Tradução: Jean Fecaloma
3. Kronstadt e os emigrados russos
Desde o início, as
autoridades soviéticas compreenderam o perigo que representava a inquietante
agitação em Kronstadt. A revolta dos marinheiros poderia provocar um movimento
de massa em todo o país, haja vista o descontentamento popular com a crise que
não era pouco. Ademais, a possibilidade sempre presente de uma intervenção
estrangeira somou-se a outro fator de grande preocupação: a posição estratégica
de Kronstadt na entrada do Neva, que expunha Petrogrado a um sério perigo.
Atentos às comparações históricas, os bolcheviques recordavam os episódios de
quatro anos atrás quando a atividade subversiva nas forças armadas, greves e protestos
tomaram a ex-capital e levaram à queda da autocracia. Agora o próprio regime
bolchevique enfrentava uma situação parecida. Se “Kronstadt vermelha” e “Pedro
Vermelho” podiam se voltar contra o governo, o que se esperar do resto do país?
Não é de estranhar-se,
portanto, os imensos esforços do governo para desacreditar os rebeldes. Mas não
seria tarefa fácil. Há muito Kronstadt reputava-se de uma fidelidade revolucionária
acima de qualquer suspeita. Em 1917, como vimos, Trotsky saldou os marinheiros
como “o orgulho e a glória” da Revolução Russa. Entretanto, quatro anos mais
tarde, o mesmo Trotsky esforçava-se por demonstrar como os novos marinheiros
não eram os leais revolucionários do passado. Milhares de kronstadtinos
heroicos pereceram na guerra civil, argumentava Trotsky, e os sobreviventes
dispersaram-se por todo o país. Assim, perdemos os nossos melhores homens e,
agora, camponeses sem instrução, recrutados na Ucrânia e nas fronteiras do oeste,
indiferentes à nossa causa revolucionária, devido a diferenças de classe e de
caráter nacional, mostram-se francamente hostis ao regime soviético. Trotsky
observava que muitos desses novos recrutas provinham de regiões de onde as guerrilhas
de Makhno, Grigoriev e outros anticomunistas haviam atraído inúmeros
simpatizantes inspirados pelo “estado de espírito do anarcobanditismo”; na
verdade, em alguns casos, alegava o comandante do Exército Vermelho, muitos
chegaram a lutar para esses grupos guerrilheiros ou mesmo para os exércitos
brancos de Denikin e Wrangel (1).
Os bolcheviques retratavam
os novos marinheiros - de 1921, portanto - como sendo “de uma estrutura social
e psicológica diversa”, muito diferente de seus predecessores que lutaram
bravamente na revolução e durante toda a guerra civil. Na pior das hipóteses,
não passavam de arruaceiros, corruptos, desaforados, indisciplinados,
desbocados e viciados no carteado e na bebida. Na melhor, “jovens camponeses
uniformizados com roupas de marinheiro”; caipiras simplórios vestidos com
pantalonas e penteados com topete engomado para tentar atrair olhares femininos
(2). Para denominar esses novatos do interior, notavam os bolcheviques, os
velhos “lobos do mar” colecionavam apelidos insultantes: Kleshniki, termo pejorativo derivado de calça boca de sino; Zhorzhiki, quer dizer, dândis comedores
de capim; e, o pior de todos, Ivanmory (Jeca
Tatu de água salgada), paródia burlesca da palavra Voenmory (guerreiros do mar), título honroso conferido aos
veteranos da guerra civil (3).
Em que medida eram justas
tais caracterizações, é algo a considerar-se. Não há dúvida de que, durante os
anos da guerra civil, grande parte da tripulação da Frota do Báltico foi
reformada, e muitos dos homens mais velhos substituídos por recrutas
interioranos profundamente ressentidos. Em 1921, de acordo com as cifras
oficiais, mais de três quartos do pessoal da frota era de extração camponesa;
proporção substancialmente maior que a de 1917, quando a maioria dos
marinheiros pertencia à classe operária de Petrogrado (4). O próprio
Petrichenko reconheceu mais tarde que muitos de seus camaradas eram camponeses
do sul, amargurados com a situação de aldeão que lhes era peculiar. Todavia, a
renovação da tripulação não implicava necessariamente uma alteração substantiva
das pautas reivindicatórias tradicionais da frota. Pelo contrário, além dos oficiais
de nível técnico provenientes em grande parte da classe trabalhadora, sempre houve
entre os marinheiros numerosos elementos de origem camponesa pouco afeiçoados à
disciplina e muito afeitos ao desacato. Na verdade, entre 1905 e 1917,
foram estes jovens camponeses que estigmatizaram Kronstadt como foco do
extremismo revolucionário. Aliás, durante toda a guerra civil, os kronstadtinos
sempre mantiveram uma postura independente e irredutível, difícil de controlar
e inconstante em seu apoio ao governo. Foi por essa razão que muitos deles foram
transferidos para postos longínquos dos centros bolcheviques de poder - especialmente
os agitadores e inconformados crônicos. Mas os que permaneceram nunca deixaram
de sonhar com as liberdades conquistadas no ano de 1917, quando o novo regime
mal ensaiava a criação de uma ditadura unipartidária.
