sábado, 14 de março de 2015

GOLPE DE 2016: ANTECEDENTES ESTRUTURAIS

Ancestral dos coxinhas

GOLPE DE 2016: ANTECEDENTES ESTRUTURAIS

Ou

“Petralhas” vs. “Tucanazis” e a revolução burguesa no Brasil

por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

O título deste pequeno artigo recorda como militantes e simpatizantes das duas agremiações partidárias, PT e PSDB, se denominam, ofensiva e mutuamente, em seus ataques verbais e acusações que, quase sempre, ultrapassam os limites da “boa política” (se é que isso existe) e inflamam as picuinhas e controvérsias nos jornais, nas ruas e, principalmente, nas redes sociais da internet. As alcunhas, deveras depreciativas, indicam o tom de animosidade que se avolumou no Brasil nos últimos anos, chegando ao ápice na atual conjuntura política. Quanto ao “vs” (de “versus”), segue o que foi dito acima, e deve ser entendido como uma anedota. Trata-se de uma referência a como são descritas as chamadas de confronto entre dois lutadores em competições de vale-tudo (MMA) pela mídia esportiva. Com tal analogia, convido a/o leitor/a a imaginar uma cena na qual um grande número de espectadores se põe em posição passiva diante de um ringue onde dois oponentes de força mais ou menos equilibrada e características muito parecidas, como altura, peso, força etc., mas, também, muitas diferenças, como técnica, tipo de modalidade de arte marcial que praticam etc., se enfrentam numa disputa pelo troféu da categoria à qual pertencem.

Brincadeiras à parte, o título do artigo pretende lembrar também que PT e PSDB são no momento os dois partidos com maior representatividade no cenário da política brasileira – pelo menos tem sido assim nas últimas eleições presidenciais – e têm centralizado o eixo das hostilidades que se intensificam e mobilizam um grande número de pessoas que mal compreendem o que está de fato em jogo e que estão totalmente excluídas das grandes questões de fundo que emergem transfiguradas na política nacional e suas repercussões midiáticas. E aqui entra a segunda parte do título, “a revolução burguesa no Brasil”, que será explicado ao longo deste texto.

Assim sendo, a rivalidade partidária é comumente entendida, pelos meios de comunicação e a opinião pública em geral, como uma disputa entre situação e oposição, esquerda e direita ou, num plano mais elaborado e ao mesmo tempo grosseiro, entre socialistas e capitalistas (ou neoliberais). Nada mais enganoso. PT e PSDB são dois partidos que defendem modelos distintos de capitalismo. Diria mesmo que, metodologicamente, a política econômica do PT, de crescimento do mercado interno, é, inclusive, mais ortodoxa, no sentido do liberalismo clássico, do que as práticas propostas pelo PSDB. Este último, na verdade, busca perpetuar uma política de desenvolvimento econômico que caracterizou toda a história da sociedade brasileira. Isto é, o ideário tucano propõe um “liberalismo” mais realista com a evolução social, política e econômica do Brasil, compreendendo esta através dos termos de um capitalismo internamente desigual, de periferia e dependência às grandes potências centrais. Noutras palavras, o Partido dos Trabalhadores vem adotando, nas duas últimas décadas, uma perspectiva liberal bastante utópica, na qual procura realizar um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo e nacional; ao passo que o PSDB tem representado a continuidade do modelo vigente até então. Nesse sentido, além das tergiversações ideológicas que se dão nas aparências do embate político, ambos os partidos representam interesses de setores antagônicos da burguesia, cientes de que, no caso da evolução do capitalismo brasileiro, o Estado sempre foi instrumento indispensável a serviço de seus interesses. Tal afirmação, provavelmente, deve escandalizar (talvez, indignar), porém, é isso que pretendo defender neste artigo.

Para dar ensejo à minha argumentação, gostaria de mencionar, antes de tudo, que por trás dos dois presidentes mais emblemáticos do cenário brasileiro dos últimos tempos, e, por assim dizer, mais importantes, desde a abertura política, FHC e Lula, encontra-se a figura do grande intelectual brasileiro Florestan Fernandes. Sim, tanto FHC como Lula, apesar de omitirem a poderosa influência do antigo mestre, foram forjados inexoravelmente pelos ensinamentos do professor da USP. FHC aprendeu, com ele, e levou longe demais, a ponto de pôr em prática, a ideia de que economias de países da periferia e em desenvolvimento podem crescer mesmo dependentes do centro da economia mundial – algo que, diga-se de passagem, contrastava com a perspectiva oriunda da esquerda tradicional, que preconizava uma modernização do país independente, através da ruptura radical dos laços que o ligava às potências imperialistas e provocava o seu atraso. Lula, por seu turno, compreendeu muito bem, através de Florestan, que para uma economia de mercado se consolidar e crescer, seria necessário, primeiro, fortalecer um mercado interno em todo território nacional, integrando-o às bases de uma economia dinâmica, competitiva e propriamente capitalista. Essas lições, que Florestan apenas constatava como cientista ao estudar a sociedade brasileira, porque, ideologicamente, era um sincero socialista, foram postas em prática, quando presidentes, por seus dois maiores pupilos e aprendizes. FHC com suas famigeradas ou aclamadas privatizações. Lula com seus projetos de distribuição de renda por meio do combate ao desemprego, valorização e maior poder de compra do salário mínimo, expansão do crédito às camadas populares, programas de assistência social como o Bolsa-família e o Minha Casa, Minha Vida, maior oportunidade de acesso às instituições de ensino superior e técnico pelas classes desfavorecidas etc.

