A
verdade sobre Kronstadt
por John G.
Wright (Joseph Vanzler)
Do The New International, Vol. IV, No. 2 , fevereiro de 1938, pp.
47-53.
O
artigo a seguir é uma apresentação resumida do material contido em um panfleto
sobre o assunto pelo escritor, que está previsto para publicação antecipada.
Quanto mais
indefensável e iníquo se torna o curso seguido pelos anarquistas na Espanha,
mais alto seus confrades no exterior clamam por Kronstadt. Durante os anos de
ascensão revolucionária, os anarquistas, os mencheviques, os SRs et al.,
estavam na defensiva. Hoje, o stalinismo deu-lhes uma cobertura demagógica para
uma ofensiva contra aqueles princípios que sozinhos tornaram possível outubro.
Eles procuram comprometer o bolchevismo, identificando-o com o stalinismo. Eles
tomam Kronstadt como seu ponto de partida. Seu teorema é o mais “elementar”:
Stalin atira nos trabalhadores apenas porque é a essência do bolchevismo abater
trabalhadores; por exemplo, Kronstadt! Lenin e Stalin são a mesma pessoa. QED [quod erat demonstrandum]
Toda a arte está em
distorcer os fatos históricos, exagerando monstruosamente cada questão ou
questão subsidiária em que os bolcheviques possam ter errado, e jogando um véu
sobre o programa e objetivos do motim e a revolta armada contra o poder
soviético. Nossa tarefa é principalmente expor as distorções e falsificações em
ato através dos “fatos” históricos que os servem de base para a acusação contra
o bolchevismo.
Primeiro, quanto ao
pano de fundo do motim. Longe de ocorrer em um momento em que o poder soviético
estava fora de perigo (como sugerem os adversários ideológicos do bolchevismo),
ocorreu no ano de 1921, um ano crucial na vida do Estado operário. Em dezembro
de 1920, as frentes da Guerra Civil foram liquidadas. Não havia “frentes”, mas
o perigo permanecia ainda. A terra com a herança bárbara do czarismo asiático
havia sido literalmente dissecada pelos estragos da guerra imperialista, dos
anos da Guerra Civil e do bloqueio imperialista. A crise dos alimentos foi
agravada pela crise dos combustíveis. Vastas seções da população enfrentavam a
perspectiva imediata de morrer de fome ou congelar até a morte. Com a indústria
em ruínas, o transporte interrompido, milhões de homens do exército ficaram
desmobilizados e as massas à beira da exaustão.
Longe de se reconciliar
com a derrota, os Guardas Brancos e seus aliados imperialistas foram estimulados
a uma nova ofensiva diante das dificuldades objetivas que os bolcheviques
enfrentavam. Eles fizeram tentativa após tentativa de forçar uma brecha “de
dentro”, contando em grande parte com o apoio da reação pequeno-burguesa,
descontente com as dificuldades e privações que acompanham a revolução
proletária. [1] O episódio mais importante desta série de eventos aconteceu no
coração da fortaleza revolucionária. Na fortaleza naval de Kronstadt, um motim
explodiu em 2 de março de 1921.
Hoje em dia um Dan diz
tranquilamente: “Os habitantes de Kronstadt não começaram a insurreição. É um
mito calunioso.” [2] Mas em 1921, os SRs rastejaram para fora de suas peles
para atenuar a revolta e tudo o que ela implicava, enquanto os mencheviques
tentaram minimizá-la e explicá-la como algo em si realmente sem importância. Os
SRs juraram que “o caráter pacífico do movimento de Kronstadt estava acima de
qualquer dúvida”; se quaisquer medidas insurgentes fossem tomadas, eram apenas
“medidas de autodefesa”. Eis o que os mencheviques escreveram não no ano de
1937, mas em 1921, quando os eventos ainda estavam frescos:
O
fato de que a ruptura de Kronstadt com o poder soviético tenha assumido o
caráter de uma insurreição armada e terminado em uma tragédia sangrenta é de
importância secundária em si mesmo e, até certo ponto, acidental. Se o poder
soviético tivesse manifestado um pouco menos de dureza em relação à Kronstadt,
o conflito com os marinheiros teria se desdobrado de modo menos graves. Isso,
no entanto, em nada mudaria seu significado histórico ... Somente em 2 de
março, em resposta a repressões, ameaças e ordens para obedecer
incondicionalmente, a frota respondeu com uma resolução que não reconhecia o
poder dos soviéticos e, a partir daí, dois comissários foram presos.