Na realidade, não havia
muita diferença entre os homens dos velhos tempos e os recrutas recém-chegados.
Ambos eram, em grande medida, de origem camponesa. Tanto um como outro
testemunharam a miséria em seus distritos de origem - aqueles, enquanto estavam
de licença; estes, antes de se apresentarem ao serviço militar. Enfim, de
um modo geral, os marinheiros desejavam se libertar da autoridade repressiva
encarnada pelo governo central. Ora, diante deste quadro, não é espantoso
assistirmos veteranos, com muitos anos de serviço (às vezes, alistados antes da
Primeira Guerra Mundial), assumirem a liderança da rebelião. O próprio Petrichenko
integrava a frota desde 1912 e, seis anos depois, tomaria parte da tripulação
do Petropavlovsk; e o vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório, um
velho “lobo do mar”, chamado Yakovenko, foi combatente nas barricadas de 1917.
Portanto, foi bastante natural para os marinheiros da frota que veteranos
despontassem como figuras de primeiro plano na condução do levante de Kronstadt,
não apenas pela maturidade e experiência amplamente reconhecidas, mas também
pela profunda desilusão que a revolução lhes havia infundido no espírito. Assim,
marinheiros de alta patente e técnicos qualificados (por exemplo, Petrichenko
era furriel-chefe de um navio de guerra), acostumados a agir por conta própria,
foram criteriosamente eleitos pelos recrutas mais inteligentes e alfabetizados.
Ademais, a longa convivência dos velhos marujos com a intensa vida intelectual
e política de Petrogrado contribuiu para a formação de uma consciência crítica,
o que levou muitos deles a se engajar em atividades revolucionárias a partir do
ano de 1917 (5).
Os kronstadtinos sempre foram
considerados porta-estandartes da militância revolucionária, reputação que se manteve
em grande medida inalterada durante toda a guerra civil, a despeito da
conhecida inconstância e indisciplina que os caracterizava. Mesmo no outono de 1920,
conforme recorda Emma Goldman, os comunistas ainda os consideravam como um exemplo
brilhante de valor e coragem revolucionária. No dia 7 de novembro, nas
festividades do aniversário de três anos da tomada de poder pelos bolcheviques,
os marinheiros ocupavam as primeiras filas adiante de uma multidão que, em
algazarra, ovacionava a encenação do assalto ao Palácio de Inverno em Petrogrado
(6). Naquela época, ninguém falava em “degeneração de classe”. Mas a alegação
de que mujiques politicamente atrasados contaminavam o caráter revolucionário
da frota, ao que parece, foi um expediente muitas vezes requisitado para
explicar a existência de movimentos dissidentes entre os marinheiros, como, por
exemplo, em outubro de 1918, quando se justificou nesses termos um motim
abortado na base naval de Petrogrado. Na época, a composição social da frota conservava-se
praticamente a mesma de 17, sem sofrer grandes alterações.
