MÚSICA E GEOGRAFIA
Autor: Jean Pires de Azevedo Gonçalves
O que vemos na poesia
encontramos na música, desde que reconhecemos que nela a melodia narra em geral
a história íntima de vontade consciente de si, as veredas ocultas, as aspirações,
as tristezas e as alegrias, o fluxo e refluxo do coração humano. A melodia
caminha, sempre se apartando do tom profundamente, seguindo mil remotos e
caprichosos sentidos, passando pelas dissonâncias mais dolorosas, até que
novamente reencontra o tom fundamental, que exprime a satisfação e a calma da
vontade, mas com que, seguidamente, já não sabe o que fazer: manter, então,
mais longamente, a nota fundamental, produziria pesada e ociosa monotonia, ao
qual corresponderia ao tédio. (Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, 4ª. Parte).
É bastante lamentável a ausência, salvo engano, de pesquisas que
relacionam música e geografia. Na produção acadêmica, pelo menos na
Universidade de São Paulo, elas são raras – devido a aparente estranheza da
temática musical aos estudos geográficos. No leque de opções dos pesquisadores,
música e geografia aparecem como universos tão distintos quanto água e óleo.
Pois, de modo inverso, é possível encontrar uma infinidade de trabalhos de
geografia sobre os mais variados assuntos, supostamente “mais concernentes”.
Porém, iniciativas que buscam situar a música na geografia e vice-versa são
deveras escassas. Até mesmo a literatura ganha relevância e a atenção dos
geógrafos, o que, aliás, é ótimo, mas a música continua confinada a um reduto
inexpressível entre os interesses geográficos, algo que é, a nosso ver, um
absurdo. A opinião corrente é a de que a música estaria restrita a horas de
laser, a festas, a dança; ou seria muito abstrata (ondas sonoras, partituras
etc.) em relação à materialidade dos objetos geográficos; ou, no âmbito da
Grande Música, matéria de eruditos e especialistas; ou, ainda, de que a música
é uma atividade artística reservada a uns poucos profissionais, devendo-lhes,
então, respeito somente a eles: os músicos propriamente ditos. Logo, música e
geografia estariam em polos opostos e tão heterogêneos que não haveria
possibilidade alguma de diálogo entre elas.
Numa outra perspectiva, constata-se uma História da Música (e mesmo uma
Filosofia da Música); mas, novamente, não há nada que conste uma Geografia da
Música dentre o repertório geográfico. É bem razoável pensar que um ranço
positivista pegajoso ainda contamine a geografia em todo o seu âmago, em seus
órgãos vitais, e daí o material musical como elaboração sonora (abstrata) não
estaria ao alcance dos sentidos visuais,
claramente isolados pela observação e, deste modo, apreendidos pela descrição.
Assim, presunçosamente, a pesquisa historiográfica é concebida pelos geógrafos
não como ciência efetiva, mas, cultura, e, por isso, teria mais liberdade para
se embrenhar nesta esfera “supérflua” da vida que é a arte. (À filosofia,
demasiadamente especulativa, é-lhe permitido abordar qualquer questão, até
mesmo a música!) Quanto à geografia, orgulhosamente perfilada às ciências duras
da “natureza”, seu objetivo volta-se, de um lado, à “estrutura” do real e, de
outro, às atividades tecnocráticas do planejamento estatal tutelado por
empresas particulares (leia-se mercado). Aliás, ganhar a simpatia do mercado, eis a apoteose dos devaneios
mais profundos dos geógrafos!
A despeito destas visões preconceituosas e equivocadas, no caso da
música, se comparada à literatura e à pintura, a situação é ainda mais
escandalosa, pois, além de, como foi dito acima, ser subestimada a existir
apenas nessas “lojas secretas”, de uns poucos iniciados, a geografia é
praticamente cega em reconhecer sua importância – a da música! – na própria
geografia. O artigo que nos propomos a escrever aqui busca ir contra essa tendência,
o que põe em questão a própria concepção positivista das ciências geográficas,
e ensaiar algumas considerações sobre música e geografia sugerindo algumas de
suas múltiplas relações possíveis, a fim de recolocar a música no seu merecido
lugar entre os temas da geografia. No entanto, devido aos problemas já
assinalados, este artigo terá a forma do ensaio, com todas as suas implicações,
como a liberdade experimental sem a preocupação de uma rigidez formal e a
renúncia a um compromisso obsessivo pela “verdade”. De tal modo que não será
necessário esmiuçar detidamente um objeto bem definido no tempo e no espaço,
apresentado citações, provas e contraprovas, para justificar sua pertinência.
Ao contrário, pretende-se enumerar livremente itens e elaborar um esboço das
múltiplas relações entre estes dois mundos aparentemente antagônicos.
Evidentemente, tal enumeração não terá a pretensão de se esgotar, e nem poderia
ter. Por isso, pensamos que o texto na forma de ensaio seja mais eficaz, pois
visa deixar em aberto a questão, pela recusa em definir uma origem ou um
desfecho teórico. Não podemos esquecer, aliás, que Walter Benjamin e Theodor W.