[3]
Quando os mencheviques
apresentaram originalmente sua versão dos eventos de Kronstadt, eles não
negaram de forma alguma que os kronstadtinos iniciaram o motim. Certamente,
eles tentaram transmitir a impressão de que havia justificativa mais do que
suficiente para isso nas supostas “repressões, ameaças e comandos”. Mas pode se
notar que eles simultaneamente tentaram fugir do cerne da questão, quando
afirmaram o próprio levante como um fato de pouca importância, secundário e até
“acidental”. Por que essa contradição gritante? Eles mesmos fornecem a
resposta. É a sua confissão aberta de que esse motim se desenrolou com base em
objetivos e programas antissoviéticos. [4] Sendo a verdade evidente por si só,
não é de se surpreender que Berkman tenha se apressado em nos jurar que os
amotinados de Kronstadt eram realmente “aderentes convictos do sistema
soviético” e estavam “procurando seriamente encontrar, por meios amistosos e
pacíficos, uma solução dos problemas urgentes”. [5] Em qualquer caso, todos
esses fornecedores de “verdade” estão todos de acordo em uma coisa, a saber, que
esses “convictos” partidários do poder soviético procederam no mais amigável
espírito de paz quando decidiram pegar em armas – com base em uma resolução de
“não reconhecimento do poder soviético”. Mas eles fizeram isso, veja-se, “só no
dia 2 de março”.
“Só no dia 2 de março”!
Cada detalhe pertinente deve ser embelezado, caso contrário, a verdade pode não
ser assim tão palatável. Com esta formulação, os mencheviques, que apenas fazem
eco ao RS, pretendem evocar na mente do leitor, senão anos e meses, pelo menos
semanas de “provocação”, “ameaças”, “comandos”, “repressões”, etc., etc. Mas
estendendo sua cronologia ao bel prazer, esses historiadores, juntamente com
seus neófitos, não podem antecipar 2 de março, exceto por referência a eventos
“no final de fevereiro”. Sua história de Kronstadt remonta a (e não mais do
que) 22 de fevereiro – a partir de ocorrências não em Kronstadt, mas em
Petrogrado. Quanto à própria Kronstadt, eles só podem antecipar o 2 de março a
28 de fevereiro! Contando como bem entendem, eles têm à sua disposição três
dias e três resoluções. O 2 de março, com sua resolução de não reconhecimento
do poder soviético, é precedido apenas pelo 1º de março e sua resolução pelos
“soviéticos livremente eleitos”. O que aconteceu nesse intervalo de menos de 24
horas para causar essa oscilação de um suposto pólo para seu oposto diametral?
A única resposta que recebemos da boca dos adversários é a seguinte:
realizou-se uma conferência em Kronstadt. E o que aconteceu lá?
Cada “historiador” dá
seu próprio relato. Lawrence [6] gostaria que a conferência tivesse sido
convocada com o propósito de elaborar e aprovar uma resolução. Berkman insiste
que foi mais uma reunião “para se aconselhar com os representantes do governo”.
[7] Os SRs juram que era um órgão eleitoral, reunido com o propósito específico
de eleger um novo soviete, muito embora o mandato do soviete em exercício ainda
não tivesse sido expirado. [8] A se acreditar em Berkman (e Lawrence), os
habitantes de Kronstadt foram provocados a realizar o motim devido ao discurso
de Kuzmin. Nisso, são melhores que os SRs, que culpam Kuzmin e Vassiliev. [9]
O relato mais completo
do discurso de Kuzmin pode ser encontrado no Izvestia de Kronstadt, ou seja, no órgão de testemunhas oculares e
principais participantes da conferência. Aqui está:
Em
vez de acalmar a reunião, o camarada Kuzmin irritou-a. Falou da posição
equívoca de Kronstadt, das patrulhas, do poder dividido, do perigo ameaçador da
Polônia e do fato de que os olhos de toda a Europa estavam sobre nós;
assegurou-nos que tudo estava tranquilo em Petrogrado; ressaltou que ele,
Kuzmin, estava totalmente à mercê dos delegados que tinham o poder até de
matá-lo se assim o desejassem. Ele concluiu seu discurso com uma declaração de
que, se os delegados quisessem uma luta armada aberta, esta ocorreria – os
comunistas não renunciariam voluntariamente ao poder e lutariam até a última
trincheira. [10]
Deixamos para os
futuros psicólogos decidir por que os SRs escolheram tratar o discurso de
Kuzmin de maneira diferente do de Berkman, e por que se abstiveram de recorrer
a aspas como Berkman e Lawrence fazem ao se referirem à declaração final de
Kuzmin. Não podemos aqui detalhar as gritantes discrepâncias nas várias
versões. Basta dizer que quanto mais aprendemos sobre o discurso de Kuzmin,
mais agudamente a questão se coloca: quem desempenhou o papel de um provocador
nesta reunião?
