sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A Terceira Revolução: o primeiro assalto a Kronstadt

(janeiro de 1921, greves em Moscou.) 

Tradução: Jean Fecaloma

Fecaloma - Punk Rock

4. O primeiro assalto

Diante da crise interna que estremecia os pilares do regime político, os bolcheviques decidiram pôr fim o mais rápido possível à revolta de Kronstadt. O que estava em jogo ou parecia estar era a própria existência do governo. Para começar, o nome “Comitê Revolucionário Provisório”, adotado pelos líderes rebeldes no dia 2 de março, equivalia, a um só tempo, a uma provocação e a um desafio. Ainda mais ameaçador revelava-se o item um da resolução do Petropavlovsk, subscrito ao preâmbulo do documento. Sob o diagnóstico de “que os atuais sovietes não expressam mais a vontade dos operários e camponeses”, a disposição previa a realização de novas eleições para os sovietes. Na prática, a demanda por um novo pleito eleitoral punha em xeque a legitimidade do poder bolchevique. A proposta reapareceu, a 3 de março, numa publicação do primeiro número do jornal rebelde Izvestiia. O Partido Comunista, lia-se no editorial, afastou-se por completo do povo; apenas os esforços das massas trabalhadoras, atuando por meio dos sovietes livremente eleitos, poderão resgatar a nação da miséria e da opressão (1). À vista dos recentes protestos em Moscou e em Petrogrado, das incessantes revoltas camponesas no interior do país, manifestações por eleições eram consideradas atos subversivos. O receio de que Kronstadt acendesse a fagulha de um levante geral pelo país afora justificava ao governo a ideia de uma intervenção rápida que pudesse controlar a situação extremamente delicada.

Com a movimentação dos marinheiros, intensificaram-se as manobras belicistas dos emigrados russos, o que constituía outro fator alarmante para as autoridades bolcheviques. Depois de quase três anos de guerra civil, as frequentes conspirações contrarrevolucionárias imprimiram um profundo temor na têmpera dos líderes soviéticos. Uma infindável corrente de boatos alimentava o pavor da “ameaça branca” entre as fileiras do partido (à semelhança da histérica “ameaça vermelha” no Ocidente). Para muitos bolcheviques - especialmente durante os primeiros dias da rebelião, quando a situação era bastante caótica e as informações pouco confiáveis -, Kronstadt emanava o inconfundível sabor de um complô antissoviético. A sucessão de generais brancos - Kornilov, Krasnov, Miller, Yudenich, Kolchak, Denikin, Wrangel -, apoiados pela Entente e pela oposição russa, motivava os bolcheviques a enquadrar o general Kozlovski em um modelo que lhes era bastante trivial. Assim, quando as notícias da revolta chegaram pela primeira vez a Petrogrado, um cunhado de Zinoviev saiu à procura de Victor Serge no Hotel Astoria. Ao encontrá-lo dormindo, gritou apavorado: “Acorda! Kronstadt caiu nas mãos dos brancos. Estamos todos em estado de alerta” (2).

Não é que os bolcheviques soubessem da existência do Memorando Secreto, pois, se assim o fosse, seguramente o teriam denunciado em sua propaganda de guerra. Todavia, tinham ciência dos planos dos emigrados para abastecer Kronstadt e enviar tropas e equipamentos em socorro dos rebeldes. Agentes soviéticos, como vimos, interceptaram a correspondência dos líderes socialistas revolucionários (SR) e conheciam bem as promessas de Chernov. Ademais, a imprensa dos emigrados escancarava aos quatro cantos a campanha de arrecadação de fundos patrocinada pelos Kadets e Outubristas com o intuito de financiar a rebelião. Tampouco as atividades de Tseidler e Grimm na Finlândia passavam despercebidas aos olhos do governo (3). O clima de euforia e esperança vivenciado pelos exilados em Paris, Berlim e Helsingfors suscitava em Moscou e em Petrogrado o sentimento de urgência que foi expresso na resolução governamental que determinava o fim da revolta de forma rápida e decisiva.

Parecia então que as acusações acerca de um complô contrarrevolucionário não eram meras invencionices alardeadas contra os rebeldes pelos soviéticos; mas, sim, um misto de propaganda com uma sincera ansiedade ante a perspectiva real de um ressurgimento das hostilidades brancas. Por via das dúvidas, os bolcheviques procuravam por todos os meios desacreditar os rebeldes perante a população. Estavam especialmente preocupados com os efeitos da sublevação nos claustros da caserna. Se tropas soviéticas fossem realmente mobilizadas para reprimir o motim, então era mais do que necessário pintar os rebeldes como um perigoso movimento contrarrevolucionário. Assim, Kozlovski foi associado diretamente aos generais brancos da guerra civil e qualificado como o “novo Yudenich” do Báltico (4). Em uma circular especialmente dirigida ao Exército Vermelho, o governo alegava que os marinheiros de Kronstadt poderiam ter sido dispensados e retornado aos seus lares mas, ao invés disso, preferiram atrapalhar as negociações de paz com os polacos do Riga (5).

Portanto, o governo insistia em classificar o levante como parte de “um grande plano para gerar cisões na Rússia Soviética e enfraquecer o país internacionalmente” (6). Os brancos não apenas conspiravam para fomentar uma nova intervenção polaca como também se empenhavam em sabotar o processo de détente com o Ocidente. Em particular, pretendiam impedir qualquer mudança favorável na política de conciliação com os norte-americanos. O novo presidente da república (Harding), segundo informava a imprensa bolchevique, estava disposto a reatar os laços comerciais com a Rússia. Crença deveras ilusória que pode ter surgido com a visita ao país de um empresário norte-americano, W. B. Vanderlip, que foi tomado por Lênin como um bem-sucedido homem de negócios com influentes relações em Washington. Da mesma maneira, Lev Kamenev advertiu ao X Congresso do Partido sobre os imensos esforços efetuados pelos contrarrevolucionários para malograr o acordo comercial entre a Rússia Soviética e os britânicos (7). Segundo comentou Leonid Krasin, emissário soviético em Londres, “certos interesses sinistros estão trabalhando, diuturnamente, para postergar ou mesmo interromper as negociações”. Apesar de tudo, Krasin previa para a rebelião de Kronstadt o mesmo destino seguido por todos os complôs anteriores da Guarda Branca: “Quando recordamos todas as agressões que o governo soviético tem sofrido e enfrentado com grande êxito nesses três últimos anos, o assunto Kronstadt é irrisório. Será tratado da maneira habitual” (8).

