronteiras estabelecidas por um acordo de paz
firmado no século XIV. Com a queda de Constantinopla (1453), o Mar Báltico se
torna a principal rota da Europa com o Oriente, antes da circum-navegação da
África pelos portugueses e a conquista do Atlântico.
A partir do século
XVII, a Suécia emerge como a maior potência da Europa setentrional, dando
início a uma fase expansionista que transformou o Báltico em um “lago sueco” e
se estendeu por toda a região continental do entorno. Diante do avanço do
Império da Suécia, a Rússia foi obrigada a ceder extensas áreas territoriais (inclusive
Novgorod), perdendo assim sua única via de acesso aos mares da Europa. Em
fevereiro de 1617, por meio do Tratado de Stolbovo, a ilha de Kotlin passou
oficialmente ao domínio sueco.
No início do século
XVII, tem início a Grande Guerra do Norte (1700-21), fruto da aliança da União
do Norte, formada por uma coalizão de países liderados pela Rússia envolvendo a
Noruega, a Dinamarca, a Saxônia e a Polônia contra o Império Sueco. Visando
abrir uma passagem para o mar, a Rússia lança um ataque em direção ao Báltico
e, após uma serie de ofensivas e contraofensivas, em 1702, ocupa as margens
orientais do Golfo da Finlândia e conquista definitivamente a Livônia, a
Ingria, a Estônia e a Carélia. Na foz pantanosa do rio Neva, o czar Pedro I
decide edificar a nova capital russa, em maio de 1703, com a fundação de São
Petersburgo, planejada para ser a “janela da Rússia para o Ocidente”.
Percebendo a posição
estratégica da ilha de Kotlin, localizada a 31 quilômetros a oeste da futura
capital, a uns 12 km da costa continental adjacente norte e uns 8 km da costa
sul, constituindo uma espécie de escudo natural da única abertura de acesso ao
coração do território russo por mar e via fluvial, o czar ordena a construção
de um conjunto de fortes no sul da ilha, entre os anos de 1703-1704. Em
cerimônia de inauguração a fortaleza recebe o nome de Kronshlot. Construída em
tempo recorde, o esquadrão sueco é tomado de surpresa e sai derrotado.
A partir de 1706, o
complexo naval é ampliado, tornando-se posteriormente a sede do almirantado
russo e base da Frota Russa do Báltico. Em 1710, cerca de 80 casas destinadas à
moradia militar são construídas no local. Em janeiro de 1712, o governo baixa
um decreto determinando o assentamento de três mil famílias russas na
despovoada ilha. Terminada a guerra, a cidadela recebe seu nome definitivo e oficial,
em 18 de outubro de 1723: Kronstadt.
Em 1891, a frota
francesa é recebida triunfantemente em Kronstadt, sinalizando o primeiro passo
para a futura Aliança Franco-Russa. Todavia, os marinheiros sempre foram
afeitos à indisciplina e um histórico de motins e insubordinação caracterizou
de modo indelével a base naval de Kronstadt, tendo por destaque a conspiração
dos irmãos Bestuzhev, durante o movimento Dezembrista, os levantes de 1905 e
1906, a Comuna de Kronstadt de 1917 e a revolta dos marinheiros no ano de 1921.
Do
nome Kronstadt
Para o czar Pedro I,
conhecido pelos russos como O Reformador, a modernização da Rússia estava
estritamente associada a um projeto de ocidentalização do país, até então
extremamente atrasado. Obcecado por tornar a Rússia uma grande potência e, para
tanto, dispor de uma poderosa esquadra nacional, até então inexistente, o czar
organizou a célebre “Grande Embaixada”, e partiu em excursão pelos países mais
adiantados da Europa Ocidental. O seu objetivo era verificar o desenvolvimento
técnico e cultural das maiores potências mundiais e depois importar o modelo
para a Rússia.
A comitiva passou longa
estadia nos Países-Baixos, onde o czar, disfarçado de operário nos estaleiros
de Amsterdam, espionou os métodos de construção naval que deveriam ser
reproduzidos na Rússia. Daí que muitos termos náuticos da marinha russa derivam
ainda hoje de nomes de origem holandesa, como, por exemplo, foi o caso de Kronshlot,
ou seja, kroon slot (“Castelo da
Coroa”). Já Kronstadt vem do alemão krone
stadt e significa “Cidade da Coroa” ou “Cidade Real”.
Esta questão
linguística não é de menor importância na Rússia se lembrarmos de que durante o
século XIX a língua falada pela aristocracia russa era o francês. É bastante conhecido
o fato de que na célebre “ida ao campo” os jovens narodniki não eram fluentes em russo e suas maneiras aristocráticas
e ocidentalmente afetadas causaram mais desconfiança do que simpatia entre os
camponeses. No início da Primeira Guerra Mundial, ao entrar em guerra contra a
Alemanha, o governo russo, para atender o sentimento ufanista do clamor popular,
trocou o nome germânico da ex-capital, São Petesburgo, pelo eslavo Petrogrado. No
regime comunista, a partir de 1924, a cidade seria novamente renomeada, desta
vez, Leningrado, em homenagem ao líder bolchevique Vladimir Lênin. Com a queda
da URSS, em 1991, um plebiscito devolvia o antigo nome para a cidade.
Curiosamente, uma
cidade na Romênia, Brașov, também é denominada Kronstadt, devido à sua fundação
por Cavaleiros Teutônicos e colonos alemães no século XII. Em 2021, cem anos
depois da rebelião dos marinheiros, o nome Kronstadt não deixa de ser uma
infeliz coincidência, já que o radical da palavra remonta ao latim corona e ao grego antigo korone (compare as palavras derivadas:
port. coroa; ital. cruna; ingl. crown; franc. couronne;
greg. mod. koróna; finl. kruunu; russ. koróna etc.).
Quanto
à pronúncia
Кронштадт
/ˈkřʌnʃtat/
/ˈkřɑnʃtat/ /ˈkřɐ͂:ʃtat/ ou /ˈkřã:ʃtat/ (tentativas de transcrição fonética). A
transliteração pode ser tanto Kronstadt
como Kronshtadt. Os russos pronunciam
do seguinte modo: [crrrânX-TÁt]. O k
tem som de “k”, como em “crânio”; o r tem som de “r forte vibrante”, tal
como é pronunciado em algumas regiões do sul do Brasil (ou o rrr do Galvão
Bueno); o primeiro a é nasal, átono e
alongado (como em “transtorno”); o
segundo é aberto, oral, tônico e curto (como em “cantada”); o s tem som de “x”
(chá) arrastado, tal como os
portugueses e cariocas pronunciam; o primeiro t tem som de “t”, como em constar;
o d é mudo, não é pronunciado; e o
último t marca o fim da sílaba e quase
não se pronúncia, como no inglês that.
II
- Autogestão em Kronstadt, em 1917
Konstantin
Tarasov, pesquisador associado ao Instituto de História de São Petersburgo.
Apesar de pequena,
Kronstadt era uma cidade importante, porque era a base naval do Império Russo e
onde aconteceram os eventos mais cruciais de 1917. Habitavam a ilha 50.000
pessoas, dos quais 30.000 eram soldados e marinheiros e 20 mil trabalhadores. Com
o advento da Revolução de 1917, os marinheiros vermelhos se rebelaram e executaram
cerca de 25 a 50 oficiais, dentre aqueles tidos por eles como os mais
autoritários, e prenderam outros 500. No mês de março, trabalhadores e
marinheiros organizaram o Soviete de Kronstadt, baseado na autogestão e democracia
direta.
Em toda a marinha
russa, não havia lugar mais rigoroso e degradante para a dignidade humana do
que em Kronstadt. Por exemplo: era famosa a frase escrita na porta principal do
almirantado: “Cachorros não são permitidos. Proibida a entrada de soldados
rasos”. Reconhecida pela disciplina severa, o símbolo da Frota do Báltico era o
almirante R. N. Viren, que fazia jus a fama. Os marinheiros o odiavam e ele foi
uma das primeiras vítimas do levante de fevereiro. O almirante foi executado na
Praça da Âncora, próximo à Catedral Naval, juntamente com os outros oficiais
mais abominados. Todavia, não houve muitas baixas nos confrontos de rua que se
seguiram pela cidade.