Neste sentido, as figuras desses dois expoentes da política brasileira e o embate político entre os partidos de que são os maiores símbolos demonstram como ainda nos dias de hoje, em pleno século XXI, podemos ouvir os ecos descritos numa obra-prima da sociologia brasileira. Refiro-me ao livro “A Revolução Burguesa no Brasil” (1976), de Florestan Fernandes – indispensável, aliás, para quem quer que queira conhecer a fundo a sociedade brasileira.

Sem dúvida, foi o ressoar de “A Revolução Burguesa no Brasil” ainda nos dias de hoje que me motivou a escrever este artigo. Na verdade, meu intuito preliminar era de tentar entender a crise política por que atravessa o início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff; ou, para dizer como antigamente, a crise no nível da superestrutura (sim, porque a crise da economia é internacional e estrutural). Ora, não é preciso ser um bom entendedor em política para constatar que esse se iniciou sob intenso chumbo grosso. O barulho é alto demais até mesmo para aqueles que não gostam/ ou melhor, se orgulham de sua apatia ao canto da sereia que vem do oceano de águas turvas e traiçoeiras do mundo político. Sem dúvida, as campanhas para denegrir a imagem do governo Dilma ocupam diariamente as manchetes das principais mídias de comunicação, principalmente a imprensa escrita e a televisiva (exceção feita à internet, de onde há espaço ainda para o contraditório). Uma virtual possibilidade de impeachment começa a tomar forma no ar e paira como uma nuvem cinzenta, carregada de raios e trovoadas. Por enquanto, a tempestade ainda não desabou - como a tentativa de sensibilizar as massas (notadamente, a classe média) a saírem às ruas numa marcha antidemocrática pelo impeachment (muitas vezes em defesa até mesmo de uma intervenção militar). Os respingos ainda não provocaram nenhum efeito mais grave, senão a formação de algumas poças esparsas aqui e ali, mas já começam a atravessar a soleira da porta.

Todavia, quais são os verdadeiros motivos dessa mobilização que visa uma ruptura institucional, para não dizer a expressão golpe branco? Sim, porque, gostemos ou não, Dilma Rousseff foi eleita dentro das regras do jogo democrático por maioria popular, e qualquer tentativa de reverter, por parte de uma minoria, o sufrágio das urnas e instaurar um terceiro turno é, em última instância, uma violação dos pressupostos constitucionais mais fundamentais. Aliás, uma possível deposição de Dilma, do cargo da presidência, sem nenhuma razão procedente, que a envolva em qualquer ato ilegal comprovado, abriria um precedente irremediável na esfera do direito (isto é, “codificando” a ruptura política a qualquer tempo nos limites da jurisprudência), pois tornaria instável qualquer outro mandato num futuro próximo. Todavia, não seria nada espantoso se tal acontecesse. Na verdade, a instabilidade política é a regra nos países de tradição ibérica, com seus famigerados pronunciamientos e golpes de estado, e não exceção. Porém, tais intervenções sempre romperam descaradamente com a ordem institucional. Na atual circunstância, impeachment é eufemismo anglofônico e “pós-moderno” que dissimula, sob os auspícios da legitimidade, a derrubada de um governo constitucionalmente legítimo! Eis a novidade e o paradoxo, sob o imperativo da democracia, também o Putsch deve ser de direito (com esta, nem mesmos os nazistas sonhavam!). 

Por isso, para entender este perene contexto ameaçador da nossa frágil democracia (liberal!), recorri ao mencionado livro de Florestan Fernandes. Mas muito difícil seria tecer uma análise profunda de “A Revolução Burguesa no Brasil” em um pequeno artigo a ser publicado em um blog na internet. Não haveria espaço para isto. O que me proponho a fazer aqui é apenas traçar um panorama muito brevemente, inspirado em minhas reflexões sobre o livro, de algumas questões que, talvez, não contassem nem com aprovação do próprio Florestan, mas que considero muito importantes para aclararem o modus operandi endêmico da política brasileira.

Feitas essas considerações, em primeiro lugar, é preciso salientar que Florestan não toma o conceito de revolução burguesa de um modo engessado, como se este fosse uma fórmula que se aplicasse a qualquer situação e realidade históricas, indiscriminadamente. Ao contrário, para Florestan, a revolução burguesa nem sempre segue o modelo clássico da Inglaterra, França e dos Estados Unidos. Ela pode assumir, inversamente, características bem peculiares, conforme as singularidades apresentadas em diferentes realidades em que a evolução do capitalismo não foi ortodoxa. Esse é o caso de todos os países que, historicamente, foram colônias de exploração de uma metrópole, como foi o Brasil. Nesse sentido, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro se deu numa economia duplamente articulada, isto é, de desenvolvimento desigual interno, geneticamente moldado pela herança colonial, e de dependência às nações hegemônicas, ou melhor, à dominação imperialista externa.

