quinta-feira, 1 de abril de 2021

A Terceira Revolução: conclusão

 

Tradução: Jean Fecaloma

7. Conclusão

Kronstadt capitulou. Os insurgentes lutaram com determinação e coragem, mas as chances reais de vitória sempre foram muito difusas. Os próprios líderes do movimento reconheceram que o levante foi organizado às pressas e mal preparado. Os marinheiros não detinham de um aparato militar consistente para encampar uma invasão armada fora da ilha, estando entregues a si mesmos e desamparados de qualquer ajuda do exterior. Em contrapartida, os bolcheviques, ao vencerem a guerra civil, encontravam-se desimpedidos para concentrar todo o seu poderio militar contra o foco rebelde. O governo contava ainda a seu favor com as condições climáticas do golfo da Finlândia, que ainda estava congelado, o que proporcionava emplacar um ataque de infantaria em grande escala. Na verdade, confrontada aos movimentos antissoviéticos da guerra civil, Kronstadt era um problema de modestas proporções. Se os bolcheviques conseguiram derrotar Denikin, Kolchak, Yudenich e expulsar as legiões de Pilsudski, então a cidadela não seria uma ameaça importante.

O que realmente causava preocupação era a possibilidade do motim desencadear uma revolta generalizada pelo continente ou servir de abre-alas para uma nova intervenção contrarrevolucionária. Além disso, o país atravessava um estado de tensão social e estava à beira de uma rebelião de massas. Até então, os bolcheviques foram bem-sucedidos em neutralizar seus oponentes, mas Kronstadt, mesmo sendo considerada uma ocorrência de menor dimensão em comparação com as revoltas camponesas da Sibéria e do Tambov, era uma fortaleza equipada com militares bem treinados. Outro fato agravante, a que se atentava o governo, era a localização da fortaleza no Báltico, que, diferentemente das zonas remotas do interior, podia servir de trampolim para uma invasão estrangeira.

Diante do exposto, seria difícil imaginar uma vitória dos rebeldes de Kronstadt. Apesar de todo o ressentimento com a situação, o povo russo estava desesperançado e cansado da guerra. As queixas dirigidas ao governo e o ódio aos comunistas não eram maiores que o medo de uma restauração branca. Ademais, o movimento grevista de Petrogrado, que tanto acendeu a chama da esperança nos marinheiros, perdera a força do início. Uma providencial ajuda do exterior também esbarrava na mudança de disposição das potências ocidentais, que abandonavam sua política de intervenção e sinalizavam para um entendimento com os bolcheviques. Para o alívio dos comunistas e frustração dos brancos, a rebelião não conseguiu emperrar o acordo comercial anglo-soviético. O pacto foi assinado em Londres, no dia 16 de março, horas antes do assalto final à fortaleza. No mesmo dia, a propósito, foi celebrado em Moscou um tratado de amizade com a Turquia. A rebelião de Kronstadt também não foi capaz de travar as negociações de paz com os polacos, que não desejavam retomar a guerra com seu arquirrival vizinho. O tratado do Riga foi assinado em 18 de março enquanto as tropas comunistas eliminavam os últimos núcleos de resistência rebelde. A Finlândia também deu as costas aos insurgentes quando proibiu em seu território o livre trânsito que poderia viabilizar algum socorro vindo do exterior. Finalmente, os emigrados russos permaneceram divididos e incapazes de articular qualquer plano de ação em apoio ao movimento insurrecional de Kronstadt. Seriam necessários meses até que o general Wrangel conseguisse reunir todas as suas tropas, desmobilizadas e moralmente combalidas, e transportá-las pelo mar mediterrâneo até o Báltico, já que uma frente alternativa pelo sul se reverteria em um desastre completo.