No calor dos
acontecimentos, uma assembleia reuniu milhares de pessoas na Praça da Âncora.
Todos queriam falar ao mesmo tempo, pois nunca tiveram, como agora, a
oportunidade de se manifestar. Oradores desse encontro acabaram se tornando as
pessoas mais influentes de Kronstadt e mesmo de toda a Rússia. Destacaram-se S.
G. Roshal (bolchevique), que era um orador cauteloso, porque mais ou menos
popular; A. M. Brushwit, um socialista revolucionário (SR), que procurava imitar
um camponês; E. Z. Yarchuk (anarcossindicalista) e I. S. Bleikhman
(anarcocomunista), ambos muito conhecidos e muito radicais. Dos dois, Bleikhman
era ainda mais extremista e bastante divertido para explicar seus métodos
revolucionários, o que o tornava ainda mais popular.
O levante de fevereiro instituiu
um regime de auto-organização em Kronstadt logo nos primeiros dias. Foram
criados comitês que elegeram seus representantes, muito embora a maioria deles
não tivesse participação direta na revolução. Assim, surgiram as primeiras
instituições autogestionárias organizadas através de encontros entre delegados
eleitos nas fábricas e pelos militares.
Somente no dia 3 março,
o governo provisório decidiu enviar um comissário, V. N. Papelyaev, a
Kronstadt. O governo provisório queria pôr fim nos eventos sangrentos de fevereiro
e constituir um novo poder na cidade. Porém, Papelyaev perdeu toda a sua
autoridade logo nas primeiras semanas.
O comissário tentara
organizar um comitê executivo coligado com os dois sovietes de Kronstadt,
formado por militares e trabalhadores, respectivamente, e o “grupo da cidade”,
que era um órgão representativo dos cidadãos locais. Depois de algumas semanas,
Papelyaev retornou a Petrogrado a fim de reportar ao governo provisório e ao
Soviete de Petrogrado o que estava acontecendo na cidade de Kronstadt. Então,
durante esta semana, os dois sovietes não reconheceram o comando do comissário
e reorganizaram um novo Soviete de Kronstadt, que se recusou a associar-se com o
“grupo da cidade”, o qual, acreditavam, era constituído por elementos da
burguesia. De fato, o “grupo da cidade” possuía conexões estreitas com a Duma
recém-eleita em Petrogrado.
As principais
lideranças do Soviete de Kronstadt foram os bolcheviques F. Raskolnikov e A. M.
Lyubovich e o militante sem partido, A. M. Lamanov, que em breve se uniria ao
partido dos maximalistas e que também tomaria parte da rebelião em 1921. Entre
os principais partidos do primeiro soviete figuravam os bolcheviques; os
socialistas revolucionários (SR), de cariz camponês, como eles próprios se
definiam; os mencheviques; os anarquistas; e os maximalistas, sem partido.
Estes últimos se constituíam como uma organização importante que só se tornou
um partido no outono de 1917, quando fundaram o Partido Socialista
Revolucionário Maximalista. Antes disso, organizavam-se como um movimento independente
no soviete, muito embora os blocos mais importantes fossem constituídos pelos
bolcheviques e o SR de esquerda, que desempenharam um importante papel durante
1917.
Em suma, nas primeiras
semanas da revolução, Kronstadt não se associou ao governo provisório e se
organizou através da autogestão baseada em eleições de regimentos e comitês de
navios, que elegiam seus comandantes. O soviete articulou a formação de milícias
responsáveis pela a segurança da cidade durante períodos de pogroms ou saques e
de um poder encarregado de instaurar uma investigação sobre o papel dos 500 oficiais
presos em fevereiro, apesar dos muitos esforços do governo provisório para soltá-los.
Uma comissão de controle também foi eleita para exercer uma das funções mais
importantes do soviete, a saber, o controle total das fábricas da cidade. Ademais,
um jornal chamado Izvestiia foi
fundado por Anatolii Lamanov. Segundo as memórias do comissário do governo provisório,
“em maio de 1917, os ideais de Bakunin foram plenamente realizados na cidade de
Kronstadt”.
“República de
Kronstadt”
Como vimos, havia uma tensão
entre o governo e o Soviete de Kronstadt, levando o comissário, Papelyaev, a
perder todo o controle logo nas primeiras semanas da revolução. No mês de maio,
valendo-se de uma resolução que determinava a nomeação do líder da cidade
militar, o comissário queria escolher uma pessoa de sua confiança para a
função. Porém, foi impedido pelo soviete, que alegou não ser esta competência
sua, pois, segundo a resolução, o soviete era a única autoridade em Kronstadt.
Então, os jornais de
Petrogrado fizeram um grande escândalo, sob a alegação de que Kronstadt
organizava sua própria República e que se preparava para se separar de toda a
Rússia. Claro que isso não era verdade. Mas a notícia se espalhou chamando a
atenção de todos. Muitos camponeses, soldados e marinheiros foram até Kronstadt
para ver com seus próprios olhos como a suposta república era governada pelo
seu próprio soviete.
Em Petrogrado, o
governo provisório solicitou a mediação de alguns socialistas na questão de Kronstadt,
que chegaram à cidade e deram início às negociações com o soviete. Depois disso,
a situação foi se agravando e ficando cada vez mais descontrolada, o que levou
o Soviete de Kronstadt a aderir às “Jornadas de Julho”, empunhando a bandeira
de “todo o poder aos sovietes”.
Os marinheiros entraram
em confrontos nas lutas de ruas durante três dias (3, 4 e 5 de julho), mas
Kronstadt terminou o mês derrotada, sem que isso significasse uma derrota moral
ou ideológica. Então, os marinheiros se uniram novamente ao antigoverno e, durante
uma segunda crise, o soviete elegeu seus comitês e angariou ainda mais poder do
que antes. Em setembro, a Duma tentou se aproximar do Soviete de Kronstadt, que
se recuou terminantemente a fazer qualquer tipo de concessão. Depois, Kronstadt
participou ativamente da Revolução de Outubro, tendo tomado parte, inclusive, da
invasão do Palácio de Inverno.
III
- Kronstadt, a Terceira Revolução, 1921
Nick
Heath, militante do Anarchist Communist Group (ACG).
Quais são as lições que
podemos aprender de Kronstadt?
Kronstadt marca o fim
de uma série de revoltas camponesas e greves de trabalhadores.
Examinaremos as
circunstâncias que levaram à revolta e a ideia de Terceira Revolução, destinada
a realizar os verdadeiros objetivos revolucionários das massas laboriosas
russas. Veremos as implicações do que realmente aconteceu e como a verdade
sobre Kronstadt precisa ser revelada ante os perigos do vanguardismo leninista,
que ainda hoje tem um efeito tão prejudicial em nossas lutas.
Os marinheiros da base
naval de Kronstadt eram
um bastião revolucionário (1905) e estiveram na vanguarda da Revolução Russa de 1917. Formaram um dos
primeiros sovietes no verão daquele ano, tiveram participação ativa nos eventos
de outubro, tomando parte na invasão do Palácio de Inverno, e colaboraram
efetivamente na defesa de Petrogrado contra o avanço branco.
No entanto, em 1921, o
povo estava desiludido com o governo bolchevique, com o comunismo de guerra, a
falta de liberdade de expressão, as prisões da Tcheka (a polícia política
bolchevique) e a requisição brutal de grãos nas regiões camponesas do país. Diante
disso, deflagrou-se no ano de 1918 um movimento grevista pelos grandes centros
urbanos do país, no qual
os
trabalhadores reivindicavam por melhores suprimentos de alimentos. Em 1919,
estoura a greve geral em Petrogrado e greves similares ocorrem também em
Moscou. A greve se espalha pelos Urais. Em fevereiro de 1921, greves eclodem
novamente em Petrogrado.
