quarta-feira, 2 de março de 2022

Kropotkin e o jacobinismo com consciência de classe

Kronstadt - rebelião

“O jacobino ligado indissoluvelmente à organização do proletariado que tem consciência dos seus interesses de classe, é justamente o socialdemocrata revolucionário” (Lênin)

Dando continuidade ao tema da Terceira Revolução de Kronstadt, publicaremos alguns extratos da obra A Conquista do Pão, de Kropotkin, publicada pela primeira vez em 1888, e que parece prever os acontecimentos que se dariam quase 30 anos depois durante o governo bolchevique (corrente da Partido Operário Social-Democrata Russo – POSDR):

O caráter predominante e distintivo do sistema capitalista atual é o salariato. (...)

Pois bem, o maior serviço que a próxima Revolução poderá prestar à humanidade, será criar uma situação na qual todo sistema de salariato se torne impossível e inaplicável, fazendo que se imponha, como única situação aceitável, o Comunismo, isto é, a negação do salariato.

Porque, admitindo que a modificação corretiva seja possível, se for gradualmente feita durante um período de prosperidade e dê tranquilidade (o que duvidemos muito, mesmo com estas facilidades) - tornasse a impossível no período revolucionário, porque a necessidade de alimentar milhões de seres surgirá logo ao primeiro conflito armado. Pode fazer uma revolução política sem perturbar a indústria; mas uma revolução que permita ao povo lançar mão da propriedade será inevitavelmente uma suspensão súbita do comércio e da produção. Os milhões do Estado não chegariam para pagar a milhões de desocupados.

Não nos cansaremos de insistir sobre este ponto; organização da indústria sobre novas bases (em breve explicaremos a imensidade desse problema) em alguns dias, e o proletário não poderá sacrificar anos de miséria ao serviço dos teóricos do salariato. Para atravessar o período de dificuldades, recomendará o que sempre tem reclamado em conjunturas idênticas; os gêneros em comum, isto é, o rastreamento ou a ação proporcional.

Em vão pregará paciência; o povo já não poderá conter-se mais, e se não se fizerem todos os gêneros em comum, os estabelecimentos serão saqueados.

Mas se o ímpeto do povo não for suficientemente forte, fuzilam-no. Para que o coletivismo possa estabelecer-se, é indispensável antes de tudo ordem, disciplina e obediência. E como os capitalistas reconhecerão desde logo que mandar fuzilar o povo por aqueles que se chamam revolucionários é o melhor meio de o desgostar da revolução, certamente que hão de apoiar os defensores da "ordem" e os próprios coletivistas, até vendo no caso um meio de os poderes mais tarde esmagar por sua vez

Se a "ordem for estabelecida" deste modo, as consequências são fáceis de prever. Não se limitarão a fuzilar os "gatunos"; será necessário procurar os "autores da desordem", restabelecer os tribunais e a guilhotina, levando ao cadafalso os revolucionários mais ardentes. Será uma repetição de 1793.

Não esquecemos ainda como a reação triunfou no século passado. Começaram a guilhotinar em primeiro lugar os hebretistas, os intransigentes - aqueles a quem Mignet, com a memória fresca das lutas, chamava ainda os " anarquistas". Não tardaram a segui-los os dantonianos; e depois dos robespierristas terem guilhotinado estes revolucionários, chegou a vez de subirem ao patíbulo. Desgostoso com isto e vendo a revolução perdida, o povo deixou manobrar os reacionários.

Se a "ordem for estabelecida", diremos nós, os coletivistas guilhotinaram os anarquistas; os possibilistas guilhotinaram os coletivistas, e aqueles, por seu turno, serão guilhotinados pelos reacionários. E terá que recomeçar-se novamente a revolução.

Mas, tudo leva a crer que o impulso do povo será suficientemente forte e que quando a revolução se fizer terá já ganho bastante terreno a ideia do Comunismo anarquista. Não é uma ideia inventada, é o próprio povo que no-la insufla, e o número dos comunistas aumentará à medida que se tornar mais evidente a impossibilidade de qualquer outra solução.

Se o impulso, pois, for bastante forte, as coisas tomarão outro rumo. Em vez de saquear algumas padarias garantido apenas o pão de um dia, o povo das cidades insurrecionadas apoder-se-á dos celeiros de trigo, dos armazéns de comestíveis, - em suma, de todos os gêneros disponíveis.