Um ponto especial são
todos os relatos de que Kuzmin insistiu sobre o fato de Petrogrado estar
tranquila (Berkman acrescenta – sob a autoridade de quem? – “e os trabalhadores
satisfeitos”). Por que isso deveria ter provocado alguém que não estava sendo
incitado à provocação? Kuzmin estava dizendo a verdade? Ou o Izvestia de Kronstadt mentiu quando em
seu primeiro número, no dia seguinte, trazia uma manchete sensacionalista, Insurreição Geral em Petrogrado? Além
disso, por que o Izvestia continuou
mentindo sobre essa e outras supostas insurreições? Por que reimprimiu
despachos de Helsingfors para reforçar sua campanha de calúnia? Resumindo, veja
o discurso de Kuzmin ponto a ponto conforme relatado pelo Izvestia – ou em qualquer um dos supostos resumos dele – sim, com
ou sem as aspas insidiosas de Berkman – e não diga se vocês eram “homens
simples”, “homens e não mulheres velhas”, etc., etc., mas se vocês fossem
delegados nesta reunião para “eleger um novo Soviete”, vocês teriam ficado e nomeado
um “Comitê Revolucionário Provisório”? Diga-nos, além disso, se vocês teriam
pegado em armas em um motim contra o Estado soviético? Se não, por que você
espalha esse lixo SR e procura confundir a vanguarda da classe trabalhadora em
relação ao que realmente aconteceu em Kronstadt – e especialmente esta reunião?
Um incidente muito mais
sinistro e elucidativo do que qualquer coisa que Kuzmin possa ou não ter dito
ocorreu nesta reunião, que todos os Berkmans desprezam de maneira muito
reveladora. A Conferência foi lançada em um frenesi não por qualquer coisa dita
por Kuzmin ou Vassiliev (ou Kalinin que não estava presente), mas por uma
declaração feita do plenário de que os bolcheviques estavam marchando de armas
em punho para atacar a reunião. Foi isso que precipitou a “eleição” de um
Comitê Revolucionário Provisório. Procuramos em vão nos escritos dos
historiadores “verdadeiros” qualquer esclarecimento quanto à origem desses
“rumores”. Mais do que isso, eles convenientemente “esquecem” (Berkman, entre
outros) de que o Comitê Revolucionário Provisório colocou oficialmente esse
boato na porta dos próprios bolcheviques. “Esse boato foi divulgado pelos
comunistas para dissolver a reunião.” (Izvestia,
No. 11.) O Izvestia admitiu ainda que
o “relatório” de que os bolcheviques estavam prestes a atacar a reunião com
“quinze carros carregados de soldados e comunistas, armados com fuzis e
metralhadoras” foi feito por “um delegado do Sebastopol”. Mesmo após a
supressão do motim, os SRs insistiram que, “segundo o testemunho de um dos
líderes autorizados do movimento de Kronstadt”, o boato sobre Dulkis e os
Kursanti era verdadeiro. Não apenas os rumores se espalharam durante a reunião,
mas o presidente concluiu com a mesma nota. A partir do relato do Izvestia de Kronstadt aprendemos que:
“No último momento, o camarada presidente fez um anúncio de que um destacamento
de 2.000 homens estava marchando para atacar a reunião, que se dispersou com
emoções misturadas de alarme, excitação e indignação...” ( Nº 9, 11 de março de
1921.)
Quem espalhou esses
rumores e por quê? Dizemos: Quem os fez circular foram aqueles mesmos que
espalharam as mentiras sobre a insurreição de Petrogrado; os mesmos que, no
início, levantaram a palavra de ordem pela Assembleia Constituinte e depois entoaram
a palavra de ordem “mais realista” de “Abaixo a Comuna Falida!” (resolução
adotada em Kronstadt, em 7 de março); os mesmos que acusavam o “poder
bolchevique de nos levar à fome, ao frio e ao caos”; aqueles que, disfarçados
de apartidários, estavam enganando as massas de Kronstadt; aqueles que
procuravam capitalizar as dificuldades do poder soviético e que encabeçavam o
movimento para guiá-lo pelos canais da contrarrevolução.
Não há sombra de dúvida
de que os SRs foram os primeiros, senão os únicos, a impulsionar esta campanha
de “rumores”, que brotou tão infame fruto. Qualquer possibilidade de solução
pacífica da crise de Kronstadt foi eliminada, uma vez que um poder paralelo foi
estabelecido na fortaleza. O tempo era realmente urgente, como provaremos em
breve. Por mais que se especule sobre as chances de evitar derramamento de
sangue, o fato é que os líderes do motim levaram apenas 72 horas para levar
seus seguidores (tolos) a um conflito direto com os soviéticos.