A maior preocupação dos bolcheviques, entretanto, era a de se evitar que os emigrados tivessem acesso a Kronstadt e, por conseguinte, convertê-la numa base de operações de desembarque no continente. Uma nova invasão significava nada mais nada menos que o reinício da guerra civil; eventualidade para a qual, em virtude do extremo esgotamento reinante no país, o regime soviético não poderia subsistir por muito tempo. Em outras palavras, o que preocupava as autoridades não era tanto assim a rebelião, mas o que ela poderia desencadear. Segundo explicava Lênin, na sessão de abertura do X Congresso do Partido, o perigo real estava tão somente no fato da rebelião de Kronstadt servir de “degrau, escada, ponte” para uma restauração branca (9). Daí o sentido, dado por Lênin e seus colaboradores, de forjar uma identidade contrarrevolucionária aos rebeldes de Kronstadt. “Mostrem-nos quem está por trás do movimento - insinuavam os bolcheviques – que nós lhes diremos a quem vocês servem”. Curiosamente, os bolcheviques não tinham os marinheiros por perversos inimigos do povo. Ao invés disso, consideravam-nos como irmãos extraviados para os quais a compaixão fraternal não poupava o castigo merecido. “Esperamos o mais que podíamos - disse Trotsky na ocasião de um desfile das tropas que sufocaram a rebelião - esperamos os nossos camaradas marinheiros enxergar com seus próprios olhos, mas o motim parecia tê-los cegados”. E, em um tom similar, Bukarin dirigiu-se ao Terceiro Congresso do Komintern nos seguintes termos: “Quem disse que o levante de Kronstadt era branco? Não, não era. A bem da verdade, para manter a ordem, fomos forçados a reprimir a revolta dos nossos equivocados irmãos. No entanto, não podemos considerar os marinheiros de Kronstadt como inimigos. São nossos verdadeiros irmãos; em nossas veias corre o mesmo sangue” (10).

Para os comunistas estrangeiros que se encontravam na Rússia, tais como Victor Serge e André Morizet, afirmações como essas eram extremamente desconcertantes. Levados a crer que Kronstadt não era mais que uma mera repetição dos movimentos antibolcheviques da guerra civil, sentiam-se “perplexos e apreensivos”. Os marinheiros não eram tratados com o mesmo rancor que os líderes soviéticos dispensavam às legiões brancas e seus colaboradores. Quando o assunto era Kronstadt, os bolcheviques mostravam-se encabulados e concediam muitas “reservas simpáticas” aos marinheiros; algo que, para os visitantes, parecia trair a boa fé do partido. Todavia, os visitantes estrangeiros deviam compreender o difícil dilema com que se deparavam os seus camaradas bolcheviques: manter o poder e ao mesmo tempo preservar os ideais revolucionários. Atormentado por uma “inexprimível angústia”, Serge submeteu-se a um profundo escrutínio de consciência e chegou a uma conclusão favorável aos comunistas - muito embora o partido, absorvido pela gana de poder, inspirava pouca confiança na população. Serge ressalvou, a propósito, que a rebelião de Kronstadt também detinha de uma parcela de razão. Com efeito, se a ditadura bolchevique viesse abaixo, a situação ficaria à beira do caos: uma revolta camponesa generalizada, uma nova Pugachevshchina, um massacre dos comunistas, um retorno dos emigrados com suas políticas estéreis e ultrapassadas. Enfim, outra ditadura, mas desta vez antiproletária, ao invés de antiburguesa. No entanto, Serge jurou para si mesmo que jamais pegaria em armas contra famélicos operários e marinheiros que, segundo ele dizia, foram levados até o limite de suas forças (11).

Por fim, o grande problema era em que medida se justificava o uso da força contra os rebeldes. Teriam os bolcheviques tratado com seriedade uma negociação pacífica antes de mirar os canhões em direção de Kronstadt? Ou, conforme escreveu Serge, realizado todos os esforços possíveis para evitar um derramamento de sangue? A verdade é que poderiam ter feito muito mais. É certo que, transcorrida a primeira semana, desde o início da rebelião, os bolcheviques fizeram muitos apelos para os rebeldes. Suplicavam para que os marinheiros, em sã consciência, percebessem o quanto eram inconsequentes seus atos. No dia 1º. de março, segundo vimos, Kalinin e Kuzmin estiveram em Kronstadt em missão de paz e participaram ativamente da assembleia ao ar livre na Praça da Âncora. No dia seguinte, Kuzmin defendeu, em discurso proferido na Casa da Educação, as medidas emergenciais do governo. Todavia, diferentemente do que ocorreu nas greves de Petrogrado, não se ofereceu aos marinheiros nenhuma contrapartida, nenhuma concessão. Evidentemente, a situação explosiva requeria, por parte das autoridades, um pouco mais de tato e espírito conciliador. Mas foi exatamente o que faltou aos dois funcionários do governo. O tom desafiador, os modos truculentos e o posicionamento intransigente soaram tão ameaçadores que o resultado não podia ser outro que incitar ainda mais a revolta entre os marinheiros. Desde o início, as autoridades não deram mostras de boa vontade e jamais buscaram o diálogo franco e aberto. O governo ateve-se unicamente a impingir um ultimato vexatório aos rebeldes: ou criar juízo, ou sofrer as consequências.

O resultado não foi apenas desastroso, mas trágico, considerando-se que havia boas chances para uma solução pacífica, já que os insurgentes encaravam de forma amistosa e complacente uma eventual reaproximação com o governo. Porém, os bolcheviques, encalacrados na mais grave crise de sua história, não estavam em condições, sequer em termos emocionais, de firmar qualquer compromisso com os rebeldes. Viviam com os nervos a flor da pele, a ponto de explodir. Temiam os polacos, os emigrados e a Entente. Horrorizavam-se diante da possibilidade de Kronstadt transformar-se na ponta de lança de uma nova campanha intervencionista ou de influenciar um levante no continente já marcado pelo descontentamento popular, com várias ocorrências de sublevação camponesa. Receavam a perda do controle político, a anarquia resultante ou uma restauração branca. Em tais circunstâncias, consideravam bastante arriscado uma negociação com os rebeldes. Qualquer contemporização poderia ser entendida como um sinal de fraqueza ou vacilação perante atos subversivos e provocações, o que poderia precipitar o colapso da autoridade do governo. De fato, após a conquista do poder e três anos marcados por conflitos sangrentos, colocariam os bolcheviques tudo a perder por causa de um motim de impetuosos e indisciplinados marinheiros? Correriam o risco de protelar medidas repressivas na expectativa de que a revolta chegasse por si só a um desfecho pacífico? Não, o tempo não estava a seu favor. Em breve, se produziria o degelo da primavera. Sabemos pelo diário rebelde Izvestiia, de 15 de março, que a neve nas ruas da cidade de Kronstadt já estava começando a derreter (12). Em poucas semanas o gelo do golfo da Finlândia se fundiria e se tornaria impossível para o governo realizar um assalto de infantaria à fortaleza de Kronstadt. Ademais, os dois navios de guerra encalhados no porto ficariam livres para execução de manobras militares. E, mesmo que a Finlândia persistisse em manter interditado o trânsito entre suas fronteiras, operações de abastecimento e reforços aos rebeldes poderiam chegar por via marítima. Diante deste cenário crítico, os bolcheviques precisavam agir rapidamente. Ora, que governo toleraria por tanto tempo um motim de marinheiros na principal base naval de seu território? Base essa que, se conquistada por inimigos do regime, poderia se transformar num trampolim para uma nova invasão? “Esperamos até não poder mais - disse Trotsky, momentos depois de reprimir a rebelião - mas havia o perigo do degelo e, por isso, fomos obrigados a realizar... o ataque” (13).