Segundo Florestan, durante o período pós-independência e, por conseguinte, a construção do Estado nacional brasileiro, o grupo social que ascendeu ao poder político foi, como não poderia deixar de ser, o estamento senhorial nativo, que, diante das novas circunstâncias da economia mundial (neocolonialismo), absorveu seus padrões (porque eram irresistíveis) acomodando-os à realidade local, através de uma burocratização da dominação patrimonialista e sem, contudo, e principalmente, demolir os pilares do colonialismo, isto é, a escravocracia e a grande lavoura. Sob esses moldes, a ideologia liberal foi deformada e utilizada para justificar a estrutura vigente, na qual, de certa forma, o ideal utópico da construção do Estado nacional garantiu pelo menos a não fragmentação do território nacional. Nesse contexto, o setor propriamente capitalista, ligado ao financeiro e ao “alto comércio” (importação e exportação), floresceu nas cidades, aspirando, porém, não atingir os mesmos valores da burguesia das nações burguesas desenvolvidas (liberdade e igualdade formais), mas os valores aristocráticos do estamento senhorial. Todavia, à medida que as relações se tornavam mais complexas, constituiu-se também um mercado interno, em grande parte, pelo baixo comércio que, entretanto, era tolhido e sufocado pelo imobilismo característico das sociedades arcaicas. Somente com a abolição da escravatura, a chegada do imigrante e a mudança de postura de certos fazendeiros do Oeste paulista, houve parcialmente uma mudança dessa perspectiva, apontada na direção do fomento à competitividade como fator de dinâmica social, e apoiando-se muito nas condições do mercado interno já constituído (ainda que marginal e residualmente à ordem escravocrata). Com o tempo, porém, o próprio industrial se adaptou ao feitio local, incorporando o ideal aristocrático senhorial às suas próprias concepções, fato que originou uma burguesia ultraconservadora. Na passagem do capitalismo comercial para o capitalismo monopolista e com a intensificação da industrialização, a burguesia, por várias razões, inclusive de autodefesa (à virtual ameaça comunista ou da classe operária etc.), estreitou ainda mais os laços de seu desenvolvimento duplamente articulado (desenvolvimento desigual interno e dependência à dominação imperialista estrangeira) e, mais do que nunca, concebeu, como única e última alternativa de sobrevivência, a apropriação do Estado por via militar. É nesse sentido que o golpe de 64 consolida um “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”, que recrudesceria ainda mais, numa forma cristalina, o modo autoritário gravado inexoravelmente no DNA das relações hierárquicas e de poder no Brasil.

Em princípio, essas linhas tortuosas, cheias de lacunas, falhas e muito canhestramente traçadas por mim, são suficientes para conduzir minha argumentação.
O que se quer extrair daí é que duas tendências se mostram largamente opostas, mas não contraditórias, no cenário do desenvolvimento capitalista em relação aos padrões da economia mundial. A primeira, apenas virtual, define-se por um liberalismo clássico mas utópico. A segunda, vitoriosa e real, define-se por um liberalismo ideológico que acoberta um capitalismo heterodoxo, híbrido, autocrático e atolado num tipo de promiscuidade entre o arcaico e o moderno.
E aqui acho irresistível e importante transcrever ipsis litteris alguns extratos do livro “Revolução Burguesa no Brasil”, selecionados por mim de modo arbitrário, para impregnar um pouco do sabor desta obra-prima da sociologia brasileira no meu texto. Vejamos:

“A competição, como processo estrutural e dinamicamente determinado pelas relações de pessoas e grupos sociais no mercado, era incompatível com os fundamentos patrimonialistas da vida social e com os critérios estamentais de classificação (ou desclassificação) social. Para isso, os estamentos senhoriais e suas elites mostravam-se atentos à modernização institucional da economia ao nível em que as estruturas econômicas da ordem social existente estavam, a um tempo, adaptadas ao capitalismo e não eram afetadas por ele (ou seja, o nível em que o senhor desempenhava papéis econômicos capitalistas e o processo econômico interno era determinado pela organização do mercado mundial)” (p. 173).

“Ela engendrou uma espécie de bifurcação adaptativa do comportamento econômico, que permitia ao agente econômico privilegiado da ordem escravocrata e senhorial monopolizar as vantagens simultâneas decorrentes seja da preservação de estruturas econômicas extracapitalistas da produção escravista, seja da eclosão inicial do ‘setor econômico novo’. Essa bifurcação não poderia se manter indefinidamente, sem adaptações estruturais e dinâmicas mais profundas. (...) Dessa acomodação resultou uma economia ‘nacional’ híbrida, que promovia a coexistência e a interinfluências de formas econômicas variavelmente ‘arcaicas’ e ‘modernas’, graças à qual o sistema econômico adaptou-se às estruturas e às funções de uma economia capitalista diferenciada, mas periférica e dependente (pois só o capitalismo dependente permite e requer tal combinação do ‘moderno’ com o ‘arcaico’, uma descolonização mínima, com uma modernização máxima)” (p. 176).

“As forças que iriam construir a economia capitalista e sua ordem social competitiva teriam que irromper, portanto, desse solo, mas por sua conta e contra a maré, de modo acanhado, destrutivo e desorientado, como se a verdadeira luta pela descolonização não começasse com o processo de emancipação política, mas um século depois” (p.180).