Para os rebeldes, somente uma ofensiva imediata poderia render alguma chance de vitória. Se tivessem seguido as orientações dos “especialistas militares” e estabelecido uma cabeça de ponte em Oranienbaum, não seria difícil reunirem em torno de sua causa as unidades do Exército Vermelho e, talvez, a população civil. Uma rebelião contra o Estado, observou Alexander Berkman, deve tomar a iniciativa e entabular um ataque fulminante contra o governo, de maneira que este não encontre tempo para reunir todas as suas forças numa contraofensiva decisiva. Caso contrário, o isolamento ou a espera por uma conjuntura favorável acarretará a derrota inevitável do movimento rebelde. A este respeito, notou Berkman, Kronstadt repetiu o erro fatal da Comuna de Paris, ao não surpreender o governo de Thiers desprevenido com um ataque rápido a Versalhes; do mesmo modo, Kronstadt perdeu o momento propício de marchar sobre Petrogrado, antes que as autoridades dispusessem de tempo para organizar suas defesas (1). Em março de 1908, em um artigo comemorativo à Comuna, Lênin elaborou um argumento semelhante ao criticar a “excessiva magnanimidade do proletariado; em vez de aniquilar seus inimigos, procurou exercer sobre eles uma influência moral, subestimando a importância da atividade puramente militar na guerra civil e, em vez de coroar uma vitória em Paris, com uma decidida ofensiva sobre Versalhes, demorou tempo demais, o suficiente para o governo de Versalhes reunir suas forças tenebrosas e preparar a sangrenta semana de maio” (2). Eis um epitáfio oportuno para a Comuna de Kronstadt de 1921.

Portanto, é difícil escapar da conclusão de que a opção pela não invasão do continente condicionou a derrota dos rebeldes a uma questão de tempo. Mesmo se conseguissem resistir até o degelo da primavera e recebessem ajuda do estrangeiro, todas as probabilidades pesavam contra eles. De fato, a proteção natural fornecida pelo mar aberto ou o reabastecimento de alimentos, remédios e munições poderiam preserva-los por mais algumas poucas semanas e cobrado, tão somente, um alto custo com vidas bolcheviques. Cedo ou tarde, no entanto, estavam fadados a sucumbir ante a pressão do inimigo. Se a derrota não viesse pelo poder militar, viria pela mesma combinação de forças e concessões econômicas que selaram o destino do movimento grevista de Petrogrado e das insurreições camponesas em todo o país. Em todos os lugares, a Nova Política Econômica aplacava o descontentamento popular e Kronstadt não seria exceção.

Não se trata aqui de sugerir que de alguma maneira Kronstadt motivou a implementação da NEP - se tanto, apenas acelerou o processo. Em março de 1921, Lênin não precisava mais de justificativas para abandonar o programa do comunismo de guerra. Ele e seus companheiros vinham reavaliando as políticas econômicas desde o fim da guerra civil. As linhas fundamentais da NEP, inclusive, já estavam traçadas algumas semanas antes da rebelião dos marinheiros. Ainda em dezembro de 1920, quando os socialistas revolucionários (SR) e os delegados mencheviques demandaram ao VIII Congresso dos Sovietes o fim das requisições de alimento em troca de um novo imposto em espécie, Lênin ficou de estudar a proposta. Várias semanas se passaram sem que nenhuma medida concreta fosse aplicada. Mas a crescente maré de insatisfação popular persuadiu Lênin de que o que estava em jogo era a própria sobrevivência do regime bolchevique. Em uma reunião do Politiburo, realizada no dia 8 de fevereiro, durante a qual toda a política agrária foi cuidadosamente revisada, Lênin esboçou um plano para substituir as requisições forçadas por um imposto em espécie. Concedia o direito ao camponês de usufruir de seus excedentes desde que suas obrigações para com o Estado estivessem em dia. Durante as semanas seguintes, o projeto foi amplamente discutido pela imprensa soviética. A 24 de fevereiro, cinco dias antes do início da revolta de Kronstadt, foi apresentado ao Comitê Central um projeto detalhado, baseado nas anotações de Lênin, para ser incluído na agenda do X Congresso do Partido (3).