Adorno elegeram o ensaio como forma de reflexão tão significativa ou mais do
que o próprio pensamento inundado por conceitos acadêmicos e rigor
lógico-estático (formal). O ensaio, segundo nossa interpretação, principalmente
quanto aos textos de Adorno, o Schöenberg da filosofia, é compatível à música
atonal do século XX, e por isso seu caráter fragmentário e dissonante, longe de
constituir uma fragilidade, representa sua força enquanto negatividade.
Possivelmente não chegaremos tão longe, isto é, ao nível filosófico de Benjamin
e Adorno, e é bem provável que a redação deste artigo apresente tão somente uma
carta de intenções e enuncie um conjunto de sugestões e de ideias nos mais
diversos campos de pesquisa em que poderia estar associada música e geografia.
Porém, já é um bom começo ou uma advertência para suprir a referida e provável
ausência.
Musica e região
O primeiro modo mais simples de colocar o problema acerca da música na
geografia é através do conceito, aqui deliberadamente impreciso e informal do
ponto de vista tecnoburocrático e administrativo, de
região. De fato, cada região apresenta um gênero singular de música
associado diretamente a festas populares, trajes e danças típicas que,
comumente, se dá o nome de folclore. Eis um terreno bastante fértil para uma
interpretação de ordem geográfica. Muitas destas festas são sazonais (comemoram
a chegada da colheita, a primavera etc.) ou simplesmente religiosas, que podem
apresentar um sincretismo de culturas diversas ou não, dependendo do lugar e da
ocupação submetida à análise. Aí, evidentemente, a relação
sociedade humana-natureza é quase explícita, fato que atenderia aos
anseios de uma geografia preocupada em reconhecer seus pressupostos de
identidade científica. Analiticamente, poder-se-ia estabelecer um ponto de
partida, de tal e qual pesquisa de música em geografia, atendo-se
provisoriamente aos aspectos
materiais
da música como, por exemplo,
os
instrumentos musicais. Neste caso, se estes foram introduzidos, se são
originários de certas populações nativas de um determinado território, se são
miscigenados etc. Ou seja, como e onde se originaram e foram recebidos ou
modificados pelos povos locais ou exóticos e como, daí, se regionalizaram. Um
exemplo ilustrativo é a rabeca ou rebeca brasileira – um instrumento rudimentar
feito com cabaça e outros materiais encontrados no sertão – que provavelmente
deve sua origem ainda à época dos descobrimentos. Vale lembrar que a rabeca
árabe (“rhab” ou “rebad”) é um ancestral do violino, pertencendo, logicamente,
à família das
violas. Mas muitos
outros instrumentos de todas as classes musicais fornecem abundante material de
pesquisa para o geógrafo. No Brasil, podíamos citar inúmeros instrumentos de
origem indígena e africana: aguê, atabaque, berimbau, chaim, cheré, ganzá,
krena, maracá, mbibé, ubatá, ufuá etc. Além, obviamente, dos instrumentos
tipicamente europeus, como o violão, o piano, a flauta etc. Aqui são evidentes
os elementos suscetíveis de uma possível abordagem geográfica: a maior ou menor
incidência de um tipo de instrumento pode corresponder a determinados lugares e
regiões etc. Neste caso, a difusão, a produção ou a re-apropriação de
instrumentos – europeus, indígenas, africanos, asiáticos etc. – por populações
das mais diversificadas etnias e comunidades, pressupondo-se sempre fatores
históricos, geográficos, econômicos, sociais e políticos na elaboração da
música, é um processo dos mais fecundos, passível de ser confortavelmente
estudado por diferentes vieses teóricos na geografia. Sem dúvida, a geografia
pode emprestar sua metodologia conceitual na explicação da espacialização da
música ou de seus instrumentos. Neste sentido, seria infindável sua
contribuição, desde o enfoque do papel exercido por correntes migratórias,
intercâmbios culturais nelas permeados, e até mesmo das relações fundamentais
entre cidade e campo, centro-periferia, sociedade-economia (luta de classes)
etc. Assim, o choro ou chorinho, um tipo de valsa, tocado por instrumentos de
sopro e violão, por exemplo, foi um gênero de seresta e serenata tipicamente de
uma classe média carioca, branca e urbana, no século XIX, que aos poucos foi
absorvendo o ritmo do samba, através da generalização irresistível da música
negra, rural, dos escravos, no caso do jongo, e, principalmente, do maxixe (o
lundu), criado nos morros do Rio de Janeiro pelas paupérrimas populações de
lúnpen-proletários. A introdução e combinação espontânea de um ou mais
instrumentos e gêneros musicais associados a uma determinada atividade exercida
por um grupo social distinto também fornecem elementos interessantes para uma
possível abordagem espacial. O caso dos tropeiros e suas caravanas de muares no
sudeste do Brasil é um exemplo. A dupla de viola caipira e violão das modas ou
mesmo das orquestras de viola caipira correlatas à dança denominada catira
(cateretê ou bate-pé) – sapateado com botas especiais e esporas – são um traço
cultural tipicamente rural ligado a essa atividade socioeconômica localizada
nessa região do país e adjacências. Além disso, outras questões, puramente
técnicas e propriamente musicais, podem ser levantadas, como a formação de um
padrão na melodia, harmonia, ritmo ou ainda quanto à elaboração de arranjos
característicos etc., também de ocorrência de uma determinada região. A título
de exemplificação, mencionemos o “blues” e o “country”, dos EUA
.