Provavelmente, entre tantas preocupações, as autoridades avaliavam aquelas tidas como as mais prementes, tais como: a rebelião poderia se alastrar pelo continente e provocar motins em outras unidades do exército e da marinha. O caso de Oranienbaum parecia justificar tantos temores. Na tarde de 2 de março, emissários de Kronstadt, portando cópias da resolução do Petropavlovsk, atravessaram o caminho por sobre a água congelada em direção de Petrogrado e algumas cidades vizinhas, onde foram distribuídas. Em Oranienbaum, soldados da primeira Esquadrilha Aérea Naval reuniram-se no clube militar e endossaram por unanimidade a resolução. Seguindo o exemplo de Kronstadt, elegeram seu próprio Comitê Revolucionário e, imediatamente, depois de se reunirem novamente, em um hangar nas cercanias, elegeram uma delegação da Esquadrilha Aérea composta por três homens. Estes delegados foram encaminhados à Kronstadt com o objetivo de estabelecer contato com os sublevados. À meia-noite - aparentemente, após a visita e da promessa de união - o Comitê Revolucionário de Kronstadt enviou um destacamento de 250 homens a Oranienbaum. Como vimos antes, estes homens foram recebidos a tiros de metralhadoras e forçados a se retirarem. Quando retornavam à base, os três delegados da Esquadrilha Aérea foram feitos prisioneiros pela Tcheca. Enquanto isso, o comissário da guarnição de Oranienbaum, tendo tomado conhecimento dos preparativos iniciais para a realização de um motim na base sob sua jurisdição, solicitou com urgência reforços ao Comitê de Defesa de Zinoviev. Todos os comunistas de Oranienbaum foram fortemente armados e beneficiados com a promessa de uma porção extra na ração diária. A ideia era eliminar de antemão qualquer insatisfação em razão da crise alimentar e garantir a lealdade dos soldados. Às 5 horas da manhã, do dia 3 de março, um trem blindado, com um destacamento de kursanty e três baterias de artilharia leve, chegava a Oranienbaum de Petrogrado. Os quartéis da Esquadrilha Aérea foram rapidamente cercados e seus homens aprisionados. Umas poucas horas mais tarde, depois de uma sessão de intenso interrogatório, quarenta e cinco homens foram condenados e fuzilados; dentre eles, o chefe da Divisão de Aviadores Navais Vermelhos e o presidente e o secretário do Comitê Revolucionário recém-formado (14).

A supressão do motim de Oranienbaum foi recebida pelos líderes de Kronstadt como o primeiro revés importante do movimento. Confiantes que revolta se espalharia pelo continente, forçando os bolcheviques a ceder ante suas reivindicações, os líderes recusaram-se a tomar uma ofensiva e enviaram apenas uma pequena força a Oranienbaum, com resultados desastrosos. (Os rebeldes de Oranienbaum, por sua parte, demonstraram a mesma ingenuidade ao não assumir, por meio das armas, o controle da própria base). Todavia, se se realizasse uma ofensiva à maneira da Esquadrilha Aérea - como insistiam Kozlovski e seus colegas -, Oranienbaum poderia ter sido capturada com muito pouca resistência; em seguida, os rebeldes poderiam ter marchado sobre Petrogrado e encorajado os habitantes da cidade a sublevar-se contra o governo. Mas, por melhor que fossem os conselhos estratégicos dos especialistas, os rebeldes teimosamente rechaçavam todas as suas orientações. Efetivamente, os marinheiros sentiam-se muito mais protegidos dentro de seu bastião insular do que se aventurando como soldados de infantaria pelo interior do continente. Por terem receio de não contar com homens suficientes para um ataque bem sucedido, preferiam ficar enclausurados no seio de sua fortaleza, aparentemente inexpugnável e cravejada de canhões para todos os lados, de tal forma a resistir ao assédio do governo, na expectativa de verem atendidas suas exigências.

Daqui em diante, toda recomendação para a execução de uma ofensiva foi negligenciada. Quando os “especialistas militares” propuseram quebrar o gelo do entorno da ilha de Kotlin com fogo de artilharia para torná-la invulnerável a um ataque inimigo de infantaria, o Comitê Revolucionário alegou não haver projéteis disponíveis para uma operação que era, em todo caso, inútil, já que a água voltaria a congelar em pouco tempo (15). Assim, enquanto perdurou a sublevação, não houve uma única tentativa de isolar a fortaleza ou liberar os navios de guerra, ainda que observadores de fora supusessem tal hipótese (16). De forma similar, quando os especialistas aconselharam os rebeldes a montar barricadas nas ruas da zona leste da cidade, região vizinha ao vulnerável Portão de Petrogrado (sugestão sem dúvida perspicaz, como se revelaria depois), o Comitê Revolucionário insistiu na falta de homens e materiais necessários para o intento, ainda que a realidade teimasse em indicar o contrário. Muito mais tarde, Kozlovski explicou a recusa dos marinheiros em acatar as orientações dos especialistas como sendo uma desconfiança congênita que os marujos nutriam pelo oficialato e autoridades superiores. Após desdenhar a obstinada indisciplina dos marinheiros, Kozlovski lamentou o fato de que a revolta fizera-se antes do degelo do golfo da Finlândia. Foi a impaciência dos marinheiros, que desejavam se desvencilhar do jugo comunista, argumentou Kozlovski, que ocasionou o início prematuro do levante (17).

Paralelamente, a rebelião fracassava em incitar a revolta no continente através de seu exemplo. Só em alguns poucos lugares - especialmente Oranienbaum, Peterhof e Petrogrado - emergiram movimentos dissidentes dispostos a defender a causa rebelde. Mas os comunistas da região foram alertados a tempo e a atividade sediciosa foi rapidamente esmagada. Em Petrogrado, por exemplo, uma delegação de marinheiros de Kronstadt tentou ganhar para o movimento a tripulação dos quebradores de gelo do Truvor (algumas fontes citam o Ermak). Aparentemente, pretendiam com isso desencalhar o Sebastopol e o Petropavlovsk e escavar um fosso na grossa camada de gelo ao redor da ilha de Kotlin, tendo em vista torná-la inacessível a uma invasão de infantaria e, talvez, abrir um canal alternativo para o oeste. Imediatamente, tropas bolcheviques ocuparam o barco e os kronstadtinos e seus simpatizantes foram presos e mantidos sob custódia (18). Ademais, Kronstadt fez muito pouco para disseminar a revolta em outros lugares. Dos duzentos emissários enviados para distribuir as cópias da resolução do Petropavlovsk nas cidades da província de Petrogrado, poucos conseguiram evitar o cárcere. Até no extremo sul, na cidade de Dno, um trevo da estrada de ferro entre Petrogrado a Vitebsk, marinheiros que levavam panfletos acabaram sendo interceptados e detidos. Os insurgentes também tentaram inutilmente telefonar aos habitantes de Petrogrado e Krasnaya Gorka para explicar as razões da rebelião. Por sua parte, debalde foram os telefonemas das autoridades para o Comitê Revolucionário a fim de persuadi-lo a desistir em virtude da situação desesperadora na qual se encontravam os rebeldes. Ao mesmo tempo, em Kronstadt comunistas leais ao regime fizeram uso das linhas telefônicas para informar o governo sobre o estoque de munições, as reservas alimentares e o moral das tropas rebeldes (19).