Em 1º. de março, os
marinheiros de Kronstadt, em solidariedade ao movimento grevista, realizam
reuniões em massa (15.000 pessoas) e exigem do governo a realização da seguinte
pauta: eleições imediatas por voto secreto para o sovietes; liberdade de
expressão e de imprensa para todos os partidos, grupos de esquerda e
anarquistas; liberdade de reunião para sindicatos e organizações camponesas;
abolição das agências políticas no exército e na marinha; retirada imediata de
todos os esquadrões de requisição de grãos e dos bloqueios de estrada; e o restabelecimento
de um mercado livre para os camponeses (Resolução do Petropavlosk). Paralelamente,
os marinheiros começam a publicar o jornal Izvestiia
de Kronstradt.
Em resposta, os
bolcheviques denunciaram os rebeldes como agentes brancos e de fazerem parte de
um complô contrarrevolucionário. Surpresos, os marinheiros transmitem a
seguinte mensagem de rádio: “Camaradas operários, marinheiros e soldados vermelhos.
Defendemos o poder dos sovietes e não dos partidos. Defendemos a livre
representação de todos os trabalhadores. Camaradas, vocês estão sendo
enganados. Em Kronstadt, o poder está nas mãos dos marinheiros revolucionários,
dos soldados vermelhos e dos trabalhadores. Não está nas mãos dos Guardas
Brancos, supostamente chefiados por um general Kozlovsky, como afirma a rádio
de Moscou”.
Depois de negociações
infrutíferas, Trotsky, o comandante do Exército Vermelho, um exército de base
popular e voluntária, foi designado para intervir na situação. Trotsky, que
defendia a abolição dos comitês de soldados e das eleições de oficiais, a profissionalização
das forças armadas, o retorno das punições e dos castigos corporais e o
fuzilamento por deserção, sendo também o responsável pela inclusão de antigos
oficiais czaristas nos postos de comando sob a condição de “especialistas
militares”, ordenou o ataque à fortaleza.
Seguiu-se então uma
luta feroz e a revolta foi brutalmente esmagada. Victor Serge escreveu que: O
ataque final foi desencadeado por Tukhachevsky, em 17 de março (...). Alguns
dos rebeldes conseguiram escapar e chegar à Finlândia. Outros opuseram uma
feroz resistência, palmo a palmo, forte a forte, rua a rua, e, mesmo feridos
mortalmente, levantavam-se e, ao caírem, gritavam: “Viva a revolução mundial!”
Centenas de prisioneiros foram levados a Petrogrado e entregues às prisões da Tcheka;
meses depois, eles ainda estavam sendo fuzilados em pequenas levas, sofrendo
uma agonia insana e criminosa. Esses marinheiros derrotados pertenciam de corpo
e alma à Revolução; eles expressavam o sofrimento e a vontade do povo russo.
Segundo Ida Mett: Se as
greves de Petrogrado exigiam a reabertura do comércio e a abolição das blitz de
estradas, os rebeldes proclamavam que Kronstadt não reivindicava o livre
comércio mas, sim, o genuíno poder dos soviéticos, pois sabiam que a reabertura
do mercado não resolveria seus problemas.
Anton Ciliga afirmou
que: A resolução do Petropovlovsk se pronunciou em defesa dos trabalhadores,
não somente contra o capitalismo burocrático do Estado, mas também contra a
restauração do capitalismo privado. Esta resolução propunha uma aliança entre
os operários e camponeses com os setores mais empobrecidos do campo; em suma,
trabalhadores proletários reivindicando que a revolução criasse o socialismo de
fato. A NEP, por outro lado, era a união dos burocratas com as classes altas das
cidades contra o proletariado, a aliança do capitalismo de Estado com o capital
privado contra o verdadeiro socialismo.
Nos anos 30, Trotsky
escreveu que os marinheiros não eram os mesmos de 1917, isto é, “o orgulho e a
glória da revolução”. Argumentava que muitos dos marinheiros revolucionários de
1917 haviam tombado em combate ou sido transferidos para outro lugar e
substituídos em grande parte por kulaks ou elementos alienados. Isso teria
facilitado o trabalho das organizações contrarrevolucionárias que teriam cooptado
Kronstadt.
Israel Getzler (Kronstadt 1917-1921: The Fate of a Soviet
Democracy, 2002) investigou a questão a fundo e demonstrou que os marinheiros
que serviam na Frota do Báltico em 1º. de janeiro de 1921 eram de ao menos
75,5% do pessoal recrutado antes de 1918. Getzler argumentou que os veteranos
vermelhos ainda predominavam no final de 1920 e que houve uma continuidade em
todos os sentidos dos movimentos de 17 e 21.
Recentemente,
documentos dos arquivos soviéticos mostram que, em 7 de março de 1921, um chefe
da Tcheka reportou que a grande maioria dos marinheiros da Frota do Báltico
ainda eram composta pelos antigos revolucionários e poderiam, sim, ter formado
a base de uma possível Terceira Revolução.
Eis, portanto, o
verdadeiro sentido da Rebelião de Kronstadt, definido por eles próprios como a Terceira Revolução: o prosseguimento do
processo revolucionário iniciado em 1917, por anarquistas e maximalistas, pela
união de camponeses e operários, pelo verdadeiro poder dos sovietes.
IV
- A rebelião de Kronstadt, 1921: identidades políticas e circulação de
informação
Dmitriy
Ivanov é pesquisador na Universidade Europeia de São Petersburgo.
Sem dúvida, os anarquistas
também apoiaram os marinheiros na luta contra o comissariado e se fizeram
presentes quando distribuíram panfletos nas fábricas de Petrogrado, chamando os
operários para apoiar a rebelião de Kronstadt. Ademais, outros grupos, como os
socialistas revolucionários (SR), mencheviques e ex-comunistas, desempenharam
um papel relevante durante a rebelião e, de certo modo, ajudaram a reviver o
espírito apartidário e revolucionário dos sovietes dos anos de 1917.
Um dos slogans de Kronstadt,
“todo o poder aos sovietes, não aos partidos”, foi cunhado pela União dos
Socialistas Revolucionários Maximalistas em1919, e este grupo estava muito
fortemente representado entre os marinheiros da Frota do Báltico. Especificamente,
alguns dos mais influentes textos, sobre os eventos de 1921, como A verdade sobre Kronstadt do Volia Rossii (1921) e do StepanPetrichenko (1925), foram publicados pela imprensa dos socialistas revolucionários
(SR).
Mas os neopopulistas,
isto é, socialistas revolucionários (SR) e maximalistas, que pareciam ter
mantidos fortes ligações com os rebeldes refugiados na Finlândia, falharam em
canalizar politicamente à rebelião de Kronstadt para si mesmos no movimento internacional
revolucionário, em grande parte devido a sua frágil organização.
Já os sociais
democratas mencheviques, que também estavam representados entre os líderes rebeldes
e quem espalhou panfletos em Petrogrado em apoio aos insurgentes de Kronstadt,
não viam no movimento uma afinidade com seus ideais e, por isso, não usaram a
rebelião a seu favor na luta política.
Foram os anarquistas,
no entanto, que fizeram uso político da experiência de Kronstadt, em 1922 e
1923. No início dos anos 20, a divisão na extrema esquerda do movimento
internacional dos trabalhadores, entre apoiadores e oponentes dos comunistas,
estava crescendo.
Os anarquistas, que
haviam apoiado os bolcheviques no início, perderam toda a esperança no sistema
comunista. Em janeiro de 1922, Emma Goldman (Minha desilusão na Rússia, 1923) e Alexander Berkman, um dos mais
respeitados expoentes do anarquismo internacional e um dos fundadores do
movimento anarquista russo, começaram sua campanha de denúncia do terror
comunista contra dissidentes do partido. O
Mito Bolchevique (1925), de Berkman, foi traduzido para o alemão, lituano,
espanhol, holandês e francês. Outro militante anarquista, muito popular em
Kronstadt nos ano de 1917, Yefin Yarchuk, também publicou sua versão da
rebelião em Kronstadt na Revolução Russa
(1923), traduzido para o francês, espanhol, búlgaro e inglês. Esses livros tiveram
um impacto muito significativo na percepção dos eventos na Europa Ocidental e na
América do Norte. O Diário de
Berkman, no qual descrevia sua desilusão com os bolcheviques, foi publicado,
inclusive, pela editora canadense Black Press (Kronstadt Diary: February 26 - march 19, 1921).