Ainda com relação aos instrumentos, é possível demarcar a maior ou menor
incidência de cada classe de instrumentos – sopro, cordas, percussão – em
determinadas localidades ou mesmo países. E aqui vale lembrar os países de
cultura andina onde o uso de instrumentos de sopro, como flautas variadas,
predomina na formação musical. Também seria possível circunscrever regiões onde
predominassem um específico elemento musical: neste caso, se a música é mais
rítmica, mais melódica ou mais harmônica, dependendo das influencias étnicas e
geográficas que aí estão em jogo. A
voz
também é um importante instrumento musical e vale a pena aqui recordar a
belíssima música cantada em coro pelos povos (aborígines) da Polinésia.
Portanto, é importante pensar a questão da identidade entre certas comunidades
e seu espaço, ou melhor, sua interação com o meio e suas características
peculiares, que se constituem também através da música.
Assim, a título de ilustração, descreveremos alguns tipos de músicas e
danças folclóricas de alguns estados do Brasil:
1. Danças do Marajó (Pará): danças do
extremo norte do país que vêm sofrendo muitas alterações por influência de
elementos novos. Neste sentido, instrumentos modernos como tambores e guitarras
elétricas se misturam com os tradicionais, como, por exemplo, o “pau-e-corda”.
Estes conjuntos de danças são bastante diversificados, mas podem ser
representados principalmente pelo lundu (de origem africana), a polca e a
mazurca (de origem europeia).
2. Dança do lelê (Maranhão): a dança do
lelê é acompanhada por viola, pandeiro, castanholas, rabecas e pífano. É
dançada em quadrilhas e divide-se em quatro partes: Chorado, Dança-Grande,
Talavera e o Cajueiro. Provavelmente de origem europeia.
3. Reisado do Piauí: um dos folguedos mais
populares no Brasil, o reisado (Reis, Folia de Reis, Boi de Reis) é tipicamente
de tradição ibérica. Os Reiseiros, em homenagem aos Santos Reis, percorrem a
cidade e visitam as casas, onde se processa a “abrição da porta”, anunciando a
Boa Nova do nascimento de Cristo. A apresentação é realizada por uma orquestra
de viola, rabeca, banjo ou violão, sanfona, pandeiro, surdo e reco-reco. Muitos
personagens, alguns mascarados, acompanham a banda: a Cigana, a Caipora, a
Piaba, a Ema, o Boi etc.
4. Cana-verde do Ceará: dança de origem
portuguesa que celebra as festas de “colheita de trigo” e na “desfolhada do
milho”. Muito comum no litoral do Ceará, embora haja registro de sua ocorrência
no Brasil inteiro. Iniciada com um apito, o mestre da Cana-verde dá o ritmo das
canções com um pandeiro e os grupos de dança, acompanhando com batidas de
palmas, realizam coreografias, vestidos de traje igualmente característico. É
apresentada em três calendários diferente: carnaval (“simples”); festas juninas
(“casamento matuto”); e Natal (Reis).
5. Congos da Paraíba: festividade dedicada
ao Rosário. Os congos são um dos quatro mais importantes autos populares
brasileiro. No sertão da Paraíba, diz-se que Mané Cachoeira saiu a pé de Pombal
e foi até Olinda, em fins do séc. XIX, obtendo aprovação do bispo para um
compromisso na Irmandade do Rosário dos Pretos. O grupo é constituído de 11
integrantes masculinos: os principais são o Rei, o Secretário e o Embaixador,
que se apresentam nas festas religiosas e nas visitações, acompanhados de
violas e maracás. Os participantes usam trajes característicos, bastante
exóticos, e dançam em quatro passos: aboio, zabelinha, tesourinha e
volta-em-cheio.
6. Fandango (Alagoas): um dos dois autos –
o outro é a “chegança” – de comunidades pescadoras que corresponde à Marujada,
Barca e Nau Catarineta de outros estados do Nordeste. A música é acompanhada de
rabeca e os trajes são cópias de fardas da marinha.
7. Ticumbi do Espírito Santo: dança de
raízes africanas, mais um tipo de “Baile do Congo ou Congada”. Aqui os
instrumentos usados são apenas pandeiros e chocalhos de lata (ganzás). Os
foliões ventem-se a caráter. A encenação consiste numa guerra, que no final é
representada por uma luta de espadas entre os dois Reis, Secretários e
Embaixadores.