O significado da rebelião não passou despercebido ao congresso quando, a 8 de março, se reuniu em Moscou. A revolta expressava um intenso sentimento popular de rejeição ao regime político. Tal constatação incutiu um senso de urgência aos trabalhos e todas as dúvidas acerca da necessidade de uma reforma imediata foram dirimidas. O partido encarava a rebelião como um sinal de mau presságio. Houve até quem especulou quanto à possibilidade do levante não ter se sucedido caso a NEP fosse implementada cerca de um mês antes (4). Seja como for, formou-se consenso sobre a celeridade de se levar adiante as reformas. De outro modo, os bolcheviques corriam o sério risco de perderem o poder arrastados por um maremoto de ira popular. Daí o sentido da declaração de Lênin ao comparar Kronstadt a um raio que “iluminou a realidade melhor que qualquer coisa”. O líder bolchevique compreendera bem a natureza do motim, que não era um fato isolado, mas a reprodução de um padrão de insatisfação popular recorrente nas revoltas do campo, nas greves operárias e nos casos de insubordinação dentro das forças armadas. A crise econômica do comunismo de guerra, observou Lênin, transformou-se “na crise política chamada Kronstadt”, colocando o futuro do bolchevismo na corda bamba (3).

O X Congresso do Partido passou para história do bolchevismo como um dos mais dramáticos e por ter introduzido uma guinada fundamental na política soviética. Anos antes, Lênin pressupunha duas condições para a vitória do socialismo na Rússia: apoiar o proletário revolucionário no Ocidente e tecer uma aliança entre o operariado e o campesinato russos (6). Em 1921, nenhum desses pré-requisitos havia se cumprido. Como resultado, Lênin forçosamente abandonou suas convicções a respeito da transição para o socialismo, que seria impossível sem o advento da revolução em toda a Europa. Eis aqui, em essência, a semente do “socialismo em um só país”; doutrina desenvolvida por Stalin poucos anos depois, a qual reduzia todo o processo revolucionário para se acomodar aos interesses das potências capitalistas estrangeiras e aos anseios do camponês local. Antes de tudo, urgia a necessidade geral, para a qual dependia tudo o mais, de evitar a rebelião no campo que estava prestes a eclodir. Como explicou Lênin, ao X Congresso, “somente um pacto com o camponês poderá salvar o socialismo na Rússia, até que a revolução se espalhe para outros países do mundo” (7). Três anos antes, em março de 1918, Lênin já havia recuado de maneira semelhante no âmbito da política internacional quando rejeitou uma “guerra revolucionária” contra a Alemanha e assinou o tratado de Brest-Litovsk. Agora, para manter o “alívio momentâneo”, tão duramente negado aos bolcheviques em 1918, Lênin arquivou em definitivo o comunismo de guerra para inaugurar um programa mais moderado e conciliador. “Devemos satisfazer os desejos econômicos do camponês médio e introduzir o livre comércio - declarou -, pois de outro modo será impossível conservar o poder do proletariado na Rússia, tendo em vista a morosidade da revolução mundial” (8).

No dia 15 de março, o X Congresso do Partido adotou uma medida, denominada por um dos delegados, o estudioso marxista D. B. Riazanov, de “Brest-camponês” (9), que constituiria a pedra angular da Nova Política Econômica. Enfim, o governo determinava a substituição do confisco compulsório de alimentos por um imposto em espécie e reconhecia o direito do camponês comercializar seus excedentes no mercado. Foi o primeiro passo de uma série de providências que levaram o comunismo de guerra a uma economia mista. Entre elas, descartou-se a proposta de Valerian Osinsky, apresentada ao VIII Congresso dos Sovietes, referente ao plantio efetuado sob uma direção centralizada; em todos os lugares, os bloqueios de estradas foram removidos das rodovias e linhas férreas; o comércio entre a cidade e as aldeias renasceu; os soldados de Trotsky, que ocupavam postos de trabalho, receberam licença e desocuparam as fábricas; e os sindicatos obtiveram um grau de autonomia que incluía o direito de eleger seus próprios funcionários e submeter ao debate questões que afetavam diretamente os interesses dos trabalhadores. Decretos subsequentes restabeleceram a iniciativa privada no comércio a varejo e na produção de bens de consumo. Ao Estado reservou-se os “escalões dominantes” da economia: indústria pesada, comércio exterior, transporte e comunicação. Cada medida surtiu o efeito de um prego no caixão da oposição popular. Uma nova vida despontava nas cidades e aldeias russas. Durante vários meses, porém, a agitação camponesa permaneceu latente no Tambov, na Sibéria e na bacia do Volga. Mas não tardou ao governo enviar para essas localidades numerosas tropas da Tcheca e dos kursanty - o mesmo tipo de unidades utilizadas em Kronstadt. No outono de 1921, já não havia mais focos de resistência na Rússia Soviética.

