Tradução: Jean Fecaloma
5. O
programa de Kronstadt
A rebelião de Kronstadt
durou pouco mais de duas semanas. Todavia, neste curto lapso de tempo, uma
comuna revolucionária admirável floresceu sob a liderança do Comitê
Revolucionário Provisório que, sem contar com qualquer planejamento prévio e em
longo prazo, revelou um dom excepcional para auto-organização e improvisação
estratégica. No dia 2 de março, como vimos acima, durante uma conferência
realizada na Casa da Educação, o comitê foi criado a partir da eleição de uma
comissão de cinco representantes do movimento insurrecto. Entretanto, dada a
complexidade requerida pela administração da defesa e das guarnições da cidade,
logo se tornou patente a necessidade de ampliação dos encargos na organização.
Assim, na noite de 4 de março, após o fim do expediente de trabalho, cerca de
duzentos delegados das fábricas e unidades militares de Kronstadt -
presumivelmente os mesmos que haviam participado na assembleia da Casa da
Educação – reuniram-se no Clube Militar e, aos gritos de “Vitória ou morte!”,
elegeram um comitê revolucionário formado por quinze dos mais experientes
marinheiros da frota (1).
Para viabilizar as
tarefas diretivas dos assuntos civis e militares de Kronstadt, o novo comitê
transferiu seu quartel general do navio de guerra Petropavlovsk para a Casa do Povo, no centro da cidade. Para
preencher as funções executivas auxiliares da presidência do comitê, exercida
por Petrichenko, foram eleitos Yakovenko e Arkhipov, ocupando ambos a
vice-presidência, e Kilgast, para o cargo de secretário. As demais atribuições
foram divididas por setores específicos de responsabilidade: couberam a Valk e
Romanenko, os assuntos civis; a justiça, a Pavlov; os transportes, a Baikov (cujo
trabalho habitual em Kronstadt havia sido o de chefe de transportes do
departamento de construções de fortalezas); Tukin foi encarregado do
abastecimento de alimentos; e Perepelkin, da agitação e propaganda (2).
De acordo com o Item 9 da
resolução do Petropavlovsk, foi
abolido o racionamento diferencial de comida, instalado sobre os privilégios de
ração especial a alguns setores, com exceção de hospitais e creches. Pessoas
enfermas ou sob prescrição médica também podia ter acesso à alimentação extra.
Em todos os demais casos, os alimentos deveriam ser distribuídos
equitativamente através de cupons de troca. O Comitê Revolucionário passou a
vigiar e supervisionar as duas entidades oficiais - Gorkommuna e Gorprodkom -
que forneciam alimentos para Kronstadt [Gorkommuna
- Comuna Municipal - e Gorprodkom - Comitê
de Produção Municipal - eram duas associações que forneciam produtos
alimentícios a Kronstadt durante a administração bolchevique - N.T.].
Periodicamente, os pontos de distribuição eram divulgados no jornal Izvestiia do Comitê Revolucionário
Provisório. O comitê utilizava também a rádio do navio Petropavlovsk para
emitir boletins especiais à população da cidade e para estabelecer comunicação
com o mundo exterior (3).
Nos primeiros dias do
levante, foi imposto o toque de recolher a partir das 11 horas da noite e um
rigoroso controle da circulação dentro e fora da cidade. As escolas fecharam
até segundas ordens. Ao mesmo tempo, o Comitê Revolucionário publicou uma série
de éditos que afetavam a estrutura política de Kronstadt. De acordo com o item
7 da resolução do Petropavlovsk, foi
abolido o departamento político da fortaleza e instituído um novo programa
educacional no Clube Militar. A Superintendência de Operários e Camponeses
[Comissariado do Povo para Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses, tradução
livre de Narodnyy Komissariat Raboche-Krest'yanskoy Inspektsii
ou “Rabkrin”, substituiu em 1920 o Comissariado do Povo para o Controle do
Estado. No original Workers’ and
Peasants’ Inspectorate - N.T.] foi substituída por uma comissão de delegados
sindicais projetada para, segundo suspeitamos, atuar como uma “secretaria
itinerante de controle”, na forma como prevista no artigo 14 da Constituição do
Petropavlovsk [Não se trata da “resolução”
mas de uma “constituição” adotada pelo Comitê Revolucionário Provisório a 2 de
março. No original charter - N.T].
Ademais, para executar as ordens do Comitê Revolucionário em nível local, uma
troika revolucionária - sem membros comunistas - foi eleita em todas as
instituições públicas, sindicatos, fábricas e unidades militares (4).
Enquanto durou a
rebelião, a conferência dos delegados, que havia se reunido na Casa da Educação,
permaneceu exercendo atividades deliberativas ao lado do Comitê Revolucionário,
por intermédio da participação de marinheiros, soldados e trabalhadores, que
oscilavam entre duzentos a trezentos associados. Como vimos, a conferência do
dia 4 de março ampliou as funções do Comitê Revolucionário. Nos dias 8 e 11 de
março, criou, entre outras coisas, o novo Conselho Sindical de Kronstadt,
isento da dominação e do controle do Partido Comunista. Não é surpreendente,
todavia, que sua agenda estivesse quase toda ocupada por questões relativas à
defesa e ao abastecimento de alimentos e combustível da cidade (5). Dada a sua
importância, uma autoridade descreveu a conferência como um tipo distinto de parlamento
(6) ou, mais precisamente, uma espécie de soviete interino - um protótipo dos
“sovietes livres” que haviam dado origem à revolta.
Por
trás de todas estas atividades decisórias, os marinheiros constituíam uma força
militante dinâmica, sendo, portanto, o elemento mais engajado da população de Kronstadt.
Em questões de organização, planejamento e propaganda, os marujos, tripulantes
dos navios de guerra, eram sempre os primeiros a tomar a iniciativa e, até o
final, desempenharam o protagonismo na curta história da rebelião de Kronstadt.
Nem um único soldado (e muito menos um oficial) ocupou uma única cadeira no Comitê
Revolucionário Provisório e, quanto aos operários e empregados civis, estes
formaram apenas uma pequena minoria no conselho. Entretanto, se os marinheiros
assumiram a linha de frente, não se contentou a mero papel coadjuvante a
guarnição de Kronstadt - “os especialistas militares” e as tropas do Exército Vermelho
que constituíam os efetivos das baterias e dos fortes da ilha -, que não
hesitou em momento algum diante do empreendimento rebelde e aderiu prontamente
ao movimento. Também manifestaram apoio incondicional à rebelião os habitantes
da cidade. Obviamente, os cidadãos de Kronstadt sempre se mostraram muito suscetíveis
à influência dos marinheiros, já que mantinham mutuamente estreito contato
profissional devido à atividade econômica em torno da base naval. Desde então, Kronstadt
foi sacudida de sua indiferença e, por um breve intervalo de tempo, vivenciou
intensamente uma nova era de esperança. Um jornalista finlandês, que visitou a
ilha no auge da rebelião, impressionou-se com o “entusiasmo dos kronstadtinos, que
pareciam cumprir uma missão e um propósito maior” (7).
De
certo modo, o estado de ânimo da população de Kronstadt, conforme se tem
observado frequentemente (8), resgatava os dias de grande efervescência e exaltação
dos anos de 1917. Para os marinheiros, que se autoproclamavam “Communards”,
1917 era a tão sonhada Idade de Ouro. Assim sendo, lutavam para reconquistar o
espírito da revolução, época em que desabaram as travas da disciplina e os
ideais revolucionários não estavam contaminados pela urgência do poder. Quatro
anos antes, quando uniram sua sorte à dos bolcheviques, supunham compartilhar
dos mesmos objetivos revolucionários. Os companheiros bolcheviques
pareciam-lhes partidários da extrema esquerda, apóstolos da sublevação de massa
que eliminaria a opressão e a injustiça e comprometidos com a fundação de uma república
de trabalhadores a partir dos sovietes livres. “O socialismo - declarou Lênin,
em novembro de 1917 - não se constrói de cima para baixo. O automatismo
burocrático e estatal é alheio ao seu espírito; o socialismo é vivo, criador; é
unicamente criação das massas populares” (9). Nos meses que se passaram,
todavia, o que se viu foi a edificação de um poder centralizado sob a égide da
ditadura de um partido. Obviamente, os marinheiros julgaram-se traídos e saíram
com a sensação de que os princípios democráticos por que tanto combateram foram
abandonados por um partido que se arvorou à condição de uma nova elite de
privilegiados. Durante a guerra civil, a frota sempre demonstrou lealdade aos
bolcheviques, mesmo sem nunca ter desistido de suas aspirações de retomar o
sentido original da revolução. Agora que os brancos não representavam mais
obstáculo, os marinheiros estavam decididos a fazer dos ideais de Outubro uma
realidade efetiva. Por isso, levantaram-se.
Do ponto vista político,
a revolta foi descrita, e com razão, pelo Izvestiia
de Kronstadt, como o desenlace de um conjunto de esforços pelos quais
revolucionários desiludidos empenharam-se, no intuito de erradicar o “pesadelo”
da ditadura comunista (10) e, daí, restaurar o poder real dos sovietes. Do
ponto de vista histórico, as raízes do soviete remontavam às tradicionais aldeias
comunais de autogestão local da Rússia. Como bem observou Emma Goldman, o
soviete não era mais que “uma forma desenvolvida e revolucionária do antigo mir russo, profundamente arraigado nos
hábitos e costumes da população, e que nascia tão naturalmente no solo da
Rússia como as flores desabrocham no campo” (11). Para Lênin, todavia, os
sovietes livres, independentes do controle do partido, foram sempre objeto de
censura. De uma forma instintiva, o líder bolchevique duvidava do espontaneísmo
das massas populares. As vicissitudes inerentes à organização da democracia
local, receava Lênin, poderiam servir de escada para uma reação conservadora ou
levar o país ao caos econômico e social. No curso de uma revolução, no entanto,
os sovietes locais brotam por todos os lugares e são úteis, assim reconhecia Lênin,
enquanto força capaz de destruir a velha ordem, além de serem instrumentos
valiosos para a conquista do poder. Eis por que o lema “todo poder aos
sovietes” tornou-se um dos principais emblemas do partido. Porém, após o golpe
de outubro, Lênin retomou, na prática, suas antigas teses sobre o centralismo
político, ao impor uma ditadura revolucionária às massas anárquicas e indisciplinadas.
