quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A Terceira Revolução: o programa de Kronstadt

(fevereiro de 1921, greves em Petrogrado e resolução do Petropavlosk.) 

Tradução: Jean Fecaloma

Fecaloma - Punk Rock

5. O programa de Kronstadt

A rebelião de Kronstadt durou pouco mais de duas semanas. Todavia, neste curto lapso de tempo, uma comuna revolucionária admirável floresceu sob a liderança do Comitê Revolucionário Provisório que, sem contar com qualquer planejamento prévio e em longo prazo, revelou um dom excepcional para auto-organização e improvisação estratégica. No dia 2 de março, como vimos acima, durante uma conferência realizada na Casa da Educação, o comitê foi criado a partir da eleição de uma comissão de cinco representantes do movimento insurrecto. Entretanto, dada a complexidade requerida pela administração da defesa e das guarnições da cidade, logo se tornou patente a necessidade de ampliação dos encargos na organização. Assim, na noite de 4 de março, após o fim do expediente de trabalho, cerca de duzentos delegados das fábricas e unidades militares de Kronstadt - presumivelmente os mesmos que haviam participado na assembleia da Casa da Educação – reuniram-se no Clube Militar e, aos gritos de “Vitória ou morte!”, elegeram um comitê revolucionário formado por quinze dos mais experientes marinheiros da frota (1).

Para viabilizar as tarefas diretivas dos assuntos civis e militares de Kronstadt, o novo comitê transferiu seu quartel general do navio de guerra Petropavlovsk para a Casa do Povo, no centro da cidade. Para preencher as funções executivas auxiliares da presidência do comitê, exercida por Petrichenko, foram eleitos Yakovenko e Arkhipov, ocupando ambos a vice-presidência, e Kilgast, para o cargo de secretário. As demais atribuições foram divididas por setores específicos de responsabilidade: couberam a Valk e Romanenko, os assuntos civis; a justiça, a Pavlov; os transportes, a Baikov (cujo trabalho habitual em Kronstadt havia sido o de chefe de transportes do departamento de construções de fortalezas); Tukin foi encarregado do abastecimento de alimentos; e Perepelkin, da agitação e propaganda (2).

De acordo com o Item 9 da resolução do Petropavlovsk, foi abolido o racionamento diferencial de comida, instalado sobre os privilégios de ração especial a alguns setores, com exceção de hospitais e creches. Pessoas enfermas ou sob prescrição médica também podia ter acesso à alimentação extra. Em todos os demais casos, os alimentos deveriam ser distribuídos equitativamente através de cupons de troca. O Comitê Revolucionário passou a vigiar e supervisionar as duas entidades oficiais - Gorkommuna e Gorprodkom - que forneciam alimentos para Kronstadt [Gorkommuna - Comuna Municipal - e Gorprodkom - Comitê de Produção Municipal - eram duas associações que forneciam produtos alimentícios a Kronstadt durante a administração bolchevique - N.T.]. Periodicamente, os pontos de distribuição eram divulgados no jornal Izvestiia do Comitê Revolucionário Provisório. O comitê utilizava também a rádio do navio Petropavlovsk para emitir boletins especiais à população da cidade e para estabelecer comunicação com o mundo exterior (3).

Nos primeiros dias do levante, foi imposto o toque de recolher a partir das 11 horas da noite e um rigoroso controle da circulação dentro e fora da cidade. As escolas fecharam até segundas ordens. Ao mesmo tempo, o Comitê Revolucionário publicou uma série de éditos que afetavam a estrutura política de Kronstadt. De acordo com o item 7 da resolução do Petropavlovsk, foi abolido o departamento político da fortaleza e instituído um novo programa educacional no Clube Militar. A Superintendência de Operários e Camponeses [Comissariado do Povo para Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses, tradução livre de Narodnyy Komissariat Raboche-Krest'yanskoy Inspektsii ou “Rabkrin”, substituiu em 1920 o Comissariado do Povo para o Controle do Estado. No original Workers’ and Peasants’ Inspectorate - N.T.] foi substituída por uma comissão de delegados sindicais projetada para, segundo suspeitamos, atuar como uma “secretaria itinerante de controle”, na forma como prevista no artigo 14 da Constituição do Petropavlovsk [Não se trata da “resolução” mas de uma “constituição” adotada pelo Comitê Revolucionário Provisório a 2 de março. No original charter - N.T]. Ademais, para executar as ordens do Comitê Revolucionário em nível local, uma troika revolucionária - sem membros comunistas - foi eleita em todas as instituições públicas, sindicatos, fábricas e unidades militares (4).

Enquanto durou a rebelião, a conferência dos delegados, que havia se reunido na Casa da Educação, permaneceu exercendo atividades deliberativas ao lado do Comitê Revolucionário, por intermédio da participação de marinheiros, soldados e trabalhadores, que oscilavam entre duzentos a trezentos associados. Como vimos, a conferência do dia 4 de março ampliou as funções do Comitê Revolucionário. Nos dias 8 e 11 de março, criou, entre outras coisas, o novo Conselho Sindical de Kronstadt, isento da dominação e do controle do Partido Comunista. Não é surpreendente, todavia, que sua agenda estivesse quase toda ocupada por questões relativas à defesa e ao abastecimento de alimentos e combustível da cidade (5). Dada a sua importância, uma autoridade descreveu a conferência como um tipo distinto de parlamento (6) ou, mais precisamente, uma espécie de soviete interino - um protótipo dos “sovietes livres” que haviam dado origem à revolta.

Por trás de todas estas atividades decisórias, os marinheiros constituíam uma força militante dinâmica, sendo, portanto, o elemento mais engajado da população de Kronstadt. Em questões de organização, planejamento e propaganda, os marujos, tripulantes dos navios de guerra, eram sempre os primeiros a tomar a iniciativa e, até o final, desempenharam o protagonismo na curta história da rebelião de Kronstadt. Nem um único soldado (e muito menos um oficial) ocupou uma única cadeira no Comitê Revolucionário Provisório e, quanto aos operários e empregados civis, estes formaram apenas uma pequena minoria no conselho. Entretanto, se os marinheiros assumiram a linha de frente, não se contentou a mero papel coadjuvante a guarnição de Kronstadt - “os especialistas militares” e as tropas do Exército Vermelho que constituíam os efetivos das baterias e dos fortes da ilha -, que não hesitou em momento algum diante do empreendimento rebelde e aderiu prontamente ao movimento. Também manifestaram apoio incondicional à rebelião os habitantes da cidade. Obviamente, os cidadãos de Kronstadt sempre se mostraram muito suscetíveis à influência dos marinheiros, já que mantinham mutuamente estreito contato profissional devido à atividade econômica em torno da base naval. Desde então, Kronstadt foi sacudida de sua indiferença e, por um breve intervalo de tempo, vivenciou intensamente uma nova era de esperança. Um jornalista finlandês, que visitou a ilha no auge da rebelião, impressionou-se com o “entusiasmo dos kronstadtinos, que pareciam cumprir uma missão e um propósito maior” (7).

De certo modo, o estado de ânimo da população de Kronstadt, conforme se tem observado frequentemente (8), resgatava os dias de grande efervescência e exaltação dos anos de 1917. Para os marinheiros, que se autoproclamavam “Communards”, 1917 era a tão sonhada Idade de Ouro. Assim sendo, lutavam para reconquistar o espírito da revolução, época em que desabaram as travas da disciplina e os ideais revolucionários não estavam contaminados pela urgência do poder. Quatro anos antes, quando uniram sua sorte à dos bolcheviques, supunham compartilhar dos mesmos objetivos revolucionários. Os companheiros bolcheviques pareciam-lhes partidários da extrema esquerda, apóstolos da sublevação de massa que eliminaria a opressão e a injustiça e comprometidos com a fundação de uma república de trabalhadores a partir dos sovietes livres. “O socialismo - declarou Lênin, em novembro de 1917 - não se constrói de cima para baixo. O automatismo burocrático e estatal é alheio ao seu espírito; o socialismo é vivo, criador; é unicamente criação das massas populares” (9). Nos meses que se passaram, todavia, o que se viu foi a edificação de um poder centralizado sob a égide da ditadura de um partido. Obviamente, os marinheiros julgaram-se traídos e saíram com a sensação de que os princípios democráticos por que tanto combateram foram abandonados por um partido que se arvorou à condição de uma nova elite de privilegiados. Durante a guerra civil, a frota sempre demonstrou lealdade aos bolcheviques, mesmo sem nunca ter desistido de suas aspirações de retomar o sentido original da revolução. Agora que os brancos não representavam mais obstáculo, os marinheiros estavam decididos a fazer dos ideais de Outubro uma realidade efetiva. Por isso, levantaram-se.

Do ponto vista político, a revolta foi descrita, e com razão, pelo Izvestiia de Kronstadt, como o desenlace de um conjunto de esforços pelos quais revolucionários desiludidos empenharam-se, no intuito de erradicar o “pesadelo” da ditadura comunista (10) e, daí, restaurar o poder real dos sovietes. Do ponto de vista histórico, as raízes do soviete remontavam às tradicionais aldeias comunais de autogestão local da Rússia. Como bem observou Emma Goldman, o soviete não era mais que “uma forma desenvolvida e revolucionária do antigo mir russo, profundamente arraigado nos hábitos e costumes da população, e que nascia tão naturalmente no solo da Rússia como as flores desabrocham no campo” (11). Para Lênin, todavia, os sovietes livres, independentes do controle do partido, foram sempre objeto de censura. De uma forma instintiva, o líder bolchevique duvidava do espontaneísmo das massas populares. As vicissitudes inerentes à organização da democracia local, receava Lênin, poderiam servir de escada para uma reação conservadora ou levar o país ao caos econômico e social. No curso de uma revolução, no entanto, os sovietes locais brotam por todos os lugares e são úteis, assim reconhecia Lênin, enquanto força capaz de destruir a velha ordem, além de serem instrumentos valiosos para a conquista do poder. Eis por que o lema “todo poder aos sovietes” tornou-se um dos principais emblemas do partido. Porém, após o golpe de outubro, Lênin retomou, na prática, suas antigas teses sobre o centralismo político, ao impor uma ditadura revolucionária às massas anárquicas e indisciplinadas. O sistema soviético como uma nova forma superior de governo, à maneira da “ditadura do proletariado” formulada por Marx, tal como Lênin propugnou, transformou-se em marca fantasia de uma burocracia nascente. O fato é que, a partir de 1921, os sovietes foram paulatinamente submetidos ao controle partidário.