A NEP não era para Lênin uma simples medida paliativa, até que a ordem e autoridade bolchevique fossem restabelecidas. “Enquanto não remodelarmos o campesinato - disse ao X Congresso -, enquanto não reestruturamos a produção agrícola em grande escala, nós devemos garantir ao camponês a liberdade de gerir seus próprios negócios sem nenhuma amarra. Teremos de encontrar formas de coexistência com o pequeno agricultor”. Lênin confessava que as coletivizações em massa geravam antipatia nos camponeses individuais. Teremos de lidar com eles durante anos, disse o líder bolchevique, “de modo que a recomposição da pequena propriedade rural, a remodelação de toda a psicologia e hábitos camponeses, é uma tarefa que poderá demandar muitas gerações” (10). Ao admitir isso, Lênin aceitava tacitamente o argumento de seus críticos mencheviques, que, em 1917, o advertiram do contrassenso de transformar radicalmente os atrasados setores rurais ao socialismo através de experiências sociais prematuras. Segundo insistiam, os verdadeiros marxistas sabiam que as condições objetivas da Rússia não estavam amadurecidas para o triunfo de uma revolução socialista, com sua incipiente classe proletária e numerosa população camponesa. Também Engels já havia escrito sobre o quanto prejudicial seria uma revolução extemporânea e a tomada do poder pelo partido socialista num estágio anterior ao desenvolvimento da indústria e da democracia. Todavia, os bolcheviques levaram em frente o que a teoria do materialismo histórico declarava impossível: realizar uma revolução antes de terem-se cumprido os pressupostos históricos necessários para o desenvolvimento de uma sociedade socialista. A Nova Política Econômica não era senão uma tentativa de pular etapas. Para Lênin, a NEP compreendia um longo período de progresso econômico, para o qual se supunha a reconciliação entre o campo e a cidade e a criação das bases materiais de uma sociedade socialista.

Em boa medida, a NEP trouxe um alívio das tensões na sociedade russa. Todavia, não foi capaz de satisfazer as demandas de Kronstadt e seus simpatizantes. Sem dúvida, foram abolidas as políticas de confisco de grãos e bloqueio de estrada; dispensados os militares que trabalhavam nas fábricas; concedido certo grau de independência aos sindicatos. No entanto, as granjas estatais permaneceram intocadas e o capitalismo foi parcialmente restaurado no setor industrial. Além disso, contrariando os princípios da democracia proletária, os antigos diretores e técnicos permaneceram no comando das grandes fábricas. Excluídos de qualquer participação na direção fabril, os operários continuaram vítimas da “escravidão assalariada”.

Presumivelmente, tampouco houve uma redemocratização na vida militar. O direito de eleger comitês de embarcação e comissários políticos seguiu sendo um problema sem solução. Depois de Kronstadt já não se discutia mais a descentralização da autoridade ou o relaxamento da disciplina militar no interior da frota marítima. Ao contrário, Lênin propôs a Trotsky extinguir a Frota do Báltico, já que não confiava nos marinheiros e fazia pouco caso do valor militar da esquadra. Mas Trotsky persuadiu Lênin da desnecessidade de uma medida tão drástica. Afinal, com a reorganização da armada soviética, os elementos dissidentes sofreram expurgos e, para garantir a fidelidade da frota no futuro, as vagas nas escolas de cadetes navais passaram a ser preenchidas somente por membros da Juventude Comunista. Ao mesmo tempo, a disciplina do Exército Vermelho tornou-se mais rigorosa e os planos para a criação de milícias populares recrutadas entre voluntários camponeses e operários não foram retomados (11).