“No entanto, parece que era na marginalidade social do pequeno comerciante e, por vezes, também do que se poderia chamar de comerciante médio (dependente dos ramos das atividades comerciais), que residia o principal motivo de frustração e revolta. (...) Por isso, o grosso desses agentes econômicos constituía uma espécie de massa de manobra, tanto nas lutas de partido quanto nas matérias de interesse político do ‘alto comércio’, e mesmo da aristocracia agrária, que exigissem suporte nas manifestações populares. (...) Em suma, o ‘protesto burguês’, como uma firmação econômica, social e política revolucionária, não se equacionou historicamente, a partir de manifestações coletivas de condenação da ordem social escravocrata e senhorial ou de exaltação de uma ordem social alternativa. Pela razão muito simples: o agente humano que melhor encarnava a condição burguesa  não tramava contra aquela ordem social. Identificava-se com ela material e politicamente, e só iria abandonar o barco quando ela se mostrasse irremediavelmente inviável – por causa das transformações profundas da sociedade e de sua economia, não em virtude das agitações de superfície, que, no caso, não guiavam a história, eram epifenômenos daquelas transformações” (p. 188).

“O trabalho livre não nasce, aqui, sob o signo de um mercado que se divide e opõe, mas, ao mesmo tempo, valoriza e classifica. Surge como expressão das convenções e das regularidades imperantes na sufocante ordem social escravocrata e senhorial brasileira. Em vez de fomentar a competição e o conflito, ele nasce fadado a articular-se, estrutural e dinamicamente, ao clima do mandonismo, do paternalismo e do conformismo, imposto pela sociedade existente, como se o trabalho livre fosse um desdobramento e uma prolongação do trabalho escravo” (p. 193).

“Convertendo-se ao ‘liberalismo’ das elites tradicionais, incorpora-se, de fato, aos círculos conservadores e passa a compartilhar formas de liderança e de dominação políticas variavelmente conflitantes ou inconsistentes com a consolidação da ordem social competitiva e com o que isso teria de representar no plano econômico (predomínio do capital industrial; reforma agrária; aceleração do desenvolvimento econômico e constituição de uma economia de mercado integrada em escala nacional; formação de um regime capitalista independente). Em suma, projetado fora do contexto histórico-sociais das economias das metrópoles do mundo moderno, o imigrante perfilha uma filosofia política que não pressupõe o ‘capitalismo avançado’ e que constitui, opostamente, um fator de resistência ou de solapamento às mudanças que possam conduzir ao capitalismo como estilo de vida” (p. 146).   

“Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes de converter a dominação sócio-econômica no que Weber entendia como “poder político indireto”. As próprias ‘associações de classe’, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação política do poder político estatal, de acordo com fins particulares. Em consequência, a oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, como e enquanto aristocracia agrária; e encontro condições ideais para enfrentar a transição, modernizando-se, onde isso fosse inevitável, e irradiando-se pelo desdobramento das oportunidades novas, onde isso fosse possível” (p. 204).

“Entre as elites da classes dominantes havia um acordo tácito quanto à necessidade de manter e de reforçar o caráter autocrático da dominação burguesa, ainda que isso parecesse ferir a filosofia da livre empresa, as bases legais da ordem e os mecanismos do Estado representativo” (p. 207).
“Isso quer dizer que o desenvolvimento capitalista sempre foi percebido e dinamizado socialmente, pelos estamentos ou pelas classes dominantes, segundo comportamentos coletivos tão egoísticos e particularistas, que ele se tornou compatível com (quando não exigiu) a continuidade da dominação imperialista externa; a permanente exclusão (total ou parcial) do grosso da população não-possuidora do mercado e do sistema de produção especificamente capitalista; e dinamismos sócio-econômicos débeis e oscilantes, aparentemente insuficientes para alimentar a universalização efetiva (e não apenas legal) do trabalho livre, a integração nacional do mercado interno e do sistema de produção em bases genuinamente capitalistas, e a industrialização autônoma” (p. 223).

“Além disso, como sucederia no Brasil, no México e em outros países da América latina, o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a presumível ânsia de democratização, de modernização ou de nacionalismo econômico de algum setor burguês mais avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade burguesa” (p. 262).
“(...) Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse, de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e modernizador de desenvolvimento econômico; e, concomitantemente, servisse de pião a medidas políticas, militares e policiais, contra-revolucionárias, que atrelaram o Estado nacional não à clássica democracia burguesa, mas a uma versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia qualificar, com precisão terminológica, como uma autocracia burguesa” (p. 268).

“O essencial, do ponto de vista sociológico, parece ser situar a irrupção do capitalismo monopolista de acordo com sua estrutura íntima: um desenvolvimento capitalista provocado na periferia pelas economias centrais e, portanto, extensa e profundamente induzido, graduado e controlado de fora” (p.268).

“A noção de ‘democracia burguesa’ sofre uma redefinição, que é dissimulada no plano mores, mas se impõe como uma realidade prática inexorável, pelas qual ela se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem, econômica, social e politicamente, para o exercício de dominação burguesa” (p.292).

“Sob esse aspecto, o capitalismo dependente e subdesenvolvido é um capitalismo selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência, por meios políticos e no terreno político” (p. 293).