Contra essa fórmula corrompida de revolução, os marinheiros ergueram sua voz em um uníssono protesto. Os motivos, segundo vimos, orbitavam em torno do ideal popular referente à “república de trabalhadores”, a qual contrastava frontalmente com a ditadura dos bolcheviques, travestida de “ditadura do proletariado”. Sem demora, os marinheiros tornaram-se os principais adversários da dominação unilateral do partido único. Para eles, não havia alternativa, senão abolir o monopólio do poder comunista. Por isso, exigiam novas eleições para os sovietes. Por isso, encamparam uma luta intrépida em prol da liberdade de expressão, de imprensa e de reunião de operários e camponeses. Como observou Berkman, por muito tempo, os marinheiros foram os mais tenazes sustentáculos do sistema soviético, fazendo do lema bolchevique de 1917 o seu grito de guerra: “todo o poder aos sovietes” (12). Porém, diferentemente dos bolcheviques, entendiam os sovietes como associações livres, em harmonia com as verdadeiras aspirações do povo, por meio da representação de todas as organizações de esquerda - socialistas revolucionários (SR), mencheviques, anarquistas, maximalistas. Daí que o lema inscrito no cabeçalho do Izvestiia incluía um adendo sugestivo: “Todo o poder aos sovietes, não aos partidos”. No dia 6 de março, a rádio do Petropavlovsk transmitiu a seguinte mensagem: “A nossa causa é justa. Resistiremos em nome do poder dos sovietes, não dos partidos. Resistiremos em nome de uma representatividade universal dos trabalhadores livremente eleita. Os sovietes foram cooptados e manipulados pelo Partido Comunista, nunca levam em conta nossas demandas e necessidades. Quando nos dão alguma resposta, são tiros, balas de revólver, unicamente” (13).

Todavia, a reivindicação por sovietes livres não fazia dos marinheiros democratas no sentido de quem professa igualdade de direitos e liberdade para todos. Ao mesmo tempo em que condenavam os bolcheviques, reclamavam para a sociedade russa uma rigorosa postura classista. Para eles, o conceito de liberdade só se aplicava aos operários e camponeses, jamais aos latifundiários e às classes médias. Assim devia ser a “republica dos trabalhadores”: o poder da vontade geral das massas laboriosas sobre seus antigos opressores e exploradores. No programa de Kronstadt nunca se concedeu espaço para um parlamento liberal, nos moldes da Europa ocidental; e é muito simbólico, a esse respeito, o fato de um marinheiro de Kronstadt ter sido o responsável por dissolver a assembleia constituinte de janeiro de 1918. Três anos mais tarde, os marinheiros continuavam a opor-se radicalmente a uma assembleia legislativa ou qualquer instituição análoga. Aos seus olhos, o parlamento nacional estava fadado a ser controlado, quer por uma nova minoria de privilegiados, quer pelos mesmos grupos que a revolução havia extirpado da Rússia. Para os marinheiros, o regime democrático representativo não servia para nada. Somente a democracia direta, das massas proletárias, coadunava com a prática dos sovietes livres. “O baluarte dos trabalhadores são os sovietes, não a assembleia constituinte”, anunciava o Comitê Revolucionário Provisório (14). Em resumo, o parlamento e os sovietes eram formas antagônicas de governo, sendo o primeiro um instrumento da supremacia burguesa e, o segundo, o verdadeiro poder dos trabalhadores. Diante da nova conjuntura, temiam que uma assembleia pudesse se converter, desta vez, numa ferramenta dos bolcheviques, em sua escalada ao poder absoluto. Depois da queda de Kronstadt, um jornalista soviético perguntou a um grupo de rebeldes sobreviventes por que não postularam o restabelecimento da assembleia constituinte. “As listas do partido são dominadas por comunistas” (A raz spiki-znachit kommunisty), retrucou um deles com um sorriso amarelo. O que desejamos, continuou, é a autogestão dos operários e camponeses, que só é possível através da autodeterminação dos sovietes (15).

Naturalmente, o programa econômico de Kronstadt passava ao largo do sistema do comunismo de guerra. Era um reflexo das ambições camponesas e operárias, que pressupunham a supressão das políticas coercitivas a que todos estavam submetidos por quase três anos. Os kronstadtinos (seguindo um arcaico costume russo) acusavam o governo - e somente o governo - de todos os males que afligiam o país. Eximiam de toda culpa os fatores da crise gerados pelo caos e a destruição da guerra civil, a devastação nos campos de batalha, as tentativas de intervenção ou sansões dos aliados, a escassez crônica de combustível e matérias-primas, a carestia alimentar ou a falta de insumos para tratar os doentes em meio à fome e a peste. Todo o sofrimento e penúria eram imputados ao regime bolchevique: “A dominação comunista tem reduzido a Rússia à pobreza, à fome, ao frio e à carência absoluta. Fábricas e moinhos estão fechados. Estradas de ferro, à beira de um colapso. O campo está sendo esfolado até os ossos. Não temos nem pão, nem gado, nem ferramentas para lavrar a terra. Não temos vestimentas, sapatos ou combustível. Os operários estão famintos e amedrontados. Os camponeses e os habitantes das cidades perderam toda a esperança de uma vida melhor. Dia após dia, a morte anda a espreitar cada vez mais de perto. Os traidores comunistas são os únicos responsáveis por tudo isso” (16).

Os marinheiros, assim como os camponeses, dos quais provinham muitos deles, condenaram com veemência a “nova servidão” imposta pelo regime bolchevique, que se materializava, principalmente, no confisco de alimentos pelas tropas do governo. “Tinha razão o camponês - declarava o Izvestiia de Kronstadt - quando disse ao VIII Congresso dos Sovietes: ‘Tudo anda às mil maravilhas, a terra é nossa mas os cereais pertencem ao governo; a água é nossa mas os peixes pertencem ao governo; os bosques são nossos mas a madeira pertence ao governo’” (17). Todo agricultor, por mais pobre ou desesperado que seja, que resiste ao saque do governo, acrescentava o jornal, é denunciado como um “kulak” ou “inimigo do povo”. O Izvestiia também criticava a criação de granjas estatais em algumas das melhores terras aráveis expropriadas da burguesia. O cerceamento da terra, que os camponeses acreditavam sua por direito, reintroduziu o trabalho assalariado tal como na época czarista. Para os insurgentes, as políticas implementadas pelos bolcheviques violavam o espírito essencial da revolução, que havia abolido a “escravidão do salário” e toda forma de exploração. O Izvestiia clamava por fazer valer o direito do camponês de cultivar o solo em pequena escala com suas próprias mãos e para usufruto próprio, pois as granjas estatais eram “o latifúndio de um novo proprietário: o Estado. Quanto aos camponeses, despojados das terras recém-conquistadas, nada possuíam. Eis a paga do socialismo bolchevique: em troca do cereal, das vacas e dos cavalos confiscado, as invasões da Tcheca e os pelotões de fuzilamento. Que excelente negócio sob os auspícios de um governo de trabalhadores: chumbo e baionetas por restos de migalhas de pão!” (18).

No setor industrial, os rebeldes também mantinham a expectativa de que operários e pequenos artesões fossem igualmente donos de seu próprio destino e livres para apoderar-se dos produtos de seu trabalho. Todavia, não eram a favor do “controle operário”, como se costuma pensar frequentemente. A simples tarefa de supervisão da produção por comitês locais de fábrica era, em seu parecer, inadequada e ineficaz: inadequada, porque em lugar de permitir aos trabalhadores o gerenciamento coletivo das fábricas, delegava a responsabilidade das posições-chave de comando aos antigos gerentes e técnicos burgueses; insuficiente, por não proporcionar a necessária coordenação com outras empresas. Tampouco aprovavam a nacionalização da indústria sob o controle estatal da produção gerenciado por técnicos e especialistas designados pelo governo. “Após desorganizarem a produção por intervenção do ‘controle operário’ - argumentava o Izvestiia de Kronstadt -, os bolcheviques implantaram a nacionalização das fábricas e oficinas. O trabalhador passou então de escravo do capitalismo a escravo das empresas estatais”. Os sindicatos, por seu turno, foram convertidos em “templos da centralização do poder comunista” e, em vez de gerir fábricas e promover o desenvolvimento da cultura e educação dos trabalhadores, ficaram reduzidos a um papel decorativo. Para os rebeldes, somente a convocação de novas eleições poderia restituir a liberdade dos sindicatos com “plena autodeterminação” dos trabalhadores. Quanto aos artesões e donos de oficina, era lhes concedido a mais completa autonomia, desde que não empregassem o uso de mão de obra assalariada no processo de manufatura. “A Kronstadt revolucionária - proclamava o Comitê Provisório - luta por um socialismo diferente, por uma república soviética dos trabalhadores, na qual o produtor é patrão de si mesmo e dono exclusivo dos produtos de seu trabalho” (19).