O fundamental é que não só se ignoraram todas as demandas políticas rebeldes como, aliás, houve um recrudescimento do poder ditatorial. No limite, as concessões da NEP serviram apenas para fortalecer ainda mais o monopólio bolchevique de poder. O rascunho do discurso de Lênin para o X Congresso lista os seguintes tópicos: “A lição de Kronstadt: em política - adotar seleção criteriosa nas fileiras do partido (e estabelecer uma disciplina rigorosa); combater vigorosamente os mencheviques e os socialistas revolucionários (SR); na economia - satisfazer, na medida do possível, o camponês mediano” (12). Por conseguinte, não se levou em conta a autonomia popular e os sovietes livres não passaram de um sonho frustrado. Ademais, o Estado não restabeleceu a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião, conforme reivindicava a resolução do Petropavlovsk. Também não se concedeu liberdade aos socialistas e anarquistas acusados de crimes políticos. E, longe de formar um governo de coalizão, através dos sovietes reeleitos, os bolcheviques acabaram com todos os partidos de esquerda. Na noite de 17 de março, enquanto o Comitê Revolucionário de Kronstadt fugia para a Finlândia, por uma destas tristes coincidências, os membros do último governo menchevique da Rússia Soviética, ora deposto na Georgia, embarcavam no porto de Batum, no Mar Negro, rumo ao exílio na Europa ocidental (13). Durante a guerra civil, por estarem encurralados por todas as partes pelos brancos, os bolcheviques permitiram aos partidos de esquerda pró-sovéticos uma subsistência precária e cerceada por coações e vigilância continua. Mas depois de Kronstadt nada mais foi tolerado. Em maio de 1921, Lênin punha fim à pretensa oposição legal quando declarou que seus rivais socialistas deviam estar atrás das grades ou fazendo companhia aos guardas brancos no exílio (14). Acusados pelas autoridades de cumplicidade com a rebelião de Kronstadt, uma nova onda de repressão tragou mencheviques, socialistas revolucionários (SR) e anarquistas. Os mais afortunados puderam emigrar, mas nem todos conseguiram deixar o país. Milhares foram interceptados pelas redes de agentes da Tcheca e banidos para regiões longínquas do extremo norte, da Sibéria e da Ásia Central. No final do ano, o regime unipartidário estava plenamente consolidado e os últimos militantes da oposição política silenciados ou levados à clandestinidade. Assim, como todas as revoltas fracassadas contra regimes autoritários, Kronstadt desencadeou uma reação contrária ao que se objetivava no início: ao invés de consagrar uma nova era dedicada à autogestão popular, revigorou ainda mais a ditadura comunista por todo o país.

Nem mesmo as subdivisões do partido escaparam ao endurecimento do regime. Em nome da sobrevivência política, em meio à crise, Lênin revogou o princípio de “democracia partidária”, encerrando assim as divergências que existiam entre os bolcheviques. “Há chegado o momento - disse Lênin, ao X Congresso - de eliminar a oposição partidária, de acabar com ela; já temos oposição demais” (15). Ao insinuar que as críticas internas às políticas do partido estimularam os marinheiros a levantarem-se contra o governo, Lênin fez de Kronstadt um estratagema para golpear opositores e forçá-los à total obediência (16). Tais subterfúgios repercutiam favoravelmente no auditório do congresso. Temores acerca de uma revolta de massas que pudesse derrubar os bolcheviques do poder não era um sentimento exclusivo de Lênin. “Atualmente - discursou um dos oradores - existem três tendências no partido. Devemos decidir se continuaremos tolerando esta situação por mais tempo ou não. Em minha opinião, nós não podemos enfrentar o general Kozlovski divididos como estamos. O congresso deve acolher o meu entendimento” (17). Rapidamente formou-se um consenso quanto à necessidade de mudanças. Os delegados aprovaram uma resolução cujos termos, bastante incisivos, condenavam o programa da Oposição Operária como um “desvio sindicalista e anarquista” da tradição marxista. Uma segunda resolução, “sobre a unidade partidária”, postulava a extinção de todas as correntes partidárias, com base no argumento que fazia de Kronstadt um exemplo de como as disputas internas podiam ser exploradas pela contrarrevolução. A última cláusula, mantida em segredo por quase três anos, conferia poderes extraordinários ao Comitê Central, inclusive, o de expulsar eventuais dissidentes (18). Ato contínuo, Lênin ordenou uma purga “de cima a baixo” no partido, a fim de eliminar elementos não confiáveis. No final do verão, aproximadamente um quarto do total de militantes acabaram expulsos.

