Kronstadt, mais uma vez [1]
(julho
de 1938)
por
Victor Serge
Tradução de Marcelo Coelho – Revista Rosa
Recebi
a revista com grande prazer. Trata-se, com certeza, da melhor publicação
marxista revolucionária de nossos dias. Todas as minhas simpatias, creiam-me,
estão com vocês, e, se me for possível prestar-lhes algum serviço, irei fazê-lo
com entusiasmo.
Algum
dia irei responder aos artigos de Wright e de L.D. Trotsky sobre Kronstadt.
Esse grande tema merece ser retomado em profundidade, e os dois estudos que a
revista publicou até agora estão longe, muito longe, de exauri-lo. Antes de
tudo, surpreende-me ver nossos camaradas Wright e L.D. Trotsky valer-se de um
raciocínio que, me parece, deve nos inspirar cuidado e rejeição. Eles observam
que o drama de Kronstadt em 1921 atualmente inspira comentários, ao mesmo
tempo, dos social-revolucionários, dos mencheviques, dos anarquistas e de
outros grupos; deste fato, natural numa época de confusão ideológica, de
revisão de valores, de batalhas entre seitas, eles constroem um tipo de amálgama.
Desconfiemos dos amálgamas e de raciocínios mecânicos. Houve grande abuso disso
na Revolução Russa e sabemos aonde isso leva. Liberais burgueses, mencheviques,
anarquistas e marxistas revolucionários avaliam o drama de Kronstadt a partir
de pontos de vista diferentes, e com objetivos diferentes, o que se deve levar
em conta, em vez de fundir todas as vozes críticas sob um único rótulo,
imputando a todas a mesma hostilidade contra o bolchevismo.
O
problema, na verdade, é muito mais vasto do que os acontecimentos de Kronstadt,
que foram apenas um caso isolado. Wright e L.D. Trotsky defendem uma tese
extremamente simples: o levante de Kronstadt era objetivamente
contrarrevolucionário e a política de Lênin e de Trotsky no Comitê Central foi
correta antes, durante e depois de tudo. Numa escala histórica e, mais ainda,
grandiosa, essa política era correta, o que fez com que fosse trágica e
perigosamente falsa e errônea em várias circunstâncias específicas. Eis o que
seria útil e corajoso reconhecer hoje em dia, em vez de afirmar a
infalibilidade de uma linha geral de 1917 a 1923. De modo geral, subsiste o
fato de que as insurreições de Kronstadt e de outros lugares representavam para
o partido a absoluta impossibilidade de perseverar nos rumos do comunismo de
guerra. O país estava morrendo de uma “estatificação” levada às últimas
consequências. Quem estava certo, então? O Comitê Central, que se aferrava a um
caminho sem saída ou as massas, levadas pela fome a atos extremos? Parece-me
inegável que Lênin, naquele momento, cometeu o maior equívoco de sua vida. Será
necessário lembrarmos que, poucas semanas antes da introdução da NEP, Bukharin
produziu um trabalho de economia mostrando que o sistema vigente era na verdade
a primeira fase do socialismo? Por ter defendido, em suas cartas a Lênin,
medidas de conciliação com os camponeses, o historiador Rozhkov tinha sido
recentemente deportado para Pskov. Uma vez iniciada a rebelião de Kronstadt,
era necessário sufocá-la, por certo. Mas o que havia sido feito para prevenir a
insurreição? Por que foi rejeitada a mediação dos anarquistas de Petrogrado?
Pode alguém, finalmente, justificar o insensato e, repito, abominável massacre
dos vencidos de Kronstadt, que ainda estavam sendo fuzilados em execuções
coletivas três meses depois do fim do levante?
Eram
filhos do povo russo, atrasados talvez, mas que pertenciam às massas da própria
revolução.
L.D.