O sistema soviético como uma nova forma superior de governo, à maneira da
“ditadura do proletariado” formulada por Marx, tal como Lênin propugnou, transformou-se
em marca fantasia de uma burocracia nascente. O fato é que, a partir de 1921,
os sovietes foram paulatinamente submetidos ao controle partidário.
Contra essa fórmula
corrompida de revolução, os marinheiros ergueram sua voz em um uníssono protesto.
Os motivos, segundo vimos, orbitavam em torno do ideal popular referente à “república
de trabalhadores”, a qual contrastava frontalmente com a ditadura dos
bolcheviques, travestida de “ditadura do proletariado”. Sem demora, os
marinheiros tornaram-se os principais adversários da dominação unilateral do
partido único. Para eles, não havia alternativa, senão abolir o monopólio do
poder comunista. Por isso, exigiam novas eleições para os sovietes. Por isso,
encamparam uma luta intrépida em prol da liberdade de expressão, de imprensa e
de reunião de operários e camponeses. Como observou Berkman, por muito tempo,
os marinheiros foram os mais tenazes sustentáculos do sistema soviético, fazendo
do lema bolchevique de 1917 o seu grito de guerra: “todo o poder aos sovietes”
(12). Porém, diferentemente dos bolcheviques, entendiam os sovietes como
associações livres, em harmonia com as verdadeiras aspirações do povo, por meio
da representação de todas as organizações de esquerda - socialistas
revolucionários (SR), mencheviques, anarquistas, maximalistas. Daí que o lema
inscrito no cabeçalho do Izvestiia incluía
um adendo sugestivo: “Todo o poder aos sovietes, não aos partidos”. No dia 6 de
março, a rádio do Petropavlovsk
transmitiu a seguinte mensagem: “A nossa causa é justa. Resistiremos em nome do
poder dos sovietes, não dos partidos. Resistiremos em nome de uma
representatividade universal dos trabalhadores livremente eleita. Os sovietes
foram cooptados e manipulados pelo Partido Comunista, nunca levam em conta
nossas demandas e necessidades. Quando nos dão alguma resposta, são tiros,
balas de revólver, unicamente” (13).
Todavia, a reivindicação por
sovietes livres não fazia dos marinheiros democratas no sentido de quem
professa igualdade de direitos e liberdade para todos. Ao mesmo tempo em que
condenavam os bolcheviques, reclamavam para a sociedade russa uma rigorosa
postura classista. Para eles, o conceito de liberdade só se aplicava aos operários
e camponeses, jamais aos latifundiários e às classes médias. Assim devia ser a “republica
dos trabalhadores”: o poder da vontade geral das massas laboriosas sobre seus
antigos opressores e exploradores. No programa de Kronstadt nunca se concedeu espaço
para um parlamento liberal, nos moldes da Europa ocidental; e é muito simbólico,
a esse respeito, o fato de um marinheiro de Kronstadt ter sido o responsável
por dissolver a assembleia constituinte de janeiro de 1918. Três anos mais
tarde, os marinheiros continuavam a opor-se radicalmente a uma assembleia
legislativa ou qualquer instituição análoga. Aos seus olhos, o parlamento
nacional estava fadado a ser controlado, quer por uma nova minoria de privilegiados,
quer pelos mesmos grupos que a revolução havia extirpado da Rússia. Para os
marinheiros, o regime democrático representativo não servia para nada. Somente a
democracia direta, das massas proletárias, coadunava com a prática dos sovietes
livres. “O baluarte dos trabalhadores são os sovietes, não a assembleia
constituinte”, anunciava o Comitê Revolucionário Provisório (14). Em resumo, o
parlamento e os sovietes eram formas antagônicas de governo, sendo o primeiro
um instrumento da supremacia burguesa e, o segundo, o verdadeiro poder dos
trabalhadores. Diante da nova conjuntura, temiam que uma assembleia pudesse se converter,
desta vez, numa ferramenta dos bolcheviques, em sua escalada ao poder absoluto.
Depois da queda de Kronstadt, um jornalista soviético perguntou a um grupo de
rebeldes sobreviventes por que não postularam o restabelecimento da assembleia
constituinte. “As listas do partido são dominadas por comunistas” (A raz spiki-znachit kommunisty), retrucou
um deles com um sorriso amarelo. O que desejamos, continuou, é a autogestão dos
operários e camponeses, que só é possível através da autodeterminação dos
sovietes (15).
Naturalmente, o programa
econômico de Kronstadt passava ao largo do sistema do comunismo de guerra. Era
um reflexo das ambições camponesas e operárias, que pressupunham a supressão das
políticas coercitivas a que todos estavam submetidos por quase três anos. Os kronstadtinos
(seguindo um arcaico costume russo) acusavam o governo - e somente o governo -
de todos os males que afligiam o país. Eximiam de toda culpa os fatores da
crise gerados pelo caos e a destruição da guerra civil, a devastação nos campos
de batalha, as tentativas de intervenção ou sansões dos aliados, a escassez
crônica de combustível e matérias-primas, a carestia alimentar ou a falta de
insumos para tratar os doentes em meio à fome e a peste. Todo o sofrimento e
penúria eram imputados ao regime bolchevique: “A dominação comunista tem
reduzido a Rússia à pobreza, à fome, ao frio e à carência absoluta. Fábricas e
moinhos estão fechados. Estradas de ferro, à beira de um colapso. O campo
está sendo esfolado até os ossos. Não temos nem pão, nem gado, nem ferramentas
para lavrar a terra. Não temos vestimentas, sapatos ou combustível. Os operários
estão famintos e amedrontados. Os camponeses e os habitantes das cidades
perderam toda a esperança de uma vida melhor. Dia após dia, a morte anda a
espreitar cada vez mais de perto. Os traidores comunistas são os únicos
responsáveis por tudo isso” (16).
Os marinheiros, assim
como os camponeses, dos quais provinham muitos deles, condenaram com veemência
a “nova servidão” imposta pelo regime bolchevique, que se materializava,
principalmente, no confisco de alimentos pelas tropas do governo. “Tinha razão
o camponês - declarava o Izvestiia de
Kronstadt - quando disse ao VIII Congresso dos Sovietes: ‘Tudo anda às mil
maravilhas, a terra é nossa mas os cereais pertencem ao governo; a água é nossa
mas os peixes pertencem ao governo; os bosques são nossos mas a madeira
pertence ao governo’” (17). Todo agricultor, por mais pobre ou desesperado que seja,
que resiste ao saque do governo, acrescentava o jornal, é denunciado como um “kulak”
ou “inimigo do povo”. O Izvestiia também
criticava a criação de granjas estatais em algumas das melhores terras aráveis expropriadas
da burguesia. O cerceamento da terra, que os camponeses acreditavam sua por
direito, reintroduziu o trabalho assalariado tal como na época czarista. Para os
insurgentes, as políticas implementadas pelos bolcheviques violavam o espírito
essencial da revolução, que havia abolido a “escravidão do salário” e toda
forma de exploração. O Izvestiia
clamava por fazer valer o direito do camponês de cultivar o solo em pequena
escala com suas próprias mãos e para usufruto próprio, pois as granjas estatais
eram “o latifúndio de um novo proprietário: o Estado. Quanto aos camponeses,
despojados das terras recém-conquistadas, nada possuíam. Eis a paga do
socialismo bolchevique: em troca do cereal, das vacas e dos cavalos confiscado,
as invasões da Tcheca e os pelotões de fuzilamento. Que excelente negócio sob
os auspícios de um governo de trabalhadores: chumbo e baionetas por restos de migalhas
de pão!” (18).
No setor industrial, os rebeldes
também mantinham a expectativa de que operários e pequenos artesões fossem
igualmente donos de seu próprio destino e livres para apoderar-se dos produtos
de seu trabalho. Todavia, não eram a favor do “controle operário”, como se
costuma pensar frequentemente. A simples tarefa de supervisão da produção por
comitês locais de fábrica era, em seu parecer, inadequada e ineficaz:
inadequada, porque em lugar de permitir aos trabalhadores o gerenciamento
coletivo das fábricas, delegava a responsabilidade das posições-chave de
comando aos antigos gerentes e técnicos burgueses; insuficiente, por não
proporcionar a necessária coordenação com outras empresas. Tampouco aprovavam a
nacionalização da indústria sob o controle estatal da produção gerenciado por técnicos
e especialistas designados pelo governo. “Após desorganizarem a produção por
intervenção do ‘controle operário’ - argumentava o Izvestiia de Kronstadt -, os bolcheviques implantaram a
nacionalização das fábricas e oficinas. O trabalhador passou então de escravo
do capitalismo a escravo das empresas estatais”. Os sindicatos, por seu turno,
foram convertidos em “templos da centralização do poder comunista” e, em vez de
gerir fábricas e promover o desenvolvimento da cultura e educação dos trabalhadores,
ficaram reduzidos a um papel decorativo. Para os rebeldes, somente a convocação
de novas eleições poderia restituir a liberdade dos sindicatos com “plena
autodeterminação” dos trabalhadores. Quanto aos artesões e donos de oficina,
era lhes concedido a mais completa autonomia, desde que não empregassem o uso
de mão de obra assalariada no processo de manufatura. “A Kronstadt
revolucionária - proclamava o Comitê Provisório - luta por um socialismo
diferente, por uma república soviética dos trabalhadores, na qual o produtor é
patrão de si mesmo e dono exclusivo dos produtos de seu trabalho” (19).
A tônica pela qual girava
a rebelião repousava na desilusão dos marinheiros com a dominação comunista. O
único medo dos bolcheviques, declarava o jornal rebelde Izvestiia, é perder o poder e, para que isso não ocorra, consideram
“permissível usar de todos os meios possíveis, desde a calúnia, passando pela
violência, o logro, o assassinato, até a vingança contra as famílias dos
rebeldes” (20). Os bolcheviques transformaram a revolução numa caricatura de
operários e camponeses. Já os trabalhadores de carne e osso foram subjugados e
todo o país silenciado pelo partido e sua polícia secreta. As prisões estão
lotadas, não só de contrarrevolucionários, mas de trabalhadores e intelectuais.