“As transformações externas dos ritmos e estruturas do capitalismo mundial e do imperialismo agravaram ainda mais as dificuldades inexoráveis dessa burguesia, forçando-a a entender que ela não podia preservar a transformação capitalista rompendo com a dupla articulação, mas fazendo exatamente o inverso, entrelaçando ainda com mais vigor os momentos internos da acumulação capitalista com o desenvolvimento desigual da economia brasileira e com avassaladores dinamismos das “empresas multinacionais”, das nações capitalistas hegemônicas e do capitalismo mundial” (p. 318).

“A democracia não só é dissociada da auto-afirmação burguesa, como ela seria um tremendo obstáculo ao tipo de autoprivilegiamento que as classes burguesas se reservaram, para poderem enfrentar a industrialização intensiva e a transição para o capitalismo monopolista” (p. 348).
“Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, democrático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão acabada de um oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários de formas de coação, de repressão e de opressão ou de institucionalização da violência e do terror, que são indisfarçavelmente fascistas” (p. 350).

“Aqui, estamos em face de uma burguesia dependente, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as duas coisas com a sobrevivência da ‘civilização ocidental cristã’” (p. 360).    

Com a derrocada do bloco socialista, e, doravante, a desnecessária e histérica política anticomunista, as potências capitalistas engendraram uma nova estratégia ideológica e de propaganda para justificar suas intervenções no âmbito da política e economia internacional, algumas, diga-se de passagem, tipicamente imperialistas. Elas aparecem agora como os últimos bastiões da democracia e da civilização ocidental, tida, implícita e explicitamente, como a mais “evoluída”. (Aliás, a mesma civilização ocidental que vem protagonizando verdadeiros massacres contra a humanidade, desde tempos remotos e ao longo de toda a modernidade, como, por exemplo, os extermínios em massa e sistematizados – por uma lógica racionalista e iluminista – perpetrados pela Alemanha nazista). Nesse novo contexto, pós-socialista, sem culpa nem remorso, mas repleto de cinismo, a questão a que se coloca é: como as burguesias dos países dependentes vão reforçar a dupla articulação sob o imperativo da democracia custe o custar?  

Já vimos algumas pistas disso mais acima. Parece-me que, no Brasil, como sempre, só há um caminho, antes da intervenção militar. Pela via de uma ditadura do judiciário, de um jeito tipicamente autóctone: “para os amigos tudo; para os inimigos, a lei”. Ou melhor, a interpretação da lei!

Bom, mas aonde queremos chegar? No ponto em que tanto o PT como o PSDB representam duas forças do desenvolvimento capitalista no Brasil; resquícios, por assim dizer, dos antecedentes e da revolução burguesa no Brasil que se deu dentro da ordem e foi, essencialmente, contrarrevolucionária. Quais são elas? O PT é o partido dos bancos e das grandes empreiteiras, mas, acima de tudo, da burguesia nacionalista e do desenvolvimento econômico autônomo. Por assim dizer, do modelo liberal por excelência de produção da riqueza de uma nação! De fato, ao lado das políticas econômicas desenvolvimentistas, o fundamento de programas de inserção social, que nada mais é do que a criação de um sólido mercado interno, dinâmico e competitivo, em todo território nacional, está muito longe do ideário socialista (ou, pelo menos, se ainda houvesse um pingo de utopia socialista em algum quadro do PT, este se encaixa muito mais na fórmula etapista de se entender a evolução do comunismo, que, em tese, deveria emergir das condições objetivas amadurecidas e generalizadas de produção). Já o PSDB, é o partido dos coronéis e da burguesia ultraconservadora que ainda – pasme! – está imbuída de uma mentalidade tipicamente oligárquica e escravocrata, pela qual compreende a sociedade de classes. Noutras palavras, o partido do grupo que busca salvaguardar os privilégios de classe e aprofundar a dupla articulação, de acirramento das desigualdades internas e solidificação da dependência política e econômica às nações hegemônicas. Neste sentido, encarna a ambiguidade intrínseca de sua própria condição histórica: é conservador, de um lado, em relação à sociedade brasileira e, de outro, liberal e entusiasta ferrenho do capitalismo pleno das nações centrais.

Para entender melhor essa ambiguidade, seria bastante interessante observar os inúmeros vídeos que circularam na internet durante a campanha presidencial de 2014 e mostram “passeatas” organizadas pelas elites. (Talvez, o único momento em que elas saem às ruas, e justamente para derrubar um presidente!). Desnecessário lembrar, porque é notório, o fato das classes dominantes brasileiras se identificarem muito mais com o povo (“beautiful people”) e o modo de vida dos países desenvolvidos, isto é, EUA e nações europeias ricas, do que com o “povão” pobre e mestiço do Brasil. (E isso se estende a toda sociedade brasileira, como prova o tratamento bastante diferenciado despendido a europeus e estadunidenses brancos em contrapartida a africanos e latinos americanos de origem indígena). Portanto, não deixa de ser estranho (para não dizer bizarro) o súbito acometimento ufanista nas passeatas das elites! Outro fato paradoxal marcante, nessas passeatas, foram as manifestações de ódio (inclusive com episódios racistas) e de truculência por parte daqueles que acreditam em sua própria “superioridade meritocrática” e, sendo assim, arrogam-se mais cultos e “civilizados” que o resto da população.