Não é de forma alguma
excluído que as autoridades locais de Kronstadt tenham feito um erro ao lidar
com a situação. O fato de que os melhores revolucionários e combatentes fossem
urgentemente necessários para centros vitais tenderia a sustentar a afirmação
de que aqueles designados para um setor relativamente “seguro” como Kronstadt
não eram homens de qualificações notáveis. Não é segredo que Kalinin – muito
menos o comissário Kuzmin – não era muito estimado por Lenin e seus colegas. A
associação entre “erros” e indivíduos como Kalinin é realmente maravilhosa, mas
não pode servir como substituto para a análise política. Na medida em que as
autoridades locais estavam cegas para a extensão total do perigo ou não tomaram
as medidas adequadas e eficazes para enfrentar a crise; na medida em que seus
erros tiveram um papel no desenrolar dos acontecimentos, ou seja, facilitaram
para os contrarrevolucionários o trabalho de utilizar as dificuldades objetivas
para atingir seus fins.
Como foi possível que
os líderes políticos transformassem Kronstadt tão rapidamente em um campo
armado contra a revolução de outubro? Qual era o objetivo dos amotinados? A
suposição de que os soldados e marinheiros se aventuraram em uma insurreição
apenas por causa da palavra de ordem “Sovietes Livres” é absurda em si mesma. É
duplamente absurdo em vista do fato de que o resto da guarnição de Kronstadt
consistia de pessoas retrogradas e pacatas que não podiam ser usadas na Guerra
Civil. Essas pessoas só poderiam ter sido levadas à insurreição por profundas
necessidades e interesses econômicos. Esses eram as necessidades e interesses
dos pais e irmãos desses marinheiros e soldados, ou seja, dos camponeses como
comerciantes de produtos alimentícios e matérias-primas. Em outras palavras,
por trás do motim havia uma reação de caráter pequeno-burguês contra as
dificuldades e privações impostas pelas condições da revolução proletária.
Ninguém pode negar esse caráter de classe dos dois campos. Todas as outras
questões são apenas de importância secundária. Que os bolcheviques tenham cometido
erros de caráter geral ou concreto, não pode alterar o fato de que defenderam
as aquisições da revolução proletária contra a reação burguesa (e
pequeno-burguesa). É por isso que todo crítico deve ser examinado do ponto de
vista de que lado da linha de fogo se encontra. Se ele fecha os olhos ao
conteúdo social e histórico do motim de Kronstadt, então ele próprio é um
elemento da reação pequeno-burguesa contra a revolução proletária. (É o caso de
Alexander Berkman, os mencheviques russos e assim por diante.) Um sindicato,
digamos, de trabalhadores agrícolas, pode cometer erros em uma greve contra os
agricultores. Podemos criticá-los, mas nossa crítica deve se basear em uma
solidariedade fundamental com o sindicato dos trabalhadores e em nossa oposição
aos exploradores dos trabalhadores, mesmo que esses exploradores sejam pequenos
agricultores.
Os bolcheviques nunca
afirmaram que sua política era infalível. Isso é um credo stalinista. Victor
Serge, em sua afirmação de que a NEP (isto é, uma concessão limitada a demandas
burguesas ilimitadas) foi introduzida tardiamente, apenas repete de forma
branda a crítica de um importante erro político que o próprio Lenin reconheceu
nitidamente na primavera de 1921. Nós estamos prontos para admitir tal erro.
Mas como isso poderia mudar nossa estimativa mais básica? Superando em muito a
especulação por parte de Serge ou de qualquer outra pessoa de que a rebelião
poderia ter sido evitada se os bolcheviques tivessem concedido a concessão da
NEP a Kronstadt, o motim em si e a declaração categórica do Izvestia de Kronstadt acerca da
exigência dos amotinados: “não ao livre comércio, mas, sim, a uma verdadeira
potência soviética” (nº 12, 14 de março de 1921).
O que esse “genuíno
poder soviético” poderia significar? Já ouvimos dos SRs e mencheviques suas
avaliações sobre a natureza do motim. Os SRs e os mencheviques sempre
sustentaram que seus objetivos eram idênticos aos dos bolcheviques, mas que
apenas pretendiam alcançá-los de uma maneira “diferente”. Conhecemos o conteúdo
de classe dessa “diferença”, Lenin e Trotsky sustentavam que a palavra de ordem
dos “Sovietes Livres” significava material e praticamente, tanto em princípio
quanto em essência, a abolição da ditadura do proletariado, instituída e
representada pelo partido bolchevique. Isso só pode ser negado por aqueles que
negam que, com todos os seus erros parciais, a política dos bolcheviques esteve
sempre a serviço da revolução proletária. Será que Serge vai negar? No entanto,
Serge se esquece do dever elementar de uma análise científica não é tomar
slogans abstratos de diferentes grupos, mas descobrir seu conteúdo social real.
[11] Neste caso, tal análise não apresenta grandes dificuldades.