“No lugar do velho regime - lamentava o Izvestiia
-, foi inaugurado um novo regime arbitrário, insolente, clientelista, ladrão e
especulador; um regime terrível, para quem é imperativo ajoelhar perante o
altar das autoridades, implorar por cada pedaço de pão, por cada botão de
roupa; um regime pelo qual não se detém do próprio trabalho e sequer se
pertence a si mesmo; um regime de escravidão e degradação... a Rússia Soviética
tem transformado toda a Rússia em um vasto campo de concentração” (21).
Como resolver isso? Como
resgatar o sentido original da revolução? Até 8 de março, data em que os
bolcheviques deram início ao ataque, os insurgentes ainda confiavam numa
solução pacífica. Tinham para si que os princípios justos que guiavam o
movimento por si só mobilizariam o apoio de todo país - em especial, Petrogrado
-, ao ponto de forçar o governo a fazer as necessárias concessões políticas e
econômicas. Todavia, a ofensiva comunista imprimiu uma mudança radical no curso
da rebelião. Daí por diante, foram ignoradas todas as oportunidades para um
acordo ou uma negociação de paz. Para ambos os lados, não restou outra saída a
não ser o caminho da guerra. Kronstadt ergueu um novo estandarte: a “terceira
revolução”. Os rebeldes conclamavam a união de toda a população para dar cabo à
tarefa iniciada em fevereiro e outubro de 1917: “Marcham perseverantes
operários e camponeses, sempre avante! Passaram por cima do regime burguês da
assembleia constituinte e agora deixam para trás a ditadura do partido
comunista, com sua Tcheca e seu capitalismo de Estado, cujo garrote sufoca as
massas trabalhadoras e ameaça estrangulá-las... Kronstadt lança a pedra angular
da terceira revolução, ao romper os últimos grilhões que acorrentavam as massas
trabalhadoras. A terceira revolução irá desbravar um novo e amplo caminho para
a criação socialista” (22).
É muito comum entre historiadores,
ocidentais ou soviéticos, associar o programa de Kronstadt a algum partido de
esquerda antibolchevique. Cabe se perguntar se há alguma verdade em tais
comparações. Sem dúvida, em muitos aspectos, as reivindicados rebeldes coincidem,
de fato, com o espectro ideológico da oposição política de esquerda. Os mencheviques,
os socialistas revolucionários (SR) e os anarquistas também contestavam o
monopólio político bolchevique e, por extensão, o sistema do comunismo de guerra.
Todos esses grupos lutavam por sovietes e sindicatos livres, direitos civis
para operários e camponeses e, sobretudo, pelo fim do terror que encarcerava
socialistas e anarquistas nas masmorras do governo. Ainda em outubro de 1917, socialistas
revolucionários (SR) e mencheviques impulsionaram a ideia pela formação de um
governo de coalizão em que todos os partidos socialistas estivessem
representados, recebendo, inclusive, apoio sincero de um grupo de bolcheviques:
“A nossa posição é a de que se faz necessário constituir um governo socialista
de todos os partidos que estão integrados nos sovietes. Do contrário, não há
alternativa: o monopólio de um único partido redundará no terror político. Não
podemos e não desejamos aceitar tal estado de coisas. Prevemos que a política
atual caminhará... para o estabelecimento de um regime irresponsável e a ruína
da revolução e de todo país” (23).
Os rebeldes dividiam com
os socialistas revolucionários (SR) uma preocupação básica, a saber, a questão
camponesa e a situação dos pequenos produtores, conquanto dispensassem pouco
interesse para os problemas complexos da indústria em grande escala. Mas a
afinidade parava por aí. Como vimos, os marinheiros divergiam radicalmente dos
socialistas revolucionários (SR), sobretudo, acerca das demandas de que estes
não abriam mão, quais sejam, a restauração da assembleia constituinte e o apoio
incondicional ao respeitado líder socialista revolucionário Victor Chernov. Não
é necessário ir mais longe, basta isso para descartar toda e qualquer influência
dos socialistas revolucionários sobre o movimento rebelde de Kronstadt. O mesmo
se poderia dizer a respeito dos mencheviques, que foram em seu tempo os campeões
na defesa do soviete, desde sua aparição em 1905. Todavia, a despeito da base
teórica da fundação do primeiro soviete de Petersburgo, de autoria do líder
menchevique Akselrod, coincidir com as concepções dos marinheiros sobre estes
conselhos, que deviam ser apartidários e contar com a participação de
trabalhadores, soldados e marinheiros, a influência menchevique nunca chegou a
ser muito grande em Kronstadt, tradicional bastião da extrema esquerda. Embora
muitos mencheviques pudessem ser encontrados entre artesões e trabalhadores da
cidade e dos estaleiros (por exemplo, os operários Valk e Romanenko, membros do
Comitê Revolucionário, foram identificados pelas fontes soviéticas como
mencheviques), o programa de Kronstadt fazia tabula rasa das principais
questões que afetavam o proletariado industrial. Portanto, o envolvimento dos
mencheviques na revolta dos marinheiros - a coluna dorsal da insurreição - foi
ínfimo. Vale lembrar ainda que a liderança menchevique de Petrogrado e demais
cidades sempre se posicionou desfavorável à derrubada do regime bolchevique por
força das armas.
A influência do
anarquismo, em compensação, sempre foi muito poderosa na frota de Kronstadt. Mas
a tese de que o levante tinha inspiração anarquista é falsa. Para começar, os
anarquistas mais renomados que atuavam em Kronstadt em anos recentes já não
estavam mais em cena quando estourou a rebelião. Anatoli Zhelezniakov, o
valente e jovem marinheiro que dissolveu a assembleia constituinte, foi morto
na luta contra os brancos (24); I. S. Bleikhman, um dos oradores mais populares
da Praça da Âncora nos anos de 1917, faleceu poucos meses antes de irromper a
revolta; e Efim Yarchuck, figura líder do soviete de Kronstadt durante a
revolução, encontrava-se em Mouscou, onde, quando não estava preso, vivia
constantemente vigiado pela Tcheca. Nem mesmo a história de Kronstadt, escrita
por Yarchuck, ou outra fonte bibliográfica anarquista do período, assinala um
papel de relevo aos anarquistas em 1921. Ademais, uma lista completa de
anarquistas que morreram na guerra civil ou caíram vítimas da perseguição
soviética nos primeiros anos da década de 1920, dentre eles, Zhelezniakov,
Yarchuck e Bleikhman, não elenca sequer um nome de algum kronstadtino (25).
Somente um membro do Comitê Revolucionário Provisório (Perepelkin) esteve
sempre associado ao anarquismo, ainda que de forma indireta. Na verdade, a
única menção aos anarquistas no jornal do movimento aparece na publicação do
manifesto do Petropavlovsk: “Liberdade
de expressão e de imprensa a todos os operários, camponeses, anarquistas e
partidos socialistas de esquerda (26).
[É muito comum em textos publicados
na internet identificar Stepan Petrichenko como adepto do anarcossindicalismo.
A fonte parece ser a Wikipedia, que nas suas referências cita um artigo polonês
intitulado “Naissaar: The Estonian ‘Island of Women’ Once an Independent
Socialist Republic” (tradução para o inglês), de Kazimierz Popławski,
editor-chefe da Przegląd Bałtycki, presidente da Fundação Bałtycka e graduado
em relações internacionais. Grosso modo, o artigo versa sobre a criação da
República Soviética dos Marinheiros e Construtores da Fortaleza da Ilha de
Naissaar (Narva, cidade na Estônia), pela tripulação do Petropavlovsk, em 17 de dezembro de 1917. Petrichenko, que já era
marinheiro do Petropavlovsk, segundo
o artigo, tornou-se o líder do Conselho dos Comissários do Povo. Logo, o
conselho declarou que, “de acordo com a constituição, Naissaar é agora uma
república independente (soviética)”, em seguida oficializou o hino da
Internacional e hasteou a bandeira rubro-negra do anarcossindicalismo. A
republica teve fim com a ocupação da Estônia pelos alemães a 26 de fevereiro de
1918. Lamentavelmente, o artigo não apresenta nenhum referência bibliográfica.
Curiosamente, a bandeira dos kronstadtinos (que ilustra este capítulo - no
alto) é a mesma usada pela República de Naissaar. Em outro verbete, a Wikipedia, em língua
portuguesa, menciona que Petrichenko teria travado contato com Nestor Makhno
quando de sua licença e viagem para a Ucrânia (“Stepan Petrichenko, the leader
of the Kronstadt rising, returned to his native Ukraine between April and the
autumn of 1920”, John Rees, em: In
defence of Bolshevik Revolution in 1917 in Russia - ou In defense of October -, International Socialism 52, 1991; infelizmente,
não tive acesso a integralidade do texto). Já a Wikipedia em inglês menciona
que Petrichenko teria elogiado a makhnovtchina
mas não teria se convencido a se tornar um anarquista - não cita fontes. Peço
desculpas pela extensão da nota - N.T.].
Ainda assim, ecos do
anarquismo, outrora tão vívidos na Kronstadt dos anos de 1917, persistiam na
tripulação. Perepelkin pode ter sido o único anarquista conhecido entre os
líderes rebeldes, porém, sendo coautor da resolução do Petropavlovsk e chefe de
propaganda e ação, desfrutava de boa reputação para propalar seus ideais
libertários entre os marinheiros. Alguns dos bordões do movimento - “sovietes
livres”, “terceira revolução”, “abaixo a comissariocracia” - foram lemas
anarquistas durante a guerra civil, assim como a máxima “todo poder aos
sovietes, não aos partidos”, claramente de matriz anárquica. Por outro lado, a
maioria dos anarquistas teria rejeitado a ideia de tomar o “poder”. Os
marinheiros, por sua parte, nunca cogitaram a eliminação completa do Estado,
condição fundamental de qualquer plataforma anarquista.