Goldman e Berkman
utilizaram-se da repressão de Kronstadt como um exemplo da crueldade,
hipocrisia e traição aos ideais da Revolução de 1917, e propuseram uma
alternativa para emancipação dos trabalhadores evitando os erros do centralismo
e autoritarismo. Testemunhas oculares do massacre da rebelião, Berkman e
Goldman, e muitos dos seus camaradas, participaram da fundação da International
Workingmen's Association (IWA), em 1922. Cem anos depois, o IWA-AIT ainda continua
essa luta.
Em contraparida, para
se defender da campanha dos libertários, os bolcheviques tentaram usar como
propaganda favorável ao regime soviético elementos do anarcossindicalismo e ex-anarquistas
que estavam alinhados ao Partido Comunista.
No contexto da Guerra Civil da Espanha o debate sobre Kronstadt ganhou novo fôlego. Trotsky escreveu um
artigo de propaganda intitulado Hue and
Cry Over Kronstadt ("O Clamor por Kronstadt", 1938), que acabou levando a um rompimento dramático com
Victor Serge, um ex-anarquista que se aliou aos bolcheviques durante a
revolução. No mesmo ano, Goldman publicou seu panfleto Trotsky Protests Too Much ("Trotsky reclama demais",1938), confessando que, durante a guerra
civil na Rússia, quase todos os anarquistas apoiaram os bolcheviques, ainda que
conscientes da implosão iminente da revolução, mas nem por isso o ex-chefe do
Exército Vermelho estava isento do totalitarismo stalinista, pois o processo de
exclusão das massas trabalhadoras havia começado quase imediatamente a tomado
do poder por Lênin e seu partido. Na guerra das narrativas, John G. Wright
publicou seu texto A verdade sobre Kronstadt (The Truth about Kronstadt
– fevereiro de 1938), em defesa de Trotsky.
A
Comuna de Kronstadt (The
Kronstadt Commune - 1938) de Ida Mett também estava inserido na discussão
de 38, embora tenha sido publicado tardiamente, em 1948. Mett fez um bom uso
dos jornais publicados pelos emigrados russos, mas muito do material que ela
utilizou no livro proveio da série de artigos intitulados O motim de Kronstadt de 1921 (Kronshtadtskü
miatezh v 1921, 1931), de autoria de um stalinista, Alexey Pukhov, que era
intelectualmente mais honesto que os líderes bolcheviques de 1921. Já A Revolta de Kronstadt (1942), de Anton
Ciliga, é um excelente relato das questões mais fundamentais do levante de
Kronstadt.
Mais tarde,
historiadores simpáticos ao anarquismo causaram constrangimento, por trazerem
para o debate algumas questões inconvenientes para os libertários. No prefácio
do livro de Ida Mett da edição francesa de 1967, Maurice Brinton teceu
considerações que certamente desagradariam a autora. Segundo Brinton: Nas Memórias de um Revolucionário, de
Victor Serge, há um capítulo dedicado a Kronstadt. O texto de Serge é
particularmente interessante porque o autor estava em Leningrado em 1921 e
apoiava os bolcheviques na questão de Kronstadt, embora com certa relutância. No
entanto, Serge não se utiliza de calúnias e distorções, como fizeram
importantes membros do partido. O livro lança luz sobre o estado de espírito
quase esquizofrênico das bases do partido durante aquela época. Por diferentes razões,
nem trotskistas nem anarquistas o perdoariam, pois Serge buscava conciliar o
que havia de melhor nas respectivas doutrinas: a preocupação com a realidade,
dos primeiros, e a preocupação com os princípios, dos segundos. Já em Kronstadt, 1921 (1ª. edição, 1970), Paul
Avrich traz à tona o Memorando Secreto e revela evidências da tentativa de
cooptação da rebelião por parte dos contrarrevolucionários e da ligação tardia
de Petrichenko com os emigrados russos.
Para encerrar, seria
importante esclarecer que, apesar de todas as controvérsias, o conceito de
democracia em 1917 e 1921 não era evidentemente o conceito liberal; para os
rebeldes, portanto, democracia era o governo dos trabalhadores.
V
- Kronstadt e o movimento de trabalhadores em Moscou e Petrogrado, 1921
Simon
Pirani é professor honorário da Universidade de Durham.
Para começar, gostaria
de dizer um pouco sobre o que me levou a pesquisar este assunto. Primeiro, visitei
a Rússia em 1990, antes do colapso da URSS. Na ocasião, queria saber mais sobre
os maiores protestos da classe trabalhadora desde os anos de 1920. Eu era
trotskista e militava no movimento dos trabalhadores do Reino Unido. A luta dos
trabalhadores do leste europeu e da URSS sempre nos inspirou muito, mas o
contato com eles sempre tinha sido difícil, por vezes impossível. No final dos
anos 80, um encontro que tive com socialistas russos e ucranianos forçou-me a
repensar o que sabíamos sobre a Revolução Russa. Logo percebi que a versão dos
trotskistas que as coisas estavam indo na direção certa até Stalin tomar o
poder em meados dos anos 20 era simplista e errada. Nos anos 2000, trabalhei
nos arquivos soviéticos lendo minutas de relatórios secretos relativos aos
encontros de trabalhadores nas fábricas e outros documentos oficiais, material
este que forneceu a base do meu livro The
Russian Revolution in Retreat, 1920–24: Soviet Workers and the New Communist
Elite (London: Routledge, 2008 - não há edição em português).
Após a tomada do poder
pelos bolcheviques em outubro de 1917, iniciou-se o período da guerra civil. Em
1920, os brancos foram amplamente derrotados e o povo estava ansioso por saber
que tipo de sociedade surgiria em tempos de paz. Mas havia uma forte opinião entre os bolcheviques
de que os métodos militares e compulsórios de confisco de alimentos, para
atender as necessidades de alimentação das populações urbanas e do exército no front, e que venceram a guerra civil,
podiam continuar. Esta ideia estava por trás da tentativa fracassada em maio de
1920 de expandir a revolução para o Ocidente, inicialmente, por meio de um
ataque à Polônia, sustentado pela continuidade das medidas de requisição de
grãos dos camponeses. Tal política, no entanto, havia levado a um grande número
de violentas revoltas camponesas. No inverno de 1920 para 1921, a política de
confisco de alimentos, combinada às blitz de estradas, suscitou a fome entre a
população e, por seu turno, exacerbou o descontentamento entre os trabalhadores
urbanos que deveriam ser a principal base de apoio do governo. Tal insatisfação
ocasionou uma onda de greves em fevereiro de 1921 - que acabou por criar uma
ponte entre grevistas e camponeses. Embora o povo da cidade formava uma pequena
minoria, menos de um quinto do total da população russa, muitos dos
trabalhadores urbanos pertenciam a primeira ou a segunda geração de migrantes
oriundos do campo. Portanto, mantinham laços fortes com o campo e,
frequentemente, retornavam aos seus vilarejos de origem quando escasseava a
comida durante a guerra civil.
Diante disso, os
bolcheviques, por outro lado, passaram a denunciar os trabalhadores que não
estavam de acordo com suas políticas, acusando-os de camponeses de mentalidade
pequena burguesa. Na realidade, a maioria dos trabalhadores, pró ou
antibolchevique, era solidária aos camponeses, até mesmo pela proximidade que
tinham com a vida rural. Então, os protestos contra o governo realizados pelos movimentos
de trabalhadores das maiores cidades industriais, Moscou e Petrogrado, ganharam
impulso durante janeiro e fevereiro de 1921, com reuniões massivas e greves. Em
Moscou, grande parte da força de trabalho, no caso, quase toda formada por
mulheres, parou de trabalhar e marchou através dos distritos industriais
chamando outros operários para se juntarem ao movimento, que se transformou numa
escalada de greves durante muitos dias. A paralisação atingiu toda a indústria
têxtil ao redor de Moscou. Em Petrogrado, os trabalhadores também se
manifestaram e pararam por uma semana. Durante a rebelião de Kronstadt,
iniciada no 1º. de março, ocorreu, por exemplo, uma greve geral em Saratov, no
dia 4 de março, na qual os trabalhadores demonstraram simpatia para com os
marinheiros e protestaram contra a repressão. Entretanto, não existia uma coordenação
entre os rebeldes de Kronstadt e os movimentos grevistas, que apareciam um após
o outro e sem qualquer articulação.