8. Fado de Quissamã (Rio de Janeiro): baile
popular praticamente desaparecido que data de pelo menos o início do séc. XIX
ou mesmo do período Brasil Colonial, e que, porém, sobrevive ainda no distrito
de Macaé, especialmente entre trabalhadores das fazendas. Ao tomar conhecimento
deste fado e em pesquisas
bibliográficas, Mario de Andrade supôs que este gênero fosse anterior ao fado
português, desconhecido no início do XIX. No romance “Memórias de um Sargento
de Milícia” (1853), Manuel Antônio de Almeida descreve esta dança. Toca-se ao
som de viola e pandeiro.
9. Fandango (São Paulo): dança típica da
vida rural, dos tropeiros nas feiras de muares. Dança-se, acompanhado de uma
viola de cinco cordas, castanholas, e duas vozes, em casamentos, oragos,
muxirão, etc. Os dançadores vestidos em trajes típicos batem palmas e sapateiam
com suas esporas artesanais. O fandango é dividido em: varginha-simples (roda
simples); quebra-chifre (roda de pares, lembrando o encontro de bois e a luta
de chifres); soca-taipa (sapateado que lembra a feitura da taipe pelos
escravos); varginha-palmeada; resposta-na-espora; bate-na-bota; mandadinho, e
varginha-de-três-passos.
10. Fandango (Paraná): é uma suíte de várias
danças chamadas “marcas” que podem ser dançadas ou batidas (sapateado). A
mulheres (folgadeiras ou damas) realizam coreografias enquanto os homens
(folgadeiros ou cavalheiros) batem o sapateado com tamancos feitos de madeira
de lei. A dança é acompanhada de duas violas de onze cordas, pandeiros e rabeca.
Algumas marcas, como a “Andorinha”, caracteriza-se por uma figuração chamada
“verão” ou “rodopio da andorinha”.
11. Boi-de-Mamão (Santa Catarina): como as
demais festas de Bumba-meu-boi, o boi investe nos foliões. A cantoria do
Boi-de-mamão é acompanhada de pandeiros, tamborim, sanfona, violão, e o
chamador. Muitas figuras participam da festa: Boi, Cavalinho, Urubu, Vaqueiro,
o Mateus e o Doutor; além daquelas que foram introduzidas: Urso, Macaco,
Caipora, Anão, Maricota, Bernúncia etc.
(...)
Música e indústria cultural
Paremos por aqui. Este pequeno “inventário” pode ser à primeira vista
exaustivo, mas não é. Podíamos ainda incluir neste rol: ponteados de viola,
cambinda, benditos, bandas de congos de diversos estados, aboio, chegança,
baianas, coco, reis-de-bois, torém, “octoberfest”, festas italianas, etc. Os
exemplos são incontáveis, o que representa farto material para o estudo de
geografia. Trata-se também de um apelo à preservação da memória de uma cultura
riquíssima que está em vias de desaparecer, ou para dizer como os
ambientalistas, ao gosto de alguns geógrafos, em extinção
.
A cartografia podia exercer um papel relevante aqui, através da elaboração de
mapas temáticos sonoros, nos quais por meio de um simples toque de mão num
certo tipo de dispositivo, um mapa passasse a executar registros musicais
típicos de cada localidade ou região. O valor didático de um mapa como este
seria inestimável. Pois a identidade musical de um país pode ser reduzida
superficialmente a um único gênero de música, como no caso do samba no Brasil e
do tango na Argentina. Aqui uma discussão do conceito de
tradição ou
invenção da
tradição, nos termos de Eric Hobsbawm (1984), é bastante frutífero e muito
concernente a uma geografia crítica. No Brasil, algumas músicas, produzidas por
uma elite, acabaram sendo exportadas enquanto legítimas portadoras de uma
“brasilidade”. É o caso da bossa-nova, que se apropria de um conceito musical
estranho à formação musical da própria cultura brasileira: o
jazz. Sem com isso desqualificar a
bossa-nova, ou a dita MPB, enquanto composição de complexa estrutura harmônica
e qualidade musical. Alguns gêneros musicais bastante recentes como o
“sertanejo”, o “axé”, o “forró universitário” etc. etc. etc. não passam, no
entanto, de subprodutos do
rock ou da
música pop. A música, em todos os casos,
é convertida em espetáculo, auxiliada pela propaganda e pela formação de um
consenso,
enquadra seu público,
semelhantemente aos membros das fileiras da
Hitlerjugend,
que passivamente se põe diante de seu “ídolo”, no palco. Realmente, nestes
espetáculos, não há sociabilidade alguma entre os ouvintes em transe, que são
obrigados sempre a olhar para frente, em marcha, transformados não em massa de
manobra, mas, sobretudo, numa multidão de sonâmbulos. Entretanto, aqui entramos
diretamente no terreno da
indústria
cultural propriamente dita e seus efeitos arrasadores. A hegemonia cultural
propagada de forma totalizante tem por centro irradiador as potências
capitalistas que, de modo colonialista, determinam um padrão musical –
estrofe-refrão, ao qual se repete no máximo até três vezes – totalmente em