Em todo caso, os anarquistas
de toda a Rússia ficaram bastante entusiasmados com o levante e saudaram
Kronstadt como “a segunda comuna de Paris” (27). Contudo, quando as tropas do
governo foram mobilizadas para reprimir o movimento, dos aplausos os
anarquistas passaram às denuncias. No ápice da insurreição, um panfleto de
cunho anarquista foi distribuído pelas ruas de Petrogrado. No texto, lia-se uma
crítica contundente à população da cidade, que dava as costas aos rebeldes
enquanto o estrepitar dos tiros de artilharia assolavam o Golfo da Finlândia. Ora,
os marinheiros levantaram-se por sua causa, povo de Petrogrado, nada mais justo
que, em retribuição, sacudir a letargia e, unidos, dar um basta à ditadura
comunista, para que então o anarquismo possa prevalecer (28). No entanto, para
que se evitasse um banho de sangue, outros anarquistas, como Berkman e Goldman,
optaram pela via da mediação pacificadora, que se revelou infrutífera, afinal.
Em resumo, a rebelião não
foi articulada nem inspirada por nenhum partido ou grupo em particular. O conjunto
da frota era formado por radicais de várias tendências - socialistas
revolucionários (SR), mencheviques, anarquistas e recrutas comunistas. Portanto,
nenhuma ideologia ou plataforma política organizada em torno de uma bandeira
exerceu qualquer influência no movimento de Kronstadt. Mais do que um programa
coerente e propositivo, o credo professado pelos rebeldes era um emaranhado
confuso, vago e indefinido de orientações revolucionárias dos mais diversos
matizes, não chegando a constituir mais que um rol de objeções contra o governo,
um grito de protesto contra a miséria e a opressão. Realmente, os marinheiros
careciam de um projeto sistematizado e propositivo sobre assuntos envolvendo a
agricultura e indústria; muito pelo contrário, entregavam-se cegamente àquilo
que Kropotkin definiu como “o espírito criador das massas” e que devia animar
os sovietes livremente eleitos.
Não sendo possível
enquadrar a ideologia do movimento de Kronstadt nas principais correntes de
esquerda da época, então seria interessante considerá-la, talvez, como uma
espécie de anarcopopulismo, profundamente inspirado na tradição Narodnik de “terra e liberdade” e
“vontade do povo”. De certa forma, o ideário rebelde recuperava o antigo sonho
de uma federação interligada por uma tênue rede de comunas autônomas, onde
camponeses e operários pudessem viver em plena harmonia e cooperação, sob um
regime de liberdade econômica e organização política de base popular. Tal
perspectiva ideológica colocava Kronstadt muito próxima aos maximalistas SR,
uma minúscula célula ultrarradical do partido socialista revolucionário (SR),
que estava situava entre a esquerda SR e os anarquistas. O programa de Kronstadt,
em quase todos os pontos importantes, publicados pelo jornal Izvestiia, coincidia com os ideais maximalistas.
Por isso, não era descabida a afirmação do governo de que o diretor do jornal rebelde
(chamado Lamanov) seria um maximalista (29). Os maximalistas preconizavam a
revolução total, opunham-se à assembleia constituinte e idealizavam “uma
república soviética de trabalhadores” fundada em sovietes livremente eleitos e
com o mínimo de autoridade central e estatal. Politicamente, Kronstadt
compartilhava das mesmas aspirações. Simbolicamente, o lema “todo poder aos
sovietes, não aos partidos”, adotado pelos kronstadtinos, havia sido, em sua origem,
uma divisa maximalista. No campo das políticas econômicas, os paralelos chegavam
a ser ainda mais gritantes. Na agricultura, os maximalistas também denunciavam
as requisições de cereais e as granjas estatais e, em contrapartida, defendiam o
uso pleno e exclusivo da terra pelos camponeses. Na indústria, rechaçavam o
controle operário sob a supervisão de gestores burgueses e defendiam a “direção
sistemática da organização social produtiva por representantes da classe
trabalhadora”. Ambos, rebeldes e maximalistas, rejeitavam a nacionalização das
fábricas e o sistema centralizado de direção estatal, advertindo repetidas
vezes sobre o perigo do “burocratismo”, que reduzia o trabalhador a uma peça
descartável na engrenagem de uma gigantesca máquina impessoal. Para os
maximalistas, o governo deveria se ocupar apenas de funções mínimas de coordenação
e planejamento, resumidas nas seguintes palavras de ordem: “não à direção do
Estado, não ao controle do operário; sim à direção dos trabalhadores, sim ao
controle do Estado”. Em suma, exigiam a transferência imediata dos meios de
produção a quem realmente fazia uso deles, o povo; reivindicação basilar que se
repetia em todos os lemas maximalistas: “Toda terra para os camponeses”, “Todas
as fábricas para os operários”, “Todo pão e manufatura para os produtores”
(30).
[O
autor se refere à União dos Socialistas Revolucionários Maximalistas, expulsa
do PSR em 1906. Após a Revolução de 17, a imprensa ocidental passou a designar
os bolcheviques de maximalistas. Por isso, o texto-resposta “Sobre o
maximalismo” (1919), do escritor brasileiro Lima Barreto, não nos deve causar
estranheza. A confusão deve-se, provavelmente, a um erro de tradução, pois
bolchevique significa “maioria”. Porém, no jargão revolucionário russo da
época, o termo maximalismo aplicava-se a um “programa máximo”, em oposição a
minimalismo, cuja noção implicava uma série de concessões, inclusive, a convocação
de uma assembleia constituinte. No prólogo do livro Historia del movimiento makhnovista (1918-1921) - Piotr Archinov,
Tupac Ediciones/La Malatesta, Buenoa Aires, 2008 -, Volin escreve a respeito de
Archinov: “A causa que o fez passar para o anarquismo foi o minimalismo dos
bolcheviques, que não correspondia, segundo Archinov, com as aspirações reais
dos operários, e que no passado, o mesmo minamalismo de outros partidos, causou
a derrota da revolução de 1905-6” (pág. 15). Quanto a interpretação de Avrich
sobre as afinidades dos marinheiros de Kronstadt com os maximalistas, a mesma
crítica já havia sido feita nos anos de 1920 aos makhnovistas da Ucrânia pelos
anarquistas Marc Mrachny e V. Judoley (Archinov, Piotr, Op. cit., págs. 232 e
233). Caberia aqui especular o contrário e indagar até que ponto o anarquismo
foi influenciado, ainda que de maneira muito indiretamente, pelos populistas
russos (Narodniki) nas figuras de
Kropotkin e do mais brilhante dos anarquistas, Mikhail Bakunin, principalmente,
após a I Internacional quando a concepção revolucionária bakuninista torna-se
majoritária no movimento anarquista (*Recordando que o Catecismo revolucionário de Bakunin é muitas vezes confundido com o
texto homônimo de Netcháiev). Peço desculpas pela extensão da nota - N.T.].
Que o imaginário coletivo
dos rebeldes era essencialmente anarcopopulista fica evidente pelo uso de um
vocabulário peculiar e pela referência aos mitos sociais atinentes. Não à toa, homens
de cujas emoções e retórica reproduziam exatamente os sentimentos dos
camponeses e operários assumiram a responsabilidade pelo setor de propaganda
rebelde. Com seus slogans simples e sentenças arrebatadoras, capturavam o coração
do povo através de uma rude eloquência popular. Os propagandistas de Kronstadt
escreviam e falavam em tom coloquial (como observou um pesquisador) (31), livre
do jargão marxista e de expressões afetadas por estrangeirismos. A palavra
“proletariado” era cuidadosamente evitada, dando-se preferência, bem ao gosto
populista, ao genérico “trabalhadores” - camponeses, operários e “intelligenstia trabalhadora” -, que não
priorizava um sujeito revolucionário específico em desfavor de outros. Por
isso, optavam pelo conceito amplo de revolução “social”, em vez de “socialista”,
pois a luta de classes não era entendida no sentido estreito da contradição
operário industrial versus burguesia, mas numa acepção larga, tipicamente Narodnik, de conjunto das massas
laboriosas contra todos aqueles que lucram com a miséria e a exploração do povo,
o que incluía indistintamente políticos, burocratas, latifundiários e
capitalistas. As ideologias ocidentais - o marxismo e o liberalismo, igualmente
- quase não tinham espaço em seu repertório ideológico. O desprezo pelo governo
parlamentar também era uma herança populista e anarquista. Herzen, Lavrov e
Bakunin, todos eles, condenaram o parlamento como uma instituição corrupta e
adventícia, cujo tagarelar empolado escondia unicamente os interesses das
classes alta e média em prejuízo dos enjeitados e despossuídos. Para estes
últimos, a salvação estava na autogestão local e comunal legada pela tradição
socialista russa.
[É preciso não confundir o uso
corrente da palavra populista com os populistas russos do século XIX, os Narodniki. O primeiro é um conceito
pejorativo formulado pela historiografia conservadora latino-americana
empregado inicialmente para caracterizar um líder caudilhista que granjeia o
apoio popular em seu embate contra as oligarquias, sendo atualmente
generalizado para referenciar qualquer chefe de Estado personalista ou que
governe em nome/ou supostamente em nome da classe trabalhadora. O segundo diz
respeito a uma interpretação do socialismo ocidental, bastante heterogênea e
adaptada à realidade da Rússia, que intelligentsia
russa elaborou a partir de meados do século XIX. O escritor russo Ivan
Turguêniev, para zombar da juventude populista, vulgarizou o neologismo niilismo em seu clássico Pais e filhos, de 1862. Nietzsche, “o
primeiro niilista”, leitor assíduo da literatura russa, fez do niilismo o mote
de sua filosofia, o martelo destruidor da resignação, do ressentimento, dos
valores decadentes, da servidão voluntária, da massificação, mas condição
necessária da vontade de criar novos valores para uma existência afirmativa. Nietzsche,
que odiava o Estado, poderia ter parafraseado Bakunin, amigo de Wagner: “A
ânsia de destruir é também a ânsia de criar” (Bakunin). Peço desculpas pela
extensão da nota - N.T.].