As acusações de que os kronstadtinos
eram em sua maioria não russos - recrutas da Ucrânia, Letônia, Estônia e
Finlândia - países que possuíam fortes antagonismos nacionais com o regime
soviético - merecem também algum exame cuidadoso. Dos trezentos ou quatrocentos
nomes que aparecem no jornal do movimento rebelde, em assinaturas de artigos,
proclamações, cartas, poemas etc., na medida em que se pode avaliar a partir da
base de sobrenomes - procedimento que, admitimos nós, é bastante questionável -
ao que tudo indica, eram em sua esmagadora maioria nomes russos. Não havia
nenhuma uma relação desproporcional de sobrenomes ucranianos, germânicos,
bálticos ou de outra procedência, senão a habitual. Não obstante, a situação
muda completamente de figura quando observamos os sobrenomes listados pelo
Comitê Revolucionário Provisório, o estado maior da insurreição (7):
1. Petrichenko, furriel-chefe,
navio de guerra Petropavlovsk
2. Yakovenko,
telefonista, distrito de Kronstadt
3. Ososov, maquinista,
navio de guerra Sebastopol
4. Arkhipov, maquinista
sênior
5. Perepelkin,
eletricista, navio de guerra Sebastopol
6. Patrushev, eletricista
sênior, navio de guerra de Petropavlovsk
7. Kupolov, enfermeiro
8. Vershinin, marinheiro,
navio de guerra Sebastopol
9. Tukin, operário, fábrica
de eletromecânica
10. Romanenko, vigia das
docas
11. Oreshin, diretor da
Terceira Escola dos Trabalhadores
12. Valk, operário de
serraria
13. Pavlov, operário,
mineradora
14. Baikov, chefe de
transporte do departamento de construção de fortalezas
15. Kilgast, timoneiro de
águas profundas
Dos 15 membros do comitê,
três deles (Petrichenko, Yakovenko e Romanenko) possuíam nomes evidentemente
ucranianos e outros dois (Valk e Kilgast), germânicos. Além disso, Petrichenko,
Yakovenko e Kilgast ocupavam posições chave no comitê, pois eram o
presidente, o vice-presidente e o secretário, respectivamente. Segundo fontes
soviéticas, os sentimentos nacionalistas de Petrichenko eram tão fortes que
seus camaradas apelidaram-no de “Petliura”, uma referência a um conhecido líder
ucraniano (8). Sabemos pelo próprio Petrichenko que ao menos “três quartos” dos
homens da guarnição de Kronstadt eram naturais na Ucrânia e que alguns deles
até serviram nas forças antibolcheviques do sul antes de entrar para a marinha
soviética (9).
Provavelmente, um forte
componente nacionalista deve ter, sim, influenciado de alguma maneira a gênese
da rebelião. Todavia, não há elementos que comprovem a importância dos
sentimentos nacionais entre os motivos reais que levaram os marinheiros a pegar
em armas contra o governo. Muito mais flagrante é a origem humilde dos membros
do comitê. De ascendência camponesa ou proletária, aparentemente, pesa sobre
nove marinheiros de nível mais qualificado da tripulação do Petropavlovsk e do Sebastopol
a responsabilidade pela revolta. Somavam-se a eles mais quatro operários e dois
empregados de oficina (um diretor de escola e um funcionário dos transportes).
Assim, a liderança do movimento era inegavelmente plebeia e, portanto, incompatível
com a condição social aristocrática dos brancos. Evidentemente, esta situação
era por demais embaraçosa para as autoridades, que, apesar de tudo, não
economizavam esforços para atribuir aos chefes da rebelião uma linhagem
antiproletária. Um marinheiro do Sebastopol, Vershinin, feito prisioneiro pelos
bolcheviques logo no começo da revolta, foi qualificado de “especulador”, dândi
sertanejo e Zhorzhik [Alcunha de “Jorginho”,
do ucraniano mais o sufixo diminutivo -ik
- N.T]. Outros predicativos foram ainda piores: Pavlov foi identificado com um
ex-detetive; Baikov, proprietário em Kronstadt; e Tukin, um ex-gendarme que em
outros tempos chegara a possuir seis casas e três oficinas em Petrogrado. Kilgast,
outro membro do comitê, foi citado como um convicto fraudador de fundos do
governo em um departamento de transporte de Kronstadt e que, graças à anistia conferida
por ocasião do terceiro aniversário da Revolução Bolchevique, recebeu indulto
como benefício (10).
Os esforços para desacreditar
o Comitê Revolucionário Provisório não pararam nem mesmo depois de sufocada a
rebelião. Além da campanha de difamação, os escritores soviéticos trataram de
associar os líderes rebeldes à oposição política. Petrichenko foi descrito como
um partidário dos socialistas revolucionários de esquerda (SR); Valk e
Romanenko, mencheviques; e Oreshin, um socialista populista. De Lamanov, acusavam-no
de principal ideólogo do movimento, diretor do jornal rebelde e um maximalista
do partido socialista revolucionário (SR) (11). Lamentavelmente, não nos chegou
até o presente momento nenhuma informação confiável sobre a veracidade dessas
informações. Todavia, com relação ao presidente do comitê, sabemos atualmente,
através de fontes soviéticas, que era um “ex-comunista” inscrito durante a
referida campanha de recrutamento partidário, denominada de “semana do partido”
(agosto de 1919) quando os pré-requisitos regulamentares para a admissão foram suspensos.
Entretanto, Petrichenko logo se desfiliou do partido (12).