Em geral, os rebeldes optaram por uma estratégia defensiva, segundo a qual os líderes acreditavam ganhar tempo até o degelo da primavera. Enquanto isso, dedicavam-se aos assuntos administrativos da ilha, especialmente, no tocante à sua defesa. Esperavam que a pautas da resolução fossem atendidas, mas também não descartavam a possibilidade de uma contraofensiva do governo. “A qualquer momento - advertia o Comitê Revolucionário Provisório, a 4 de março - poderemos sofrer um ataque dos comunistas, que esperam reconquistar Kronstadt; então seremos novamente submetidos ao seu arbítrio e reduzidos à fome, ao frio e à ruína” (20). Durante a primeira semana, no entanto, o conflito não excedeu os limites estreitos de uma guerra de nervos.

Por que o governo esperou tanto para atacar? A demora, ao que parece, teria sido ditada tanto - se não mais - pela necessidade de realizar os preparativos militares concernentes ao ataque quanto ao desejo de se chegar a uma solução pacífica. No curso dos primeiros dias de março, os bolcheviques apressaram-se em resguardar a velha capital e outros importantes pontos estratégicos nos arrabaldes da cidade, particularmente Krasnaya Gorka e Oranienbaum, Lisy Nos e Sestroretsk, na costa da Carelia. Todos os membros do Partido Comunista de Petrogrado e povoamentos vizinhos foram mobilizados e armados. A 5 de Março, os bolcheviques agruparam uma milícia de uns quatro mil homens, acrescida por voluntários da Juventude Comunista e dos sindicatos locais. Ademais, centenas de kursanty foram recrutados nas imediações de Petrogrado e em cidades tão distantes como Moscou, Orel e Nizhni Novgorod. Tropas especiais da Tcheca (Vokhr) e soldados dos destacamentos de inspeção de estrada também foram escalados para compor as operações de repressão. Os trens que partiam de Petrogrado para Kronstadt eram minuciosamente vistoriados a fim de impedir qualquer contato com os insurgentes. Preocupados com a investida de Oranienbaum (e, talvez, pela recordação do motim antibolchevique de Krasnaya Gorka de 1919), os líderes soviéticos reforçaram as guarnições nos pontos vitais da região e realizaram pessoalmente viagens de inspeção com a finalidade de erradicar qualquer atividade sediciosa.

Mesmo quase encerradas as greves e manifestações em Petrogrado, ainda prevalecia na cidade um ambiente pesado, sintoma de um estado psicossocial que beirava o pânico. Em uma manhã do início de março, Victor Serge deixava o Hotel Astoria quando viu uma serva já idosa caminhando tranquilamente com vários pacotes sobre as mãos. “Aonde a senhora vai indo com tudo isso tão cedo, vovó?”. “Sinto cheiro de confusão no ar - replicou a mulher -, eles vão cortar o pescoço de todos vocês, pobrezinhos; vão roubar tudo de novo” (21). Por todos os lugares, os judeus passaram a ser alvo de ameaças. Muitas fábricas e oficinas da cidade fecharam as portas devido aos incessantes rumores de confronto. A 3 de março, o Comitê de Defesa de Petrogrado, investido de poderes absolutos em toda a província, implementou severas medidas para reprimir protestos e manifestações. A cidade transformou-se em uma enorme praça de guerra. Tropas patrulhavam os bairros; cartazes eram colados nos muros das ruas com avisos proibindo reuniões e, em caso de desobediência, determinando a pena capital através do fuzilamento sumário. Durante o dia, as ruas ficaram quase desertas e, com o toque de recolher decretado a partir das 9 horas da noite, a vida noturna cessou completamente (22).

Zinoviev, que assumiu uma função tripla de chefe do partido, presidente do Soviete de Petrogrado e Presidente do Comitê de Defesa, fez pleno uso do poder concentrado em suas mãos. Durante toda a crise, atuou de forma célere e eficaz sem se deixar afetar por sua instabilidade emocional ou síndrome do pânico. A 4 de março, Zinoviev convocou uma sessão extraordinária para o soviete debater o principal assunto da agenda: Kronstadt. Além dos membros regulares, também foram convidados representantes de outras instituições - sindicatos, comitês de fábrica, unidades militares e organizações juvenis. Os líderes anarquistas Alexander Berkman e Emma Goldman, que ainda mantinham relações amistosas com o governo, estavam entre os presentes e deixaram vívidas anotações sobre a sessão, que, acrescentadas aos poucos detalhes publicados pela imprensa da época, ajudam-nos a reconstituir o evento (23).

Do início ao fim, a sessão transcorreu tumultuada. Zinoviev e Kalinin denunciavam a revolta como um complô da Guarda Branca, incitado por mencheviques, socialistas revolucionários e agentes de inteligência da Entente. De repente, um homem que estava sentado na primeira fila, um operário da fábrica Arsenal, levantou-se e articulou um discurso em defesa dos insurgentes. Apontando o dedo para Zinoviev, esbravejou: “É a sua cruel indiferença e a do seu partido que nos levou à greve dos trabalhadores. Nossos irmãos marinheiros, que lutaram lado a lado conosco na revolução, apenas prestaram solidariedade aos operários de Petrogrado. Não são culpados de nenhum crime, como você bem sabe, Zinoviev. Você mente descaradamente. O que você quer, Zinoviev, é destruir Kronstadt”. Gritos de “contrarrevolucionário”, “traidor” e “bandido menchevique” - tal como descrito por Emma Goldman - converteram a assembleia em um verdadeiro pandemônio. O operário não se mostrou abalado e, de maneira resoluta, ergueu a voz sobre as demais: “Faz três anos, apenas três anos, que Lênin, Trotsky, Zinoviev e todos vocês foram denunciados como espiões alemães. Nós, operários e marinheiros, partimos em sua defensa e salvamos o governo das mãos de Kerensky. Cuidado, para não terem um final semelhante!”