conformidade à produção em série de mercadorias. Para o filósofo Adorno, a
estandardização da música, com todas as
suas características implícitas, é um meio de identificação a formas há muito
reconhecíveis de composição (o sempre igual que se repete). Algo que impediria
o ouvinte de
entender uma peça
musical em toda a sua totalidade, como na
música
séria, onde os detalhes são insubstituíveis. A música popular ou
ligeira, então, longe de fomentar a
individualidade e a autonomia através dos diferentes “estilos” musicais e
modas, sempre passageiras, tem por efeito o contrário, o da
infantilização, ou melhor, da
pseudo-individuação e o da heteronomia, isto é, da dependência alienante a um
poder externo. Aqui não se pode sequer falar de “gosto”, já que este implica
sempre subjetividade e individualidade, e a indústria cultural, por sua feita,
não permite liberdade de escolha. Sem dúvida, a música é um componente de um totalitarismo
cultural sob a égide da mercadoria padronizada, ao qual, no fundo, o lucro é
dissimulado: as relações sociais não são imediatamente reconhecidas na forma da
mercadoria. O fetichismo na música pressupõe um estranhamento pela exata
identificação imediata de suas qualidades que são incompreendidas. Não é o
indivíduo pensante e autônomo, mas alienado, absorto na lógica do valor,
entorpecido em seu tempo livre, que abre mão de si mesmo. No caso do
jazz – alvo da crítica de Adorno –,
estruturalmente, sua composição interdita a liberdade e o improviso, de modo a
ser reconhecido facilmente pelo ouvinte, tornando-o passivo às potencias do
fetiche da mercadoria
.
Podemos especular, com Adorno – o qual também poderia ter dito –, que, depois
de Auschwitz, compor música tornou-se barbárie
.
Exceção à música dissonante (atonal), que nega à farsa de uma harmonia
existente da realidade. Porém, pouca coisa ou nada escaparia da música popular
ou
ligeira na severa crítica de
Adorno, músico de primeira linha e filósofo, igualmente; pois sua crítica
dirige-se – recordemo-nos mais uma vez – especificamente ao
jazz – e como todos sabemos, o
jazz é tido por um gênero de música
refinado e de “bom gosto” por uma certa
intelligentsia
–, não sendo poupados de seu escrutínio sequer grandes nomes e músicos
lendários (“astros”, “estrelas”, “celebridades”) do gênero. Sem ir tão longe
quanto Adorno, é preciso compreender também que a música popular desempenha uma
função social que, ainda que alienante, pode conter momentos de apropriação e
ruptura, subvertendo a esfera do cotidiano pelo vivido. Além do mais, até a
música séria (“música erudita”) – os
termos nessa passagem são sempre de Adorno – foi absorvida pela mercadoria;
principalmente, aqueles recortes que contém traços da música ligeira, algo que
não passou despercebido pelo filósofo da Escola de Frankfurt. A música de um
Antonio Vivaldi, Johann Sebastian Bach, Wolfgang A. Mozart, e Ludwig Beethoven,
só apara citar alguns dos insuperáveis que chegaram ao ápice da composição
musical em todos os tempos, também se transformou em vil mercadoria! Porém, nem
mesmo a música dodecafônica escapou de ser transformada em artigo mercadológico
diferenciado e vendido em nichos de mercado, conferindo certo
status a alguns dos seus seletos
ouvintes. Em nossa opinião, as peças musicais desses compositores, citados a
pouco, e ainda outros, são
obras e
por isso transcendem uma época, um lugar e a própria condição de mercadoria
.
Haveria aqui sim
apropriação. Mas
isso levaria a discussão para outros caminhos que não os daqui propostos e os
quais não nos sentimos muito à vontade em debater.
Música e formação dos Estados-nacionais
Apesar da aparência de que, na passagem anterior, teríamos desviado do
foco em questão, mostraremos ainda a pertinência da discussão da indústria
cultural. Por ora, retornemos mais aproximadamente ao “objeto sensível” da
música e geografia. Tornou-se bastante trivial já há algum tempo,
principalmente em eventos esportivos, a ocasião de solenidades patrióticas
quando da execução de hinos nacionais de países representados por atletas
participantes destes torneios. Realmente, em grandes acontecimentos como a Copa
do Mundo e as Olimpíadas, povos e culturas das mais diversas regiões do planeta
reverenciam hinos, que são, por definição, canções de louvor, de suas
respectivas nações. De fato, além de bandeiras e brasões, o Hino Nacional –
deve ser escrito em letras maiúsculas! – é uma das insígnias mais importantes
de um Estado-nacional. Até mesmo nações – se é que o termo procede nestes casos
– de onde até bem pouco tempo atrás a noção de Estado-nacional era estranha –
possuem também hoje em dia hinos de exaltação à pátria. Aliás, é ingenuidade
conceber a “globalização” como a dissolução dos Estados-nacionais.