Ouçamos o porta-voz
mais autorizado da contrarrevolução russa sobre sua avaliação do programa de
Kronstadt. Em 11 de março de 1921, no calor da revolta, Miliukov escreveu:
Este
programa pode ser expresso no breve slogan: “Abaixo os bolcheviques! Viva os
soviéticos!”... "Viva os sovietes", na atualidade significa muito
provavelmente que o poder passará dos bolcheviques aos socialistas moderados,
que receberão a maioria nos sovietes... Temos muitas outras razões para não
protestar contra o slogan de Kronstadt... É evidente para nós que, deixando de
lado uma instalação forçada de poder da direita ou da esquerda, esta sanção [do
novo poder – JV] que é obviamente temporária, só pode ser efetuada através de
instituições do tipo dos soviéticos. Só assim a transferência pode ser efetuada
sem dor e ser reconhecida pelo país como um todo.
[12]
Em uma edição
posterior, o órgão de Miliukov, Poslednya
Novosti, insiste que o poder bolchevique só poderia ser suplantado por meio
de soviéticos “libertados” dos bolcheviques. [13]
Em sua defesa do motim
de Kronstadt, os mencheviques, como partidários ferrenhos da restauração
capitalista, mantinham essencialmente o mesmo ponto de vista de Miliukov.
Juntamente com estes últimos, os mencheviques defenderam em Kronstadt um passo
para a restauração do capitalismo. [14] Nos anos que se seguiram, eles não
puderam deixar de favorecer o curso principal de Stalin (aconselhado por
Abramovich e outros em 1921) de “romper decididamente com todos os planos
aventureiros de espalhar a 'revolução mundial'”, e empreender, em vez disso, a
construção do socialismo em um país. Com uma reserva aqui e um queixume ali,
são hoje bastante a favor do evangelho do socialismo de Stalin em um só país.
Nisso, ao permanecerem fiéis à bandeira levantada pelo motim de Kronstadt, eles
apenas permanecem fiéis a si mesmos – como os arqui-suportes de todas as
tendências abertas ou veladas para a restauração capitalista na Rússia e a
estabilização capitalista no resto do mundo.
A conexão entre a
contrarrevolução e Kronstadt pode ser estabelecida não apenas pela boca dos
adversários do bolchevismo, mas também com base em fatos irrefutáveis. No
início de fevereiro, quando não havia nenhum sinal de distúrbios em Petrogrado,
ou nas proximidades de Kronstadt, a imprensa capitalista no exterior publicou
despachos supostamente relacionados a sérios problemas em Kronstadt, dando
detalhes sobre uma revolta na frota e a prisão do comissário do Báltico. [15]
Esses despachos, embora falsos na época, se materializaram com incrível
precisão algumas semanas depois.
Referindo-se a esta
“coincidência”, Lenin em seu relatório ao X Congresso do Partido, em 8 de março
de 1921, disse o seguinte:
Testemunhamos
a passagem do poder dos bolcheviques para algum tipo de conglomerado indefinido
ou aliança de elementos heterogêneos, presumivelmente apenas um pouco à direita
e talvez até à “esquerda” dos bolcheviques – tão indefinida é a soma de grupos
políticos que tentaram tomar o poder em Kronstadt. Não há dúvida de que, ao
mesmo tempo, o General da Guarda Branca, como todos sabem, desempenhou um papel
importante nessas ações. Isso tem sido provado ao máximo. Duas semanas antes
dos acontecimentos de Kronstadt, a imprensa parisiense já trazia a notícia de uma
insurreição em Kronstadt. (Works, Vol. XXVI, p. 214.)
É um fato facilmente
estabelecido que quando esses despachos chegaram ao conhecimento de Trotsky,
antes de qualquer convulsão em Kronstadt, ele imediatamente se comunicou com o
comissário da frota do Báltico, alertando-o para tomar precauções, porque o
aparecimento de despachos semelhantes na imprensa burguesa referindo-se a
outras supostas revoltas foram logo seguido por tentativas contrarrevolucionárias
em regiões específicas. Escusado será dizer que todos os historiadores
“verdadeiros” preferem passar em silêncio a esta “coincidência”, juntamente com
o fato de que a imprensa capitalista aproveitou o motim para conduzir uma
“campanha histérica sem precedentes” (Lenin). [16] As notícias desta campanha
poderiam ser adicionadas a qualquer número, mas nenhuma lista estaria completa
sem as reportagens sobre o mesmo assunto que apareceram no Izvestia de Kronstadt:
Primeira edição, 3 de
março: “INSSURREIÇÃO GERAL EM PETROGRADO”.
7
de março: Manchete “Notícias de última hora de Petrogrado” – “As prisões em
massa e execuções de trabalhadores e marinheiros continuam. Situação muito
tensa. Todas as massas trabalhadoras aguardam uma reviravolta a qualquer
momento.”
8
de março: "O jornal de Helsingfors Hufvudstadsbladet... imprime as
seguintes notícias de Petrogrado ... Os trabalhadores de Petrogrado estão em greve
e deixando as fábricas de modo ostensivo, multidões carregam bandeiras
vermelhas exigindo uma mudança de governo - a derrubada dos comunistas".