Para os libertários perspicazes, como Alexander Berkman, Kronstadt aparecia como uma experiência cuja gravidade induzia a um exame crítico da teoria e práxis bolchevique. Naquela época, porém, o levante não impressionou a todos. A princípio, não foi entendido como um fato decisivo, apesar de seu desenrolar dramático e trágico. Portanto, não desempenhou fator importante na condução das políticas do governo de Lênin. As mudanças para um relaxamento na política externa e nacional já estavam em andamento desde o final da guerra civil e, por isso, a importância de Kronstadt resumia-se a um símbolo da crise social - a transição do comunismo de guerra para a NEP -; a mais grave crise da história soviética, segundo afirmou Lênin em seu discurso ao IV Congresso do Komintern (19). Mas, com a passagem do tempo e o advento da era stalinista, a revolta adquiriu novo significado. “Na verdade - escreveu Emma Goldman, em 1938, auge do Grande Expurgo -, as vozes sufocadas em Kronstadt gritam cada vez mais alto ao longo desses últimos 17 anos”. “Que pena - acrescentava -, às vezes, o silêncio dos mortos é mais eloquente que o palavrório dos vivos” (20). Partindo-se da perspectiva dos julgamentos de Moscou e do reino do terror stalinista, muitos viram na rebelião uma encruzilhada fatal na história da Revolução Russa. Marcava a derrota do socialismo descentralizado e libertário e o início apoteótico da burocracia e do totalitarismo.

Não se quer dizer aqui, todavia, que o totalitarismo soviético teve início com a repressão de Kronstadt ou que já naquela época seu aparecimento seria inevitável. “Muito se tem dito - comentou Victor Serge - que ‘desde o começo a semente do stalinismo já estava latente no cerne do bolchevismo’. Pois bem, nada tenho a objetar quanto a isso; apenas recordar que muitas outras sementes - milhares delas - vicejam no solo bolchevique. Quem viveu o entusiasmo dos primeiros anos da revolução vitoriosa sabe do que estou falando e jamais se esquecerá de todas as suas potencialidades inerentes. É muito cômodo julgar um homem pela doença que a autópsia revela - e que pode tê-lo acometido desde o nascimento -, mas seria um procedimento sensato? (21). Noutras palavras, no início da década de 1920, a sociedade soviética deparou-se diante de inúmeros caminhos que se abriam para as mais variadas direções. Todavia, como enfatizou Serge, uma profunda veia autoritária sempre esteve presente na teoria e práxis bolchevique. O elitismo congênito de Lênin, focado na insistente defesa de uma pequena vanguarda revolucionária e estrita disciplina partidária, bem como a repressão das liberdades civis e a validação da política do terror, imprimiram uma profunda marca no futuro desenvolvimento do Partido Comunista e do Estado soviético. Durante a guerra civil, Lênin justificou tais práticas como expedientes temporários requeridos pela situação de emergência. Acontece que, enquanto a situação de emergência se estendia a perder de vista, os alicerces totalitários do futuro regime era solidamente edificado. Com a derrota de Kronstadt e a supressão da oposição de esquerda, a última reivindicação por uma democracia de trabalhadores era engavetada nos anais da história. De fato, se o totalitarismo não era de todo inevitável, depois da repressão aos marinheiros, ao menos surgiu como uma eventualidade bastante provável.

Após a morte de Lênin, em 1924, os bolcheviques mergulharam numa luta atroz pelo poder. A disputa atingiu seu clímax três anos depois, quando, para expulsar Trotsky e mandá-lo para o exílio, o Comitê Central recorreu à cláusula secreta da resolução aprovada pelo X Congresso, que tratava da unidade partidária. Ironicamente, quando Trotsky se opôs à tirania e ao burocratismo de Stalin, o fantasma de Kronstadt foi invocado pelos socialistas libertários que recordaram o papel do chefe do Exército Vermelho na repressão da rebelião. Em resposta, Trotsky alegou que não esteve diretamente envolvido na operação. “O fato concreto - escreveu em 1938 - é que eu não tive a menor participação na pacificação do levante de Kronstadt ou na repressão que se seguiu depois” (22). Trotsky insistiu que na ocasião não saiu de Moscou, enquanto Zinoviev acertava as coisas em Petrogrado e que a repressão, na verdade, foi obra da Tcheca, conduzida por Dzerzhinsky, que não permitiu interferência de nenhum outro setor.