Ademais, os kronstadtinos
ostentavam um forte nacionalismo eslavo, em virtude de suas origens predominantemente
camponesas. Os clamores internacionalistas não iam além do discurso e a verdade
é que os marinheiros mostravam pouco interessa pelo movimento revolucionário
mundial. Nas conversas travadas no dia a dia, os assuntos estavam muito mais
focados na situação concreta do povo russo e no seu futuro do que em temas
abstratos e gerais. Até mesmo o conceito de “terceira revolução” escondia traços
messiânicos à semelhança da doutrina da “terceira Roma” na Moscóvia do século
XVI: “A autocracia desmoronou. A assembleia constituinte foi expulsa para o
reduto dos amaldiçoados. A comissariocracia avança cambaleante. É chegado o
momento do verdadeiro poder dos trabalhadores: o poder dos sovietes” (32). Em
algumas circunstâncias, contudo, o regionalismo camponês mesclava-se com certos
elementos culturais da tradição revolucionária europeia; como quando na ocasião
de uma cerimônia fúnebre ortodoxa realizada na Catedral dos Marinheiros em
homenagem aos rebeldes mortos em combate. Após o ato solene de encerramento, os
presentes entoaram o refrão da “Marseillaise” (33). Mas o caráter populista
predominante no movimento não se manifestava apenas na liturgia religiosa ou
nas convicções sociopolíticas. Os mitos folclóricos da tradição entrelaçavam
com fios escarlates a trama complexa da ideologia revolucionária de Kronstadt.
Um destes mitos, profundamente
consolidado na psique camponesa, era a crença de que o Estado centralizado
formava um corpo estranho, forçosa e artificialmente enxertado sobre os ombros
da sociedade, como um fardo pesado e opressivo. O ódio que o povo devotava aos
governantes tinha profundas raízes históricas nas revoltas cossacas e camponeses
dos séculos XVII e XVIII (34). Para Stenka Razin e Pugachev, a pequena nobreza
governante não pertencia ao povo russo, o narod,
mas a uma classe à parte de parasitas que sugavam o sangue dos camponeses. No
imaginário popular remanescia uma percepção maniqueísta cujas forças do bem,
encarnadas no povo humilde, estavam em eterno confronto com as forças do mal, o
Estado e seus funcionários. Herdeiros da tradição espontaneísta de revolta
popular (buntarstvo), na luta contra o
despotismo burocrático, os marinheiros de Kronstadt descendiam diretamente desses
primeiros rebeldes. Assim como Razin e Pugachev enfrentaram “os boiardos e
capatazes”, os kronstadtinos combatiam “os comissários e burocratas”. Os
antigos crimes cometidos pela nobreza agora eram praticados por uma nova classe
dominante, o Partido Comunista: o único responsável por todas as desgraças do
povo, ou seja, fome, guerra civil, escravidão e exploração.
A aversão dos marinheiros
aos funcionários estatais, expressão de um inveterado sentimento plebeu, foi
sintetizada pelo título “Nós e Eles”, de um editorial do Izvestiia de Kronstadt, publicado logo após o primeiro assalto
bolchevique. Em destaque, o termo “comissariocracia”, epíteto favorito dos
rebeldes para nomear o regime soviético: “Lênin costumava dizer que ‘o
comunismo é o poder soviético mais a eletrificação’ [...de todo país - N.T.]. Mas o povo está convencido de que no regime
bolchevique o comunismo é a comissariocracia mais os pelotões de fuzilamento” (35).
Os funcionários bolcheviques eram criticados por formar uma nova casta de
privilegiados. De acordo com o editorial, eram pessoas egoístas que desfrutavam
de altos salários, maiores porções de ração e alojamentos aquecidos, para os
quais eram negados ao resto da população. Recordemo-nos dos ataques a Kalinin,
expulso da Praça da Âncora debaixo de vaias e gritos: “Você mora numa casa
quentinha”; “Olhe para todos os cargos que você conseguiu; aposto que ganhou
muito de dinheiro com eles”. Os funcionários do partido eram acusados de roubar
os frutos da revolução e impor uma nova forma de escravidão sobre o “corpo e alma”
da Rússia. “Eis o brilhante reino do socialismo, onde todos estão submetidos à
ditadura do Partido Comunista”, lastimava o último número do rebelde Izvestiia. “Temos alcançado o estado
socialista através da estrita obediência de funcionários dos sovietes que votam
em conformidade aos ditames do comitê partidário e de seus comissários
associados. O lema ‘quem não trabalha não come’ foi alterado pelo novo regulamento
‘soviético’ que ordena ‘tudo para os comissários’; para os operários,
camponeses e a intelligenstia
trabalhadora, a labuta tediosa ou longas férias de trabalhos forçados nos cárceres
do governo” (36).
Como era de se esperar, Zinoviev
e Trotsky tornaram-se o alvo principal da ira de Kronstadt. “Sob as luzes de
castiçais luxuosos, nos aposentos dos palácios czaristas, ricamente adornados,
estão sentados confortavelmente em poltronas macias Trotsky e Zinoviev,
entretidos horas a fio em meditações sobre qual a maneira mais eficiente para verter
o sangue rebelde” (37). Zinoviev era o abominado chefe de uma das seções do
partido que reprimiu a greve dos operários de Petrogrado e que, durante a
rebelião, num ato de extrema baixeza, fez de reféns os familiares dos
marinheiros. Mas a bête noire,
suprassumo da fúria dos rebeldes, era o Comissário de Guerra e presidente do
Conselho Revolucionário de Guerra, Leon Trotsky, o implacável autor do ultimato
do dia 5 de março e o responsável pela ordem de ataque três dias depois. Em sua
homenagem, os rebeldes colecionavam um arsenal de alcunhas nada elogiosas: “Trotsky,
o sanguinário capitão-mor”; “reencarnação de Trepov”; “Maliuta Skuratov...
chefe da oprichnina comunista” [“Oprichnina”:
tribunal ou reinado do terror da época do czar Ivan, o Terrível - N.T.]; “o gênio
do mal da Rússia”, que “como um falcão mergulha com garras afiadas sobre nossa
heroica cidade”; um monstro da tirania que está “atolado até o pescoço no
sangue dos operários”. A 9 de março, o Izvestiia
rebelde publicou esta nota: “Ouça, Trotsky, apesar das ofensas endereçadas a
Kronstadt pelos comissários do partido, os líderes da Terceira Revolução lutam
pelo verdadeiro poder dos sovietes” (38).
Fiéis à tradição populista,
os rebeldes traçaram uma linha separando Lênin de Trotsky e Zinoviev - quase
como uma reminiscência das narrativas populares que traziam alusões a histórias
de traidores boiardos que ocultavam do czar o sofrimento do povo. As classes
baixas russas tradicionalmente poupavam de seu ódio o soberano, o qual o
veneravam como um paizinho ungido; inversamente, os corruptos palacianos e os conselheiros
da corte real, exímios na arte da intriga, eram tidos como a encarnação do
próprio mal e perversidade. Não era o autocrata, isolado e distante, que
oprimia os pobres: “Deus está nos céus - rezava o velho provérbio -, e o czar, longe,
longe demais”. Quem esfolava os camponeses e a gente pobre das cidades,
submetendo-os na mais profunda miséria e degradação, eram os senhores feudais e
funcionários do governo.
É bastante significativo
que a figura de Lênin tenha encontrado eco na tradição popular, notadamente,
entre os rebeldes de Kronstadt. Na primeira semana do levante, enquanto Trotsky
e Zinoviev, em Petrogrado, despejavam ameaças sobre os marinheiros e preparavam
uma ofensiva contra a fortaleza, Lênin permanecia em Moscou às voltas com o
decreto, do dia 2 de março, que declarava fora da lei Kozlovsky e seus supostos
cúmplices. Enquanto o jornal de Kronstadt andava ocupado em denunciar os
“gendarmes” Trotsky e Zinoviev por “ocultarem a verdade” do povo, Lênin não era
citado sequer uma única vez (39). Todavia, na sessão de abertura do X Congresso
do Partido, realizada a 8 de março, Lênin surgiu dos bastidores e condenou
a revolta como obra de generais da Guarda Branca e outros elementos
pequeno-burgueses inseridos na população da cidade. Depois do discurso de Lênin,
o Comitê Revolucionário de Kronstadt criticou-o pela primeira vez. Os
camponeses e operários, declarava o Izvestiia,
“nunca acreditaram em uma só palavra de Trotsky e Zinoviev”, mas não esperavam
de Lênin tanta “hipocrisia”. Um poema publicado no Izvestiia dedicava versos irônicos ao “czar Lênin”. E, agora, o
jornal tripudiava o “escritório de Lênin, Trotsky & Cia.”, enquanto antes só
se falava de “Trotsky e Cia., sedentos de sangue” (40).
Mesmo assim, Lênin ainda
merecia um pingo de simpatia, suficiente para mantê-lo longe de seus cúmplices.
Por exemplo, o Izvestiia de 14 de
março reproduziu uma nota referente a uma recente discussão sobre os sindicatos
em que o líder bolchevique teria desabafado o seguinte: “Tudo isso me aborrece
mortalmente. Se eu ainda estivesse com saúde, ficaria feliz em jogar tudo isso
para o alto e fugir para um lugar bem distante daqui”. “Mas - acrescentava o Izvestiia - os companheiros de Lênin não
o permitiram fugir. Lênin é um prisioneiro, obrigado por eles a proferir
calúnias” (41). Eis aqui, em sua forma mais pura e cristalina, a antiga lenda
do czar benevolente cativo dos traidores boiardos. Lênin continuou sendo
venerado, como uma figura paternal. Quando os retratos de Trotsky e outros
líderes bolcheviques foram arrancados das paredes das oficinas de Kronstadt, os
de Lênin permaneceram intactos (42). Mesmo depois do banho de sangue, Kronstadt
não mudou de opinião sobre o líder bolchevique. Em um campo de concentração na
Finlândia, Yakovenko, vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório,
diferenciava Lênin de seus colegas bolcheviques. Marinheiro barbudo, alto, de
poderosa compleição, Yakovenko lutara ao lado dos bolcheviques na Revolução de
Outubro. Mas agora estava enfurecido com o partido, que traíra seus próprios
ideais e promessas socialistas. Com o rosto vermelho de raiva, amaldiçoava o “assassino
Trotsky” e o “canalha Zinoviev”. “Já Lênin, eu respeito” - ponderava. “O
problema é que Trotsky e Zinoviev arrastaram-no junto com eles. Ah! como
gostaria de ter esses dois em minhas mãos” (43).