As demandas do
movimento de trabalhadores abrangiam tanto o aspecto econômico quanto o
político. As demandas econômicas reivindicavam fundamentalmente o fim do
sistema compulsório do comunismo de guerra, posto em prática durante a guerra
civil. Havia uma grande queixa por liberdade de locomoção por parte dos
trabalhadores de Petrogrado que, em tempos de desespero, adotavam estratégias
individuais de sobrevivência, como retornar para suas as cidades de origem ou
mesmo roubar produtos do local de trabalho para vendê-los ou trocá-los por
comida. Por isso, no grande complexo fabril de Moscou, as massas aprovaram uma
resolução contra a rígida disciplina que condenava os trabalhadores a um estado
de carência total. Assembleias de operários também pediam o fim das requisições
compulsórias de grãos e a liberdade para comprar dos camponeses o trigo que
seria confiscado. Em fevereiro, em um grande encontro de delegados da
metalurgia de Moscou, as demandas não somente exigiam o fim das requisições mas
também a sua substituição por um tipo de taxa. Um mês depois, o governo adotou
exatamente essa mesma política, marcando o fim do então chamado comunismo de
guerra e o início da Nova Política Econômica (NEP).
Realmente, os
bolcheviques fizeram algumas concessões, mas algumas exigências econômicas
expressavam, no fundo, demandas políticas. Uma reivindicação muito popular, também
em Kronstadt, era a equalização das rações de primeira necessidade, que eram
racionadas e divididas de modo desigual. Algumas pessoas de posição oficial no
governo ou no partido bolchevique e que supervisionavam as fábricas se utilizavam
da corrupção para obter mais rações. Obviamente, a demanda por igualdade na
divisão de rações fazia alvo certeiro o estado burocrático que se consolidava.
Era uma forma de atingir politicamente a embrionária burocracia. Contra o Estado
ditatorial, os operários clamavam por liberdade de expressão e, se os ativistas
eram presos, seus colegas muito frequentemente cruzavam os braços e paravam a
produção. Outra demanda política muito comum era o clamor por novas eleições nos
sovietes. Os sovietes que, foram fóruns ativos em 1917, muito frequentemente
pararam de funcionar durante a guerra civil.
Essas demandas foram
elaboradas mais detalhadamente em Kronstadt no intercurso da rebelião e havia
provocado uma inquietação crescente na burocracia e nas fileiras do partido
bolchevique, que não era homogêneo. Havia uma variedade de facções de oposição,
dentre as mais conhecidas a Oposição Operária e o Centralismo Democrático, que
também manifestavam descontentamento com as políticas implantadas pelo governo.
No X Congresso do Partido, celebrado durante a rebelião de Kronstadt, estas
facções foram banidas.
Enquanto a rebelião dos
marinheiros era finalmente suprimida com execuções e prisões, o governo
conscientemente tentou impor um limite na repressão ao movimento dos trabalhadores,
para evitar uma intensificação da muito disseminada dissensão no país. Esta
aproximação envolvia, no entanto, a destruição do que ainda restava de uma
perspectiva democrática nos sovietes. Em maio de 1921, as demandas por novas eleições
nos sovietes foram parcialmente atendidas. Mesmo assim, muitos grupos de
oposição de esquerda, inclusive ex-bolcheviques e não-bolcheviques, tais como
socialistas revolucionários de esquerda, anarquistas e muitos trabalhadores não
partidários, estavam sujeitos a mais severa repressão do Estado. Mas os apartidários
se posicionaram contra os bolcheviques em todas as grandes fábricas de Moscou e
venceram em quase todos os casos. Isso levou vários anos até que estas ilhas de
independência da classe trabalhadora foram, enfim, sufocadas.
Conclusões: 1º.) A
revolta de Kronstadt foi um evento isolado, apesar das reivindicações dos
marinheiros, no que concernia à democracia nos sovietes, coincidirem com as
demandas dos trabalhadores das fábricas. 2º.) Os bolcheviques acreditavam que
seu governo estava em risco, assim como seus inimigos contrarrevolucionários
brancos; mas nós podemos observar, como historiadores, que aquele risco não era
tão grande assim e que não havia coordenação entre as greves e os protestos dos
trabalhadores com a revolta dos marinheiros. O que muitos destes trabalhadores
estavam buscando era essencialmente a reforma do sistema soviético ao invés de
objetivarem uma revolução. Eu sou cético quanto à viabilidade da Terceira Revolução,
penso que seria necessário refletir mais sobre o que ela significa nesse
contexto. 3º.) As condições para construção de algum tipo de sociedade
socialista na Rússia, em 1921, eram realmente muito ruins, a economia tinha
colapsado depois da guerra e, apesar de toda esperança, a revolução não tinha
se espalhado para a Alemanha e outros países industrializados. No entanto, a
despeito de que, naquelas terríveis condições, trabalhadores e marinheiros
lutassem pela restauração e desenvolvimento da democracia nos sovietes, depois
da guerra civil, isso poderia ter um alcance mais restrito e fortalecido o
enfrentamento a hierarquia e exploração na sociedade soviética, que estava gestando
a ditadura burocrática bolchevique. Mas aquelas forças bolcheviques optaram por
reprimir os marinheiros para, em seguida, oprimir cinicamente os trabalhadores
que protestavam contra os desmandos arbitrários do governo, e isto era
profundamente, talvez, fatalmente perigoso para o projeto verdadeiramente
revolucionário e o legado ideológico para as esquerdas na posteridade. A ideia
de que o autoritarismo e a repressão eram de algum modo inevitável ou justificável
nas revoluções maculou o legado do socialismo durante o século XX e, nesse
sentido, Kronstadt foi realmente trágico.
VI
- O Levante de Kronstadt (1921) como uma fase da Grande Revolução Russa
Alexei
Gusev é professor de história e vice-diretor do Departamento de Historia dos
Movimentos Sociais e Partidos Políticos da Faculdade de História na
Universidade Estadual de Moscou (Lomonosov). Ele também é presidente do Centro
de Pesquisa da Práxis e Educação de Moscou.
No início dos anos 90,
o ex-presidente Boris Yeltsin prometeu erguer um monumento em homenagem aos
rebeldes de Kronstadt. Porém, nunca nada foi feito realmente e, em pleno ano de
2021, cem anos depois da revolta, não existe sequer uma placa em memória aos
marinheiros da Frota do Bático. Na Rússia, nós temos os mais diversos
monumentos, nós temos monumentos para tudo, desde Alexander Nevsky ao crítico
literário Belinsky, do compositor Rachmaninoff ao escritor Dostoevsky, passando
pelos líderes bolcheviques, Lênin, Trotsky e Stálin, até Karl Marx, Engels etc.
Mas a narrativa oficial reduz a Revolução de 1917 e a Guerra Civil a um
conflito entre vermelhos e brancos, entre Lênin e Denikin. O Levante de Kronstadt
não existe nessa narrativa e mesmo alguns sites especializados em história
classificam os rebeldes de Kronstadt como brancos. Esta narrativa oficial não
considera nenhuma terceira força e é tarefa dos historiadores demonstrar que
havia outros elementos no tabuleiro, não apenas em Kronstadt, mas também os Verdes
[1], o movimento anarquista etc. Essa tarefa está ainda por ser feita na
historiografia russa e mesmo na opinião pública em geral.