Diferentemente, com a expansão do capitalismo em todo o mundo, ocorre
justamente o inverso, a saber, a universalização do conceito de Estado-nação. A
história recente dá inúmeros exemplos de como foi desastroso forjar o conceito
“nacional” em sociedades estruturadas por outras representações que esta. Na
melhor das hipóteses, o conceito foi totalmente distorcido, como em todos os
países do Oriente Médio, sem exceção. Pois a definição formal de Estado moderno é a da constituição de
uma entidade política neutra
subordinada, pela representatividade,
à sociedade civil, e cujo fundamento
supostamente se assenta num pacto social (“contrato”)
e na divisão dos poderes. Logo, o
Estado moderno, em contraposição ao feudal, justifica-se pelo direito laico e de igualdade, sem distinção, de todos os
membros que compõem a sociedade. Não vamos discutir todos os problemas práticos
desta definição, cujo poder da burguesia é dissimulado, e que já foi amplamente
refutada por Karl Marx num brilhante texto de juventude – A questão judaica – e também pelos Anarquistas, exaustivamente.
Portanto, o Estado nacional é um produto histórico, tipicamente ocidental,
burguês e moderno. Seu marco é a consagração da Revolução Francesa, a qual
dissolveu todos os resquícios do feudalismo por onde se fez sentir. O que tudo
isso tem a ver com música? Mencionemos que a “Canção de Guerra do Exército do
Reno”, composta em 1792, pelo capitão de engenharia Claude Rouget, e entoada
aos quatro cantos de Paris pelos soldados federados de Marselha, propagou-se
como um hino revolucionário. (“Aux armes, citoyens, formez vos bataillons;
Marchons, marchons! Qu’un sang impur abreuve nos sillons!”). Proibida por
Napoleão Bonaparte, Luis XVIII, o rei burguês, e Luis Napoleão, a Marselhesa tornou-se, mais tarde, o Hino
Nacional da França. Certamente, um hino é um símbolo nacional, não sendo raro,
para exaltar um sentimento popular aguerrido, apresentarem-se com arranjos em tom marcial. Sem dúvida, em épocas de
ufanismo extremo e oficial, ultrajá-lo pode vir a se configurar até mesmo num
crime gravíssimo. Porém, como dizíamos, a noção de Estado-nacional se difundiu
por todo o mundo. O que está por trás disso foi o período que os historiadores
denominam de neocolonialismo ou imperialismo. A “missão civilizatória”,
ideologia bem “fundamentada” e defendida pelas ciências, notadamente a
geografia, justificou em teoria a prática rapineira das potências capitalistas
europeias que, sem abrir mão do emprego da guerra, repartiram diretamente entre
si os continentes africano e asiático em territórios submetidos às suas áreas
de influência, na condição jurídica de colônias e protetorados, e,
indiretamente, pelo viés da dependência econômica, como ocorreu nas Américas. O
que estava em jogo, como é bem sabido, era a necessidade, por parte das
potências europeias, de desafogar a produção de mercadorias, garantindo novos mercados,
além de trabalho a baixo custo e fontes de matéria prima. A música ocidental
(tonal) também cumpriu um papel colonizador e “civilizador”, na medida em que
suprimiu, na forma de representação de cultura invasora, as manifestações
musicais que até então predominavam nas colônias. Durante o período que ficou
conhecido como descolonização, no século XX, o vácuo deixado pelas elites
brancas colonialistas foi preenchido por uma coleção de concepções europeias –
incluindo as musicais – na invenção dos Estados-nacionais que nasciam de
repente.
Por outro lado, inversamente, a música também cantou a liberdade, mesmo
no contexto do nacionalismo. Além da já citada Marselhesa, o movimento romântico foi prenhe de exemplos neste
sentido. Neste contexto, podíamos inicialmente dedicar algumas palavras a
Frédéric Chopin. É bem verdade que a vida de Chopin, politicamente bastante
conservador, foi bastante romanceada no filme “À noite sonhamos”,
principalmente no que diz respeito ao seu ímpeto revolucionário, e seu improvável
encontro a quatro mãos com Franz Liszt. Mas é verdade também que Chopin – que
no exílio guardava consigo uma caixinha de prata com areia da Polônia –
ressentia amargamente o domínio do Império Russo – da Áustria e Prússia também
– sobre a nação polonesa. Seu pai mesmo, Mikolaj, tomou parte do levante por
independência, liderado pelo nacionalista Tadeusz Kosciusko. Em 1831, radicado
em Paris, Chopin toma conhecimento da tomada de Varsóvia pelos russos e, por
conseguinte, da intensificação da repressão através da chegada de sucessivas
notícias relatando centenas de poloneses acorrentados seguindo para o degredo,
na Sibéria. Abalado emocionalmente, o compositor escreve, então, o concerto que
passaria a ser chamado de “Revolucionário” (Estudos
– Opus 10, 12º.). Mas um caso parece ainda mais emblemático, no contexto da
formação dos Estados-nacionais do século XIX: Giuseppe Verdi! Verdi nasceu
Giuseppe Fortunio Francesco, no ano de 1813, em Roncole, aldeia situada no
ducado de Parma, norte da Itália, na época sob o jugo napoleônico (foi
registrado Joseph Fortunin François). Posteriormente à expulsão das tropas
francesas, soldados austríacos e russos tomam a Itália em 1814, espalhando
terror por onde passam. Um dos lugares atingidos é vilarejo de Verdi. Muitas
mulheres fugiram, escondendo-se nas igrejas, mas eram chacinadas assim que
encontradas, em meio a orações e súplicas. Luisa Verdi teve mais sorte e,
escondida num campanário, conseguiu salvar o futuro e promissor compositor.