Pois bem, Trotsky
tornara-se o símbolo por excelência do comunismo de guerra, ou seja,
representava tudo aquilo pelo qual os marinheiros haviam se rebelado. O nome do
comandante geral do Exército Vermelho significava centralização, militarização,
disciplina espartana e recrutamento obrigatório. Com relação aos sindicatos,
Trotsky instituíra uma gestão de linha dura e dogmática, contrastando com o
enfoque leninista de conciliação. Diferentemente de Lênin, que compreendera a
importância da colaboração camponesa para a escalada e sustentação do poder, um
resquício da heresia Narodnik na
opinião de seus contemporâneos ortodoxos, Trotsky igualmente desprezava o campesinato
enquanto força revolucionária. Onde Trotsky mostrava-se intolerante,
extravagante e arrogante, exibindo aquilo que Lênin, em seu famoso “Testamento”,
chamou de “excessiva confiança em si mesmo”, Lênin era estimado por seus
hábitos simples e pela falta de ambições pessoais.
Ademais, Lênin era grande
russo [Relativo à Grande Rússia. A partir do século XX, o adjetivo “russo”
substituiu “grande russo”; do mesmo modo, “pequeno russo” e “russo branco”
passaram a ucraniano e bielorrusso, respectivamente - N.T.], natural da região
média do Volga, o coração da Rússia camponesa. Frugal, humilde e austero, Lênin
era visto como um simples filho da Rússia, bastante acessível em épocas de
sofrimento e com quem o povo podia contar em momentos de grande aflição. Num
sentido oposto, Trotsky e Zinoviev eram judeus, sendo ambos identificados não
com a Rússia mas com a ala internacionalista do movimento comunista. De fato,
Zinoviev presidia o Komintern e Trotsky, de acordo com Comitê Revolucionário de
Kronstadt, foi o responsável, durante a guerra civil, pela morte de milhares de
pessoas inocentes que eram “de uma nacionalidade diferente da sua” (44). Embora
os rebeldes censurassem o antissemitismo, não há dúvida de que o preconceito
contra judeus corria solto na frota do Báltico. Muitos marinheiros provinham da
Ucrânia e dos confins fronteiriços do oeste, regiões bem conhecidas por um
virulento sentimento antissemita. Para homens de extração camponesa ou operária,
os judeus sempre foram o bode expiatório preferido em épocas de escassez e
crise. Aliás, a partir do momento em que a revolução extinguiu o feudalismo e o
capitalismo da Rússia, o regionalismo inerente à índole dos marinheiros
encontrou em seu próprio meio elementos “estranhos” e indignos de confiança: os
comunistas e os judeus.
Não obstante, os
marinheiros só sabiam da origem judaica de Trotsky e Zinoviev por causa da abundante
propaganda antissemita que circulava nos anos da guerra civil, na qual os
brancos tentavam associar o comunismo a uma conspiração judaica. “Bronstein (Trotsky),
Apfelbaum (Zinoviev), Rosenfeld (Kamenev), Steinberg - todos eles são iguais
aos milhares de filhos legítimos de Israel”, lia-se num panfleto em que os
brancos acusavam os judeus bolcheviques de arquitetar um complô para dominar o
mundo (45). É muito provável que desvarios do gênero fossem muito comuns na
frota do Báltico. As anotações de um marinheiro lotado na base naval de
Petrogrado durante o levante de Kronstadt podem nos dar um testemunho de sua recorrência
(46). Em uma passagem particularmente maledicente, o referido marinheiro descreve
o regime bolchevique como a “primeira república judaica” do mundo. Noutro
fragmento, o tema do “boiardo malvado” da mitologia popular reaparece sob uma
versão atualizada, ao rotular os judeus como a “nova nobreza” dos “príncipes
soviéticos”. Por óbvio, Trotsky e Zinoviev (ou Bronstein e Apfelbaum, como
frequentemente os chama) não escapam de seu fel e o ultimato do governo é
classificado como um “ultimato do judeu Trotsky”. Conforme relata o autor
das memórias, impressões como as suas eram compactuadas pelos marinheiros, que estavam
convencidos de que foram os judeus, não os camponeses e operários russos, os reais
beneficiários da revolução. Afinal, os judeus ocupavam os postos de
comando no diretório do Partido Comunista e cargos executivos no Estado soviético;
infestavam [No original: they infested
- N.T.] as repartições governamentais, especialmente o Comissariado de Alimentação,
a fim de prevenir que seus conterrâneos não perecessem com a fome; e os destacamentos
de inspeção de estrada – a tão odiada instituição -, mesmo tendo 90% da tropa
constituídos por russos autênticos, eram quase sempre comandados por judeus. Tais
crenças eram bastante comuns não só em Kronstadt como também em Petrogrado e,
talvez, em muitas outras localidades da Rússia. Lembremo-nos de Vershinin,
membro do Comitê Revolucionário, na ocasião em que tentou parlamentar com uma
tropa soviética: “Basta de ‘hurras!’, sigam conosco; unidos derrotaremos os judeus,
a sua maldita dominação, a qual somos todos, operários e camponeses, obrigados
a suportar” (47).
O profundo desprezo que
os rebeldes sentiam pela burocracia comunista não impedia que sentissem algum
apreço pelos militantes da base do partido. Além disso, não rejeitavam os
ideais do comunismo propriamente dito. É bem verdade que, em entrevistas
concedidas na Finlândia logo após o levante, alguns membros do Comitê
Revolucionário Provisório mencionaram os comunistas com uma boa dose de
amargura, acusando-os de “usurparem os direitos do povo” (48). Evidentemente, a
sangrenta repressão contribuiu ainda mais para potencializar o ressentimento
dos líderes da revolta. No entanto, o mais das vezes, consideravam as
lideranças comunistas como simples correligionários do partido. Aliás, os
rebeldes que foram ex-comunistas, dentre os quais, o presidente Petrichenko e o
secretário Kilgast do Comitê Revolucionário, acreditavam que os ideais da
revolução haviam sido deturpados e, por isso, lutavam pela restauração da
pureza do princípio. Semelhante entendimento ecoava por toda a frota, como
demonstra a seguinte afirmação exemplar de um marinheiro filiado ao partido: “Um
grupelho de burocratas, mascarados de comunista, nidificou para si mesmos um
recanto aconchegante em nossa república, depois de ter transformado toda a
Rússia em um ‘pântano tenebroso’” (49).
Em que pese toda a sua
repugnância pela hierarquia bolchevique, os marinheiros jamais pretenderam
acabar com o partido ou excluí-lo do governo ou da vida social russa. “Sovietes
sem comunistas” nunca foi um lema de Kronstadt, como sustentam alguns
historiadores soviéticos e não soviéticos. O lema existiu, sim, entre grupos
de camponeses da Sibéria, no período da guerra civil, e entre os guerrilheiros
de Makhno, na Ucrânia, que militavam por sovietes sem comunistas (50). Os
marinheiros de Kronstadt, entretanto, nunca adotaram a consigna. Afirmar o
contrário contribui para promover a lenda em torno da rebelião de Kronstadt,
mas não corrobora com a verdade. O equívoco parece ter surgido dos slogans “Sovietes
em vez de bolcheviques” (Sovety vmesto
Bol'shevikov) e “Abaixo os bolcheviques, longa vida aos sovietes”, atribuídos
erroneamente aos rebeldes por um emigrado russo exilado em Paris, o líder Kadet
Miliukov. Segundo escreveu, os marinheiros almejavam que o poder passasse das
mãos da ditadura unipartidária vigente para as mãos de uma coalizão formada por
partidos socialistas e radicais não partidários que atuariam em conjunto nos
sovietes sem a participação dos comunistas. Estabilizada a situação política,
concluía Miliukov, o terreno ficará aberto para a restauração da assembleia constituinte
em nível nacional (51). Todavia, esta era uma descrição bastante inexata do
programa de Kronstadt, como sabemos. Os rebeldes sempre rejeitaram a assembleia
constituinte e jamais deixaram de franquear um lugar para os bolcheviques
dentro das organizações políticas de esquerda. Na prática, os comunistas foram afastados
das revtroivki locais, instituídas
durante a insurreição; porém, na conferência de delegados eleitos, que era uma
reunião que mais se aproximava dos sovietes livres que Kronstadt tanto sonhara,
os bolcheviques lograram ampla participação.
O verdadeiro objetivo da
rebelião nunca foi o de eliminar o comunismo, senão reformá-lo, filtrá-lo de
suas tendências ditatoriais e burocráticas que se avultaram a partir da guerra
civil. A este respeito, Kronstadt não era diferente das tendências de oposição
que surgiram dentro do próprio Partido Comunista: a “oposição da frota”, a Central
Democrática e a Oposição Operária. Em comum com todas elas, o mesmo
descontentamento com as políticas do governo; o mesmo idealismo de esquerda. A crítica
dos métodos arbitrários e da administração exercida com mãos de ferro pelos comissários
políticos nos assuntos da corporação conectava os marinheiros à “oposição da frota”,
à qual muitos deles eram filiados. O questionamento ao crescente autoritarismo
das lideranças bolcheviques, que minava por dentro a “democratização” do
partido e dos sovietes, era o elo que os unia à Central Democrática. Com a
Oposição Operária, compartilhavam da mesma objeção à “militarização” do
trabalho, concepção ampla que abarcava desde a direção unipessoal; a rigorosa disciplina
nas fábricas; o atrelamento dos sindicatos às diretrizes do partido; o retorno dos
“especialistas burgueses” às posições de chefia e gerenciamento. Finalmente,
afinados com todos esses grupos de oposição, os rebeldes de Kronstadt deploravam
o progressivo isolamento do partido, cada vez mais afastado do povo, e atacavam
os líderes bolcheviques por violar o espírito essencial da revolução - ao sacrificar
os ideais democráticos e igualitários no altar do poder e da eficiência (52).