[17]
11
de março: “O governo em pânico”. “Nosso clamor foi ouvido. Marinheiros
revolucionários, homens do Exército Vermelho e trabalhadores em Petrogrado já
estão vindo em nosso auxílio... O poder bolchevique sente o chão escorregar sob
seus pés e, por isso, emitiu ordens em Petrogrado para abrir fogo contra
qualquer grupo de cinco ou mais ruas...”
Não é de se surpreender
que a imprensa da Guarda Branca no exterior tenha lançado uma intensa campanha
para arrecadar fundos, roupas, alimentos etc., sob o lema: “Por Kronstadt! ”
Como explicar essa
série de fatos e evidências incontestáveis? Muito simplesmente: acusando os
bolcheviques de calúnia! Ninguém é mais descarado do que Berkman em negar a
conexão entre a contrarrevolução e o motim. Ele chega a declarar
categoricamente que o general czarista Kozlovsky “não desempenhou nenhum papel
nos eventos de Kronstadt”. As confissões dos próprios SRs e as declarações de
Kozlovsky em uma entrevista que ele deu à imprensa estabelecem, sem sombra de
dúvida, que Kozlovsky e seus oficiais se associaram abertamente desde o início
ao motim. O próprio Kozlovsky foi “eleito” para o “Conselho de Defesa”. Aqui
está como os mencheviques relataram a entrevista de Kozlovsky:
“No
primeiro dia da insurreição, o Conselho de Especialistas Militares havia
elaborado um plano para um ataque imediato a Oranienbaum, que tinha todas as
chances de sucesso na época, pois o governo foi pego de surpresa e não poderia
ter trazido tropas confiáveis a tempo... Os líderes políticos da insurreição
não concordaram em tomar a ofensiva e a oportunidade foi deixada escapar.” [18]
Se o plano falhou, foi
apenas porque Kozlovsky e seus colegas não conseguiram convencer os “líderes
políticos”, ou seja, seus aliados do SR, que o momento era propício para expor
seu verdadeiro rosto e programa. Os SRs acharam melhor preservar a máscara da
“defesa” e contemporizar. Quando Berkman escreveu seu panfleto, ele sabia
desses fatos. De fato, ele reproduziu a entrevista de Kozlovsky quase
literalmente em suas páginas, fazendo, como é de seu costume, algumas alterações
significativas e ocultando a fonte real do que parece ser sua própria
avaliação.
Não é por acaso que
Berkman e seus neófitos têm de plagiar todos os Kozlovskys, os SRs e os
mencheviques. A rejeição pelos anarquistas da análise marxista do Estado inevitavelmente
os leva a aceitar todas e quaisquer outras visões contrárias, incluindo até a
sua participação em um governo de um Estado burguês.
Quanto tempo havia para
“negociar”? Os amotinados estavam no controle da fortaleza em 2 de março. Tanto
Kozlovsky quanto Berkman atestam que os bolcheviques foram “pegos de surpresa”.
Trotsky chegou a Leningrado apenas em 5 de março. O primeiro ataque contra
Kronstadt foi lançado em 8 de março. Os bolcheviques poderiam ter esperado
mais?
Muitos especialistas
militares sustentam a opinião de que o fracasso do motim foi em grande parte
devido ao fracasso do degelo da primavera. Se as águas tivessem começado a
fluir livremente entre Kronstadt e Leningrado, as tropas terrestres não
poderiam ter sido usadas pelo governo soviético, enquanto os reforços navais
poderiam ter sido enviados aos insurgentes já no controle de uma fortaleza
naval de primeira classe, com navios de guerra, artilharia pesada,
metralhadoras, etc., à sua disposição. O perigo desta operação não é um “mito”
nem uma “calúnia bolchevique”.
Nas
ruas de Kronstadt o gelo já estava derretendo. Em 15 de
março, três dias antes da tomada da fortaleza em um assalto heroico em que
participaram 300 delegados do X Congresso do Partido. O nº 13 do Izvestia de Kronstadt publicava em sua
primeira página uma ordem para limpar as ruas “em vista do degelo”. Se os
bolcheviques tivessem contemporizado, teriam precipitado uma situação que custaria
um preço incomensuravelmente maior de vidas e sacrifícios, sem falar em colocar
em risco o próprio destino da revolução.