Cidadão e cidadãs, com a maior boa vontade, tratarão logo de inventariar o que for encontrado em cada armazém e em cada celeiro. Em 24 horas a comuna revoltada saberá o que Paris ainda hoje não sabe apesar das suas comissões de estatística, e o que nunca soube durante o cerco - que provisões encerram. Em 48 horas ter-se-ão espalhado milhares de exemplares de mapas exatos indicando todos os gêneros existentes, lugares onde se acham depositados e meios de distribuição.

Em cada quarteirão de prédios, em cada rua e bairro, organizar-se-ão grupos de voluntários - os Voluntários das Subsistências - que procederam com acerto no desempenho das suas atribuições. Não venho as baionetas jacobinas interpor-se; não venham os teóricos cientistas de meia-tigela embrulhar as coisas; desde que não tenham mais o direito de mandar, e com este admirável espírito de organização espontânea que o povo, - sobretudo a nação francesa em todas as classes sociais, - possui num grau tão elevado e que tão raramente lhe permitem exercer, surgirá então, mesmo numa cidade tão vasta como é Paris e ainda em plena efervescência revolucionária, um imenso serviço livremente constituído para fornecer a cada um as subsistência indispensáveis.

Que o povo tenha liberta as mãos, e em oito dias o serviço dos víveres executar-se-á com admirável regularidade. Só duvidará disto quem, tendo levado toda a sua vida com o nariz na papelada, não observou nunca o povo na febre do trabalho. Falai do espírito organizador desse grande Anônimo que é o Povo, àqueles que o observam em Paris nos dias das barricadas, ou em Londres por ocasião da última greve que tinha de dar de comer a meio milhão de esfaimados, e eles vos dirão quanto povo é superior aos burocratas que se empoleiram nas secretarias!

Além disso, embora se tivesse de suportar durante 15 dias ou um mês certa desordem parcial e relativa, pouco importava isso. Para as massas esse estado seria sempre melhor que o existente; e depois, em Revolução, janta-se rindo, ou melhor, discutindo, qualquer bocado de pão duro com salsicha, de cara alegre e coração ao alto! Em todo caso, o quê espontaneamente surgisse sob a pressão das necessidades imediatas, seria infinitamente preferível a tudo o que se pudesse inventar entre quatro paredes, no meio de alfarrábios ou nas secretarias governamentais.

*****

Voltemos, porém, à nossa cidade revoltada, e vejamos em que condições ela poderá manter-se. (...)

Para os autoritários a questão não oferece dificuldades. Começariam por introduzir um governo fortemente centralizado com todos os órgãos de repressão, polícia, exército, guilhotina, etc.

Este governo mandaria que se fizesse a estatística de tudo o que se colhe em França; dividiria o país num certo número de distritos de alimentação e ordenaria que tal gênero numa quantidade fosse transportado de um determinado lugar em dia para uma estação qualquer e recebida por um funcionário, a fim de ser armazenada num depósito tal, e assim sucessivamente.

Pois bem, afirmamos, plenamente convencidos, que uma solução semelhante não havia de satisfazer como não poderia nunca ser posta em prática.

Não passa portanto de uma utopia.

Pode imaginar-se, com a pena na mão, um tal estado de coisas; mas na prática a questão torna-se materialmente impossível; era não contar com o espírito de independência da humanidade.

Seria uma insurreição geral; três ou quatro guerras em lugar de uma só; a guerra das aldeias contra as cidades; a França inteira erguida contra a cidade que ousasse implantar este regime.

Basta de utopias jacobinas! Vejamos se será possível uma organização mais satisfatória.

Em 1793 o campo esfomeou as grandes cidades e matou a Revolução. Está provado, porém, que a produção cerealífera da França não diminui em 1792-1793, sendo até de supor que tivesse aumentado. Mas, depois de se terem apoderado uma boa parte das terras senhoriais levando colheitas delas, os burgueses do campo não quiseram vender o trigo contra promessa de pagamento. Notas! guardando-o à espera da alta dos preços ou da moeda de ouro. Nem as mais rigorosas medidas dos convencionais para forçar os açambarcadores a venderem o trigo, nem tampouco as execuções, nada disto remediou o mal impedindo a greve.