Contudo, os pontos de convergência
com as correntes de oposição do partido encontravam obstáculos intransponíveis inerentes
à própria razão fundamental de ser dos rebeldes que os separavam em campos
opostos. Enquanto os rebeldes conservavam vínculos estreitos com o campesinato,
a Oposição Operária e Central Democrática eram agremiações urbanas constituídas
por operários fabris e intelectuais indiferentes às necessidades camponesas. Ademais,
as duas correntes não só não colocavam em xeque o monopólio do poder bolchevique
como também justificavam o uso do terror quando necessário fosse. Se tanto, pleiteavam
por reformas internas no partido e nunca advogaram pela divisão do poder
político com outras organizações socialistas. Sobretudo, as afinidades com o
programa de Kronstadt causavam embaraço aos líderes da oposição do partido. Por
fim, renunciaram a todas as suas demandas para não serem confundidos com os amotinados.
No X Congresso do Partido, os representantes da Oposição Operária, Shliapnikov
e Kollontai, desautorizaram qualquer insinuação que pudesse envolvê-los de
alguma forma com levante de Kronstadt. Em seguida, demonstrando muita
indignação, reiteraram as observações de Lênin feitas na seção de abertura, ao culpar
o “espontaneísmo anarquista pequeno-burguesa” pela origem da rebelião.
Constrangida pela assembleia, Kollontai declarou que os membros da Oposição
Operária seriam os primeiros voluntários a ir para o front combater os rebeldes
(53). Outro líder da oposição, que estava em Berlim na época da revolta,
chefiando uma missão comercial soviética, de nome Yuri Lutovionov, ao conceder
uma entrevista, denunciou os rebeldes tomando como base o relatório oficial do
governo que tratava o levante como um complô da Guarda Branca com o apoio de mencheviques
e socialistas revolucionários (SR). A demora no uso da força, explicava
Lutovionov, devia-se a uma decisão do governo em poupar o sofrimento da população
civil da cidade; porém “o aniquilamento da aventura de Kronstadt não tardará a
chegar” (54).
Enquanto isso, em Kronstadt,
a organização comunista local havia sido infectada pelo vírus da oposição. A
rebelião, segundo admitia o próprio Trotsky, “atraiu para as suas fileiras um
número não pequeno de bolcheviques”; alguns por temor de represálias; outros, a
maioria, por sinal, porque aprovavam o programa rebelde. Em termos mais
precisos, Trotsky calculava que pelo menos 30 por cento dos comunistas de Kronstadt
participaram ativamente da revolta, enquanto 40 por cento assumiram uma
“posição neutra” (55). Ao final da guerra civil, a insatisfação que tomava
conta do espírito rebelde foi traduzida em números que apontaram para uma
redução dramática de filiados do partido, de 4000 a 2000. A queda à metade pode
ser explicada pela grande onda de deserções que chegou ao clímax entre os meses
de setembro de 1920 e março de 1921. No curso da rebelião, a organização
partidária de Kronstadt decresceu vertiginosamente. Abandonaram o partido ao
menos uns 500 militantes; sem contar uns 300 aspirantes que desistiram da
inscrição partidária. O restante, de tão desmoralizados, segundo o relato de um
deles, desaprovou a revolta com vacilação e indecisão (56).
A onda de descontentamento
refletia-se nas longas listas de desfiliados que eram publicadas de tempos em
tempos pelo Izvestiia de Kronstadt.
Em apenas duas edições, mais de 200 nomes estamparam as colunas do jornal. O
assalto bolchevique dos dias 7 e 8 de março aparecia como uma das principais causas
das desistências. “Eu me estremeço só de pensar - escreveu uma professora da escola
de Kronstadt, logo após o primeiro bombardeio - que eu possa ser considerada
cúmplice do derramamento de sangue de vítimas inocentes. Sinto que já não posso
mais acreditar e defender um partido que é o grande culpado por estes atos de
selvageria. Quando ouvi o primeiro disparo, renunciei sem pestanejar a minha
candidatura de admissão ao Partido Comunista” (57). À medida que o bombardeio intensificava-se,
tanto maior o êxodo no partido de Kronstadt. Todos os dias, o Izvestiia publicava cartas de leitores
comunistas condenando o governo pelo uso da violência, ao mesmo tempo em que
aprovavam as contramedidas do Comitê Revolucionário. Todavia, aqueles que
declaravam publicamente sua retirada do partido, não renunciavam aos ideais do
comunismo. No geral, o conteúdo das mensagens reprovava os líderes do partido
que perverterem os ideais comunistas em benefício próprio. Um professor de Kronstadt,
por exemplo, lamentava a presença de carreiristas dentro do partido, com sua
influência nefasta, escreveu: “macularam os belos ideais comunistas” (58). Em
outra missiva, remetida por um comandante vermelho da guarnição de Kronstadt,
filho de um populista condenado ao exílio no célebre “Julgamento dos 193”, na
década de 1870 [Marco do populismo russo, quando estudantes saíram das cidades
para viver como camponeses na famosa “ida ao povo” - N.T.], lia-se o seguinte
desabafo: “Eu cheguei à compreensão de que as políticas do Partido Comunista
têm conduzido o país a um beco sem saída. O partido burocratizou-se... recusa-se
a ouvir a voz das massas, às quais deseja impor sua vontade... somente com liberdade
de expressão e maior oportunidade para todos na reconstrução do país, através de
eleições limpas, poderemos tirar o país da letargia em que se encontra... eu me
recuso, de agora em diante, a considerar-me um membro do Partido Comunista
russo. Venho através desta, manifestar meu apoio integral à revolução aprovada
pela assembleia municipal do primeiro de março, e desde já me coloco à inteira
disposição (do Comitê Revolucionário), com todas as minhas forças e energias”
(59).
Enquanto durou a rebelião,
não houve nenhuma oposição séria por parte da organização comunista de Kronstadt.
A 2 de março, um grupo leal ao partido, contando com cerca de uns duzentos
homens bem armados, reuniu-se na Escola Superior do Partido a fim de resistir
ao avanço do movimento rebelde. Contudo, percebendo que as circunstâncias não
eram propícias para um enfrentamento, fugiram para Krasnaya Gorka (60). Logo no
início das movimentações, outros homens do partido abandonaram a ilha e foram
até os fortes para, numa tentativa vã, sublevá-los contra os insurgentes. Enquanto
isso, o Comitê Revolucionário ordenava a prisão dos principais líderes
bolcheviques. As primeiras prisões ocorreram na ocasião em que se realizou
assembleia na Casa de Educação, no dia dia 2 de março. Foram presos Kuzmin,
comissário da frota; Vasiliev, presidente do extinto soviete; e Korshunov,
comissário da esquadra de guerra de Kronstadt. No dia seguinte, o chefe do Pubalt, E. I. Batis, foi feito
prisioneiro por uma patrulha rebelde quando tentava atravessar a superfície de
gelo a caminho do forte Totleben (61). Entre os encarcerados, encontravam-se o
doutor L. A. Bergman, bolchevique veterano de Kronstadt, e o secretário do
comitê partidário do distrito.
Outros funcionários
evitaram a detenção ao aceitarem colaborar com os rebeldes. A 2 de março, formou-se
um “Bureau Provisório da Organização de Kronstadt do Partido Comunista Russo”,
constituído pelos bolcheviques Ia. Ilyin, comissário de abastecimento de
alimentos, F. Pervushin, antigo líder do soviete, e A. Kabanov, presidente do
Conselho Sindical de Kronstadt. O bureau emitiu uma declaração, a 4 de março,
reconhecendo a necessidade de um novo pleito eleitoral para os sovietes. Além
disso, o comunicado aconselhava a todos os comunistas de Kronstadt a permanecer
em seu trabalho e obedecer as ordens do Comitê Revolucionário. Advertia,
ademais, para os “boatos maliciosos” inventados pelos agentes da Entente, que
espalhavam mentiras sobre eventuais manobras do governo para debelar a rebelião
ou sentenças de fuzilamento dos prisioneiros comunistas em Kronstadt (62). A
cooperação de Ilyin, como veio a se verificar, foi decepcionante, porque se
utilizava de ardil para ganhar tempo, enquanto espera a chegada de ajuda do continente.
Na calada da noite, Ilyin repassava por telefone informações a seus superiores
em Krasnaya Gorka, relatando sobre a situação do abastecimento de alimentos em Kronstadt.
A astuciosa operação, todavia, foi descoberta, Ilyin preso e seu bureau fechado.
Desde então, não se ouviu mais seu nome até enquanto durou a revolta (63).
Em síntese, cerca de 300
comunistas foram presos durante toda a insurreição, a maioria funcionários
locais capturados enquanto tentavam escapar ou porque foram considerados
perigosos pelo Comitê Revolucionário. Embora a escalada de prisões não
resultasse numa soma insignificante, pois correspondia a mais ou menos um
quinto de todos os militantes do partido de Kronstadt, não deixa de ser notável
o fato de que os rebeldes tenham deixado em liberdade tantas pessoas sem lhes
causar a mínima importunação, ainda mais quando sabemos que as autoridades, por
sua parte, executaram quarenta e cinco marinheiros em Oranienbaum e fizeram
reféns os entes queridos dos kronstadtinos. É possível que o cativeiro dos familiares
sequestrados, ainda que despertasse a fúria dos insurgentes, talvez, tenha freado
a sua sede de retaliação. De qualquer modo, Kronstadt destacou-se pelo
tratamento humano concedido aos seus adversários em momentos de grande emoção e
tensão. Nenhum dos 300 prisioneiros bolcheviques sofreu qualquer arranhão. Não
houve execuções, torturas ou agressões. Afinal, a revolta não se dava contra os
brancos, a quem os marinheiros odiavam do fundo de sua alma e teriam os executado
sem o menor pingo de remorso. A revolta era contra os seus camaradas revolucionários,
com quem compartilhavam ideais e cujas políticas equivocadas só queriam
reformar. No entanto, alguém poderia se perguntar sobre qual seria o destino de
Trotsky ou Zinoviev se por um acaso caíssem nas mãos dos rebeldes...