Neste momento, um marinheiro de Kronstadt tomou a palavra, intercedendo em favor do operário. Declarou que nada havia mudado no espírito revolucionário de seus camaradas e que estes estavam dispostos a defender a revolução até a última gota de seu sangue se assim fosse preciso. Então, passou a ler em voz alta a resolução do Petropavlovsk. Ato contínuo, conforme relato de Goldman, gritos e insultos foram desferidos contra ele. Em meio à confusão generalizada, Zinoviev interpelou o marinheiro, ordenou a rendição imediata de Kronstadt e ameaçou os revoltosos com a pena de morte. Ignorando os protestos de vários delegados, a sessão aprovou uma resolução cujo teor condenava o arroubo tresloucado dos marinheiros rebeldes e determinava a restauração da autoridade, por direito, do soviete de Kronstadt. Caso houver derramamento de sangue, declarava a resolução, a culpa recairá sobre a consciência daqueles que provocaram o motim. “Decidam-se de uma vez por todas! Ou vocês estão do nosso lado, contra o inimigo comum, ou vão perecer na vergonha e na desgraça, juntos com os contrarrevolucionários (24).

Uma das figuras mais esperada era Trotsky, o mais talentoso mediador em épocas de crise. Porém, não conseguiu chegar a tempo para a reunião. Quando a rebelião teve início, Trotsky encontrava-se na região oeste da Sibéria, onde ocorriam vários distúrbios camponeses. Ao inteirar-se das notícias sobre Kronstadt, voltou imediatamente a Moscou a fim de se instruir com Lênin. Então, dirigiu-se apressadamente a Petrogrado e, mal chegando à velha capital, entre os dias 4 e 5 de março, emitiu um severo ultimato (publicado a 5 de março), no qual ordenava a capitulação imediata e incondicional dos marinheiros amotinados:

“O governo dos operários e camponeses da República Soviética decretou a rendição imediata da tripulação rebelde. Ordeno a todos os que ora levantam o punho contra a pátria socialista que abandonem as armas imediatamente. Os recalcitrantes serão desarmados e entregues às autoridades soviéticas. Os comissários e outros representantes do governo, presos durante o motim, devem ser libertados agora mesmo. Somente os que se renderem incondicionalmente poderão contar com a misericórdia da República Soviética. Neste exato instante, estou redigindo uma autorização para dar início às operações de repressão e prisão dos amotinados por força das armas. Os enormes prejuízos que, porventura, a população pacífica de Kronstadt sofrer serão de inteira responsabilidade dos chefes do motim contrarrevolucionário. Esta é minha última palavra” (25).

Sim, foi uma sincera tentativa de impedir um confronto armado, obviamente, fadada ao fracasso. Ao menosprezar a animosidade dos marinheiros, o governo só reforçava a determinação dos rebeldes em resistir até que suas resoluções fossem amplamente acolhidas. “Que coubesse justamente a Trotsky tais palavras aos marinheiros - observou seu biógrafo, Isaac Deutscher – é uma dessas ironias da história. Ah! Kronstadt, a sua Kronstadt, ‘o orgulho e a glória da revolução’. Quantas não foram as vezes em que discursou na base naval nos dias agitados de 1917?! Quantas não foram as vezes em que carregaram-no nos ombros e saldaram-no entusiasmadamente como líder e amigo?! O quão devotamente o seguiam ao Palácio Tauride, à cela em que esteve preso em Kresty, às muralhas de Kazan sobre o Volga, guiando-se sempre pelo seu conselho, obedecendo cegamente às suas ordens! Quantas angústias compartilharam juntos; quantos perigos enfrentaram unidos!” Mas os tempos eram outros e o Comitê Revolucionário Provisório reagiu por meio de uma advertência ao ultimato de Trotsky: “A nona onda (isto é, a maior onda de uma tempestade no mar [“A Nona Onda” também é um quadro de 1857 do pintor romântico Ivan Aivazovsky - N.T.]) a nona onda da Revolução dos Trabalhadores há de se erguer e cobrir a Rússia Soviética, varrendo de sua superfície todos os infames caluniadores e tiranos corruptos - e não será necessário, senhor Trotsky, a sua clemência” (26).

No mesmo dia, 5 de Março, o Comitê de Defesa de Petrogrado editou um novo panfleto que foi lançado às centenas por aviões sobre a cidade de Kronstadt. Se algo pode ser dito sobre este novo folheto, chama atenção o tom da linguagem, ainda mais duro que o ultimato de Trotsky. Por trás dos socialistas revolucionários e mencheviques, estava escrito, escondem-se os oficiais brancos, a rosnar com dentes afiados. Os líderes da rebelião vêm enganando a população com promessas vazias de democracia e liberdade, mas não revelam sua verdadeira face, a do general Kozlovski e seus ajudantes, o capitão Burkser, Kostromitinov, Shirmanovsky, entre outros guardas brancos. Na verdade, lutam pela restauração do czarismo, pela volta de um novo Viren (comandante da Base Naval de Kronstadt até a ocasião de seu assassinato em fevereiro de 1917), dos mesmos que sempre sugaram a jugular do povo. Eles blefam quando falam do suposto apoio que teriam de Petrogrado, da Sibéria e da Ucrânia. A verdade é que estão desesperados e cercados por tropas leais ao governo. Para finalizar, o panfleto enunciava uma advertência profética: no último minuto, quando tudo estiver perdido, os Kozlovskys e os Petrichenkos fugirão para a Finlândia e os abandonarão à própria sorte. Então, o que farão vocês? Se acaso os seguirem, vocês realmente acreditam que terão abrigo na Finlândia? Acaso desconhecem o paradeiro dos homens de Wrangel, morrendo tal como moscas de fome e doença? A mesma sina estará reservada aos amotinados de Kronstadt, a menos que se rendam no prazo de 24 horas. Caso assim o fizerem, serão perdoados. Se resistirem, “serão caçados como perdizes” (27).

Frequentemente, a expressão “caçados como perdizes” é atribuída equivocadamente a Trotsky, sendo, na verdade, cunhada pelo Comitê de Defesa de Zinoviev. Porém, o seu efeito surtiu contrário ao esperado. Ao invés de intimidar, os marinheiros foram invadidos por uma fúria ainda mais incontrolável. Trotsky e Zinoviev transformaram-se nos mais desprezíveis vilões e símbolo de tudo o que era mais odioso e mau no regime soviético. (Lênin, que permanecia nos bastidores, passava incólume à ira de Kronstadt; mesmo na semana seguinte, quando entrou em cena, jamais lhe foi dispensado o mesmo tratamento execrável que recebiam seus dois colegas). O furor rebelde alcançou seu clímax quando as autoridades sequestraram os familiares dos marinheiros que residiam em Petrogrado. Trotsky inaugurou o sistema de reféns durante a guerra civil tal e qual uma moeda de troca usada para chantagear ex-oficiais czaristas que serviam como “especialistas militares”, em caso destes se sentirem tentados a trair o Exército Vermelho. “Que isto sirva de aviso aos traidores - dizia Trotsky, a 30 de setembro de 1918 -, aquele que nos atraiçoar, também estará traindo seus entes queridos: pais, mães, irmãs, irmãos, esposas e filhos” (28). No caso de Kronstadt, todavia, a decisão de tomar os parentes dos rebeldes como reféns não partiu de Trotsky, como muitos relatos sugerem, mas do próprio Comitê de Defesa de Petrogrado, muito antes chegada de Trotsky. O Comitê de Defesa exigiu a imediata libertação dos três funcionários comunistas que estavam presos desde o dia 2 de março: “Se por acaso algum de vocês tocar em um só fio de cabelo de nossos camaradas, responderemos com a cabeça dos reféns” (29). A ameaça foi divulgada no dia 5 de março, mesmo dia em que o governo emitiu o ultimato aos rebeldes. A 7 de março, o Izvestiia de Kronstadt lançou um apelo para que o governo libertasse os reféns ao término de 24 horas: “As nossas guarnições declaram que os comunistas de Kronstadt gozam de plena liberdade e suas famílias estão em absoluta segurança. Não seguiremos o exemplo do Soviete de Petrogrado, não tomaremos reféns, pois consideramos tais métodos pérfidos e vergonhosos, mesmo sob condições de extremo desespero. Jamais se ouviu falar, em toda a história, de atos tão abomináveis” (30). No entanto, a invocação resultou inócua.