A natureza do levante
de Kronstadt de 1921 pode ser definida como o começo da Terceira Revolução na
Rússia. A primeira revolução de fevereiro de 1917 pôs fim ao governo do czar,
dos proprietários de terra e dos oficiais imperiais. A segunda revolução, em
outubro do mesmo ano, desbaratou o governo da burguesia. A terceira revolução,
lançada pelos kronstadtinos, visava a comissiocracia bolchevique, a burocracia
comunista e, portanto, a farsa do suposto governo dos trabalhadores. O que o
movimento de 8 de março de 1921 significava era o despertar de todos os
trabalhadores do Ocidente e do Oriente para o autêntico socialismo. Um primeiro
olhar na resolução dos revoltosos da base naval pode parecer que ela transmite
um tom de ingenuidade se levássemos em conta que o movimento pretendia iniciar
uma revolução. Mas, ao analisar o conteúdo histórico do levante, o seu
significado real merece algumas considerações a respeito.
Se nós entendermos uma
revolução como um processo de transformação radical, fomentado pela influência
das massas populares e envolvendo mudanças do regime político, então os eventos
na Rússia de fevereiro de 1917 a 1922 se ajustam ao nosso entendimento e, além
disso, encontram similaridade com a Grande Revolução Francesa do século XVIII,
a qual também durou vários anos. Tal qual sua congênere francesa, a Grande
Revolução Russa consistiu-se de várias fases e estava orientada para a
resolução de um grande número de problemas chave e contraditórios da
modernização social na Rússia, notadamente, a questão da terra – a distribuição de terras para os camponeses – e
a questão política – a concessão de
direitos à população. Em suma, terra e
liberdade.
A revolução russa envolveu
a confrontação de várias forças sociais e políticas que culminaram na guerra
civil até a estabilização do novo regime político bolchevique. Assim, com base
na solução parcial da distribuição da terra e na secessão das estruturas sociais
no seio da Grande Revolução Russa é que podemos definir as várias fases
principais do processo revolucionário em tela. A primeira fase, fevereiro-março,
de 1917, não resolveu a questão da terra, tampouco a questão política. A
segunda, outubro de 1917, formalmente deu terra aos camponeses, mas muito cedo
os bolcheviques ou comunistas instituíram o comunismo de guerra: política pela
qual, de um lado, determinava a requisição obrigatória da produção agrícola e,
do outro, submetia camponeses e operários a um estrito controle burocrático. No
lugar do proclamado poder dos sovietes sobreveio o autoritarismo e a ditadura do
Partido Comunista. Portanto, a questão chave da Grande Revolução Russa
permaneceu irresoluta também na terceira fase. Esta fase é marcada por um
confronto em grande escala, configurado pela guerra civil, cujos efeitos
conduziram a revolução para a sua quarta fase, caracterizada por um novo
período de insurgência revolucionária no fim de 1920 ao verão de 1921.
O ponto alto desse
período foi o Levante de Kronstadt, em março de 1921, que estava estritamente
relacionado com a guerra camponesa na Rússia, iniciada no inverno de 1920-21 e
provocada pela política de confisco de toda a produção de grãos. Na primavera
de 1921, 165 grupos, com mais de 100 000 combatentes atuando em todo o
território do país, insurgiram-se contra o controle do governo de Moscou. Além
disso, havia distúrbios e protestos dos movimentos de trabalhadores em todos os
principais centros industriais da Rússia. Os operários entraram em greve e parte
substancial dos protestos implicavam demandas políticas necessárias. Em
fevereiro de 1921, uma onda de greves assolou Moscou e Petrogrado, causando diretamente
o levante de Kronstadt. Ademais, toda uma série de protestos, incluindo motins,
tomou lugar no Exército Vermelho.
Assim sendo, conforme o
ponto de vista da teoria política, a situação do início de 1921 poderia ser
categoricamente descrita como uma conjuntura revolucionária. A noção de
conjuntura revolucionária é bastante conhecida na interpretação de Vladimir Lênin,
que, aparentemente, tomou emprestada do escritor e historiador liberal francês,
do século XIX, Alex de Tocqueville. Lênin definiu a conjuntura revolucionária
como uma crise geral em que o sofrimento das massas populares cresce mais do
que o usual e as classes baixas insatisfeitas não querem mais viver como no
antigo regime. Realmente, estas características estavam definitivamente
presente em 1921! Modernas teorias concernentes à conjuntura revolucionária
desenvolvida por autores como Charles Tilly, Olivia Stiles, Michel Dobry seguem,
grosso modo, a mesma dinâmica lógica. Primeiro, uma onda de protestos envolve
uma porcentagem significante da população e resulta em grandes coalizões entre
classes sociais que desencadeiam um movimento crescente e generalizado. No caso
de Kronstadt, houve uma aliança objetiva entre camponeses, operários e parte
das forças armadas, que universalizou as demandas básicas das massas revoltosas
em três espécies de liberdade: a) liberdade de trabalho, b) liberdade de
comércio e c) liberdade política. A questão política, na maioria das vezes,
pleiteava por eleições livres para os sovietes, mas também, em alguns casos, a restauração
de toda democracia e até uma nova assembleia constituinte.
A segunda
característica da conjuntura revolucionária se configura como uma crise no
interior da elite governante, que é incapaz de governar no modo antigo. Também isto
ocorreu em 1921. O governo do partido bolchevique naquele tempo experimentou
uma profunda crise entre as tendências que tinham consciência de que a política
do comunismo de guerra levara o país a um desastre social. As tentativas para
encontrar um jeito de sair da crise suscitaram uma amarga discussão nos sindicatos
que dividiu o Partido Comunista em facções rivais internas e lutas intestinas
que respingaram também nos filiados do partido na Frota do Báltico. Em
Kronstadt, a agremiação foi perdendo credibilidade entre os marinheiros
comunistas a tal pondo de criarem uma corrente dissidente no partido: a Oposição
da Frota. Ao mesmo tempo, outros marinheiros começaram a deixar em massa o
partido bolchevique e, antes do início do levante, cerca de 40% dos filiados de
Kronstadt abandonaram o Partido Comunista. No curso da revolta, somente um
terço permaneceu ainda afiliado. Ademais, muitos dos líderes do Comitê Revolucionário
de Kronstadt foram membros do partido, inclusive Petritchenko, e por isso
justificavam a rebelião como uma luta para ressuscitar os lemas do início,
nunca realizados após a conquista do poder político que se encaminhava para uma
ditadura.
Aqui eu penso que nós
podemos traçar um paralelo com o motim naval de Kiel no contexto da Revolução
Alemã de novembro de 1918 e do Encouraçado Potemkin no Mar Negro, em junho de
1905. Kronstadt também foi um reflexo da conjuntura que poderia ter gerado uma
radicalização ainda maior no processo revolucionário. O levante tinha potencial
para uma mudança radical da situação política. Nesse sentido, Kronstadt foi o
culminar de uma vasta resistência operária-camponesa que se posicionou tanto
contra os reacionários brancos (liderados pelos generais Kolchak, Denikin,
Wrangel) como contra os bolcheviques (Lênin, Trotsky, Kalinin, Zinoviev).
Se Kronstadt resistisse
como um território da Terceira Revolução, poderia se constituir de fato como um
centro de coalizão de várias forças políticas. Por exemplo, só o exército camponês
mais importante daquele tempo reunia, somente na região do Tambov, sob
liderança de Alexander Antonov, 50 000 combatentes, e no oeste da Sibéria 100 000.
Mas alguém poderia objetar que havia o problema de falta de abastecimento nos
armazéns de Kronstadt. Quanto a isso, os rebeldes poderiam ter sido providos pela
Finlândia, apesar de, no início, recusarem a mediação dos emigrados russos,
notadamente, os socialistas revolucionários. Ademais, caso o gelo derretesse, Kronstadt
seria inexpugnável e impossível de ser tomada, o que poderia mudar radicalmente
a situação.