A tônica pela qual girava a rebelião repousava na desilusão dos marinheiros com a dominação comunista. O único medo dos bolcheviques, declarava o jornal rebelde Izvestiia, é perder o poder e, para que isso não ocorra, consideram “permissível usar de todos os meios possíveis, desde a calúnia, passando pela violência, o logro, o assassinato, até a vingança contra as famílias dos rebeldes” (20). Os bolcheviques transformaram a revolução numa caricatura de operários e camponeses. Já os trabalhadores de carne e osso foram subjugados e todo o país silenciado pelo partido e sua polícia secreta. As prisões estão lotadas, não só de contrarrevolucionários, mas de trabalhadores e intelectuais. “No lugar do velho regime - lamentava o Izvestiia -, foi inaugurado um novo regime arbitrário, insolente, clientelista, ladrão e especulador; um regime terrível, para quem é imperativo ajoelhar perante o altar das autoridades, implorar por cada pedaço de pão, por cada botão de roupa; um regime pelo qual não se detém do próprio trabalho e sequer se pertence a si mesmo; um regime de escravidão e degradação... a Rússia Soviética tem transformado toda a Rússia em um vasto campo de concentração” (21).

Como resolver isso? Como resgatar o sentido original da revolução? Até 8 de março, data em que os bolcheviques deram início ao ataque, os insurgentes ainda confiavam numa solução pacífica. Tinham para si que os princípios justos que guiavam o movimento por si só mobilizariam o apoio de todo país - em especial, Petrogrado -, ao ponto de forçar o governo a fazer as necessárias concessões políticas e econômicas. Todavia, a ofensiva comunista imprimiu uma mudança radical no curso da rebelião. Daí por diante, foram ignoradas todas as oportunidades para um acordo ou uma negociação de paz. Para ambos os lados, não restou outra saída a não ser o caminho da guerra. Kronstadt ergueu um novo estandarte: a “terceira revolução”. Os rebeldes conclamavam a união de toda a população para dar cabo à tarefa iniciada em fevereiro e outubro de 1917: “Marcham perseverantes operários e camponeses, sempre avante! Passaram por cima do regime burguês da assembleia constituinte e agora deixam para trás a ditadura do partido comunista, com sua Tcheca e seu capitalismo de Estado, cujo garrote sufoca as massas trabalhadoras e ameaça estrangulá-las... Kronstadt lança a pedra angular da terceira revolução, ao romper os últimos grilhões que acorrentavam as massas trabalhadoras. A terceira revolução irá desbravar um novo e amplo caminho para a criação socialista” (22).

É muito comum entre historiadores, ocidentais ou soviéticos, associar o programa de Kronstadt a algum partido de esquerda antibolchevique. Cabe se perguntar se há alguma verdade em tais comparações. Sem dúvida, em muitos aspectos, as reivindicados rebeldes coincidem, de fato, com o espectro ideológico da oposição política de esquerda. Os mencheviques, os socialistas revolucionários (SR) e os anarquistas também contestavam o monopólio político bolchevique e, por extensão, o sistema do comunismo de guerra. Todos esses grupos lutavam por sovietes e sindicatos livres, direitos civis para operários e camponeses e, sobretudo, pelo fim do terror que encarcerava socialistas e anarquistas nas masmorras do governo. Ainda em outubro de 1917, socialistas revolucionários (SR) e mencheviques impulsionaram a ideia pela formação de um governo de coalizão em que todos os partidos socialistas estivessem representados, recebendo, inclusive, apoio sincero de um grupo de bolcheviques: “A nossa posição é a de que se faz necessário constituir um governo socialista de todos os partidos que estão integrados nos sovietes. Do contrário, não há alternativa: o monopólio de um único partido redundará no terror político. Não podemos e não desejamos aceitar tal estado de coisas. Prevemos que a política atual caminhará... para o estabelecimento de um regime irresponsável e a ruína da revolução e de todo país” (23).

Os rebeldes dividiam com os socialistas revolucionários (SR) uma preocupação básica, a saber, a questão camponesa e a situação dos pequenos produtores, conquanto dispensassem pouco interesse para os problemas complexos da indústria em grande escala. Mas a afinidade parava por aí. Como vimos, os marinheiros divergiam radicalmente dos socialistas revolucionários (SR), sobretudo, acerca das demandas de que estes não abriam mão, quais sejam, a restauração da assembleia constituinte e o apoio incondicional ao respeitado líder socialista revolucionário Victor Chernov. Não é necessário ir mais longe, basta isso para descartar toda e qualquer influência dos socialistas revolucionários sobre o movimento rebelde de Kronstadt. O mesmo se poderia dizer a respeito dos mencheviques, que foram em seu tempo os campeões na defesa do soviete, desde sua aparição em 1905. Todavia, a despeito da base teórica da fundação do primeiro soviete de Petersburgo, de autoria do líder menchevique Akselrod, coincidir com as concepções dos marinheiros sobre estes conselhos, que deviam ser apartidários e contar com a participação de trabalhadores, soldados e marinheiros, a influência menchevique nunca chegou a ser muito grande em Kronstadt, tradicional bastião da extrema esquerda. Embora muitos mencheviques pudessem ser encontrados entre artesões e trabalhadores da cidade e dos estaleiros (por exemplo, os operários Valk e Romanenko, membros do Comitê Revolucionário, foram identificados pelas fontes soviéticas como mencheviques), o programa de Kronstadt fazia tabula rasa das principais questões que afetavam o proletariado industrial. Portanto, o envolvimento dos mencheviques na revolta dos marinheiros - a coluna dorsal da insurreição - foi ínfimo. Vale lembrar ainda que a liderança menchevique de Petrogrado e demais cidades sempre se posicionou desfavorável à derrubada do regime bolchevique por força das armas.

A influência do anarquismo, em compensação, sempre foi muito poderosa na frota de Kronstadt. Mas a tese de que o levante tinha inspiração anarquista é falsa. Para começar, os anarquistas mais renomados que atuavam em Kronstadt em anos recentes já não estavam mais em cena quando estourou a rebelião. Anatoli Zhelezniakov, o valente e jovem marinheiro que dissolveu a assembleia constituinte, foi morto na luta contra os brancos (24); I. S. Bleikhman, um dos oradores mais populares da Praça da Âncora nos anos de 1917, faleceu poucos meses antes de irromper a revolta; e Efim Yarchuck, figura líder do soviete de Kronstadt durante a revolução, encontrava-se em Mouscou, onde, quando não estava preso, vivia constantemente vigiado pela Tcheca. Nem mesmo a história de Kronstadt, escrita por Yarchuck, ou outra fonte bibliográfica anarquista do período, assinala um papel de relevo aos anarquistas em 1921. Ademais, uma lista completa de anarquistas que morreram na guerra civil ou caíram vítimas da perseguição soviética nos primeiros anos da década de 1920, dentre eles, Zhelezniakov, Yarchuck e Bleikhman, não elenca sequer um nome de algum kronstadtino (25). Somente um membro do Comitê Revolucionário Provisório (Perepelkin) esteve sempre associado ao anarquismo, ainda que de forma indireta. Na verdade, a única menção aos anarquistas no jornal do movimento aparece na publicação do manifesto do Petropavlovsk: “Liberdade de expressão e de imprensa a todos os operários, camponeses, anarquistas e partidos socialistas de esquerda (26).

[É muito comum em textos publicados na internet identificar Stepan Petrichenko como adepto do anarcossindicalismo. A fonte parece ser a Wikipedia, que nas suas referências cita um artigo polonês intitulado “Naissaar: The Estonian ‘Island of Women’ Once an Independent Socialist Republic” (tradução para o inglês), de Kazimierz Popławski, editor-chefe da Przegląd Bałtycki, presidente da Fundação Bałtycka e graduado em relações internacionais. Grosso modo, o artigo versa sobre a criação da República Soviética dos Marinheiros e Construtores da Fortaleza da Ilha de Naissaar (Narva, cidade na Estônia), pela tripulação do Petropavlovsk, em 17 de dezembro de 1917. Petrichenko, que já era marinheiro do Petropavlovsk, segundo o artigo, tornou-se o líder do Conselho dos Comissários do Povo. Logo, o conselho declarou que, “de acordo com a constituição, Naissaar é agora uma república independente (soviética)”, em seguida oficializou o hino da Internacional e hasteou a bandeira rubro-negra do anarcossindicalismo. A republica teve fim com a ocupação da Estônia pelos alemães a 26 de fevereiro de 1918. Lamentavelmente, o artigo não apresenta nenhum referência bibliográfica. Curiosamente, a bandeira dos kronstadtinos (que ilustra este capítulo - no alto) é a mesma usada pela República de Naissaar.  Em outro verbete, a Wikipedia, em língua portuguesa, menciona que Petrichenko teria travado contato com Nestor Makhno quando de sua licença e viagem para a Ucrânia (“Stepan Petrichenko, the leader of the Kronstadt rising, returned to his native Ukraine between April and the autumn of 1920”, John Rees, em: In defence of Bolshevik Revolution in 1917 in Russia - ou In defense of October -, International Socialism 52, 1991; infelizmente, não tive acesso a integralidade do texto). Já a Wikipedia em inglês menciona que Petrichenko teria elogiado a makhnovtchina mas não teria se convencido a se tornar um anarquista - não cita fontes. Peço desculpas pela extensão da nota - N.T.].

Ainda assim, ecos do anarquismo, outrora tão vívidos na Kronstadt dos anos de 1917, persistiam na tripulação. Perepelkin pode ter sido o único anarquista conhecido entre os líderes rebeldes, porém, sendo coautor da resolução do Petropavlovsk e chefe de propaganda e ação, desfrutava de boa reputação para propalar seus ideais libertários entre os marinheiros. Alguns dos bordões do movimento - “sovietes livres”, “terceira revolução”, “abaixo a comissariocracia” - foram lemas anarquistas durante a guerra civil, assim como a máxima “todo poder aos sovietes, não aos partidos”, claramente de matriz anárquica. Por outro lado, a maioria dos anarquistas teria rejeitado a ideia de tomar o “poder”. Os marinheiros, por sua parte, nunca cogitaram a eliminação completa do Estado, condição fundamental de qualquer plataforma anarquista.