Quando todos esses
historiadores citam os nomes da fortaleza e os nomes dos navios de guerra
Petropavlovsk e Sebastopol – os navios que em 1917 haviam sido o principal
apoio dos bolcheviques [19] – eles evitam cuidadosamente mencionar o fato de
que o pessoal da fortaleza, bem como dos navios de guerra, não poderia ter
permanecido inalterado ao longo dos anos entre 1917 e 1921. Enquanto a
fortaleza e os navios permaneceram quase intactos fisicamente, muita coisa
aconteceu com os marinheiros revolucionários no período da Guerra Civil, na
qual desempenharam um papel heroico em praticamente todas as frentes. É claro
que é impossível pintar um quadro no qual os marinheiros de Kronstadt tivessem
participado da revolução de outubro de 1917 apenas para permanecerem na
retaguarda na fortaleza e nos navios enquanto seus camaradas de armas lutavam
contra os Wrangels, Kolchaks, Denikins, Yudenitches, etc. .
Mas isso é, com efeito,
o que os oponentes do bolchevismo tentam insinuar com suas insistências nas
palavras “Kronstadt”, “marinheiros revolucionários” e assim por diante. O
truque é muito óbvio. A recente resposta de Trotsky a Wendelin Thomas, que fura
essa bolha, não poderia deixar de despertar sua ira. Com hipocrisia
desprezível, todos eles se levantam em falsa indignação contra o pretenso
insulto de Trotsky às “massas”. No entanto, ao responder a Thomas, Trotsky
apenas reformulou os fatos que apresentou em 1921: “Muitos dos marinheiros revolucionários,
que desempenharam um papel importante na revolução de outubro de 1917, foram
nesse ínterim transferidos para outras esferas de atividade. Eles foram
substituídos em grande parte por elementos fortuitos, entre os quais muitos
marinheiros letões, estonianos e finlandeses, cuja atitude para com seus
deveres era apenas a de manter um emprego temporário, sendo que a maioria não
participou da luta revolucionária”.
Não há espetáculo mais
revoltante do que o de pessoas que, como os anarquistas e mencheviques, foram
entre outras coisas coparceiros do stalinismo em seu frontismo popular, e que
carregam a responsabilidade pelo massacre da flor do proletariado espanhol,
apontando um dedo acusador para os líderes da revolução de outubro por terem
desbaratado um motim contra a revolução: Foi tudo culpa dos bolcheviques. Eles
provocaram os kronstadtinos, etc., etc.
Não há como negar que
os SRs e os mencheviques são especialistas, se não autoridades acabadas, em
provocação. Nada do que Kerensky e Cia fizeram provocou-os sequer para
justificar um levante das armas contra o Governo Provisório. Pelo contrário, os
mencheviques foram muito enfáticos em 1917 em suas demandas de que a
revolucionária Kronstadt – e os bolcheviques em geral – fosse “contida”. Quanto
aos SRs, eles não hesitaram em pegar em armas na luta contra outubro. O
bolchevismo sempre “provocou” esses senhores que invariavelmente se
posicionaram do outro lado das barricadas.
Esses são os fatos
incontestáveis. Os marinheiros compunham a maior parte das forças insurgentes.
A guarnição e a população permaneceram passivas. Pego de surpresa pelo motim, o
comando do Exército Vermelho a princípio procurou contemporizar, esperando uma
mudança no humor dos insurgentes. O tempo estava pressionando. Quando se tornou
óbvio que não havia possibilidade de arrancar a massa cinzenta da liderança dos
SRs e seus capangas, Kronstadt foi tomada de assalto. Ao fazê-lo, os
bolcheviques apenas cumpriram o seu dever. Defendiam as conquistas da revolução
contra as tramas da contrarrevolução. Esse é o único veredicto que a história
pode e vai passar.
Notas de rodapé
1. Em janeiro-março de
1921, ocorreu o motim de Tumensk na área de Tobolsk na Sibéria. Os insurgentes
somavam 20.000 homens. Em maio de 1921, destacamentos da Guarda Branca
auxiliados pelos japoneses desembarcaram em Vladivostok, que mantiveram por um
curto período de tempo. Após a assinatura do tratado de Riga (18 de março de
1921), bandos da Guarda Branca, alguns milhares, outros meros punhados,
invadiram a Ucrânia e outros pontos do território soviético. Outra série de
ataques seguiu em Karelia, iniciado em 23 de outubro de 1921, e liquidada
apenas em fevereiro de 1922. Ainda em outubro de 1922, o território soviético
estava pontilhado de bandos de guerrilheiros da contrarrevolução.
2. Sotsialisticheski
Vestnik , 25 de agosto de 1937.
3. Sotsialisticheski
Vestnik , 5 de abril de 1921. Nossa ênfase.
4. Os SRs foram um
pouco menos precisos no lado político e obscuro do motim. Eles diziam: “As
organizações operárias exigiam uma mudança drástica de poder: algumas na forma
de sovietes livremente eleitos, outras na forma de convocação da Assembleia
Constituinte”. (A verdade sobre a Rússia , Volya Rossii , Praga 1921, p. 5). Ao
publicar este livro, os SRs no exterior fizeram apenas um reconhecimento tardio
de sua participação política no motim, embora seus porta-vozes na Rússia na
época se escondessem atrás de uma máscara de não-partidarismo. Este livro
serviu como a principal, se não a única, fonte utilizada por todos os críticos
passados e presentes do bolchevismo. Panfleto de Berkman A Rebelião de
Kronstadt (1922) é meramente uma reafirmação dos supostos fatos e interpretações
das RS com algumas alterações significativas.