Tais acontecimentos marcarão profundamente Verdi e grande parte de sua obra
será um libelo pela liberdade em redor do projeto político de independência e
unificação da Itália. Alegorias históricas retratadas por sua música, como as
dos Lombardos, dos judeus na Babilônia (“Nabucodonosor”) e das lutas francesas
contra os invasores ingleses (“Joana D’Arc”), foram artifícios astutos para
falar da opressão, driblar a censura e, ao mesmo tempo, insuflar as massas.
Neste sentido, a trajetória de sua obra é bastante sintomática. Por exemplo, Nabucco causou grande comoção quando da
passagem do “Coro dos Escravos Hebreus”: “Vá, pensamento, sobre asas douradas;
vá, e pousa sobre as encostas e colinas, onde os ares são tépido e macio, com
doce fragrância do solo natal! (...) Oh, minha pátria tão bela e perdida!” Já a
ópera “Os Lombardos na Primeira Cruzada” causou-lhe constrangimentos com as
autoridades policiais, que já percebiam o apelo patriótico de sua música, sendo
então constantemente submetida à censura. Em 1847, “Macbeth” provocou furor na passagem:
“La patria tardita – piangendo c’invita – fratelli, gli oppressi – corriamo a salvar”. E na efervescência
dos anos de 1848 e 49, não obstante as restrições da censura, a opera “A
Batalha de Legano” rememorava os feitos dos lombardos, povo germânico cristão,
que resistiram bravamente, na cidade de Legano, à invasão do Império Germânico.
Passagens da ópera, como “Viva Itália” e “devemos expulsar os tiranos para além
dos Alpes”, foram aplaudidas com entusiasmo, deixando para sempre uma marca no
imaginário do povo italiano. Deste modo, Giuseppe Verdi entrou para o panteão
dos heróis da nação italiana, ao lado de Giuseppe Garibaldi, Mazzini, Conde de
Cavour e o próprio rei da Sardenha Vitor Emanuel II, aliás, Vittorio Emanuele Re D’Italia (VERDI) –
e por que não citar também a brasileira Anita Garibaldi? Antes de encerrar esta
passagem, gastemos mais algumas linhas num outro exemplo, “o caso Wagner”. O
polêmico Richard Wagner, leitor de Schopenhauer, e tendo por mentor intelectual
Friedrich Nietzsche, criou belíssimas composições em que se alternavam
passagens apolíneas e dionisíacas que abririam caminho definitivo para o
atonalismo da música do século XX. Wagner, nascido também em 1813, viveu
intensamente o contexto da formação do Estado nacional Alemão. Lutou em 1849,
nas barricadas de Dresden, ao lado de Mikail Bakunin, e mesmo não tendo
manifestado o mesmo ardor revolucionário de seu amigo russo, ao pedir logo
dispensa do front por alegar
problemas de saúde inexistentes, Wagner em sua juventude foi um sincero
defensor da liberdade. Todavia, sua obra principal é toda marcada por um
resgate da mitologia pagã alemã (Parsifal,
Tristão e Isolda, Valquírias etc.) e ao elogio do germanismo (Os mestres cantores de Nuremberg). Mas é
totalmente especulativo atribuir ao nacionalismo feroz wagneriano, ao qual
indubitavelmente deve ter contribuído em alguma parcela para o crescimento de
um sentimento nacional antissemita, ao desastre das duas grandes guerras
mundiais e das atrocidades cometidas pelos nazistas anos depois.
Seja como for, o romantismo burguês na música do século XIX foi promissor
no contexto da formação dos Estados-nacionais e a consolidação de teatros
nacionais, conservatórios e óperas não deixam quaisquer duvidas a este
respeito. A lista de músicas folclóricas e de compositores poderia ser extensa
;
mas também é possível mencionar exemplos contrários, ou seja, da música que
contesta o Estado-nacional, ainda no cenário do século de 1800, numa
perspectiva diametralmente oposta, proletária e internacionalista. Não nos
recordemos, infelizmente, na grande música, de nenhum grande compositor que
elaborasse sua obra abertamente em favor de uma sociedade socialista neste
período. Mas a música
A Internacional,
escrita pelo anarquista, poeta e operário Eugène Pottier em 1871, ano em que o
mesmo combateu na Comuna de Paris, e musicada pelo também anarquista Pierre
Degeyter, em 1888, simboliza bem o ideal do movimento operário do século XIX.