Em todo caso, os anarquistas de toda a Rússia ficaram bastante entusiasmados com o levante e saudaram Kronstadt como “a segunda comuna de Paris” (27). Contudo, quando as tropas do governo foram mobilizadas para reprimir o movimento, dos aplausos os anarquistas passaram às denuncias. No ápice da insurreição, um panfleto de cunho anarquista foi distribuído pelas ruas de Petrogrado. No texto, lia-se uma crítica contundente à população da cidade, que dava as costas aos rebeldes enquanto o estrepitar dos tiros de artilharia assolavam o Golfo da Finlândia. Ora, os marinheiros levantaram-se por sua causa, povo de Petrogrado, nada mais justo que, em retribuição, sacudir a letargia e, unidos, dar um basta à ditadura comunista, para que então o anarquismo possa prevalecer (28). No entanto, para que se evitasse um banho de sangue, outros anarquistas, como Berkman e Goldman, optaram pela via da mediação pacificadora, que se revelou infrutífera, afinal.

Em resumo, a rebelião não foi articulada nem inspirada por nenhum partido ou grupo em particular. O conjunto da frota era formado por radicais de várias tendências - socialistas revolucionários (SR), mencheviques, anarquistas e recrutas comunistas. Portanto, nenhuma ideologia ou plataforma política organizada em torno de uma bandeira exerceu qualquer influência no movimento de Kronstadt. Mais do que um programa coerente e propositivo, o credo professado pelos rebeldes era um emaranhado confuso, vago e indefinido de orientações revolucionárias dos mais diversos matizes, não chegando a constituir mais que um rol de objeções contra o governo, um grito de protesto contra a miséria e a opressão. Realmente, os marinheiros careciam de um projeto sistematizado e propositivo sobre assuntos envolvendo a agricultura e indústria; muito pelo contrário, entregavam-se cegamente àquilo que Kropotkin definiu como “o espírito criador das massas” e que devia animar os sovietes livremente eleitos.

Não sendo possível enquadrar a ideologia do movimento de Kronstadt nas principais correntes de esquerda da época, então seria interessante considerá-la, talvez, como uma espécie de anarcopopulismo, profundamente inspirado na tradição Narodnik de “terra e liberdade” e “vontade do povo”. De certa forma, o ideário rebelde recuperava o antigo sonho de uma federação interligada por uma tênue rede de comunas autônomas, onde camponeses e operários pudessem viver em plena harmonia e cooperação, sob um regime de liberdade econômica e organização política de base popular. Tal perspectiva ideológica colocava Kronstadt muito próxima aos maximalistas SR, uma minúscula célula ultrarradical do partido socialista revolucionário (SR), que estava situava entre a esquerda SR e os anarquistas. O programa de Kronstadt, em quase todos os pontos importantes, publicados pelo jornal Izvestiia, coincidia com os ideais maximalistas. Por isso, não era descabida a afirmação do governo de que o diretor do jornal rebelde (chamado Lamanov) seria um maximalista (29). Os maximalistas preconizavam a revolução total, opunham-se à assembleia constituinte e idealizavam “uma república soviética de trabalhadores” fundada em sovietes livremente eleitos e com o mínimo de autoridade central e estatal. Politicamente, Kronstadt compartilhava das mesmas aspirações. Simbolicamente, o lema “todo poder aos sovietes, não aos partidos”, adotado pelos kronstadtinos, havia sido, em sua origem, uma divisa maximalista. No campo das políticas econômicas, os paralelos chegavam a ser ainda mais gritantes. Na agricultura, os maximalistas também denunciavam as requisições de cereais e as granjas estatais e, em contrapartida, defendiam o uso pleno e exclusivo da terra pelos camponeses. Na indústria, rechaçavam o controle operário sob a supervisão de gestores burgueses e defendiam a “direção sistemática da organização social produtiva por representantes da classe trabalhadora”. Ambos, rebeldes e maximalistas, rejeitavam a nacionalização das fábricas e o sistema centralizado de direção estatal, advertindo repetidas vezes sobre o perigo do “burocratismo”, que reduzia o trabalhador a uma peça descartável na engrenagem de uma gigantesca máquina impessoal. Para os maximalistas, o governo deveria se ocupar apenas de funções mínimas de coordenação e planejamento, resumidas nas seguintes palavras de ordem: “não à direção do Estado, não ao controle do operário; sim à direção dos trabalhadores, sim ao controle do Estado”. Em suma, exigiam a transferência imediata dos meios de produção a quem realmente fazia uso deles, o povo; reivindicação basilar que se repetia em todos os lemas maximalistas: “Toda terra para os camponeses”, “Todas as fábricas para os operários”, “Todo pão e manufatura para os produtores” (30).

[O autor se refere à União dos Socialistas Revolucionários Maximalistas, expulsa do PSR em 1906. Após a Revolução de 17, a imprensa ocidental passou a designar os bolcheviques de maximalistas. Por isso, o texto-resposta “Sobre o maximalismo” (1919), do escritor brasileiro Lima Barreto, não nos deve causar estranheza. A confusão deve-se, provavelmente, a um erro de tradução, pois bolchevique significa “maioria”. Porém, no jargão revolucionário russo da época, o termo maximalismo aplicava-se a um “programa máximo”, em oposição a minimalismo, cuja noção implicava uma série de concessões, inclusive, a convocação de uma assembleia constituinte. No prólogo do livro Historia del movimiento makhnovista (1918-1921) - Piotr Archinov, Tupac Ediciones/La Malatesta, Buenoa Aires, 2008 -, Volin escreve a respeito de Archinov: “A causa que o fez passar para o anarquismo foi o minimalismo dos bolcheviques, que não correspondia, segundo Archinov, com as aspirações reais dos operários, e que no passado, o mesmo minamalismo de outros partidos, causou a derrota da revolução de 1905-6” (pág. 15). Quanto a interpretação de Avrich sobre as afinidades dos marinheiros de Kronstadt com os maximalistas, a mesma crítica já havia sido feita nos anos de 1920 aos makhnovistas da Ucrânia pelos anarquistas Marc Mrachny e V. Judoley (Archinov, Piotr, Op. cit., págs. 232 e 233). Caberia aqui especular o contrário e indagar até que ponto o anarquismo foi influenciado, ainda que de maneira muito indiretamente, pelos populistas russos (Narodniki) nas figuras de Kropotkin e do mais brilhante dos anarquistas, Mikhail Bakunin, principalmente, após a I Internacional quando a concepção revolucionária bakuninista torna-se majoritária no movimento anarquista (*Recordando que o Catecismo revolucionário de Bakunin é muitas vezes confundido com o texto homônimo de Netcháiev). Peço desculpas pela extensão da nota - N.T.].

Que o imaginário coletivo dos rebeldes era essencialmente anarcopopulista fica evidente pelo uso de um vocabulário peculiar e pela referência aos mitos sociais atinentes. Não à toa, homens de cujas emoções e retórica reproduziam exatamente os sentimentos dos camponeses e operários assumiram a responsabilidade pelo setor de propaganda rebelde. Com seus slogans simples e sentenças arrebatadoras, capturavam o coração do povo através de uma rude eloquência popular. Os propagandistas de Kronstadt escreviam e falavam em tom coloquial (como observou um pesquisador) (31), livre do jargão marxista e de expressões afetadas por estrangeirismos. A palavra “proletariado” era cuidadosamente evitada, dando-se preferência, bem ao gosto populista, ao genérico “trabalhadores” - camponeses, operários e “intelligenstia trabalhadora” -, que não priorizava um sujeito revolucionário específico em desfavor de outros. Por isso, optavam pelo conceito amplo de revolução “social”, em vez de “socialista”, pois a luta de classes não era entendida no sentido estreito da contradição operário industrial versus burguesia, mas numa acepção larga, tipicamente Narodnik, de conjunto das massas laboriosas contra todos aqueles que lucram com a miséria e a exploração do povo, o que incluía indistintamente políticos, burocratas, latifundiários e capitalistas. As ideologias ocidentais - o marxismo e o liberalismo, igualmente - quase não tinham espaço em seu repertório ideológico. O desprezo pelo governo parlamentar também era uma herança populista e anarquista. Herzen, Lavrov e Bakunin, todos eles, condenaram o parlamento como uma instituição corrupta e adventícia, cujo tagarelar empolado escondia unicamente os interesses das classes alta e média em prejuízo dos enjeitados e despossuídos. Para estes últimos, a salvação estava na autogestão local e comunal legada pela tradição socialista russa.

[É preciso não confundir o uso corrente da palavra populista com os populistas russos do século XIX, os Narodniki. O primeiro é um conceito pejorativo formulado pela historiografia conservadora latino-americana empregado inicialmente para caracterizar um líder caudilhista que granjeia o apoio popular em seu embate contra as oligarquias, sendo atualmente generalizado para referenciar qualquer chefe de Estado personalista ou que governe em nome/ou supostamente em nome da classe trabalhadora. O segundo diz respeito a uma interpretação do socialismo ocidental, bastante heterogênea e adaptada à realidade da Rússia, que intelligentsia russa elaborou a partir de meados do século XIX. O escritor russo Ivan Turguêniev, para zombar da juventude populista, vulgarizou o neologismo niilismo em seu clássico Pais e filhos, de 1862. Nietzsche, “o primeiro niilista”, leitor assíduo da literatura russa, fez do niilismo o mote de sua filosofia, o martelo destruidor da resignação, do ressentimento, dos valores decadentes, da servidão voluntária, da massificação, mas condição necessária da vontade de criar novos valores para uma existência afirmativa. Nietzsche, que odiava o Estado, poderia ter parafraseado Bakunin, amigo de Wagner: “A ânsia de destruir é também a ânsia de criar” (Bakunin). Peço desculpas pela extensão da nota  - N.T.].