A breve passagem de
Petrichenko pelo Partido Comunista não era, entretanto, um caso invulgar em
Kronstadt. Kilgast, o secretário do Comitê Revolucionário, teve uma trajetória
semelhante. Não só os dois. Milhares de marinheiros do Báltico também
experimentaram uma curta passagem pelo partido. Tanto que, em março de 1921, o
número de filiados em Kronstadt caiu pela metade se comparado com seis meses
antes. Como se sabe, alguns desses apóstatas aproveitaram a licença para voltar
às suas casas. O próprio Petrichenko retornou à sua aldeia natal em abril de
1920, e permaneceu lá, aparentemente, até setembro ou outubro daquele ano. Durante
esse período, pôde constatar em pessoa os métodos truculentos de requisição de
alimentos aplicados pelos destacamentos bolcheviques. A curta passagem pelo interior
foi decisiva para Petrichenko formar um juízo próprio e hostil a respeito do
governo. Conforme relatou mais tarde para um jornalista norte-americano, as
autoridades prenderam-no muitas vezes por suspeita de atividade
contrarrevolucionária. Ainda segundo o relato, o mesmo teria tentado uma
aproximação com os brancos, mas que foi recusada por causa de seu passado
bolchevique. Sempre insistiu, no entanto, que o Comitê Revolucionário de Kronstadt
não mantinha vínculos com nenhum grupo político. “Nossa revolta - disse - era
um simples movimento pelo fim da opressão bolchevique e nada mais. Então o povo
poderia manifestar sua vontade livremente (13).
O principal objetivo da
propaganda bolchevique consistia em mostrar a revolta não como um movimento inerente
a um protesto de massa espontâneo, mas como uma nova conspiração
contrarrevolucionária que seguia um padrão recorrente durante toda a guerra civil.
De acordo com a imprensa soviética, por influência dos mencheviques e socialistas
revolucionários (SR), os marinheiros ataram desgraçadamente sua sorte à dos
“guardas brancos”, cuja liderança em Kronstadt estava nas mãos de um certo
general de nome Kozlovski. “Por detrás dos socialistas revolucionários (SR) e dos
mencheviques - declarava o Pravda – rosnam com dentes afiados os generais
czaristas” (14). Acrescentava-se ainda que o movimento de Kronstadt era parte
de um plano cuidadosamente tramado em Paris por emigrados russos em conluio com
o serviço de espionagem francês. Ademais, denunciava que os conspiradores agiam
pelas sombras utilizando-se de fachada uma rede de organizações da Cruz
Vermelha - a Cruz Vermelha Internacional, a Cruz Vermelha Norte-Americana e a
Cruz Vermelha Russa estabelecida na Finlândia. A 2 de março, o Conselho do Trabalho
e da Defesa do governo emitiu uma ordem assinada por Lênin e Trotsky pela qual
declarava fora da lei o general Kozlovski e seus associados e incriminava a
resolução do Petropavlovsk como sendo um documento das “Centúrias Negras-SR”
[Centúrias Negras foi uma organização czarista, nacionalista e antissemita, responsável
pelo segundo pogrom, entre o período de 1903-1906. Aqui está sendo associada ao
partido dos socialistas revolucionários (SR) - N.T.]. A lei marcial foi estendida
a toda a província de Petrogrado e, para enfrentar a crise provocada pela
revolta, foi decretado o estado de emergência, investindo-se com poderes de
exceção o Comitê de Defesa, de Zinoviev (15).
Como prova de que a
insurreição havia sido urdida por grupos antissoviéticos em Paris, os
emissários bolcheviques publicizaram notícias veiculadas por jornais franceses
que antecipavam em duas semanas uma revolta em Kronstadt. À imprensa inglesa e
norte-americana, Trotsky assegurou que tais reportagens evidenciavam
categoricamente que a conspiração havia sido tramada por emigrados russos e
agentes da Entente. A escolha de Kronstadt, não foi por acaso, prosseguia
Trotsky, pois se considerava a sua proximidade geográfica com Petrogrado, de
fácil acesso pelo ocidente. Além disso, Trotsky insistia na recente
incorporação de elementos não confiáveis à tripulação da Frota do Báltico (16).
A 8 de Março, os argumentos de Trotsky foram repetidos por Lênin em um discurso
pronunciado ao X Congresso do Partido Comunista. Por detrás da revolta, declarou
Lênin, “aparece a face familiar de um general da Guarda Branca”. “Está claro
como o sol do meio dia – disse Lênin, citando matérias publicadas nos jornais Le Martin e L'Echo de Paris -, isso é obra dos socialistas revolucionários (SR)
e dos emigrados da Guardas Branca” (17).