Fosse quem fosse, ainda
assim os personagens mais impopulares receberiam um tratamento justo e
humanitário. Por isso, são improcedentes, sem qualquer base na realidade, as informações
de que Kuzmin teria sido mal tratado na prisão e escapado por um triz da execução
sumária. Quando tudo terminou, Victor Serge correu para acudi-lo em Smolny,
tendo o encontrado vigoroso e saudável. Kuzmin relativizou aquilo que chamou de
“exageros” sobre sua prisão e confessou que, na verdade, ele e seus camaradas
receberam tratamento digno. Nem Ilyin, que traíra os rebeldes de modo torpe com
seus telefonemas e que, por causa disso, tanto irritou Petrichenko, sofreu
retaliações enquanto esteve detido (64). Até mesmo quando o Comitê
Revolucionário tomou conhecimento de que parentes dos comunistas em Kronstadt
estavam sendo vítimas de represálias ou despedidos de seus empregos,
repreendeu a população pela conduta vingativa: “A despeito de todos os atos
ultrajantes que os comunistas têm-nos assacados, devemos agir cautelosamente
para limitar-nos somente a bani-los da vida pública, de modo que suas
artimanhas maliciosas e hipócritas não nos atrapalhem em nossa jornada
revolucionária” (65).
Mesmo assim, o governo
bolchevique demonstrou bastante preocupação com a sorte dos prisioneiros em
Kronstadt e respondeu à primeira onda de prisões com o vexaminoso episódio dos
reféns e a ameaça de que se algo grave acontecesse aos comunistas as
consequências seriam seriíssimas. Apesar de tudo, justificativas não faltavam.
Os presos, segundo o testemunho de um deles, viviam aterrorizados diante da
possibilidade de serem fuzilados a qualquer momento (66). E a situação só
piorou quando cinquenta comunistas do forte Krasnoarmeets foram rendidos ao
tentarem fugir para a costa da Carélia. Em outras ocasiões, legalistas tentaram
estabelecer contato com o continente, por meio de sinais de refletores e
sinalizadores disparados à noite. Em represália, os rebeldes passaram a aplicar
sanções aos bolcheviques, que se intensificaram ainda mais logo após o ataque
de 8 de março. Dois dias depois, veio a ordem para que se entregassem as armas
e os refletores em poder dos comunistas. Logo em seguida, o Comitê Revolucionário
solicitou à população que denunciasse eventuais traidores que, por assim dizer,
tentavam se comunicar com os inimigos através de códigos e sinais. “A punição
será aplicada no ato, de acordo com as leis ditadas pelo calor das horas –
advertia o Izvestiia - sem a
necessidade de julgamento em um tribunal constituído”. Mas houve casos de menor
gravidade, como quando dois membros do partido foram acusados de estocar
alimentos. Ou quando 280 pares de botas foram apreendidos de prisioneiros
bolcheviques que receberam em troca sandálias. Na reunião dos delegados do dia
11 de março, foi comunicado que as botas seriam destinadas aos rebeldes que
montavam guarda sobre o chão de gelo. O anúncio foi saudado com aplausos e
gritos de “muito bem! tirem os casacos deles também!” O que aparentemente foi
feito, segundo relatou mais tarde um prisioneiro que teve o casaco e as botas
confiscados (67).
“Nossa revolta é um
simples movimento de libertação contra a opressão bolchevique; uma vez
alcançado nosso objetivo, o povo estará livre para agir por sua própria
vontade”. Foram as palavras de Petrichenko a um jornalista norte-americano na Finlândia
que pedia explicação sobre as causas da revolta de março (68). Numa única frase,
condensou todo o espírito da rebelião. De fato, o que definia Kronstadt era o
espontaneísmo característico das insurreições camponesas e manifestações
operárias daquela quadra. Considerados um só fenômeno, seguiam a tradição de Razin
e Pugachev. Sob este contexto, os marinheiros desempenhavam um papel análogo aos
cossacos e strel'tsy, de cuja
propensão para estouros repentinos contra todo poder despótico eram herdeiros
por excelência. A mesma tradição eclodira em 1917, numa reedição da clássica “revolta
russa, cega e impiedosa”, como Pushkin descreveu a pugachevschina do século XVIII [Alexander Pushkin é tido como o
maior poeta da Rússia e fundador da moderna literatura russa. A citação
refere-se à novela A filha do capitão,
de 1836 - N.T.]. Para anarquistas, maximalistas e outros extremistas de esquerda,
a “revolução social” havia enfim chegado. Então, uniram sua sorte à dos bolcheviques,
cujos lemas, alguns emprestados dos sindicalistas e socialistas revolucionários
(SR), ajustavam-se aos ideais inspirados pela tradição. “A terra para os
camponeses! Abaixo o governo provisório! Controle operário das fábricas!” Como
programa revolucionário, estava mais próximo do narodnichestvo do que do marxismo, o que exercia uma forte atração
sobre os instintos anarcopopulistas dos elementos incultos da população russa.
Depois de outubro,
entretanto, Lênin e seu partido estavam determinados a consolidar o poder
conquistado e tirar o país do caos social. Logo, deram início ao processo de
centralização autoritária, de cima para baixo, que desviava a revolução de sua cepa
popular. Para tanto,
esforçaram-se por minar da base revolucionária a hegemonia reinante do campesinato e das classes trabalhadoras, para quem a
revolução sempre foi a negação do centralismo e autoritarismo. Assim sonhava o
povo, que se entregou em sacrifício por uma sociedade descentralizada e fundada
sobre a iniciativa local e a autogestão. Depois séculos de provações, que agora
os deixasse em paz! Não à toa, os camponeses passaram a diferenciar os
“bolcheviques”, que eliminaram os nobres e distribuíram a terra entre todos,
dos “comunistas”, que instituíram as granjas estatais e enviaram equipes de requisição
para oprimir o campo. Em 1917, os bolcheviques prometeram o Milênio
anarcopopulista; em vez disso, depois de ter assegurado o poder, introduziram
os antigos axiomas do poder estatal.
Em termos gerais,
existiam duas tendências fundamentalmente opostas dentro da tradição revolucionária
russa. A tendência centralista, representada por Lênin e seu partido, visava
substituir a velha ordem por uma ditadura revolucionária. A outra via, trilhada
por anarquistas e socialistas revolucionários (SR), tencionava a autogestão descentralizada,
o fim da autoridade governamental e uma organização social confiada aos
instintos democráticos do povo. Obviamente, o regionalismo camponês e a
tradição da rebelião espontânea colocava Kronstadt na segunda categoria. Opositores
do despotismo centralizado em todas as suas formas, os marinheiros voltaram-se
contra o caráter elitista do socialismo de Estado de seus antigos aliados
bolcheviques. No embate, os marinheiros chegaram até a colocar em dúvida a
sinceridade do socialismo bolchevique. Para os rebeldes, assim como para
Bakunin, antes deles, socialismo sem liberdade individual e autodeterminação - pelo
menos para as classes baixas - não era senão uma nova forma de tirania, até
pior em muitos aspectos que aquela que foi suplantada pelos bolcheviques.
Esta divergência
estrutural constituía a base do conflito de março de 1921. O bolchevismo sempre
expressou sua desconfiança em relação ao espontaneísmo das massas populares. Lênin
acreditava que, se deixassem os operários e camponeses livres para dispor
livremente dos meios de produção, estes acabariam por se contentar com reformas
parciais ou, pior ainda, cairiam nas mãos das forças reacionárias. As massas
deveriam ser lideradas “de fora” por uma obstinada vanguarda revolucionária.
Pressuposto básico da filosofia política leninista, Kronstadt não seria exceção
à regra. Nós devemos ponderar cuidadosamente, disse Lênin ao X Congresso
do Partido, as lições políticas e econômicas que a rebelião dos marinheiros
está nos oferecendo. “O que ela significa? A transferência da autoridade
política para um amontoado indistinto de elementos desclassificados, que dão a
impressão de ora estarem à direita dos bolcheviques, ora à esquerda. Impossível
saber, de tão amorfa é a mixórdia de grupelhos políticos que tentam tomar o
poder em Kronstadt”. Mesmo censurando a revolta como uma conspiração
da Guarda Branca, Lênin tinha plena consciência da real natureza do
movimento rebelde. Kronstadt, disse, era uma contrarrevolução do “espontaneísmo
anarquista pequeno-burguês”, ou seja, uma revolta de massas intimamente ligada à
insatisfação camponesa e operária surgida no calor dos acontecimentos. Portanto,
muito mais perigosa para a sobrevivência do bolchevismo que Denikin, Kolchak e
Yudenich juntos (69).
Lênin temia, sobretudo, uma
nova pugachevschina. Atemorizava-se ante
a ideia de que a maré anarcopopulista, que arrastara os bolcheviques ao poder,
agora pudesse tragá-los para bem longe dele. O que tornava os marinheiros
particularmente perigosos era o fato de que, em contraste com os brancos, lutavam
em nome dos sovietes. Os rebeldes, como observou o Victor Serge, pertenciam de
corpo e alma à revolução (70). Kronstadt simbolizava o sofrimento e a vontade
do povo. Portanto, Kronstadt pesava na consciência dos líderes bolcheviques de
uma maneira excessivamente dolorosa, como nenhum outro movimento de oposição
até então. Lênin compreendia a atração que a rebelião exercia sobre as massas
populares. Acusava a rebelião de “pequeno-burguesa”, de “semianarquista”, assim
como fez com os populistas há vinte cinco anos quando denunciou como um
equívoco o sonho romântico de uma era pretérita de comunas e cooperativas de
artesões. Tal visão de mundo configurava um anátema para o modo de ser
bolchevique. Não era meramente primitiva e inócua, mas reacionária, anacrônica em
pleno século XX, quando triunfava em todas as nações o Estado centralizado e a
concentração industrial.
Este era o motivo pelo
qual Kronstadt foi mais perigosa para Lênin que os exércitos brancos da guerra
civil. Lutavam por um ideal que, ainda que aparentemente inalcançável, refletia
os anseios mais profundos das classes baixas da Rússia. Mas se Kronstadt
levantava-se, raciocinava Lênin, toda autoridade e unidade do país se
encontrariam à mercê de uma inevitável fragmentação territorial, dando lugar a
outro período de caos e desagregação, como em 1917; mas desta vez contra a nova
ordem. Em pouco tempo, algum outro regime centralizado - de direita mais que de
esquerda – preencheria o vácuo político, pois a Rússia não poderia perdurar por
muito tempo sob o estado de anarquia. Portanto, para Lênin, não restava
alternativa: era necessário sufocar a todo o custo a rebelião, e reimplantar o
bolchevismo em Kronstadt.
Nenhum comentário:
Postar um comentário