Ademais, os kronstadtinos ostentavam um forte nacionalismo eslavo, em virtude de suas origens predominantemente camponesas. Os clamores internacionalistas não iam além do discurso e a verdade é que os marinheiros mostravam pouco interessa pelo movimento revolucionário mundial. Nas conversas travadas no dia a dia, os assuntos estavam muito mais focados na situação concreta do povo russo e no seu futuro do que em temas abstratos e gerais. Até mesmo o conceito de “terceira revolução” escondia traços messiânicos à semelhança da doutrina da “terceira Roma” na Moscóvia do século XVI: “A autocracia desmoronou. A assembleia constituinte foi expulsa para o reduto dos amaldiçoados. A comissariocracia avança cambaleante. É chegado o momento do verdadeiro poder dos trabalhadores: o poder dos sovietes” (32). Em algumas circunstâncias, contudo, o regionalismo camponês mesclava-se com certos elementos culturais da tradição revolucionária europeia; como quando na ocasião de uma cerimônia fúnebre ortodoxa realizada na Catedral dos Marinheiros em homenagem aos rebeldes mortos em combate. Após o ato solene de encerramento, os presentes entoaram o refrão da “Marseillaise” (33). Mas o caráter populista predominante no movimento não se manifestava apenas na liturgia religiosa ou nas convicções sociopolíticas. Os mitos folclóricos da tradição entrelaçavam com fios escarlates a trama complexa da ideologia revolucionária de Kronstadt.

Um destes mitos, profundamente consolidado na psique camponesa, era a crença de que o Estado centralizado formava um corpo estranho, forçosa e artificialmente enxertado sobre os ombros da sociedade, como um fardo pesado e opressivo. O ódio que o povo devotava aos governantes tinha profundas raízes históricas nas revoltas cossacas e camponeses dos séculos XVII e XVIII (34). Para Stenka Razin e Pugachev, a pequena nobreza governante não pertencia ao povo russo, o narod, mas a uma classe à parte de parasitas que sugavam o sangue dos camponeses. No imaginário popular remanescia uma percepção maniqueísta cujas forças do bem, encarnadas no povo humilde, estavam em eterno confronto com as forças do mal, o Estado e seus funcionários. Herdeiros da tradição espontaneísta de revolta popular (buntarstvo), na luta contra o despotismo burocrático, os marinheiros de Kronstadt descendiam diretamente desses primeiros rebeldes. Assim como Razin e Pugachev enfrentaram “os boiardos e capatazes”, os kronstadtinos combatiam “os comissários e burocratas”. Os antigos crimes cometidos pela nobreza agora eram praticados por uma nova classe dominante, o Partido Comunista: o único responsável por todas as desgraças do povo, ou seja, fome, guerra civil, escravidão e exploração.

A aversão dos marinheiros aos funcionários estatais, expressão de um inveterado sentimento plebeu, foi sintetizada pelo título “Nós e Eles”, de um editorial do Izvestiia de Kronstadt, publicado logo após o primeiro assalto bolchevique. Em destaque, o termo “comissariocracia”, epíteto favorito dos rebeldes para nomear o regime soviético: “Lênin costumava dizer que ‘o comunismo é o poder soviético mais a eletrificação’ [...de todo país - N.T.]. Mas o povo está convencido de que no regime bolchevique o comunismo é a comissariocracia mais os pelotões de fuzilamento” (35). Os funcionários bolcheviques eram criticados por formar uma nova casta de privilegiados. De acordo com o editorial, eram pessoas egoístas que desfrutavam de altos salários, maiores porções de ração e alojamentos aquecidos, para os quais eram negados ao resto da população. Recordemo-nos dos ataques a Kalinin, expulso da Praça da Âncora debaixo de vaias e gritos: “Você mora numa casa quentinha”; “Olhe para todos os cargos que você conseguiu; aposto que ganhou muito de dinheiro com eles”. Os funcionários do partido eram acusados de roubar os frutos da revolução e impor uma nova forma de escravidão sobre o “corpo e alma” da Rússia. “Eis o brilhante reino do socialismo, onde todos estão submetidos à ditadura do Partido Comunista”, lastimava o último número do rebelde Izvestiia. “Temos alcançado o estado socialista através da estrita obediência de funcionários dos sovietes que votam em conformidade aos ditames do comitê partidário e de seus comissários associados. O lema ‘quem não trabalha não come’ foi alterado pelo novo regulamento ‘soviético’ que ordena ‘tudo para os comissários’; para os operários, camponeses e a intelligenstia trabalhadora, a labuta tediosa ou longas férias de trabalhos forçados nos cárceres do governo” (36).

Como era de se esperar, Zinoviev e Trotsky tornaram-se o alvo principal da ira de Kronstadt. “Sob as luzes de castiçais luxuosos, nos aposentos dos palácios czaristas, ricamente adornados, estão sentados confortavelmente em poltronas macias Trotsky e Zinoviev, entretidos horas a fio em meditações sobre qual a maneira mais eficiente para verter o sangue rebelde” (37). Zinoviev era o abominado chefe de uma das seções do partido que reprimiu a greve dos operários de Petrogrado e que, durante a rebelião, num ato de extrema baixeza, fez de reféns os familiares dos marinheiros. Mas a bête noire, suprassumo da fúria dos rebeldes, era o Comissário de Guerra e presidente do Conselho Revolucionário de Guerra, Leon Trotsky, o implacável autor do ultimato do dia 5 de março e o responsável pela ordem de ataque três dias depois. Em sua homenagem, os rebeldes colecionavam um arsenal de alcunhas nada elogiosas: “Trotsky, o sanguinário capitão-mor”; “reencarnação de Trepov”; “Maliuta Skuratov... chefe da oprichnina comunista” [“Oprichnina”: tribunal ou reinado do terror da época do czar Ivan, o Terrível - N.T.]; “o gênio do mal da Rússia”, que “como um falcão mergulha com garras afiadas sobre nossa heroica cidade”; um monstro da tirania que está “atolado até o pescoço no sangue dos operários”. A 9 de março, o Izvestiia rebelde publicou esta nota: “Ouça, Trotsky, apesar das ofensas endereçadas a Kronstadt pelos comissários do partido, os líderes da Terceira Revolução lutam pelo verdadeiro poder dos sovietes” (38).

Fiéis à tradição populista, os rebeldes traçaram uma linha separando Lênin de Trotsky e Zinoviev - quase como uma reminiscência das narrativas populares que traziam alusões a histórias de traidores boiardos que ocultavam do czar o sofrimento do povo. As classes baixas russas tradicionalmente poupavam de seu ódio o soberano, o qual o veneravam como um paizinho ungido; inversamente, os corruptos palacianos e os conselheiros da corte real, exímios na arte da intriga, eram tidos como a encarnação do próprio mal e perversidade. Não era o autocrata, isolado e distante, que oprimia os pobres: “Deus está nos céus - rezava o velho provérbio -, e o czar, longe, longe demais”. Quem esfolava os camponeses e a gente pobre das cidades, submetendo-os na mais profunda miséria e degradação, eram os senhores feudais e funcionários do governo.

É bastante significativo que a figura de Lênin tenha encontrado eco na tradição popular, notadamente, entre os rebeldes de Kronstadt. Na primeira semana do levante, enquanto Trotsky e Zinoviev, em Petrogrado, despejavam ameaças sobre os marinheiros e preparavam uma ofensiva contra a fortaleza, Lênin permanecia em Moscou às voltas com o decreto, do dia 2 de março, que declarava fora da lei Kozlovsky e seus supostos cúmplices. Enquanto o jornal de Kronstadt andava ocupado em denunciar os “gendarmes” Trotsky e Zinoviev por “ocultarem a verdade” do povo, Lênin não era citado sequer uma única vez (39). Todavia, na sessão de abertura do X Congresso do Partido, realizada a 8 de março, Lênin surgiu dos bastidores e condenou a revolta como obra de generais da Guarda Branca e outros elementos pequeno-burgueses inseridos na população da cidade. Depois do discurso de Lênin, o Comitê Revolucionário de Kronstadt criticou-o pela primeira vez. Os camponeses e operários, declarava o Izvestiia, “nunca acreditaram em uma só palavra de Trotsky e Zinoviev”, mas não esperavam de Lênin tanta “hipocrisia”. Um poema publicado no Izvestiia dedicava versos irônicos ao “czar Lênin”. E, agora, o jornal tripudiava o “escritório de Lênin, Trotsky & Cia.”, enquanto antes só se falava de “Trotsky e Cia., sedentos de sangue” (40).

Mesmo assim, Lênin ainda merecia um pingo de simpatia, suficiente para mantê-lo longe de seus cúmplices. Por exemplo, o Izvestiia de 14 de março reproduziu uma nota referente a uma recente discussão sobre os sindicatos em que o líder bolchevique teria desabafado o seguinte: “Tudo isso me aborrece mortalmente. Se eu ainda estivesse com saúde, ficaria feliz em jogar tudo isso para o alto e fugir para um lugar bem distante daqui”. “Mas - acrescentava o Izvestiia - os companheiros de Lênin não o permitiram fugir. Lênin é um prisioneiro, obrigado por eles a proferir calúnias” (41). Eis aqui, em sua forma mais pura e cristalina, a antiga lenda do czar benevolente cativo dos traidores boiardos. Lênin continuou sendo venerado, como uma figura paternal. Quando os retratos de Trotsky e outros líderes bolcheviques foram arrancados das paredes das oficinas de Kronstadt, os de Lênin permaneceram intactos (42). Mesmo depois do banho de sangue, Kronstadt não mudou de opinião sobre o líder bolchevique. Em um campo de concentração na Finlândia, Yakovenko, vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório, diferenciava Lênin de seus colegas bolcheviques. Marinheiro barbudo, alto, de poderosa compleição, Yakovenko lutara ao lado dos bolcheviques na Revolução de Outubro. Mas agora estava enfurecido com o partido, que traíra seus próprios ideais e promessas socialistas. Com o rosto vermelho de raiva, amaldiçoava o “assassino Trotsky” e o “canalha Zinoviev”. “Já Lênin, eu respeito” - ponderava. “O problema é que Trotsky e Zinoviev arrastaram-no junto com eles. Ah! como gostaria de ter esses dois em minhas mãos” (43).