Considerando-se que as
matérias dos jornais de Paris obtiveram valor de verdade na acusação formulada
pelos bolcheviques a respeito de uma conspiração branca, seria interessante
então examinar o conteúdo e as fontes das matérias jornalísticas em tela. Que
diziam exatamente? A notícia publicada pelo diário Le Martin, a 13 de fevereiro, sob o título de “Moscou efetua
diligências contra os rebeldes de Kronstadt”, descrevia um levante na base
naval de Kronstadt e as ações tomadas pelas autoridades bolcheviques para impedir
que a rebelião alcançasse Petrogrado. No dia 14 de fevereiro, o jornal publicou
um segundo artigo apontando a causa da revolta à prisão de uma delegação enviada
pelos marinheiros a Moscou para exigir melhorias na qualidade das rações. A
situação em Kronstadt, noticiava o jornal Le
Martin, segue se deteriorando e os rebeldes já “apontam os canhões em
direção de Petrogrado”. No mesmo dia, apareceu uma reportagem no L'Echo de Paris informando sobre a detenção
do comissário chefe da frota por marinheiros amotinados e uma ofensiva contra Petrogrado
na qual foram mobilizados para o ataque muitos navios de guerra
(presumivelmente com ajuda de um navio quebra-gelo). Os insurgentes, segundo
outro artigo do dia 15 de fevereiro, contavam com o apoio da guarnição de Petrogrado,
enquanto as autoridades governamentais realizavam prisões em massa em toda
capital. Entre os dias 13 e 15 de fevereiro, notícias similares apareceram em
outros jornais vinculados à imprensa ocidental. O New York Times chegou mesmo a reportar a tomada de Petrogrado e uma
investida contra as tropas enviadas por Trotsky (18).
Evidentemente, nada disso
aconteceu em Kronstadt, nem em nenhuma outra base do Báltico no mês de fevereiro
de 1921. Falsos rumores assim - estimulados pelas fantasias de quem desejava
que isso acontecesse e respaldados pelos problemas sociais por que passava a
Rússia de um modo geral naquela quadra - não são raros em momentos de crise.
Todavia, no caso de Kronstadt, prenunciavam o que realmente estava para
acontecer duas semanas mais tarde (inclusive, a prisão de um dos principais
comissários da frota). Alguns historiadores sugerem que tais rumores surgiram
durante a tumultuosa sessão da II Conferência dos Comunistas da Frota do
Báltico, circunstância em que os marinheiros protestavam por mais democracia na
administração política da frota (19). Tal hipótese não se sustenta e deve ser
descartada, já que as notícias falsas sobre a suposta rebelião saíram vários
dias antes da conferência (realizada no dia 15 de fevereiro). Na verdade, histórias
parecidas haviam sido publicadas muito antes na imprensa dos emigrados russos.
Foram elas que serviram de fonte para as notícias veiculadas pelos jornais
ocidentais. A 12 de Fevereiro, a Volia
Rossii (Liberdade Russa), diário correlacionado aos socialistas
revolucionários (SR) de Praga, informou sobre um “importante levante na frota
russa do Báltico”. Dois dias antes, o periódico Obshchee Delo (A Causa Comum), de Paris, dirigido pelo
veterano populista Vladimir Burtsev, publicara a mesma notícia intitulada “O
Levante dos Marinheiros em Kronstadt”. A matéria continha praticamente todos os
elementos que apareceriam nos artigos publicados pela imprensa ocidental, sendo,
provavelmente, a fonte de todos eles. Surpreendentemente, antecipava fatos que
só se dariam uma quinzena depois. Detalhava o levante desde a tomada do porto,
a prisão do comissário chefe da frota, o plano para empreender operações
militares contra Petrogrado, o estado de sítio e até as prisões em massa (20). Ao
que tudo indica, todo o enredo narrativo da suposta rebelião deve-se a um
correspondente da agência de notícias “Russunion”, cuja sede situava-se em
Helsingfors, centro conhecido pela propaganda antissoviética. Todavia, torna-se
necessário esclarecer o que realmente pode ter motivado a onda de boatos que
antecipou a rebelião. Salvo a já conhecida insatisfação geral da frota, a prisão
dos delegados de Kronstadt em Moscou pode também ter contribuído para alimentar
os rumores. Ao que parece, Raskolnikov, comandante do Báltico, exigia a soltura
imediata de seus camaradas, do contrário os marinheiros abririam fogo contra Petrogrado.
O governo não só se recusou a ceder ao ultimato como ameaçou Kronstadt com
represálias (21).
O Comitê Revolucionário
de Kronstadt negou as acusações de conspiração como sendo parte de uma calúnia
totalmente inventada pelas autoridades que expunha tão somente uma baixeza
reveladora de toda impostura que caracterizava o regime político bolchevique.