Trotsky enfatiza que os marinheiros e soldados da Kronstadt de 1921 não eram
mais os mesmos, no que diz respeito à consciência revolucionária, do que os de
1918. É verdade. Mas o partido de 1921 — era o mesmo de 1918? Já não estava
sofrendo de um apodrecimento burocrático que frequentemente o afastava das
massas e tornava-o desumano frente a elas? Valeria a pena reler, neste aspecto,
as críticas ao regime burocrático formuladas há muito pela Oposição Operária e
lembrar também as práticas malignas que surgiram durante as discussões sobre os
sindicatos em 1920. De minha parte, sentia-me ultrajado ao ver as manobras da
maioria em Petrogrado para abafar as vozes dos trotskistas e da Oposição
Operária (que defendiam teses simetricamente opostas).
A
questão que hoje domina toda a discussão é, em essência, a seguinte: quando e
como o bolchevismo começou a degenerar?
Quando
e como começou a empregar, sobre as massas trabalhadoras, cujas energias e
consciência o bolchevismo expressava, aqueles métodos não socialistas que devem
ser condenados, uma vez que terminaram assegurando a vitória da burocracia
sobre o proletariado?
Posta
essa questão, pode-se ver que os primeiros sintomas desse mal vêm de antes. Em
1920, os social-democratas mencheviques foram falsamente acusados, num
comunicado da Tcheka, de manter entendimentos com o inimigo, de fazer sabotagem
etc. Esse comunicado, monstruosamente falso, serviu para colocá-los fora da
lei. Naquele mesmo ano, anarquistas foram presos em toda parte da Rússia,
depois da promessa formal de legalizar o movimento; mais tarde, o tratado de
paz assinado com Makhno foi deliberadamente rasgado pelo Comitê Central, que
não mais precisava do Exército Negro. A justeza revolucionária não justifica, a
meus olhos, essas práticas nefastas. E os fatos que cito estão longe,
infelizmente, de serem os únicos.
Voltemos
ainda mais no tempo. Não terá chegado o momento de dizer que foi fatídico o dia
do glorioso ano de 1918 em que o Comitê Central do partido decidiu permitir às
comissões extraordinárias a aplicação da pena de morte com base em processos
secretos, sem ouvir os acusados, que não podiam se defender? Naquele dia o
Comitê Central podia escolher entre restaurar ou não um procedimento
inquisitorial que já havia sido esquecido pela civilização europeia. Seja como
for, cometeu um equívoco. Não convém a um partido socialista vitorioso cometer
um equívoco desses. A revolução poderia ter-se defendido melhor sem isso.
Estaríamos sem dúvida errados se escondêssemos de
nós mesmos o fato de que todo ganho histórico da revolução russa está sendo
colocado em questão. De toda a vasta experiência do bolchevismo, os
marxistas revolucionários só poderão salvar o essencial, o duradouro,
enfrentando todos os seus problemas desde o início, com genuína liberdade de
espírito, sem vaidades de partido, sem hostilidade irredutível (ainda mais no
campo da investigação histórica) face às outras tendências do movimento dos
trabalhadores. Ao contrário, sem reconhecer antigos erros, cuja gravidade
a história não cessa de trazer à cena, o risco que se corre é comprometer todos
os ganhos do bolchevismo. O episódio de Kronstadt coloca, simultaneamente,
as questões da relação entre o partido do proletariado e as massas, a questão
do regime interno do partido (a oposição operária foi esmagada), a questão da
ética socialista (enganou-se toda Petrogrado falando de um movimento branco em
Kronstadt), do tratamento humano na luta de classes e, sobretudo, na luta
interna entre as nossas classes. Por último, coloca-se em teste a nossa
capacidade de autocrítica.
Sem poder no momento responder com maior
profundidade aos camaradas Wright e L.D. Trotsky, espero que tenham a
bondade de submeter esta carta aos leitores de New International. Contribuirá
talvez para aprimorar uma discussão que deveríamos saber como conduzir a bom
termo num saudável espírito de camaradagem revolucionária.
Paris, 28 de abril de 1938.
Nota
[1] Publicado originalmente em New International, vol. 4, nº 7, julho de 1938.
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Publicado no 3º número do volume 4 da Revista Rosaem 20/12/2021.
Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.com, issn 2764-1333.