Ao tomarem conhecimento do ultimato, Alexander Berkman e Emma Goldman resolveram fazer o que estava ao seu alcance para impedir um banho de sangue. A 5 de março, o casal e mais dois de seus camaradas [Nikifor Perkus e G. Petrovsky - N.T.] enviaram uma carta a Zinoviev na qual propunham a formação de uma comissão imparcial para mediar a contenda. A comissão, que contaria com cinco pessoas, dentre elas, dois anarquistas, ficaria encarregada de formular uma solução pacífica para o conflito. A fome e o frio, justificavam os autores da carta, combinados com a inexistência de qualquer assistência compensatória, compeliram os marinheiros, padecidos por uma extrema aflição, a um protesto espontâneo contra o governo. Inversamente, os autênticos contrarrevolucionários tentariam explorar ao máximo a discórdia. Uma solução imediata, não por força das armas, mas por meio de um acordo amistoso, não os interessa. Recorrer à violência só agravaria ainda mais a crise, favorecendo a causa dos brancos. Ao mesmo tempo, um governo de Trabalhadores e Camponeses fazer uso da força contra trabalhadores e camponeses poderia desmoralizar esse mesmo governo perante o movimento revolucionário internacional (31).

Fracassadas as tentativas de atrair apoio à rebelião no extenso território continental da Rússia, a mediação de Goldman e Berkman proporcionava uma oportunidade única de reconciliação antes que os atores encenassem a tragédia do último ato da rebelião de Kronstadt. Mas os idealizadores da proposta não obtiveram resposta das autoridades soviéticas. A iniciativa não foi em vão, porém. No dia seguinte, 6 de março, o Soviete de Petrogrado telegrafou para o Comitê Revolucionário a fim de sondar qual o grau de abertura para um diálogo os marinheiros estavam dispostos a conceder em caso de uma negociação que estabelecesse a visita de uma delegação mista composta por membros do soviete, filiados e não filiados ao partido, que atuassem na qualidade de observadores neutros das partes beligerantes. Com ou sem anarquistas, o fato é que este foi o primeiro gesto no sentido de uma conciliação desde que rebelião tomou forma. Desgraçadamente, o aceno esbarrou na recusa dos marinheiros. Repletos de amargura contra um governo que acabara de fazer reféns suas esposas e filhos, os rebeldes responderam num tom sarcástico que “não confiavam na condição de não partidários dos delegados não partidários”. Como resposta, exigiram a presença de operários, soldados e marinheiros não partidários eleitos pela população de Petrogrado na presença de observadores enviados por Kronstadt e mais quinze por cento de delegados comunistas designados pelo Soviete de Petrogrado (32). A resposta grosseira e impertinente jogou por terra um acordo com o governo. Depois disso, não houve mais nenhuma tentativa para garantir uma negociação de paz com os insurgentes.

A 7 de março, o prazo venceu. O ultimato de 24 horas, fixado no dia 5 de março, foi prorrogado por mais um dia. Mas a data limite expirou sem que nenhuma das partes desse um passo para um entendimento. Tempo suficiente, porém, para o governo organizar os preparativos militares necessários para a repressão. Uma corrente humana afluiu para Petrogrado e fortalezas dos arredores. A cada dia, chegavam mais kursanty, destacamentos da Tcheca e unidades leais ao Exército Vermelho, transferidos de todas as regiões do país. Ademais, foram convocados os mais notáveis “especialistas militares” e comandantes vermelhos. No dia 5 de março, M. N. Tukhachevsky, um oficial muito experiente, apesar da pouca idade, assumiu o comando do Sétimo Exército e de todas as tropas do distrito militar de Petrogrado, ao substituir D. N. Avrov no Comitê de Defesa. Nascido em uma família nobre da província de Penza, Tukhachevsky serviu como escudeiro do exército czarista no corpo Imperial de Cadetes Tenentes durante a Primeira Guerra Mundial. Com a Revolução de Outubro, tornou-se leal aos bolcheviques e chegou a ser um dos principais líderes militares da guerra civil. Em 1920, aos 26 anos de idade, comandou as forças vermelhas na frente norte da Polônia, onde quase teria conquistado Varsóvia, não fosse o marechal Pilsudski (33).

Agora o jovem comandante enfrentava uma das mais difíceis missões de sua carreira. O Sétimo Exército havia permanecido em Petrogrado ao longo de toda a guerra civil (bloqueando o avanço de Yudenich, em 1919) e seus homens, emocionalmente cansados, “desejavam a dispensa” (34). Encerrada a guerra, os soldados só queriam retornar aos seus lares. Eram, em sua maioria, interioranos e compartilhavam do descontentamento camponês. Por isso, o programa rebelde não lhes despertava crítica - na verdade, os lemas de Kronstadt inspiravam-lhes até alguma simpatia. Ademais, as manifestações operárias em Petrogrado afetavam, de um modo geral, o moral das tropas. Obviamente, enviar esses homens para um combate fratricida, contra os famosos marujos reverenciados como o “orgulho e glória” da revolução, envolvia um risco temerário. Os soldados podiam muito bem se recusar a atirar contra os rebeldes ou, inclusive, passar para o lado deles. Assim, Tukhachevsky tratou de chacoalhar o estado de ânimo de seus soldados, providenciando alimentação adequada e equipamentos em bom estado. Mas, para liderar o assalto, confiou nos cadetes militares, nas forças especiais da Tcheca e nas unidades comunistas de outras regiões.