O próprio Exército Vermelho
não estava imune à influência de Kronstadt. Nós sabemos que houve dois assaltos
à fortaleza, o primeiro ocorreu no dia de abertura do X Congresso do Partido Comunista,
no dia 8 de março de 1921. Como sabemos também, o assalto falhou por causa dos
soldados do Exército Vermelho que não queriam lutar contra os marinheiros. Na
ocasião, foi reportado que alguns dos soldados pararam quando viram a bandeira
vermelha tremulando sobre Kronstadt. Surpresos, indagaram: O que é isso? Disseram-nos
que Kronstadt estava nas mãos dos generais e colaboradores brancos, mas vejam a
bandeira vermelha, fomos enganados por nosso comissário! Diante da deserção de
muitos soldados, as troikas extraordinárias, isto é, cortes instruídas por três
pessoas investidas de poderes extraordinários, condenaram ao fuzilamento 100
soldados do Exército Vermelho em apenas dois dias, fato que atemorizou os
demais e os empurrou para o ataque a Kronstadt. Então era muito séria a crise
no próprio aparato de segurança bolchevique e se a rebelião de Kronstadt
prosseguisse a instabilidade social poderia ter sido agravada mais e mais.
Sobre a questão da
continuidade da Comuna de Kronstadt de 1917 e do levante de 1921, é muito interessante
porque no final dos anos de 1930 houve uma discussão entre anarquistas e
comunistas sobre a rebelião. Trotsky argumentou em um artigo que a frota de 21
era completamente diferente da de 17, que os novos marinheiros foram recrutados
nos vilarejos rurais, que eram kulaks etc. Quanto ao “Orgulho e Glória da Revolução”,
em grande parte foram mortos no front de batalha durante a guerra civil. Isso,
claro, não é verdade. A rebelião teve início e foi idealizada nos encouraçados
Sebastopol e Petropavlovsk, cuja tripulação não havia mudado muito desde 1917.
Os mesmos velhos marinheiros que participaram dos eventos de 1917 eram a
vanguarda da rebelião de Kronstadt, sendo que a maioria deles participou de
outubro e apoiou os bolcheviques. Claro que uma parte minoritária era realmente
formada por novos recrutas, principalmente, do sul da Rússia e da Ucrânia. Mas
a rebelião produziu uma síntese das duas partes, os antigos marinheiros da
revolução e os novos de maioria camponesa que relatavam para os mais velhos o descontentamento
e as agruras sofridas no campo.
Sob tais pressupostos,
seria então muito difícil impedir a difusão do levante para fora da ilha de
Kotlin quando o degelo da primavera impossibilitasse a tomada de assalto de
Kronstadt. E isso era iminente. As condições para uma união entre o movimento
dos marinheiros da Frota do Báltico, as greves dos trabalhadores e as
insurreições no campo estavam formadas, constituindo um elemento potencialmente
transformador do regime político na Rússia. A Terceira Revolução poderia ter mudado
o regime político, resolvido a questão agrária e permitido uma transição plena
para o controle operário através da democracia direta nos sovietes, ou seja, as
duas questões mais fundamentais da Grande Revolução Russa.
Quanto à derrota dos
marinheiros de Kronstadt, esta se deve a vários fatores, dentre os quais a espontaneidade
da rebelião, forjada sem nenhuma organização ou preparação; as táticas defensivas
dos rebeldes, que por tão longo tempo acreditaram na boa-fé dos líderes do
Partido Comunista; e as prisões efetuadas pela Tcheca, que neutralizaram as
forças políticas que teriam apoiado a rebelião em Petrogrado. Apesar da
derrota, no entanto, o levante de Kronstadt - juntamente com outros movimentos
populares - forçou os bolchevique a pôr termo no odiado comunismo de guerra e a
Nova Política Econômica (NEP) fez muitas concessões aos camponeses,
principalmente, a partir do novo Código Agrário de 1922. Isso melhorou a
situação e levou ao declínio dos protestos de massa após Kronstadt. Assim, a
Grande Revolução Russa entrou em sua fase final, os movimentos insurgentes no
campo foram suprimidos em grande escala e a luta dos trabalhadores enfraqueceu.
Portanto, a Grande Revolução
Russa chegou ao fim sem resolver totalmente suas grandes questões essenciais; a
maior parte da população camponesa russa não teve garantias políticas,
concomitantemente com a liberalização da economia, e a ditadura do regime
político do Partido Comunista foi ainda mais endurecida. Os líderes do governo
passaram a temer o que chamavam de “o espírito de Kronstadt” e, por
conseguinte, novos levantes. E, assim, foram proibidas as tendências de
oposição dentro o Partido Comunista, resultando em novas contradições e crises
que poriam em cheque o regime no futuro.
[Nota 1: Exército Verde ou Terceira Força eram organizações de autodefesa muito poderosa
formada por camponesas e desertores do Exército Vermelho e Branco - N. do
blog].
VII
– Teses sobre 1917: comunismo de guerra ou acumulação primitiva?
Jean
Fecaloma
1) É equivocado
interpretar a rebelião de Kronstadt como um conflito entre anarquistas e
comunistas (socialdemocracia alemã). A verdade é que estas correntes eram
ocidentalistas e pouco representativas da realidade russa. A história da Rússia
pode ser descrita como um movimento pendular de abertura e fechamento para o
Ocidente. Daí que, no século XIX, os russos conceberam e adaptaram sua própria
ideia de socialismo à realidade agrária e culturalmente singular do país. Conhecido
como narodnik ou, literalmente, “populismo”,
o movimento socialista russo era bastante amplo e pouco sistemático e
comportava tendências tão avançadas como o fourierismo de Tchernichevsky (O que fazer?) até o conservadorismo
cristão ortodoxo de Tolstoi. (Em que medida o anarquismo de Bakunin ou
Kropotkin influenciou o movimento narodnik
– e certamente houve alguma influência – é algo a ser discutido). No início do
século XX, os sociais revolucionários (SR) e maximalistas apareceram como descendentes
diretos dos populistas e, por isso, gozavam de maior afinidade e simpatia popular,
tanto que, nas eleições para a Assembleia Constituinte de novembro de 1917,
alcançaram 58% das cadeiras, enquanto os bolcheviques 25%, os mencheviques 4% e
os liberais 13%. Por ser um movimento autóctone e, obviamente, não dispor de interlocutores
no estrangeiro, o movimento desapareceu sob o governo do partido único. A
Rebelião de Kronstadt foi, por uma parte, exportada simbolicamente para o oeste,
onde foi objeto da disputa entre anarquistas e comunistas, enquanto, por outra
parte, foi tratada internamente pelos soviéticos como um conflito entre
vermelhos e brancos.
2) Em dezembro de 1920,
a guerra civil chegava ao fim e não havia mais nenhum interesse das nações aliadas,
com exceção da França, de intervir na política interna da Rússia. Mesmo o
governo francês, como vimos em Paul Avrich, demonstrou pouco empenho em ajudar
os emigrados russos que tentavam manipular a rebelião de Kronstadt em benefício
próprio. Por outro lado, as medidas do comunismo de guerra conduziram a Rússia
Soviética a uma situação pré-revolucionária que ameaçava a existência do
próprio governo, não de cima, pelos agentes das nações imperialistas, mas de
baixo, pela mobilização das massas operárias e camponesas. A partir de então, o
Kremlin deflagrou uma guerra implacável contra os grupos refratários, ao ponto
de, na região do Tambov, o exército efetuar um ataque inaudito de gás tóxico,
apenas ensaiado em Kronstadt, contra uma população natural da própria Rússia. Portanto,
para consolidar o poder político, após vencer a ameaça externa, os bolcheviques
passaram a eliminar as contradições internas, encarnadas justamente pela classe
trabalhadora, por meio de um despótico movimento centrípeto que se assemelhou
em muito a formação do absolutismo czarista: “Os grandes acontecimentos do
século XVII, que pontuaram a decadência da Zemsky Sobor e da Duma boiarda, não
foram revoltas separatistas dos nobres, mas as guerras camponesas de Bolotnikov
e Razin, os motins urbanos dos artesões de Moscou, os surtos de turbulência
cossaca ao longo do Dnieper e do Don” (ANDERSON, Perry. “Linhagens do Estado
Absolutista”, São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 230).