Tal “cultura” não consegue ir além da estreiteza de si própria, isto é, de um pequeno grupo de indivíduos pernósticos de mentalidade meramente tecnicista, e explica a resistência em ampliar direitos às demais parcelas da sociedade, como, por exemplo, a inclusão do emprego doméstico na CLT, que tanto indigna a classe média e média alta (acostumadas às suas escravinhas particulares, já que não podem contar com o grosso da senzala). A própria candidatura de Aécio Neves é sintomática e não poderia ser mais simbólica: elemento extraído diretamente do baú da Casa Grande, a sua candidatura podia ser interpretada como um espectro da política do café com leite reencarnado, agora, sob a égide do agronegócio, dos transgênicos, do etanol e das grandes especulações financeiras nas bolsas de valores mundo afora. Além disso, há um aspecto machista, aliás, tipicamente patriarcal, nessa “cultura”, que passa quase despercebido ou é cuidadosa e deliberadamente ignorado pelos formadores de opinião. No fundo, os machões acostumados a mandar e ditar os rumos da política doméstica, que se confunde com a nacional, não se conformam, e nunca se conformarão, com o fato de serem governados por uma mulher. Pois o negro, o trabalhador e a mulher, dentro da ordem oligárquica, sempre ocuparam posições subalternas e de submissão na sociedade.

Para concluir: Na superfície, o liberalismo do PT se traveste de socialismo e o conservadorismo do PSDB, em neoliberalismo, que nada mais é que ideologia usada oportunamente contra adversários. Esse antagonismo reflete dois lados da mesma moeda, de uma classe burguesa que reconhece historicamente que o comando do Estado é vital para fazer valer seus interesses, ainda que divergentes. E é isso o que está em jogo na política brasileira atual, e não a propalada “crise de consciência” num país em que a corrupção forjou historicamente todas as instituições e mesmo o ethos do brasileiro. (Basta assistir os filmes de Hollywood dos anos 50, em que todo criminoso foge para o Brasil!). O PTista, convicto de seus ideais socialistas, foi traído pelo projeto que representa a modernização do capitalismo no Brasil. O PSDBista, convicto de seus ideais liberais e sonhando com uma sociedade à maneira da América anglo-saxônica, de livre mercado, competitiva e valorização do indivíduo, também foi traído pelo projeto arcaico de imobilidade social e desenvolvimento dependente. Finalmente, o que está em jogo é a lógica do patrimonialismo versus a economia de mercado, e não os escândalos de corrupção que, outrora, nunca foram investigados e sempre foram varridos para debaixo do tapete. (A propósito, o que deve incomodar é a investigação da corrupção e não a corrupção em si).

Portanto, a grande ironia de tudo isso é que estava reservado à classe trabalhadora aparar as arestas da revolução burguesa no Brasil, que se define, segundo Florestan, como a “consolidação do poder burguês e da dominação burguesa”; porém, as condições históricas sedimentadas pela dupla articulação, verdadeira sina, impendem o desenvolvimento desembaraçado do capitalismo brasileiro.

Moral da história: até mesmo a democracia burguesa e liberal é demais para a sociedade brasileira, que é, intrinsecamente, vertical e tem por vocação política a violência. A nossa elite, provinciana, grosseira e mal educada, que grita, xinga e esperneia pela sobrevivência, é o maior exemplo disso.


FERNANDES, Florestan, “A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica”, Rio de Janeiro, Zahar Editores: 1976.

Este artigo também foi publicado na revista Continentes, (UFRRJ), ano 5, no. 9, jul./dez., 2016:

http://r1.ufrrj.br/revistaconti/index.php/continentes/issue/view/9

Post relacionado:

O 18 de Brumário de Michel Temer, o Nanico



sábado, 7 de março de 2015

8 DE MARÇO: DIA INTERNACIONAL DA MULHER

8 DE MARÇO

Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida

por Sempreviva Organização Feminista

A referência histórica principal das origens do Dia Internacional da Mulher é a II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas em 1910, em Copenhaga, na Dinamarca, quando Clara Zetkin propôs uma resolução para a instauração oficial de um dia internacional das mulheres. Nessa resolução, não se faz nenhuma alusão ao dia 8 de Março.

Clara apenas mencionou que se deveria seguir o exemplo das socialistas americanas. É certo que a partir daí, as comemorações começaram a ter um caráter internacional, expandindo-se pela Europa, a partir da organização e iniciativa das mulheres socialistas.

Essa e outras fontes históricas intrigaram a pesquisadora Renée Coté, que publicou em 1984, no Canadá, a sua intrigante pesquisa em busca do elo ou dos elos perdidos da história do Dia Internacional da Mulher.

No percurso da sua pesquisa, Renée deparou-se com a história das feministas socialistas americanas que tentaram resgatar do turbilhão da história de lutas dos trabalhadores no final do século XIX e início do século XX, a intensa participação das mulheres trabalhadoras, mostrando as suas manifestações, as suas greves, a sua capacidade de organização autônoma de lutas, destacando-se a batalha pelo direito ao voto para as mulheres, ou seja, pelo sufrágio universal. A partir desta descoberta, levantou hipóteses sobre o porquê de tal registro histórico ter sido negligenciado ou se ter perdido no tempo.