Pois bem, Trotsky tornara-se o símbolo por excelência do comunismo de guerra, ou seja, representava tudo aquilo pelo qual os marinheiros haviam se rebelado. O nome do comandante geral do Exército Vermelho significava centralização, militarização, disciplina espartana e recrutamento obrigatório. Com relação aos sindicatos, Trotsky instituíra uma gestão de linha dura e dogmática, contrastando com o enfoque leninista de conciliação. Diferentemente de Lênin, que compreendera a importância da colaboração camponesa para a escalada e sustentação do poder, um resquício da heresia Narodnik na opinião de seus contemporâneos ortodoxos, Trotsky igualmente desprezava o campesinato enquanto força revolucionária. Onde Trotsky mostrava-se intolerante, extravagante e arrogante, exibindo aquilo que Lênin, em seu famoso “Testamento”, chamou de “excessiva confiança em si mesmo”, Lênin era estimado por seus hábitos simples e pela falta de ambições pessoais.

Ademais, Lênin era grande russo [Relativo à Grande Rússia. A partir do século XX, o adjetivo “russo” substituiu “grande russo”; do mesmo modo, “pequeno russo” e “russo branco” passaram a ucraniano e bielorrusso, respectivamente - N.T.], natural da região média do Volga, o coração da Rússia camponesa. Frugal, humilde e austero, Lênin era visto como um simples filho da Rússia, bastante acessível em épocas de sofrimento e com quem o povo podia contar em momentos de grande aflição. Num sentido oposto, Trotsky e Zinoviev eram judeus, sendo ambos identificados não com a Rússia mas com a ala internacionalista do movimento comunista. De fato, Zinoviev presidia o Komintern e Trotsky, de acordo com Comitê Revolucionário de Kronstadt, foi o responsável, durante a guerra civil, pela morte de milhares de pessoas inocentes que eram “de uma nacionalidade diferente da sua” (44). Embora os rebeldes censurassem o antissemitismo, não há dúvida de que o preconceito contra judeus corria solto na frota do Báltico. Muitos marinheiros provinham da Ucrânia e dos confins fronteiriços do oeste, regiões bem conhecidas por um virulento sentimento antissemita. Para homens de extração camponesa ou operária, os judeus sempre foram o bode expiatório preferido em épocas de escassez e crise. Aliás, a partir do momento em que a revolução extinguiu o feudalismo e o capitalismo da Rússia, o regionalismo inerente à índole dos marinheiros encontrou em seu próprio meio elementos “estranhos” e indignos de confiança: os comunistas e os judeus.

Não obstante, os marinheiros só sabiam da origem judaica de Trotsky e Zinoviev por causa da abundante propaganda antissemita que circulava nos anos da guerra civil, na qual os brancos tentavam associar o comunismo a uma conspiração judaica. “Bronstein (Trotsky), Apfelbaum (Zinoviev), Rosenfeld (Kamenev), Steinberg - todos eles são iguais aos milhares de filhos legítimos de Israel”, lia-se num panfleto em que os brancos acusavam os judeus bolcheviques de arquitetar um complô para dominar o mundo (45). É muito provável que desvarios do gênero fossem muito comuns na frota do Báltico. As anotações de um marinheiro lotado na base naval de Petrogrado durante o levante de Kronstadt podem nos dar um testemunho de sua recorrência (46). Em uma passagem particularmente maledicente, o referido marinheiro descreve o regime bolchevique como a “primeira república judaica” do mundo. Noutro fragmento, o tema do “boiardo malvado” da mitologia popular reaparece sob uma versão atualizada, ao rotular os judeus como a “nova nobreza” dos “príncipes soviéticos”. Por óbvio, Trotsky e Zinoviev (ou Bronstein e Apfelbaum, como frequentemente os chama) não escapam de seu fel e o ultimato do governo é classificado como um “ultimato do judeu Trotsky”. Conforme relata o autor das memórias, impressões como as suas eram compactuadas pelos marinheiros, que estavam convencidos de que foram os judeus, não os camponeses e operários russos, os reais beneficiários da revolução. Afinal, os judeus ocupavam os postos de comando no diretório do Partido Comunista e cargos executivos no Estado soviético; infestavam [No original: they infested - N.T.] as repartições governamentais, especialmente o Comissariado de Alimentação, a fim de prevenir que seus conterrâneos não perecessem com a fome; e os destacamentos de inspeção de estrada – a tão odiada instituição -, mesmo tendo 90% da tropa constituídos por russos autênticos, eram quase sempre comandados por judeus. Tais crenças eram bastante comuns não só em Kronstadt como também em Petrogrado e, talvez, em muitas outras localidades da Rússia. Lembremo-nos de Vershinin, membro do Comitê Revolucionário, na ocasião em que tentou parlamentar com uma tropa soviética: “Basta de ‘hurras!’, sigam conosco; unidos derrotaremos os judeus, a sua maldita dominação, a qual somos todos, operários e camponeses, obrigados a suportar” (47).

O profundo desprezo que os rebeldes sentiam pela burocracia comunista não impedia que sentissem algum apreço pelos militantes da base do partido. Além disso, não rejeitavam os ideais do comunismo propriamente dito. É bem verdade que, em entrevistas concedidas na Finlândia logo após o levante, alguns membros do Comitê Revolucionário Provisório mencionaram os comunistas com uma boa dose de amargura, acusando-os de “usurparem os direitos do povo” (48). Evidentemente, a sangrenta repressão contribuiu ainda mais para potencializar o ressentimento dos líderes da revolta. No entanto, o mais das vezes, consideravam as lideranças comunistas como simples correligionários do partido. Aliás, os rebeldes que foram ex-comunistas, dentre os quais, o presidente Petrichenko e o secretário Kilgast do Comitê Revolucionário, acreditavam que os ideais da revolução haviam sido deturpados e, por isso, lutavam pela restauração da pureza do princípio. Semelhante entendimento ecoava por toda a frota, como demonstra a seguinte afirmação exemplar de um marinheiro filiado ao partido: “Um grupelho de burocratas, mascarados de comunista, nidificou para si mesmos um recanto aconchegante em nossa república, depois de ter transformado toda a Rússia em um ‘pântano tenebroso’” (49).

Em que pese toda a sua repugnância pela hierarquia bolchevique, os marinheiros jamais pretenderam acabar com o partido ou excluí-lo do governo ou da vida social russa. “Sovietes sem comunistas” nunca foi um lema de Kronstadt, como sustentam alguns historiadores soviéticos e não soviéticos. O lema existiu, sim, entre grupos de camponeses da Sibéria, no período da guerra civil, e entre os guerrilheiros de Makhno, na Ucrânia, que militavam por sovietes sem comunistas (50). Os marinheiros de Kronstadt, entretanto, nunca adotaram a consigna. Afirmar o contrário contribui para promover a lenda em torno da rebelião de Kronstadt, mas não corrobora com a verdade. O equívoco parece ter surgido dos slogans “Sovietes em vez de bolcheviques” (Sovety vmesto Bol'shevikov) e “Abaixo os bolcheviques, longa vida aos sovietes”, atribuídos erroneamente aos rebeldes por um emigrado russo exilado em Paris, o líder Kadet Miliukov. Segundo escreveu, os marinheiros almejavam que o poder passasse das mãos da ditadura unipartidária vigente para as mãos de uma coalizão formada por partidos socialistas e radicais não partidários que atuariam em conjunto nos sovietes sem a participação dos comunistas. Estabilizada a situação política, concluía Miliukov, o terreno ficará aberto para a restauração da assembleia constituinte em nível nacional (51). Todavia, esta era uma descrição bastante inexata do programa de Kronstadt, como sabemos. Os rebeldes sempre rejeitaram a assembleia constituinte e jamais deixaram de franquear um lugar para os bolcheviques dentro das organizações políticas de esquerda. Na prática, os comunistas foram afastados das revtroivki locais, instituídas durante a insurreição; porém, na conferência de delegados eleitos, que era uma reunião que mais se aproximava dos sovietes livres que Kronstadt tanto sonhara, os bolcheviques lograram ampla participação.

O verdadeiro objetivo da rebelião nunca foi o de eliminar o comunismo, senão reformá-lo, filtrá-lo de suas tendências ditatoriais e burocráticas que se avultaram a partir da guerra civil. A este respeito, Kronstadt não era diferente das tendências de oposição que surgiram dentro do próprio Partido Comunista: a “oposição da frota”, a Central Democrática e a Oposição Operária. Em comum com todas elas,  o mesmo descontentamento com as políticas do governo; o mesmo idealismo de esquerda. A crítica dos métodos arbitrários e da administração exercida com mãos de ferro pelos comissários políticos nos assuntos da corporação conectava os marinheiros à “oposição da frota”, à qual muitos deles eram filiados. O questionamento ao crescente autoritarismo das lideranças bolcheviques, que minava por dentro a “democratização” do partido e dos sovietes, era o elo que os unia à Central Democrática. Com a Oposição Operária, compartilhavam da mesma objeção à “militarização” do trabalho, concepção ampla que abarcava desde a direção unipessoal; a rigorosa disciplina nas fábricas; o atrelamento dos sindicatos às diretrizes do partido; o retorno dos “especialistas burgueses” às posições de chefia e gerenciamento. Finalmente, afinados com todos esses grupos de oposição, os rebeldes de Kronstadt deploravam o progressivo isolamento do partido, cada vez mais afastado do povo, e atacavam os líderes bolcheviques por violar o espírito essencial da revolução - ao sacrificar os ideais democráticos e igualitários no altar do poder e da eficiência (52).