Tratava-se de atacar o Estado nacional, enquanto instrumento de opressão em favor
da classe burguesa, nos moldes teóricos, já mencionados, de um Marx ou dos
Anarquistas, e exaltar a classe trabalhadora de todo o mundo, irmanada pelo
sentimento de revolução, contra a exploração do trabalho. (“Bem unidos façamos,
nesta luta final, uma terra sem amos, a Internacional”). A música
A Internacional foi traduzida para
diversas línguas e proibida em muitos países
.
A versão portuguesa foi escrita pelo anarco-sindicalista português Neno Vasco
e, no Brasil, a canção foi entoada fervorosamente na Greve Geral de 1917. A
canção,
A Internacional, acabou se
tornando hino da URSS, até ser substituída por Stálin. Sinal inequívoco de que
o projeto socialista malograva sob a ditadura do proletariado.
Conclusão
Nada mais falaremos por ora, os exemplos citados em todo o artigo são
mais do que suficientes para justificar uma pesquisa de música na geografia.
Mas antes de concluirmos, ainda há espaço para uma ou duas reflexões. Se
retornássemos aos instrumentos musicais e a indústria cultural, citados no
início deste ensaio, vale a pena lembrar o interessante debate que se
desenvolveu nos anos 60, inspirado pelos Festivais
de Música Popular Brasileira, transmitidos pela antiga TV Record, sobre a
guitarra elétrica (Ver vídeo no YouTube, “Marcha contra a guitarra elétrica e o
tropicalismo”). Debaixo dos anos de chumbo, o problema foi colocado da seguinte
maneira: a guitarra elétrica simbolizava a invasão cultural do imperialismo
estadunidense para alguns (Elis Regina, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Jair
Rodrigues, Gilberto Gil, entre outros, e estudantes, acima de tudo); e, para
outros, ao redor de cantores e compositores como Roberto Carlos, Erasmo Carlos,
Os Mutantes, Caetano Veloso, entre outros, a guitarra não era senão um
instrumento fruto das novas tecnologias e que ganhava o mundo através do
rock’n’roll. Para nós, a questão não foi resolvida totalmente, e é difícil
saber até que ponto a pop music urbana (rock, hip-hop, eletrônico
etc.) representa a consolidação inexorável da indústria cultural ou se é apenas
a marcha irrefreável da história. Se a primeira hipótese é verdadeira, então a
música novamente serve-se a propósitos de dominação. Outra questão, que também
não estamos autorizados a responder é se o fato da música atonal, por um lado,
representar o esgotamento do cromatismo; por outro, também não teria aberto
caminho, por ser incompreendida à maioria dos ouvintes, ao êxito da indústria
cultural? Se assim for, nada mais resta do que adotar uma postura pessimista e
aceitar a barbárie. Mas se, ao contrário, aventarmos a hipótese de que mesmo a música ligeira pode acarretar uma
apropriação verdadeiramente humana, o debate não pode parar neste dilema e, a
nosso ver, a geografia pode contribuir muito para isto.
Embora não seja possível afirmar categoricamente que a música é um
fenômeno natural; a música, porém, tornou-se tão imprescindível às sociedades
humanas que mal podíamos imaginar um mundo sem ela. Não há cultura conhecida
que não produza algum tipo de música, ainda que rudimentar. O próprio Adorno
reconheceu que o tonalismo aparece à sociedade como segunda natureza. Música é apropriação e organização de ruídos
naturais, caóticos e aleatórios; é estética no sentido da produção do sublime e
do Belo por meio dos sons (mesmo na dissonância); é conhecimento na medida em
que estabelece conceitos teóricos e técnicos na arte da composição; e é
sociabilidade no sentido de unir as pessoas, torná-las mais felizes, no amor,
na festa, na dança, etc. Na mitologia grega, Orfeu podia domar, com a
extraordinária música de sua lira, as feras, que adormeciam tranquilas a seus
pés. Uma geografia indiferente à música é o mesmo que condenar Orfeu, em seu
resgate ao tenebroso mundo de Hades, a não voltar os olhos para o rosto de sua
amada Eurídice. Impossível, se, verdadeiramente, existem leis da paixão que só
a música conhece a fundo em todo o seu âmago. Orfeu, arrebatado por uma
profunda tristeza perante o fracasso de seu resgate, não mais cantou. Uma
geografia indiferente à música é uma disciplina odiada pelos deuses, despedaçada, sem alma, meramente
burocrática e destinada a parasitar o Estado ou a implorar, ajoelhada, por
migalhas no mercado. Afinal, se ainda existe alguma coisa, um ideal, um mundo
melhor por se construir, sonhar ou lutar – uma utopia! – como então poderíamos
viver sem música – utopia das utopias?
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