Kronstadt, enquanto isso, fortificava suas posições defensivas para barrar o ataque. Naturalmente situada em um ponto estratégico avançado, a cidade possuía numerosas guarnições e uma excelente defesa. Os rebeldes contavam com uns treze mil marinheiros e soldados e mais ou menos dois mil homens recrutados entre a população civil. A ilha de Kotlin encontrava-se rodeada por muitos fortes e unidades de bateria construídos, em sua maior parte, em fins do século XIX, pelo general e eminente engenheiro russo E. I. Totleben. Ao norte, pela linha costeira da Carelia, estavam situados os fortes Totleben e Krasnoarmeets e uma série de sete fortes numerados. Ao sul, localizavam-se os fortes Peter, Paul, Kronstantin, Alexander e mais dois fortes numerados. Instalados em torres blindadas, todas as baterias e os fortes estavam muito bem armados e equipados com canhões pesados. A cidade propriamente dita achava-se rodeada por uma grossa muralha e protegida por vários canhões estrategicamente bem posicionados. Em suma, Kronstadt possuía 135 canhões e 68 metralhadoras instalados em fortes e barcos de guerra. Uma dúzia de canhões de 12 polegadas e dezesseis de 120 milímetros guarneciam, cada um, o Petropavlovsk e o Sebastopol. Construídos às vésperas da Primeira Guerra Mundial, entre os primeiros encouraçados da Armada Imperial Russa, os dois navios eram embarcações modernas. O Petropavlovsk, restaurado após ter sido seriamente avariado por um torpedo britânico em 1919, apresentava muito boas condições de serviço. Todavia, como vimos mais acima, estavam praticamente inutilizados, pois a espessa camada de gelo circundava de proa à popa os dois encouraçados à maneira de uma arapuca. De nada adiantou aos rebeldes triturem parte do gelo que rodeava os navios, pois o espaço aberto não foi suficiente para possibilitar manobras náuticas precisas e, com isso, desobstruir as respectivas linhas de fogo bloqueadas pelas próprias embarcações. Não obstante as circunstâncias adversas, o Petropavlovsk e o Sebastopol possuíam canhões muitos superiores aos de Krasnaya Gorka. O forte mais poderoso no continente dispunha somente de quatro canhões de 12 polegadas em condições de operar e os demais armamentos estavam danificados desde o motim de 1919 sem nunca terem sido reparados completamente. De resto, os equipamentos de artilharia não tinham calibre suficiente para provocar estragos consideráveis a grandes distâncias. Portanto, em caso de um eventual duelo de artilharia, tal como vislumbrava o autor do Memorando Secreto, Krasnaya Gorka não poderia fazer frente à fortaleza da ilha com seus navios de guerra. O arsenal de Kronstadt somava ao menos vinte e quatro canhões de 12 polegadas em boas condições, doze de 11 polegadas e cinco de 10 polegadas. Além do Petropavlovsk e do Sebastopol, os rebeldes dispunham ainda de oito barcos atracados no porto e nos diques de reparação, incluindo um encouraçado, três cruzeiros pesados, quinze canhoneiras e vinte rebocadores. Não obstante, como não havia nenhum navio quebra-gelo, a frota de Kronstadt estava inoperante (35).

Abater a fortaleza não seria tarefa fácil para os bolcheviques. Além da excelente defesa, Kronstadt também se favorecia de uma ampla extensão de gelo que a separava dos fortes localizados no continente. Situava-se a 8 km de Oranienbaum e a 20 km de Krasnaya Gorka, ao sul do Golfo, e a 11 km de Lisy Nos e a 17 km de Sestroretsk, ao norte da costa da Carelia. Assim, um ataque de infantaria teria de cruzar uma assustadora e extensa planície de gelo, tornando qualquer tentativa de invasão alvo fácil do fogo mortífero da artilharia e das metralhadoras escondidas atrás dos bunkers de ferro e concreto. Atravessar as águas congeladas do golfo era o pior dos pesadelos dos soldados - mais do que a fadiga causada pela guerra ou a simpatia pelos kronstadtinos. Este panorama nada animador minava o estado de ânimo das forças comunistas reunidas nas praias do Golfo da Filândia, à espera de uma ordem para avançar.

Todavia, por mais inexpugnável que pudesse parecer, a fortaleza de Kronstadt apresentava várias fragilidades preocupantes. Entre elas, destacam-se: as escassas reservas de munição, que eram insuficientes para resistir a um cerco prolongado; a falta de roupas e calçados de inverno; e a falta de combustível, que afetava as embarcações - no caso do Petropavlovsk, restavam somente 300 toneladas de reserva (a média diária consumida era de 40), e no Sebastopol, nada. Pior ainda, os armazéns de alimentos esgotavam-se rapidamente. E, muito embora os habitantes da ilha cultivassem batatas nas hortas coletivas, as provisões de enlatados e carne de cavalo estavam em um nível alarmantemente baixo. Não havia farinha no estoque e só se contava com um pouco de pão de baixa qualidade, suficiente apenas (segundo algumas estimativas bem informadas) para duas semanas de ração diária de 250 gramas por pessoa (36). Diante de tantas incertezas, pelo menos alguma coisa estava muito clara: tanto os bolcheviques como os marinheiros rebeldes sofreriam muito antes da rebelião chagar ao fim.

As operações militares tiveram início no dia 7 de março. Às 6h45 da noite, as baterias comunistas de Sestroretsk e Lisy Nos, na costa norte, abriram fogo contra Kronstadt. As descargas visavam debilitar as defesas rebeldes a fim de viabilizar o quanto antes um assalto de infantaria. Quando os fortes responderam ao ataque, o canhão de Krasnaya Gorka, na costa oposta, replicou com rajadas de balas. Por sua vez, o Sebastopol revidou com eloquentes tiros de canhões de 12 polegadas. Estava em curso um duelo de artilharia de grandes proporções. Em Petrogrado, Alexander Berkman atravessava a perspectiva Nevsky quando ouviu os estrondos dos canhões. Estão atacando Kronstadt! O trovejar da guerra produziu um efeito demolidor no líder anarquista, destruindo de uma vez por todas o que ainda restava de sua pouca fé no regime bolchevique. “Dias de angústia e bombas” - registrou no seu diário. “Meu coração está paralisado, desesperado; algo morreu dentro de mim. A pessoas nas ruas estão abatidas pela tristeza, atormentadas. Ninguém se anima para um bate-papo. O troar dos canhões pesados dilacera-me, rasgando o ar” (37).

No dia 7 de março comemorava-se o Dia das Mulheres Trabalhadoras. Debaixo do ribombar dos projéteis que explodiam, a rádio de Kronstadt enviou uma saudação às trabalhadoras do mundo todo. Os rebeldes denunciavam os comunistas como “inimigos do povo trabalhador” e conclamavam o fim da tirania e do despotismo de qualquer espécie. “Que as mulheres possam realizar tão logo a libertação de toda forma de violência e opressão. Longa vida às mulheres trabalhadoras livres e revolucionárias! Longa vida à revolução social em todo o mundo! (38).