Contudo, os pontos de convergência com as correntes de oposição do partido encontravam obstáculos intransponíveis inerentes à própria razão fundamental de ser dos rebeldes que os separavam em campos opostos. Enquanto os rebeldes conservavam vínculos estreitos com o campesinato, a Oposição Operária e Central Democrática eram agremiações urbanas constituídas por operários fabris e intelectuais indiferentes às necessidades camponesas. Ademais, as duas correntes não só não colocavam em xeque o monopólio do poder bolchevique como também justificavam o uso do terror quando necessário fosse. Se tanto, pleiteavam por reformas internas no partido e nunca advogaram pela divisão do poder político com outras organizações socialistas. Sobretudo, as afinidades com o programa de Kronstadt causavam embaraço aos líderes da oposição do partido. Por fim, renunciaram a todas as suas demandas para não serem confundidos com os amotinados. No X Congresso do Partido, os representantes da Oposição Operária, Shliapnikov e Kollontai, desautorizaram qualquer insinuação que pudesse envolvê-los de alguma forma com levante de Kronstadt. Em seguida, demonstrando muita indignação, reiteraram as observações de Lênin feitas na seção de abertura, ao culpar o “espontaneísmo anarquista pequeno-burguesa” pela origem da rebelião. Constrangida pela assembleia, Kollontai declarou que os membros da Oposição Operária seriam os primeiros voluntários a ir para o front combater os rebeldes (53). Outro líder da oposição, que estava em Berlim na época da revolta, chefiando uma missão comercial soviética, de nome Yuri Lutovionov, ao conceder uma entrevista, denunciou os rebeldes tomando como base o relatório oficial do governo que tratava o levante como um complô da Guarda Branca com o apoio de mencheviques e socialistas revolucionários (SR). A demora no uso da força, explicava Lutovionov, devia-se a uma decisão do governo em poupar o sofrimento da população civil da cidade; porém “o aniquilamento da aventura de Kronstadt não tardará a chegar” (54).

Enquanto isso, em Kronstadt, a organização comunista local havia sido infectada pelo vírus da oposição. A rebelião, segundo admitia o próprio Trotsky, “atraiu para as suas fileiras um número não pequeno de bolcheviques”; alguns por temor de represálias; outros, a maioria, por sinal, porque aprovavam o programa rebelde. Em termos mais precisos, Trotsky calculava que pelo menos 30 por cento dos comunistas de Kronstadt participaram ativamente da revolta, enquanto 40 por cento assumiram uma “posição neutra” (55). Ao final da guerra civil, a insatisfação que tomava conta do espírito rebelde foi traduzida em números que apontaram para uma redução dramática de filiados do partido, de 4000 a 2000. A queda à metade pode ser explicada pela grande onda de deserções que chegou ao clímax entre os meses de setembro de 1920 e março de 1921. No curso da rebelião, a organização partidária de Kronstadt decresceu vertiginosamente. Abandonaram o partido ao menos uns 500 militantes; sem contar uns 300 aspirantes que desistiram da inscrição partidária. O restante, de tão desmoralizados, segundo o relato de um deles, desaprovou a revolta com vacilação e indecisão (56).

A onda de descontentamento refletia-se nas longas listas de desfiliados que eram publicadas de tempos em tempos pelo Izvestiia de Kronstadt. Em apenas duas edições, mais de 200 nomes estamparam as colunas do jornal. O assalto bolchevique dos dias 7 e 8 de março aparecia como uma das principais causas das desistências. “Eu me estremeço só de pensar - escreveu uma professora da escola de Kronstadt, logo após o primeiro bombardeio - que eu possa ser considerada cúmplice do derramamento de sangue de vítimas inocentes. Sinto que já não posso mais acreditar e defender um partido que é o grande culpado por estes atos de selvageria. Quando ouvi o primeiro disparo, renunciei sem pestanejar a minha candidatura de admissão ao Partido Comunista” (57).  À medida que o bombardeio intensificava-se, tanto maior o êxodo no partido de Kronstadt. Todos os dias, o Izvestiia publicava cartas de leitores comunistas condenando o governo pelo uso da violência, ao mesmo tempo em que aprovavam as contramedidas do Comitê Revolucionário. Todavia, aqueles que declaravam publicamente sua retirada do partido, não renunciavam aos ideais do comunismo. No geral, o conteúdo das mensagens reprovava os líderes do partido que perverterem os ideais comunistas em benefício próprio. Um professor de Kronstadt, por exemplo, lamentava a presença de carreiristas dentro do partido, com sua influência nefasta, escreveu: “macularam os belos ideais comunistas” (58). Em outra missiva, remetida por um comandante vermelho da guarnição de Kronstadt, filho de um populista condenado ao exílio no célebre “Julgamento dos 193”, na década de 1870 [Marco do populismo russo, quando estudantes saíram das cidades para viver como camponeses na famosa “ida ao povo” - N.T.], lia-se o seguinte desabafo: “Eu cheguei à compreensão de que as políticas do Partido Comunista têm conduzido o país a um beco sem saída. O partido burocratizou-se... recusa-se a ouvir a voz das massas, às quais deseja impor sua vontade... somente com liberdade de expressão e maior oportunidade para todos na reconstrução do país, através de eleições limpas, poderemos tirar o país da letargia em que se encontra... eu me recuso, de agora em diante, a considerar-me um membro do Partido Comunista russo. Venho através desta, manifestar meu apoio integral à revolução aprovada pela assembleia municipal do primeiro de março, e desde já me coloco à inteira disposição (do Comitê Revolucionário), com todas as minhas forças e energias” (59).

Enquanto durou a rebelião, não houve nenhuma oposição séria por parte da organização comunista de Kronstadt. A 2 de março, um grupo leal ao partido, contando com cerca de uns duzentos homens bem armados, reuniu-se na Escola Superior do Partido a fim de resistir ao avanço do movimento rebelde. Contudo, percebendo que as circunstâncias não eram propícias para um enfrentamento, fugiram para Krasnaya Gorka (60). Logo no início das movimentações, outros homens do partido abandonaram a ilha e foram até os fortes para, numa tentativa vã, sublevá-los contra os insurgentes. Enquanto isso, o Comitê Revolucionário ordenava a prisão dos principais líderes bolcheviques. As primeiras prisões ocorreram na ocasião em que se realizou assembleia na Casa de Educação, no dia dia 2 de março. Foram presos Kuzmin, comissário da frota; Vasiliev, presidente do extinto soviete; e Korshunov, comissário da esquadra de guerra de Kronstadt. No dia seguinte, o chefe do Pubalt, E. I. Batis, foi feito prisioneiro por uma patrulha rebelde quando tentava atravessar a superfície de gelo a caminho do forte Totleben (61). Entre os encarcerados, encontravam-se o doutor L. A. Bergman, bolchevique veterano de Kronstadt, e o secretário do comitê partidário do distrito.

Outros funcionários evitaram a detenção ao aceitarem colaborar com os rebeldes. A 2 de março, formou-se um “Bureau Provisório da Organização de Kronstadt do Partido Comunista Russo”, constituído pelos bolcheviques Ia. Ilyin, comissário de abastecimento de alimentos, F. Pervushin, antigo líder do soviete, e A. Kabanov, presidente do Conselho Sindical de Kronstadt. O bureau emitiu uma declaração, a 4 de março, reconhecendo a necessidade de um novo pleito eleitoral para os sovietes. Além disso, o comunicado aconselhava a todos os comunistas de Kronstadt a permanecer em seu trabalho e obedecer as ordens do Comitê Revolucionário. Advertia, ademais, para os “boatos maliciosos” inventados pelos agentes da Entente, que espalhavam mentiras sobre eventuais manobras do governo para debelar a rebelião ou sentenças de fuzilamento dos prisioneiros comunistas em Kronstadt (62). A cooperação de Ilyin, como veio a se verificar, foi decepcionante, porque se utilizava de ardil para ganhar tempo, enquanto espera a chegada de ajuda do continente. Na calada da noite, Ilyin repassava por telefone informações a seus superiores em Krasnaya Gorka, relatando sobre a situação do abastecimento de alimentos em Kronstadt. A astuciosa operação, todavia, foi descoberta, Ilyin preso e seu bureau fechado. Desde então, não se ouviu mais seu nome até enquanto durou a revolta (63).

Em síntese, cerca de 300 comunistas foram presos durante toda a insurreição, a maioria funcionários locais capturados enquanto tentavam escapar ou porque foram considerados perigosos pelo Comitê Revolucionário. Embora a escalada de prisões não resultasse numa soma insignificante, pois correspondia a mais ou menos um quinto de todos os militantes do partido de Kronstadt, não deixa de ser notável o fato de que os rebeldes tenham deixado em liberdade tantas pessoas sem lhes causar a mínima importunação, ainda mais quando sabemos que as autoridades, por sua parte, executaram quarenta e cinco marinheiros em Oranienbaum e fizeram reféns os entes queridos dos kronstadtinos. É possível que o cativeiro dos familiares sequestrados, ainda que despertasse a fúria dos insurgentes, talvez, tenha freado a sua sede de retaliação. De qualquer modo, Kronstadt destacou-se pelo tratamento humano concedido aos seus adversários em momentos de grande emoção e tensão. Nenhum dos 300 prisioneiros bolcheviques sofreu qualquer arranhão. Não houve execuções, torturas ou agressões. Afinal, a revolta não se dava contra os brancos, a quem os marinheiros odiavam do fundo de sua alma e teriam os executado sem o menor pingo de remorso. A revolta era contra os seus camaradas revolucionários, com quem compartilhavam ideais e cujas políticas equivocadas só queriam reformar. No entanto, alguém poderia se perguntar sobre qual seria o destino de Trotsky ou Zinoviev se por um acaso caíssem nas mãos dos rebeldes...