E sabe-se contudo que os comissários da Convenção não tinham escrúpulos em guilhotinar os açambarcadores, nem o povo em pendurados nos candeeiros; o trigo, porém, continuava nos celeiros e o povo nas cidades sofria de fome.

Mas, o que é que se oferecia aos cultivadores dos Campos em troca dos seus rudes trabalhos?

- Notas! Farrapo de papel, cujo valor baixava de dia para dia; notas marcando 500 libras em caracteres impressos, mas sem valor real. Por uma nota de mil libras não podia comprar um par de botas, e o camponês - compreende-se - não lhe convinha de modo algum trocar um ano de trabalho por um bocado de papel com que não poderia sequer comprar uma blusa.

As coisas passar-se-ão sempre assim. Enquanto se oferecer ao cultivador do solo um pedaço de papel sem valor, - embora se chame nota ou "cupão de trabalho", - o resultado será o mesmo. Os produtos da terra ficarão nos campos e a cidade não os possuirá, embora tenha de recorrer à guilhotina.

O que é necessário oferecer ao camponês não é papel, mas a mercadoria que as suas necessidades lhe pedem.

É a máquina de que é forçado agora a privar-se; é o candeeiro e o petróleo que lhe substitua o pavio; é a pá, é a enxada, é a charrua. É finalmente, tudo aquilo de que o camponês hoje se priva - não porque ele não sinta necessidade, - mas porque na sua existência de privações e de labor extenuante, os milhares de objetos úteis ficaram lhes inacessíveis por causa do preço.

Aplique-se a cidade em produzir todas estas coisas que faltam aos campos, em vez de perder o tempo que o trabalho em futilidades para adorno dos burgueses.

Execute as máquinas de costura de Paris vestimenta de trabalho e de resguardo para os camponeses, em vez de luxuosos enxovais de noivado; fabrique a oficina máquinas agrícolas, pás e enxadas, em vez de esperar que os ingleses as remetam em troca de vinho!

Que cada cidade envie para as aldeias, não comissários cingidos de bandas vermelhas ou multicolores notificando ao camponês o decreto de levar os gêneros para tal sítio, mais que o faça visitar por amigos e irmãos que digam aos camponeses: "Tragam-nos as vossas colheitas e levem dos nossos armazéns todas as coisas manufaturadas que vos agradarem". Verão então os gêneros afluírem de todos os lados.

O camponês guardará o que lhe for preciso para viver, enviando o que produzir aos trabalhadores da cidade, nos quais, pela primeira vez no decorrer da história - verá irmãos e não exploradores.

Dir-nos-ão talvez que isto reclama uma transformação completa da indústria. Certamente, para determinados ramos. Há, porém, milhares de indústrias que se poderão modificar rapidamente o vestuário, o relógio, a mobília, os utensílios e as máquinas simples que neste momento a cidade lhes faz pagar tão caro. Tecelões, alfaiates, fabricantes de calçado, quinquilheiros, marceneiros e tantos outros não encontrarão dificuldade alguma em abandonar a produção do luxo pelo trabalho de utilidade. É preciso, pois, que nos compenetremos bem da necessidade desta transformação, que a consideremos como um ato de justiça e de progresso e não nos deixemos iludir.

Toda a questão está nisto, segundo o nosso modo de pensar. Oferecer ao agricultor em troca dos seus produtos, não pedaços de papel, qualquer que seja a inscrição, mas os próprios objetos de consumo necessários para o cultivador. Se isto se fizer, as mercadorias para o cultivador. Se isto se fizer, as mercadorias hão de afluir às cidades. Se assim não se proceder a fome invadirá os grandes centros e com ela todas as suas consequências, a reação e a opressão.

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Nesta passagem, ao que tudo indica, o Comunismo de Guerra não rompeu com a política agrária do regime czarista. Vejamos:

Na Rússia, por exemplo, o camponês chega a trabalhar 16 horas por dia e jejua durante uns poucos de meses para poder exportar o trigo com o produto do qual paga ao patrão e ao Estado. Atualmente, assim que a colheita termina, o fisco apresenta-se nas aldeias russas e vende o único cavalo do agricultor, para os impostos atrasados e rendas dos senhorios, quando o camponês não age espontaneamente vendendo os produtos da terra aos exportadores; de modo que guarda apenas o trigo suficiente para nove meses e vende o resto, a fim de não deixar ir a vaca por uns míseros quinze franco. Para poder viver até à colheita seguinte, o lavrador, durante três meses se a colheita foi boa ou seis se o ano foi mau, mistura casca de álamo branco e sementes várias à farinha que lhe resta, ao passo que em Londres vão saboreando em biscoitos o trigo que lhe extorquiram.

(KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. (Tradução: Manuel Ribeiro) - Guimarães Editores: Lisboa, 1975).

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Diante dos últimos acontecimentos, é nos impossível mantermos indiferentes e por isso publicamos a seguinte nota de repúdio:

Após um ano do centenário de Kronstadt, a Rússia se vê novamente envolvida num entrevero militar, desta vez em resposta ao avanço imperialista do Ocidente, porém, escalado atualmente num contexto de outra ordem. O fato em questão é mais um caso, dentre muitos, que explicita a verdadeira natureza do regime “democrático liberal”, que é caracterizado verdadeiramente por uma essência profundamente tirânica. Aliás, o próprio conceito de “democracia” é uma fraude completa, já que se baseia num processo eleitoral viciado em que o povo é convidado a escolher uma fração de uma mesma oligarquia que desde sempre detém do controle político e econômico. Através desse processo ilusório e fraudulento, o povo escravizado é definitivamente excluído de toda e qualquer participação política, muito embora apareça formalmente como um protagonista in abstracto. Contradição insolúvel! Portanto, o conceito crítico mais correto para chegar a um conteúdo real e designar precisamente este sistema seria o de pseudodemocracia ou alienação política por falsa representação.

Historicamente, os limites da pseudodemocracia encerram-se em si mesmos, negando-se, em razão de sua condição contraditória, e dando ensejo à revelação de sua real e brutal natureza desmistificada: o nazismo. O que significa dizer não a caricatura do nazismo mas a sua essência propriamente dita. A história está repleta de exemplos que desmascaram a farsa das ditas “democracias”. Vejamos alguns: ao mesmo tempo em que se aplicavam sansões à Alemanha do entreguerras, os países pseudodemocráticos enchiam os cofres nazistas de toneladas de ouro no intuito de fomentar uma guerra soviético-germânica; ao calarem-se cinicamente diante das incursões nazistas pela Espanha, as pseudodemocracias demonstravam uma clara cumplicidade com os regimes totalitários de direita e apoiaram efetivamente o golpe de Estado perpetrado pelas hordas fascistas do general Franco; ao protegeram e darem guarida a refugiados nazistas por todas as Américas durante vários anos, recrutando-os nos mais diversos setores da sociedade sem nunca os condenar... Os exemplos são incontáveis. E, agora, o complô macabro das pseudodemocracias em defesa incondicional da maior caricatura nazista do início do século XXI, engendrada institucionalmente na Ucrânia, a serviço do clube da OTAN.

Juntar-se às denuncias da ocupação da Rússia à Ucrânia é fácil e desnecessário, a mídia ocidental inteira já tem feito o serviço, inclusive, explorando o drama humano, como nunca antes - sim, parece que finalmente o jornalismo descobriu que numa guerra as pessoas sofrem -, e extrapolando as falácias que a própria ideologia pseudodemocrática criou. Racismo, censura, mentiras, parcialidade, maniqueísmo, desonestidade intelectual, trapaças e concessões antiéticas têm marcado a cobertura midiática da guerra. Exemplo lapidar é a manchete do site The Intercept Brasil de 25/02/2022: FACEBOOK PERMITIRÁ ELOGIOS A PARAMILITARES NEONAZISTAS DA UCRÂNIA – DESDE QUE ELES LUTEM CONTRA A RÚSSIA. É uma pena que comumente a imprensa até agora não tenha sido tão engajada na defesa do mais fraco e da população civil ante a agressão do mais forte. Os exemplos abundam: Síria, Líbia, Iêmen, Paquistão, Afeganistão, Iraque... Hiroshima, Nagasaki... A lista é grande!

Seja como for, não nos esquecemos, uma guerra é sempre deplorável e é o povo - e é sempre o povo, que não é ucraniano nem russo nem brasileiro nem angolano nem israelense nem palestino ou qualquer outra ficção do tipo, mas seres humanos simplesmente - sim, o povo, é quem paga muito caro, inclusive com a vida, a cobiça irrefreável dos senhores da guerra, seguros e encastelados confortavelmente no seu trono de ouro, o Estado.

(N.E.)