5. A Rebelião de
Kronstadt , p. 12, destaque no original.
6. Vanguarda ,
fevereiro-março de 1937.
7. Local. Cit. , pp.
12–13.
8. Local. Cit. , pág.
11.
9. Victor Serge
acredita que foi tudo culpa de Kalinin. “O Comitê Central cometeu o enorme erro
de enviar Kalinin...” (La Révolution Prolétarienne , setembro de 1937).
10. Izvestia da Prov.
Rev. Com. de Kronstadt , nº 11, 13 de março de 1921.
11. Em seus comentários
recentes sobre Kronstadt, Victor Serge admite que os bolcheviques, uma vez
confrontados com o motim, não tiveram outro recurso senão esmagá-lo. Nisto ele
se demarca das muitas variedades de anarcomenchevismo. Mas a substância de sua
contribuição para a discussão é lamentar as experiências da história em vez de
procurar entendê-las como marxista. Serge insiste que teria sido “fácil” evitar
o motim – se o Comitê Central não tivesse enviado Kalinin para falar com os
marinheiros! Uma vez deflagrado o motim, teria sido “fácil” evitar o pior – se
ao menos Berkman tivesse falado com os marinheiros! Adotar tal abordagem aos eventos
de Kronstadt é assumir um ponto de vista superficial: “Ah, se a história
tivesse nos poupado Kronstadt!” Isso leva apenas ao ecletismo e à perda de
todas as perspectivas políticas.
12. Poslednya Novosti ,
11 de março de 1921.
13. Idem. , 18 de março
de 1921.
14. Nas teses
programáticas sobre a Rússia propostas pelo Comitê Central dos Mencheviques, em
1921, encontramos o seguinte: A República não pode deixar de estar em
consonância com as relações capitalistas prevalecentes nos países avançados da
Europa e da América...” ( Sots. Vestnik , 2 de dezembro de 1921.)
15. A Revolta da Frota
do Báltico Contra o Governo Soviético – um artigo assinado em l'Echo de Paris ,
14 de fevereiro de 1921. No mesmo dia, o Matin, outro jornal parisiense,
publicou um despacho sob o título: Moscou toma medidas contra os Insurgentes de
Kronstadt. A imprensa russa da Guarda Branca publicou despachos semelhantes. A
fonte especificada foi Helsingfors, de onde os despachos foram enviados em 11
de fevereiro.
16. Em seu discurso de
encerramento em 16 de março, Lenin leu para o Congresso um relatório sobre a
campanha na imprensa. Aqui estão algumas manchetes nos jornais referidos por
Lenin:
“Relatado o
Levantamento de Moscou. Combate de Petrogrado.” ( London Times , 2 de março de
1921)
“L'Agitation
Antibolchévique. Petrograd et Moscou Seraient aux Maine des Insurgés qui ont
Formé un Gouvernement Provisoire.” ( Matina , 7 de março)
“Kronstadt gegen
Petrogrado, Sinowjew Verhaftet.” ( Berliner Tageblatt , 7 de março)
“Les Marins Revoltés
Débarquent à Petrograd.” ( Matina , 8 de março)
“Der Aufstand in
Russland.” ( Vossische Zeitung , 10 de março)
“Combate em Petrogrado.
Bajulações vermelhas silenciadas.” ( London Times , 9 de março)
17. Os mencheviques na
Rússia não tinham imprensa própria e, portanto, só podiam participar
clandestinamente na campanha dos imperialistas no exterior e seus aliados SR em
Kronstadt. Aqui está um parágrafo de abertura em um de seus folhetos, datado de
8 de março de 1921, e publicado em nome do “Petersburg Committee of SDLPD”:
“A estrutura da
ditadura bolchevique está rachando e desmoronando. Revoltas camponesas na
Ucrânia, na Sibéria, no Sudoeste da Rússia... Greves e efervescência entre
trabalhadores em Petersburgo e Moscou... Os marinheiros em Kronstadt se
levantaram... Fome, frio, miséria e amargura sem precedentes predominam entre a
população arrendatária da Rússia ... Este é o quadro nada atraente da República
Soviética três anos após a tomada do poder pelos bolcheviques. A estrutura da
ditadura bolchevique está rachando e desmoronando...” ( Sots. Vestnik , 20 de
abril de 1921.)
18. Sot. Vestnik , 5 de
abril de 1921. Nossa ênfase.
19. Berkman, The Kronstadt
Rebellion , p. 8.
(Trad.: J.M.)
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