Em um pronunciamento dirigido aos operários e camponeses da Rússia, o comitê
emitiu uma resposta à altura de sua indignação: “Nossos inimigos estão armando
uma mentira contra nós; dizem que a rebelião de Kronstadt foi tramada por
mencheviques, socialistas revolucionários (SR), espiões da Entente e generais
czaristas. Querem fazer crer que o centro deflagrador da rebelião está situado
em Paris. Absurdo! Se nossa rebelião surgiu em Paris, então a lua foi feita em Berlim”
(22). A resposta do comitê foi igualmente firme diante da acusação de que
oficiais brancos lideravam o movimento: “Em Kronstadt, o poder está nas mãos de
marinheiros revolucionários, soldados do Exército Vermelho e operários, não dos
guardas brancos, liderados por um certo general Kozlovski, como anuncia
caluniosamente a rádio de Moscou”. “Temos só um general aqui - declaravam os rebeldes
em tom sarcástico -, e o nosso general é Kuzmin, o comissário da Frota do
Báltico. Só que no momento, nós o prendemos” (23). Para demonstrar o caráter
popular da revolta, o Comitê Revolucionário publicou uma lista completa dos
integrantes que o compunham. Como sabemos, não aparece nenhum oficial de alta
patente na lista, muito menos um general! Somente marinheiros e operários
comuns. “Estes são os nossos generais: os Bruilov, os Kamenev etc.”, declarava
o Izvestiia de Kronstadt, aludindo
aos inúmeros ex-oficiais czaristas que serviam ao exército bolchevique (24).
Todavia, um general
Kozlovski realmente existiu e, durante o mês de março de 1921, encontrava-se na
cidade de Kronstadt. Qual o seu papel na sublevação dos marinheiros, se é que
desempenhou algum? Alexander Nikolaievich Kozlovski foi um oficial de carreira
do exército com um longo histórico de distinção no serviço militar. Nascido em
1861, na cidade de Krasnoe Selo, cercanias de Petrogrado, Kozlovski graduou-se
na Escola de Cadetes da Cavalaria e na Academia Militar Imperial. Durante a
Primeira Guerra Mundial, ascendeu à patente de general de artilharia. Após a
revolução de outubro, foi um dos muitos ex-oficiais imperiais convocados pelos
bolcheviques para o serviço militar na função de “especialista militar” (voenspetsy). Em 1921, Kozlovski foi
nomeado chefe de artilharia na fortaleza de Kronstadt. Quando ocorreram os
distúrbios no início de março, os bolcheviques acusaram-no de ser o gênio do
mal por trás do movimento. Kozlovski foi declarado fora da lei e sua esposa e
filhos feitos reféns em Petrogrado. Além do general, foram denunciados como
conspiradores outros três ex-oficiais subordinados ao seu comando - Burkser,
Kostromitinov e Shirmanovsky. Em resposta, Kozlovski argumentou que estava
sendo acusado porque naquele momento era o único ex-general czarista em Kronstadt
e, portanto, as autoridades escolheram-no para bode expiatório do papel
fictício de comandante da Guarda Branca a conspirar contra a revolução (25).
Sem dúvida, há alguma
verdade nisso. Porém, as evidências disponíveis explicitam claramente a
participação direta de Kozlovski e seus colegas nos eventos de março de 1921.
Quando, nas primeiras horas da revolta, o comandante da fortaleza abandonou seu
posto e fugiu para o continente, Kozlovski recusou-se em substituí-lo no
comando e permaneceu na sua função de diretor de artilharia. O Comitê
Revolucionário Provisório designou outro especialista de artilharia para a vaga,
o ex-tenente coronel E. N. Solovianov, com quem, aliás, Kozlovski trabalhava em
estreita cooperação. A maioria de seus camaradas voenspetsy - em particular, os do ramo de artilharia - assumiram aparentemente
a mesma atitude e colocaram-se à disposição dos insurgentes no fornecimento de assistência
e apoio técnico. Evidentemente, estes ex-oficiais não tinham bom apreço pelo regime
bolchevique e sua atitude típica podia ser exemplificada pela observação mais
acima assinalada na qual se supõe que Kozlovski teria interpelado o comissário
bolchevique da fortaleza nos seguintes termos: “O tempo de vocês acabou, agora
sou eu quem vai fazer o que tem de ser feito”.
Desde o início, os
especialistas dedicaram-se à tarefa de planejar operações militares em apoio à
revolta. No dia 2 de Março, como admitiu o próprio Kozlovski, ele e os seus
colegas aconselharam o Comitê Revolucionário a uma rápida ofensiva contra os
bolcheviques a fim de conquistar a iniciativa no teatro de operações
estratégicas (26). Os oficiais elaboraram um plano para um rápido desembarque
em Oranienbaum (localizado na costa continental a uns oito km ao sul).