O que fica claro a partir de sua pesquisa das fontes históricas é que a referência a um 8 de Março ou uma greve de trabalhadoras americanas, manifestações de mulheres ou um dia da mulher, não aparece registrada nas diversas fontes pesquisadas no período, principalmente nos jornais e na imprensa socialista.

Houve greves e repressões de trabalhadores e trabalhadoras no período que vai do final do século XIX até 1908 mas nenhum desses eventos até então dizem respeito à morte de mulheres em Nova York, evento que supostamente teria dado origem ao dia da mulher.

Estas buscas revelaram a Coté que não houve uma greve heroica, seja em 1857 ou em 1908, mas sim um feminismo heroico que lutou por se firmar entre as trabalhadoras americanas. A investigação sobre o 8 de Março retraçou a luta das mulheres socialistas americanas por uma existência autônoma.

As fontes encontradas revelaram o seguinte:

A 3 de maio de 1908, em Chicago, celebrou-se o primeiro "Woman's day” [Dia da Mulher], presidido por Lorine S. Brown e documentado pelo jornal mensal “The Socialist Woman”. Teve lugar no Teatro Garrick, com a participação de 1500 mulheres que "aplaudiram as reivindicações por igualdade econômica e política para as mulheres, no dia consagrado à causa das trabalhadoras".

Este dia foi dedicado à causa das operárias, denunciando a exploração e a opressão das mulheres, mas defendendo, com destaque, o voto feminino. Defendeu-se a igualdade dos sexos, a autonomia das mulheres, portanto, o voto das mulheres, dentro e fora do partido.

Já em 1909, o Dia da Mulher foi uma atividade oficial do partido socialista e organizado pelo comitê nacional de mulheres e comemorado a 28 de Fevereiro de 1909. A imprensa da época convocava o "woman suffrage meeting" [encontro pelo sufrágio feminino], ou seja, em defesa do voto das mulheres, em Nova York.

Coté apurou que as socialistas americanas sugeriram o último domingo de Fevereiro como o dia da comemoração mas no início acabou por ser celebrado em várias datas diferentes. Muitas mulheres foram aderindo ao Dia da Mulher, incluindo grevistas, e a participação foi crescendo.

Os jornais noticiaram o Dia Internacional da Mulher em Nova York, a 27 de Fevereiro de 1910 no Carnegie Hall, com 3 mil mulheres, onde se reuniram as principais associações a favor do voto par as mulheres. Este encontro foi convocado pelas socialistas mas contou também com a participação de mulheres não socialistas.

Consta que houve uma longa greve dos operários têxteis de Nova York (shirtwaist makers) entre Novembro de 1909 e Fevereiro de 1910, na qual 80% dos grevistas eram mulheres e que terminou 12 dias antes do Dia da Mulher. Essa foi a primeira greve de mulheres de grande amplitude denunciando as suas condições de vida e de trabalho e que demonstrou a coragem daquelas costureiras, recebendo um apoio massivo. Muitas dessas operárias participaram do Dia da Mulher e engrossaram a luta pelo direito ao voto das mulheres (conquistado em todos os EUA em 1920).

Clara Zetkin, uma socialista alemã, propôs que o dia da mulher ou das mulheres se tornasse "uma jornada especial, uma comemoração anual de mulheres, seguindo o exemplo das companheiras americanas". Sugeriu ainda num artigo do jornal alemão “Diegleichheit”, de 28/08/1910, que o tema principal deveria ser a conquista do direito ao voto das mulheres.

Em 1911, o Dia Internacional das Mulheres, foi comemorado pelas mulheres alemãs a 19 de Março e pelas mulheres suecas juntamente com o 1.º de Maio, etc. Sintetizando, foi celebrado em diferentes datas.

Em 1913, na Rússia, sob o regime czarista, foi realizada a Primeira Jornada Internacional das Mulheres Trabalhadoras pelo sufrágio feminino. As operárias russas participaram nesta jornada internacional das mulheres em Petrogrado e foram reprimidas. Em 1914, todas os organizadoras da Jornada ou Dia Internacional das Mulheres na Rússia foram presas, o que tornou impossível a comemoração.

Em 1914 teve lugar o Dia Internacional das Mulheres na Alemanha dedicado ao direito ao voto para as mulheres. Foi assim comemorado pela primeira vez no dia 8 de Março, ao que consta porque foi a data mais conveniente naquele ano.

As socialistas europeias coordenaram as comemorações em torno do direito ao voto vinculando-o à emancipação política das mulheres, mas a data era decidida em cada país.

Em tempos de guerra, o Dia Internacional das Mulheres passou para segundo plano na Europa.

Outra referência interessante que indica a origem da fixação do dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher, foi a ligação dessa data com a participação ativa das operárias russas em ações que desencadearam a revolução russa de 1917. Portanto, houve uma ação política das operárias russas no dia 8 de Março, segundo o calendário gregoriano - ou 23 de Fevereiro no calendário russo – que precipitou também o início da ações revolucionárias que tornaram vitoriosa a revolução russa.

Alexandra Kolontai, dirigente feminista da revolução socialista, escreveu sobre o fato e sobre o 8 de Março, mas curiosamente esse documento desapareceu da história do evento. Escreveu: "O dia das operárias, no 8 de Março de 1917, foi uma data memorável na história. A revolução de Fevereiro acabara de começar". O fato também é mencionado por Trotski, dirigente da revolução, na História da Revolução Russa.