Fosse quem fosse, ainda assim os personagens mais impopulares receberiam um tratamento justo e humanitário. Por isso, são improcedentes, sem qualquer base na realidade, as informações de que Kuzmin teria sido mal tratado na prisão e escapado por um triz da execução sumária. Quando tudo terminou, Victor Serge correu para acudi-lo em Smolny, tendo o encontrado vigoroso e saudável. Kuzmin relativizou aquilo que chamou de “exageros” sobre sua prisão e confessou que, na verdade, ele e seus camaradas receberam tratamento digno. Nem Ilyin, que traíra os rebeldes de modo torpe com seus telefonemas e que, por causa disso, tanto irritou Petrichenko, sofreu retaliações enquanto esteve detido (64). Até mesmo quando o Comitê Revolucionário tomou conhecimento de que parentes dos comunistas em Kronstadt estavam sendo vítimas de represálias ou despedidos de seus empregos, repreendeu a população pela conduta vingativa: “A despeito de todos os atos ultrajantes que os comunistas têm-nos assacados, devemos agir cautelosamente para limitar-nos somente a bani-los da vida pública, de modo que suas artimanhas maliciosas e hipócritas não nos atrapalhem em nossa jornada revolucionária” (65).

Mesmo assim, o governo bolchevique demonstrou bastante preocupação com a sorte dos prisioneiros em Kronstadt e respondeu à primeira onda de prisões com o vexaminoso episódio dos reféns e a ameaça de que se algo grave acontecesse aos comunistas as consequências seriam seriíssimas. Apesar de tudo, justificativas não faltavam. Os presos, segundo o testemunho de um deles, viviam aterrorizados diante da possibilidade de serem fuzilados a qualquer momento (66). E a situação só piorou quando cinquenta comunistas do forte Krasnoarmeets foram rendidos ao tentarem fugir para a costa da Carélia. Em outras ocasiões, legalistas tentaram estabelecer contato com o continente, por meio de sinais de refletores e sinalizadores disparados à noite. Em represália, os rebeldes passaram a aplicar sanções aos bolcheviques, que se intensificaram ainda mais logo após o ataque de 8 de março. Dois dias depois, veio a ordem para que se entregassem as armas e os refletores em poder dos comunistas. Logo em seguida, o Comitê Revolucionário solicitou à população que denunciasse eventuais traidores que, por assim dizer, tentavam se comunicar com os inimigos através de códigos e sinais. “A punição será aplicada no ato, de acordo com as leis ditadas pelo calor das horas – advertia o Izvestiia - sem a necessidade de julgamento em um tribunal constituído”. Mas houve casos de menor gravidade, como quando dois membros do partido foram acusados de estocar alimentos. Ou quando 280 pares de botas foram apreendidos de prisioneiros bolcheviques que receberam em troca sandálias. Na reunião dos delegados do dia 11 de março, foi comunicado que as botas seriam destinadas aos rebeldes que montavam guarda sobre o chão de gelo. O anúncio foi saudado com aplausos e gritos de “muito bem! tirem os casacos deles também!” O que aparentemente foi feito, segundo relatou mais tarde um prisioneiro que teve o casaco e as botas confiscados (67).

“Nossa revolta é um simples movimento de libertação contra a opressão bolchevique; uma vez alcançado nosso objetivo, o povo estará livre para agir por sua própria vontade”. Foram as palavras de Petrichenko a um jornalista norte-americano na Finlândia que pedia explicação sobre as causas da revolta de março (68). Numa única frase, condensou todo o espírito da rebelião. De fato, o que definia Kronstadt era o espontaneísmo característico das insurreições camponesas e manifestações operárias daquela quadra. Considerados um só fenômeno, seguiam a tradição de Razin e Pugachev. Sob este contexto, os marinheiros desempenhavam um papel análogo aos cossacos e strel'tsy, de cuja propensão para estouros repentinos contra todo poder despótico eram herdeiros por excelência. A mesma tradição eclodira em 1917, numa reedição da clássica “revolta russa, cega e impiedosa”, como Pushkin descreveu a pugachevschina do século XVIII [Alexander Pushkin é tido como o maior poeta da Rússia e fundador da moderna literatura russa. A citação refere-se à novela A filha do capitão, de 1836 - N.T.]. Para anarquistas, maximalistas e outros extremistas de esquerda, a “revolução social” havia enfim chegado. Então, uniram sua sorte à dos bolcheviques, cujos lemas, alguns emprestados dos sindicalistas e socialistas revolucionários (SR), ajustavam-se aos ideais inspirados pela tradição. “A terra para os camponeses! Abaixo o governo provisório! Controle operário das fábricas!” Como programa revolucionário, estava mais próximo do narodnichestvo do que do marxismo, o que exercia uma forte atração sobre os instintos anarcopopulistas dos elementos incultos da população russa.

Depois de outubro, entretanto, Lênin e seu partido estavam determinados a consolidar o poder conquistado e tirar o país do caos social. Logo, deram início ao processo de centralização autoritária, de cima para baixo, que desviava a revolução de sua cepa popular. Para tanto, esforçaram-se por minar da base revolucionária a hegemonia reinante do campesinato e das classes trabalhadoras, para quem a revolução sempre foi a negação do centralismo e autoritarismo. Assim sonhava o povo, que se entregou em sacrifício por uma sociedade descentralizada e fundada sobre a iniciativa local e a autogestão. Depois séculos de provações, que agora os deixasse em paz! Não à toa, os camponeses passaram a diferenciar os “bolcheviques”, que eliminaram os nobres e distribuíram a terra entre todos, dos “comunistas”, que instituíram as granjas estatais e enviaram equipes de requisição para oprimir o campo. Em 1917, os bolcheviques prometeram o Milênio anarcopopulista; em vez disso, depois de ter assegurado o poder, introduziram os antigos axiomas do poder estatal.

Em termos gerais, existiam duas tendências fundamentalmente opostas dentro da tradição revolucionária russa. A tendência centralista, representada por Lênin e seu partido, visava substituir a velha ordem por uma ditadura revolucionária. A outra via, trilhada por anarquistas e socialistas revolucionários (SR), tencionava a autogestão descentralizada, o fim da autoridade governamental e uma organização social confiada aos instintos democráticos do povo. Obviamente, o regionalismo camponês e a tradição da rebelião espontânea colocava Kronstadt na segunda categoria. Opositores do despotismo centralizado em todas as suas formas, os marinheiros voltaram-se contra o caráter elitista do socialismo de Estado de seus antigos aliados bolcheviques. No embate, os marinheiros chegaram até a colocar em dúvida a sinceridade do socialismo bolchevique. Para os rebeldes, assim como para Bakunin, antes deles, socialismo sem liberdade individual e autodeterminação - pelo menos para as classes baixas - não era senão uma nova forma de tirania, até pior em muitos aspectos que aquela que foi suplantada pelos bolcheviques.

Esta divergência estrutural constituía a base do conflito de março de 1921. O bolchevismo sempre expressou sua desconfiança em relação ao espontaneísmo das massas populares. Lênin acreditava que, se deixassem os operários e camponeses livres para dispor livremente dos meios de produção, estes acabariam por se contentar com reformas parciais ou, pior ainda, cairiam nas mãos das forças reacionárias. As massas deveriam ser lideradas “de fora” por uma obstinada vanguarda revolucionária. Pressuposto básico da filosofia política leninista, Kronstadt não seria exceção à regra. Nós devemos ponderar cuidadosamente, disse Lênin ao X Congresso do Partido, as lições políticas e econômicas que a rebelião dos marinheiros está nos oferecendo. “O que ela significa? A transferência da autoridade política para um amontoado indistinto de elementos desclassificados, que dão a impressão de ora estarem à direita dos bolcheviques, ora à esquerda. Impossível saber, de tão amorfa é a mixórdia de grupelhos políticos que tentam tomar o poder em Kronstadt”. Mesmo censurando a revolta como uma conspiração da Guarda Branca, Lênin tinha plena consciência da real natureza do movimento rebelde. Kronstadt, disse, era uma contrarrevolução do “espontaneísmo anarquista pequeno-burguês”, ou seja, uma revolta de massas intimamente ligada à insatisfação camponesa e operária surgida no calor dos acontecimentos. Portanto, muito mais perigosa para a sobrevivência do bolchevismo que Denikin, Kolchak e Yudenich juntos (69).

Lênin temia, sobretudo, uma nova pugachevschina. Atemorizava-se ante a ideia de que a maré anarcopopulista, que arrastara os bolcheviques ao poder, agora pudesse tragá-los para bem longe dele. O que tornava os marinheiros particularmente perigosos era o fato de que, em contraste com os brancos, lutavam em nome dos sovietes. Os rebeldes, como observou o Victor Serge, pertenciam de corpo e alma à revolução (70). Kronstadt simbolizava o sofrimento e a vontade do povo. Portanto, Kronstadt pesava na consciência dos líderes bolcheviques de uma maneira excessivamente dolorosa, como nenhum outro movimento de oposição até então. Lênin compreendia a atração que a rebelião exercia sobre as massas populares. Acusava a rebelião de “pequeno-burguesa”, de “semianarquista”, assim como fez com os populistas há vinte cinco anos quando denunciou como um equívoco o sonho romântico de uma era pretérita de comunas e cooperativas de artesões. Tal visão de mundo configurava um anátema para o modo de ser bolchevique. Não era meramente primitiva e inócua, mas reacionária, anacrônica em pleno século XX, quando triunfava em todas as nações o Estado centralizado e a concentração industrial.

Este era o motivo pelo qual Kronstadt foi mais perigosa para Lênin que os exércitos brancos da guerra civil. Lutavam por um ideal que, ainda que aparentemente inalcançável, refletia os anseios mais profundos das classes baixas da Rússia. Mas se Kronstadt levantava-se, raciocinava Lênin, toda autoridade e unidade do país se encontrariam à mercê de uma inevitável fragmentação territorial, dando lugar a outro período de caos e desagregação, como em 1917; mas desta vez contra a nova ordem. Em pouco tempo, algum outro regime centralizado - de direita mais que de esquerda – preencheria o vácuo político, pois a Rússia não poderia perdurar por muito tempo sob o estado de anarquia. Portanto, para Lênin, não restava alternativa: era necessário sufocar a todo o custo a rebelião, e reimplantar o bolchevismo em Kronstadt.