Visavam com isso se apoderar do equipamento militar da cidade e estabelecer
contato com unidades favoráveis do exército. A partir daí, os rebeldes avançariam
sobre Petrogrado sem dar tempo ao governo para reunir uma resistência efetiva
na defesa da cidade. Os oficiais propuseram também a ocupação dos moinhos de
trigo de Oranienbaum com o intuito de prover de alimentos tão necessários os
armazéns de Kronstradt. Para operacionalizar os navios Petropavlovsk e Sebastopol,
que estavam encalhados no gelo, dispostos paralelamente um em relação ao outro,
de modo a bloquear suas respectivas linhas de fogo, os especialistas ofereceram
uma alternativa para compensar a falta momentânea de navios quebra-gelo (a
maior embarcação deste tipo, o Ermak, encontrava-se em Petrogrado para carregamento
de petróleo). Tratava-se de quebrar a superfície da água congelada ao redor dos
navios com tiros de canhões desferidos pela fortaleza e baterias circundantes. O
bombardeio também abriria um fosso em torno da ilha, tornando-a intransponível
a uma invasão da infantaria inimiga (27).
De fato, os oficiais bem
que tentaram conduzir o processo revolucionário mas nunca ultrapassaram o
status de meros conselheiros. Não tiveram qualquer participação, até onde se
sabe, na gênese ou direção da revolta; muito menos na elaboração do programa
político dos marinheiros, totalmente estranho aos seus valores aristocráticos.
Nenhum dos oficiais tomou parte na redação da resolução do Petropavlovsk;
nenhum se manifestou na assembleia da Praça da Âncora; nenhum assistiu a
conferência do dia 2 de março, realizada na Casa da Educação; nenhum ocupou
qualquer posição no Comitê Revolucionário Provisório. O envolvimento dos
oficiais limitou-se a prestar assessoramento técnico, tal como faziam para os
bolcheviques. Alguns rebeldes relataram mais tarde a Feodor Dan, quando estiveram
presos no mesmo cárcere em Petrogrado, que o general Kozlovski apenas cumpria
suas obrigações e não detinha de nenhuma autoridade sobre o movimento (28). Em
todo caso, tendo-se em vista a índole insubmissa dos marinheiros e seu ódio
inveterado aos oficiais, é bastante improvável que Kozlovski e seus colegas
exercessem alguma influência efetiva sobre eles. Aliás, em nenhum momento, o
Comitê Revolucionário Provisório soltou as rédeas da revolta. Seus líderes sempre
desconfiaram dos oficiais especialistas e recusaram repetidamente seus conselhos,
por mais apropriados que pudessem parecer. Assim sendo, não obstante o parecer
técnico, os marinheiros não quebraram o gelo que rodeava a ilha, liberando os navios
de guerra, nem tampouco tentaram estabelecer uma cabeça de ponte no continente a
fim de surtir um efeito surpresa vantajoso no instante inicial do conflito. Em
lugar disso, na noite entre os dias dois e três de março, após notícias de que a
Esquadrilha Aérea Naval em Oranienbaum votara a favor da revolta, os rebeldes limitaram
seus esforços a organizar uma pequena expedição de confraternização com seus
vizinhos no continente. Mas, ao chegarem lá, foram recebidos por uma chuva de
balas e forçados a uma rápida retirada (29).
Feitas estas
considerações, segue sem resposta a questão fundamental: havia alguma verdade
nas acusações bolcheviques, a saber, de que a revolta fora planejada em Paris
por emigrados russos? Não há a menor dúvida de que os expatriados sonhavam com
um levante antissoviético. Muito se debatia a respeito e artigos sobre o
assunto eram publicados, notadamente, por um grupo conhecido como Centro
Nacional (ou União Nacional) - uma pequena coalizão de Kadets, Outubristas e
moderados que mantinha um quartel general em Paris com ramificações por várias
capitais europeias. Tomemos, por exemplo, um artigo escrito por um proeminente
líder Kadet, F. 1. Rodichev, publicado no Obshchee
Delo - o principal órgão de imprensa do Centro Nacional - apenas dez dias
antes do início da rebelião em Kronstadt. “Tomar Petrogrado não seria difícil.
A maior dificuldade é abastecer de alimentos a cidade e organizá-la para a luta.
Mas, superadas as dificuldades iniciais, não tardaria a hora de atacar. Petrogrado
é a cidade mais próxima das fronteiras ao Oeste. É o ponto da Rússia Soviética
mais acessível e fácil de conquistar. Petrogrado dará início ao trabalho de
regeneração... É chegado o momento” (30).