Em todo o caso, insistiu Trotsky, a rebelião precisava ser sufocada. Os idealistas sempre têm denunciado os “excessos” da revolução, que, na verdade, “emergem da natureza mesma das revoluções, em si mesmas, ‘excessos’ da história”. Kronstadt constituía “uma reação armada da pequena burguesia contra os rigores da revolução social e a severidade na ditadura do proletariado”. Se os bolcheviques não agissem com rapidez, a revolta podia tê-los apeado do poder e aberto as portas da contrarrevolução. Por acaso os críticos do governo negavam-lhe o direito de autodefesa ou de disciplinar efetivos militares insubordinados? Qual o governo toleraria um motim em suas forças armadas? Tínhamos de abrir mão de nosso poder sem resistir? O que os bolcheviques fizeram em Kronstadt, concluía Trotsky, foi uma “necessidade trágica” (23).

Mas os críticos de Trotsky não estavam totalmente convencidos. Em que pese todas as suas afirmações contrárias, o Comissário de Guerra e presidente do Conselho Revolucionário de Guerra assumiu toda a responsabilidade pela repressão de Kronstadt.  Trotsky esteve realmente em Petrogrado, de onde emitiu o ultimato de 5 de março. Além do mais, visitou Oranienbaum e Krasnaya Gorka e não foi pequena a sua participação na supervisão dos preparativos militares, senão, tão crucial quanto, foi a atuação de Zinoviev e Tukhachevsky. Aliás, como assinalou Dwight MacDonald, Trotsky nunca contestou as acusações de que os bolcheviques trataram a revolta com desnecessária intransigência e brutalidade. Assim sendo, cabe-se perguntar, em que medida houve um empenho efetivo da parte do governo para se chegar a uma resolução pacífica? É bem verdade que os brancos poderiam aproveitar as divisões internas do partido, mas não seria ainda mais perigoso a cristalização de uma ditadura impermeável à interferência das massas populares? Teria sido possível à facção stalinista ter usurpado tão facilmente o controle do partido se houvesse abertura para uma maior participação do povo nos assuntos do partido ou espaço para opositores das diversas tendências de esquerda? (24). De igual modo, Anton Ciliga desafiou os bolcheviques a provar que as forças reacionárias teriam se desprendido se Kronstadt não fosse subjugada. Seria uma hipótese possível, admitia Ciliga, mas o fato é que, independente de qualquer coisa, a revolução sucumbiu no ano de 1921 (25).

No final, os mesmos que derrotaram Kronstadt caíram vítimas do sistema que haviam ajudado a criar. Trotsky e Zinoviev foram condenados como “inimigos do povo”, por colaborarem deliberadamente com a contrarrevolução. “O Judas Trotsky", declarava um panfleto soviético de 1939, fez uma cortina de fumaça com a questão dos sindicatos enquanto apoiava Kronstadt e seus capangas, incluindo, os criminosos da guarda branca. Outro texto stalinista atribuía a responsabilidade pela revolta ao “mancebo de Trotsky, o Comandante do Sétimo Exército, Tukhachevsky,” [No original, protégé; segundo o dicionário virtual Collins, o termo de origem francesa possui uma conotação feminina e é empregado para denominar uma situação em que uma pessoa mais jovem é ajudada por alguém mais experiente. Optei por traduzir por “mancebo” - N.T.] e ao “velho trotskista Raskolnikov”, o chefe da frota do Báltico. Para aniquilar aos traidores, continuava o texto, o partido enviou Kliment Voroshilov, “verdadeiro leninista” e camarada de armas de Stalin (na realidade, desempenhou um papel menor como comissário no front de Kronstadt) (26).

Enfim, a revolução devorou, um por um, todos os seus protagonistas. Zinoviev, Tukhachevsky e Dybenko foram fuzilados quando do Grande Expurgo; Trotsky, assassinado no México por um agente da polícia Secreta Soviética; Raskolnikov e Lasevich cometeram suicídio. Muitos delegados do partido que estiveram em Kronstadt, incluindo Piatakov, Zatonsky e Bubnov, desapareceram nas prisões stalinistas. Kalinin foi um dos únicos que faleceu de morte natural, em 1946. Já os mártires de Kronstadt sobreviveram, eternizados na memória do povo, como os filhos inocentes da revolução (27).

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