Nessas narrativas esclarece-se que as mulheres desencadearam a greve geral, saindo corajosamente às ruas de Petrogrado no Dia Internacional das Mulheres contra a fome, a guerra e o czarismo.

Trotski escreveu: "23 de Fevereiro (8 de Março) foi o Dia Internacional das Mulheres e programaram-se encontros e ações. Mas não imaginávamos que este "dia das mulheres" viria a inaugurar a revolução. Planearam-se ações revolucionárias mas sem data prevista. Mas pela manhã, a despeito das ordens contrárias, as operárias têxteis deixaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas para apoiarem a greve... que se transformou numa greve de massas.... todas saíram às ruas".

Podemos dizer que o início da revolução foi consequência da organização popular que superou a oposição das direções dos partidos. A iniciativa partiu das mulheres mais exploradas e oprimidas: as trabalhadoras dos têxteis. O número de grevistas foi em torno dos 9 mil, a maioria mulheres. A partir destes relatos compreendemos que o dia das mulheres foi vencedor, foi massivo e sem vítimas.

Renée Coté encontrou, por fim, documentos da Conferência Internacional das Mulheres Comunistas de 1921 onde se pode ler "uma camarada búlgara propõe o 8 de Março como data oficial do Dia Internacional da Mulher, lembrando a iniciativa das mulheres russas".

A partir de 1922, o Dia Internacional da Mulher é celebrado oficialmente no dia 8 de Março.
Essa história perdeu-se no registro histórico oficial tanto do movimento socialista, como dos historiadores daquele período. Faz parte do passado histórico e político das mulheres e do movimento feminista de origem socialista do começo do século [XX].

Algumas feministas europeias na década de 70, por não encontrarem referência concreta às operárias têxteis mortas num incêndio em 1857, em Nova York, chegaram a considerá-lo um fato mítico. Mas essa hipótese foi descartada diante de tantos fato e eventos vinculando as origens do Dia Internacional da Mulher às mulheres americanas de esquerda.

Quanto aos elos perdidos dos fatos em torno do dia 8 de Março levantam-se várias hipóteses em busca de mais aprofundamento.

É certo que nos EUA, em Nova York, as operárias têxteis já vinham denunciando as condições de vida e trabalho e já faziam greves. Esse momento de organização das trabalhadoras faz parte de todo um processo histórico de transformações sociais que colocaram as mulheres em condições para lutar por direitos, igualdade e autonomia participando no contexto social e político que motivou a criação de um dia de comemoração que simbolizasse as suas lutas, conquistas e necessidade de organização. 

É preciso, pois, entrelaçar os fios da história deste período.

Por conseguinte, há um relato que precisa de ser verificado nas suas fontes documentais, sintetizado por Gládis Gassen (num texto para as trabalhadoras rurais da FETAG), que nos indica que em Março de 1911, dezoito dias após o Dia da Mulher, e não em 1857, "numa mal ventilada fábrica de têxteis que ocupava os 3 últimos andares de um edifício de 10, na Triangle Schirwaist Company, em New York, estalou um incêndio que envolveu 500 mulheres - jovens, judias e imigrantes italianas - que trabalhavam em condições precárias, com o assoalho coberto de materiais e resíduos inflamáveis, o lixo amontoado por toda a parte, sem saídas em caso de incêndio, nem mangueiras para água... Para impedir a interrupção do trabalho, a empresa trancava à chave a porta de acesso à saída.

Quando os bombeiros finalmente conseguiram chegar aos andares onde estavam as mulheres, 147 já tinham morrido, carbonizadas ou estateladas na calçada da rua, para onde se atiraram em desespero. Após esta tragédia criou-se em Nova Iorque a Comissão Investigadora de Fábricas que já tinha sido solicitada há 50 anos! Foi assim que se iniciou a história da legislação de proteção da vida e da saúde. A líder sindical Rosa Schiederman organizou a presença de 120 mil trabalhadoras no funeral daquelas operárias para expressarem o seu lamento e declararem solidariedade para com todas as mulheres trabalhadoras.

Assim, embora seja necessário continuar a procurar memórias perdidas, é certo que todo um ciclo de lutas, numa era de grandes transformações sociais até às primeiras décadas do século XX, tornaram o Dia Internacional da Mulher um símbolo da participação ativa das mulheres para transformarem a sua condição e a transformarem a sociedade.

Celebramos então, anualmente, tal como as nossas antecessoras o fizeram, as nossas iniciativas e conquistas, fazendo o balanço das nossas lutas e atualizado a nossa agenda de lutas pela igualdade entre homens e mulheres e por um mundo onde todos e todas possam viver com plenamente e com dignidade.

Referências Bibliográficas:

COTE, Renée, La Journée internationale dês femmes ou les vrais dates des mystérieuses origines du 8 de Mars jusqu'ici embrouillés, truquées, oubliées: la clef dês énigmes. La vérité historique, Montreal, Les éditions du remue ménage, 1984.

GASSEM, Gladis, “Ato de solidariedade a mulher trabalhadora” in Afrodite surgindo dos mares, 8 de Março de 2000, Organização das trabalhadoras rurais. FETAG/RS.