3) É provável que o
aniquilamento da rebelião de Kronstadt tenha sido uma ação deliberada e
premeditada pelos líderes bolcheviques. No X Congresso do Partido, que se
sucedeu no curso da rebelião, todas as correntes dissidentes do partido foram
proibidas, sinalizando uma centralização do poder que não admitia o
contraditório. Neste sentido, os líderes do partido podem ter usado o motim dos
marinheiros como pretexto para suprimi-los, tendo em vista o histórico de
independência e indisciplina da Frota do Báltico, que sempre seria visto como
fator de instabilidade. A NEP, que poderia ter sido colocada na mesa de negociação
com os rebeldes e pacificado o conflito, foi aprovada somente no decorrer do
motim; porém, um programa dessa envergadura não seria preparado do dia para a
noite, mesmo porque, desde o fim da guerra civil, o governo já havia criado, em
22 de fevereiro, o Comitê Estatal de Planejamento (Gosplan), a fim de coordenar o desenvolvimento econômico
planificado no país. Vimos, em Paul Avrich, que, depois da repressão, Lênin
tencionou extinguir a frota mas foi convencido por Trotsky a mantê-la em rédeas
curtas, com o aparelhamento da base naval por elementos comunistas fiéis ao
partido. Certamente, uma questão tão delicada como exterminar combatentes que
foram glorificados pela revolução e estiveram desde o início lado a lado com os
bolcheviques não poderia deixar digitais, pistas, despachos ou assinaturas. Deveria
ser feito secretamente a portas fechadas por um pequeno grupo de dirigentes seletos
e referendado por um auditório facilmente manipulável. Isso não seria algo
inédito, a execução da família real foi atribuída a uma decisão unilateral do
Soviete dos Urais, como se uma resolução de tamanha monta coubesse à autonomia
decisória de um pequeno grupo periférico subordinado ao centro do poder e sem passar
pela direção do partido.
4) “Pão! É preciso pão para
a Revolução! Que outros se ocupem em lançar circulares com frases bombásticas! Que
outros declamem sobre liberdades políticas!...” (Kropotkin).
Logo após o fim da
revolta de Kronstadt grassou por todo o território russo um longo período de
fome em massa, conhecido como a “fome de Povoljie”, que durou até 1922, e
atingiu 90 milhões de pessoas, ceifando a vida de mais de 5 milhões de vítimas.
A Rússia, que outrora ocupava a posição de maior produtor de cereal do mundo e
a primeira em termos de volume total de produtos agrícolas, passou a enfrentar
uma terrível crise de abastecimento devido à guerra civil, às condições
climáticas desfavoráveis em algumas regiões e, principalmente, às requisições
compulsórias em larga escala do excedente rural, muito embora não cessassem as
exportações de grãos para o mercado internacional durante todo o período. A
escassez de alimentos levou a uma calamidade social. Desesperadas as pessoas
andavam a esmo, errantes, a procura de comida, e, para matar a fome, roíam
casca de árvores, devoravam carniça e não foram raros os episódios de
canibalismo (de onde surgiu a expressão “comunista come criancinha”). Dez anos
depois, o processo de coletivização forçada de Stálin e a perseguição aos
kulaks, na então URSS, produziu um novo período de fome, desta vez, vitimando
um número ainda maior: 8 milhões de pessoas.
5) Karl Marx, ao
investigar as origens do modo de produção capitalista, em sua obra máxima O Capital, postulou que não há
capitalismo sem o seu pecado original: a acumulação
primitiva. Grosso modo, a acumulação primitiva pode ser definida como a
acumulação de riqueza (ou capital) sem passar pela produção – ou, sem meias
palavras: roubo, simplesmente. Dentre todos os elementos históricos elencados
pelo conceito, o mais importante é o da liberação do trabalho de seus meios de
produção e, por corolário, da formação do proletariado urbano. Trata-se de um
fenômeno iniciado na Idade Média, mas que atinge seu ápice na Inglaterra do
século XVI, quando os senhores feudais começam a expulsar violentamente as
famílias camponesas de suas casas e apoderar-se de suas terras, para
transformá-las em pastos de ovelha, no processo histórico conhecido como
“cercamentos” (enclosures). Sem ter
como sobreviver, grandes levas de trabalhadores expropriados marcham para as
cidades onde serão incorporados como assalariados na industrialização nascente.
Cabe-se perguntar até
que ponto a expropriação camponesa na forma do comunismo de guerra e das
fazendas estatais (kolkhozes e sovkhozes) constituíram um processo de
acumulação primitiva em grande escada promovido pela ação do Estado. As antigas
tradições do campesinato russo foram destruídas, os trabalhadores passaram a
receber um salário (em espécie) e muitos camponeses migraram para as cidades
onde foram compor a força motriz do desenvolvimento industrial do país.
6) O paradoxo do
socialismo. De todas as teorias filosóficas o socialismo é a doutrina mais
humanista. Privar ou dispor do destino da vida de alguém em nome de uma razão de Estado ou impor o aparato
“impessoal” e monstruoso do Estado contra qualquer pessoa, como foi procedido pelo
governo bolchevique, não é apenas igualar em hipocrisia às democracias liberais
eurocêntricas, mas também negar a essência do socialismo e afirmar sua total
impossibilidade. Bakunin soube colocar o problema de fundo ético melhor do que
ninguém quando afirmou que, enquanto ainda existir um só escravo no mundo,
nunca haverá de fato liberdade. Kronstadt poderia ter caído nas mãos dos
brancos, mas nada indica que isso colocaria o governo em cheque ou que, ainda
assim, os protestos de massa por todo país fossem mais inofensivos. Ao oprimir
os marinheiros de Kronstadt, fuzilar soldados que não queriam lutar contra seus
camaradas, condenar dissidentes a campos de concentração, os bolcheviques
cruzaram a linha do humanismo e aniquilaram o sonho de um mundo melhor, justo e
igualitário, que o socialismo ousou conceber para toda humanidade.
7) Excetuando as
comunidades primitivas, nunca houve na história da humanidade uma civilização
socialista. A Revolução Russa de 1917 - e a Chinesa também - seria muito melhor
caracterizada como uma revolução burguesa,
tal como ocorreu muito antes na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França.
Longe de instituir o comunismo, a ditadura do proletariado foi o principal
agente do desenvolvimento capitalista e da formação do Estado moderno na
Rússia.
A única experiência
social que mais se aproximou do ideal socialista foram as coletividades
libertárias - muitas vezes, coorganizadas pela CNT-FAI - durante a Revolução
Espanhola de 1936. Mais importante do que a Comuna de Paris, o processo de
coletivização espontâneas na Espanha não tem merecido a atenção devida por
parte dos estudiosos e mesmo dos anarquistas, apesar de todo o seu potencial
transformador único e sem precedente na história contemporânea. As
coletividades agrárias foram um fenômeno de grandes proporções que surgiu
espontaneamente em todas as províncias da Espanha livre, abrangendo cerca de
400 comunidades em Aragão, 900 no Levante e 300 em Castela, onde o povo
participava ativa e massivamente nas assembleias regulares (semanais,
quinzenais ou mensais) para decidir sobre tudo o que se referia à vida
produtiva e cotidiana. Embora não tão bem sucedida, também a indústria
vivenciou um processo de coletivização realizada pelo controle de trabalhadores
sindicalizados.
8) Como já escrevi em outro lugar, lamentavelmente,
o site Wikipédia vem propagando informações falsas ao atribuir ao líder da
Rebelião de Kronstadt, Stepan Petrichenko, uma filiação ideológica ligada ao anarcossindicalismo.
A fonte de tal informação é o artigo polonês “Naissaar: the Estonian “Island of
Women” Once an Independent Socialist Republic” (Sowiecka Republika Wyspy Naissaar), de autoria de um certo Kazimierz
Popławski. Não carecendo de qualquer referência bibliográfica, o artigo não
merece qualquer credibilidade. Provavelmente, o autor confunde Petritchenko com
Elfim Yarchuk, a ilha de Kotlin (Kronstadt) com a ilha de Naissar, a suposta
“República de Naissar” com as notícias inverídicas de jornal sobre a “República
de Kronstadt” e a Comuna de Kronstadt de 1917 com a Rebelião de Kronstadt de
1921.
Planeta Terra, 21
de dezembro de 2021
Jean Fecaloma
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