O fogo cruzado dos canhões não durou muito tempo. As condições meteorológicas mudaram rapidamente. Uma forte nevasca correlacionada a uma densa neblina reduziu a visibilidade a zero. Os disparos cessaram de lado a lado. Kronstadt quase não sofreu dano significativo e contabilizou apenas dois feridos. Todavia, o Comitê Revolucionário manifestou seu agravo por meio de uma nota. Principiam os primeiros tiros, declarava o Izvestiia de Kronstadt na manhã seguinte, mas o “navio pirata” dos bolcheviques que se aproxima será por nós naufragado. “Todo poder aos sovietes! Soltem suas mãos do poder, mãos que estão maculadas pelo sangue dos que caíram pela causa da liberdade, dos que lutaram contra os Guardas Brancos, os latifundiários e a burguesia!” (39).

De acordo com o plano de Tukhachevsky, o bombardeio de artilharia deveria abrir caminho para o assalto da fortaleza. O ataque deveria partir das praias do norte e do sul no continente ainda antes do amanhecer. Na manhã seguinte, em meio a uma volumosa tempestade de neve, os soldados de Tukhachevsky, camuflados com sobretudos brancos, marcharam sobre o golfo da Finlândia. Na linha de frente, avançavam os cadetes escoltados por unidades de elite do Exército Vermelho e, na retaguarda, oficiais da Tcheca que, armados com metralhadoras, tinham ordens explicitas para atirar em qualquer um que se atrevesse a desertar. Do outro lado, os kronstadtinos aguardavam atentos a chegada das tropas inimigas. À medida que estas se aproximavam dos fortes e baterias, eram recepcionadas com tiros fatais de artilharia e metralhadora. Muitos projéteis caíam e explodiam na superfície abrindo na grossa camada de gelo uma tumba de água onde dezenas de soldados fizeram sua última morada. Eis o prólogo de um horrível fratricídio, lamentou Serge (40). Momentos depois das primeiras vítimas terem sido tragadas pelo golfo, alguns dos soldados vermelhos, incluindo um corpo de kursanty de Peterhof, desertaram e passaram para o lado dos insurgentes. Outros se recusavam a continuar, apesar das ameaças da retaguarda, disposta a atirar ao menor sinal de vacilação. O comissário do grupo do norte relatou que suas tropas desejavam enviar uma delegação a Kronstadt para tomar conhecimento de suas queixas. Na noite anterior, segundo parece, soldados bolcheviques haviam ido até a cidade em pequenos grupos para trocar livros com os kronstadtinos (41). No final, somente uma fração das tropas de assalto conseguiu alcançar os fortes exteriores, mas foram obrigados a bater em retirar ante a vigorosa saraivada de balas de Kronstadt.

Ao amanhecer, a tormenta de neve cessou, desvelando a ampla planície de gelo recoberta de corpos espalhados por todos os lados. Restabelecida a visibilidade, as baterias comunistas reiniciaram o ataque à fortaleza, enquanto os canhões de Kronstadt contra-atacavam causando estragos no setor ferroviário de Oranienbaum a Peterhof e em uma série de edifícios que se consumiram pelas chamas. Uma operação de sondagem foi realizada pela infantaria soviética sem obter qualquer resultado. Durante a tarde, os aviões comunistas sobrevoaram o golfo e, pela primeira vez, desde a campanha de Yudenich, no Báltico, em 1919, bombardearam as fortificações de Kronstadt. Os ataques aéreos continuaram esporadicamente ao longo do dia, mas não provocaram muitos danos. Por volta das 6 horas da tarde, uma bomba explodiu na cidade, destruindo uma casa e ferindo levemente um garoto de 13 anos. Durante toda a revolta, a péssima visibilidade ocasionada pelo clima hostil e as eficientes baterias antiaéreas rebeldes quase neutralizaram por completo os ataques pouco efetivos da aviação bolchevique (42).

A 8 de março, mal havia iniciado o combate e o Soviete de Petrogrado anunciou em tom triunfal “a derrota plena” das tropas rebeldes. No mesmo dia, na sessão de abertura do X Congresso do Partido em Moscou, Lênin pronunciou um discurso em que se mostrava confiante numa vitória rápida do governo. “Não disponho ainda das últimas notícias de Kronstadt - disse - mas eu não tenho nenhuma dúvida de que a rebelião, maquinada pela figura oculta de algum general da Guarda Branca, será aniquilada dentro de uns poucos dias, senão horas” (43). Tais declarações, como se constatou depois, eram bastante prematuras. Na realidade, o assalto do dia 8 de março resultou em um redundante fracasso. Os comunistas perderam centenas de homens sem conseguirem abrir sequer uma brecha nas defesas de Kronstadt (44). Em seu afã para reprimir a revolta, empregaram um contingente militar insuficiente - talvez uns 20 mil homens despreparados para um assalto à poderosa fortaleza. Ademais, tropas criteriosamente selecionadas por demonstração de fidelidade hesitaram em um momento crucial. Em parte, porque relutavam em atirar contra marinheiros e soldados comuns como eles próprios; e, sobretudo, porque temiam atravessar desprotegidos a superfície do golfo, expondo-se ao fogo cruzado das devastadoras baterias e dos fortes de Kronstadt.

Naquela noite, um grupo de bolcheviques aproximou-se de Kronstadt pelo flanco sul e hasteou uma bandeira branca. Dois membros do Comitê Revolucionário Provisório, Vershinin e Kupolov, saíram a cavalo para encontrá-los. De acordo com um kursanty, do partido bolchevique, Vershinin, que era marinheiro do Sebastopol, lançou um apelo para que todos se unissem contra os opressores judeus e comunistas. Em seguida, propôs novas eleições para sufragar uma autoridade revolucionária legítima através dos sovietes livres (45). Mas Vershinin foi preso no ato enquanto Kupolov conseguiu fugir a galope.

Os rebeldes ficaram indignados com a traição torpe dos bolcheviques. Mas, afinal, relevaram, dada a enorme compaixão que sentiam dos soldados bolcheviques tombados durante a batalha. Em um editorial intitulado “Que todo o mundo saiba”, o Comitê Revolucionário responsabilizava o “marechal-mor” Trotsky pelo o derramamento de sangue [No original, entre aspas, “Field Marshal”. Marechal de campo era o posto militar mais alto no Império Russo czarista, abolido pela revolução em 1917. Notem a ironia. Marechal-mor é por conta deste tradutor - N.T.]. Para evitar mais violência, o comitê propôs que se enviasse novamente a Petrogrado [no original “Kronstadt”, provavelmente um erro de edição - N.T.] uma delegação apartidária para dar esclarecimentos sobre os verdadeiros objetivos do movimento. “Que todo trabalhador do mundo saiba que nós, os guardiões do poder soviético, zelamos pelas conquistas da Revolução Social. Venceremos ou morreremos sob as ruínas de Kronstadt, lutando pela causa justa da classe trabalhadora. Somente os trabalhadores do mundo poderão nos julgar. O sangue dos inocentes recairá sobre as cabeças dos fanáticos comunistas completamente embriagados pelo poder. Longa vida ao poder dos sovietes!” (46).

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