Naquelas circunstâncias,
todavia, ameaças deste tipo não preocupavam os líderes bolcheviques. Muito mais
alarmantes eram as conspirações que se suspeitavam tramadas secretamente pelos
exilados. Suspeitas que não eram de todo infundadas. Provas que permaneceram desconhecidas
até agora revelam planos para a execução de um levante, tais como aqueles
traçados pelo Centro Nacional, mas elaborados muitas semanas antes do início da
revolta de Kronstadt. Antes de avaliarmos estas provas, convém nos determos a
uma breve explicação acerca das atividades pretéritas do Centro Nacional.
O Centro Nacional teve
origem em 1918 - portanto, no início da guerra civil - como uma auto-proclamada
“organização clandestina russa contra os bolcheviques” (31). Fundado em Moscou
por A. V. Kartashev, P. B. Struve e outros antigos líderes do partido Kadet, seu
principal objetivo era derrubar o governo de Lênin e instituir um regime
constitucional. O Centro Nacional concentrava o grosso de seus recursos em
Moscou e em toda a Costa do Báltico. Havia também ramificações em Petrogrado e
nas fortalezas de Krasnaya Gorka e Kronstadt. Em 1919, o Centro Nacional esteve
envolvido numa tentativa articulada pelo general Yudenich, juntamente com a
marinha britânica, para ocupar Petrogrado. Kartashev, um de seus fundadores, ex-professor
de história da igreja na Academia Teológica de Petrogrado e ministro de
assuntos religiosos no governo provisório de 1917, teve participação no
Conselho Político dos cinco homens de Yudenich. Já entre os agentes do Centro
Nacional em Kronstadt, conforme informam fontes soviéticas (32), encontrava-se
um ex-reitor da Universidade de Petrogrado, o professor D. D. Grimm, que se
destacaria como uma figura de proa nos acontecimentos de 1921.
Ao longo de toda ofensiva
de Yudenich, Kronstadt manteve-se leal aos bolcheviques, resistindo aos ataques
aéreos e disparos de torpedos efetuados pelos ingleses, que afundaram ou
avariaram vários navios de guerra. Krasnaya Gorka, pelo contrário, aliou-se aos
brancos e, diante da recusa dos kronstadtinos em seguir o seu exemplo, abriu
fogo contra a fortaleza. Como já assinalado, há evidências do envolvimento do
Centro Nacional neste ataque, talvez com o assentimento do serviço de
inteligência britânico (33). Porém, a invasão foi subjugada após um devastador
bombardeio do Petropavlovsk, o qual
abriu caminho para um destacamento de soldados vermelhos e marinheiros de Kronstadt
tomarem o forte de assalto.
Na esteira da derrota de
Yudenich, muitos integrantes do Centro Nacional foram presos pela Tcheka e condenados
à morte ou a prisão perpétua. Mas muitos líderes, entre eles o professor
Kartashev, conseguiram escapar do país e estabelecer um quartel-general em
Paris, onde a organização foi rearticulada. No final de 1920, o Centro Nacional
podia se gabar de ter filiados em Londres, Berlim, Helsingfors (de onde o
professor Grimm era o chefe) e outros centros de emigração branca. Além de Kartashev,
Struve e Rodichev, a liderança do movimento incluía eminentes Kadets e
Outubristas, como V. D. Navokov e A. I. Gushkov, além de vários populistas da
ala de direita, entre os quais se destacava V. D. Burtsev, diretor do Obshchee Delo. Todavia, alguns dos mais
distintos liberais recusaram-se a aderir ao grupo, tais como Pavel Miliukov e
M. M. Vinaver, pois haviam perdido toda a esperança de que a Rússia pudesse ser
libertada por meio de uma invasão armada apoiada ou não por forças estrangeiras
(34).
O Centro Nacional
recompôs-se a tal ponto que em fins de 1920 havia base militante suficiente
para viabilizar o Congresso Europeu da União Nacional, aberto em Paris em junho
de 1921. No congresso, foi eleito um comitê Nacional Russo, presidido pelo
professor Kartashev, cuja meta estabelecida definia “a libertação da Rússia da
escravidão comunista” (35). Obviamente, este havia sido o objetivo do Centro Nacional
desde sua formação, em 1918, apesar das sucessivas derrotas impostas a todos os
comandantes brancos desde então - Yudenich, Kolchak, Denikin, Wrangel. No caso
deste último, o general até conseguiu evadir da Rússia grande parte do seu Exército
Russo (como Wrangel chamava seus soldados) e salvaguardar intacto todo o
armamento disponível. Uns 70 ou 80 mil homens foram baseados em Constantinopla,
Galipoli e Lemnos e outros mil deles, na Sérvia e Bulgária; ao mesmo tempo em
que se preservaram a disciplina e as patentes hierárquicas. Protegido pela
França, único país que em agosto de 1920 reconhecia de fato e de direito o Governo Sul-Russo, o general Wrangel submetia
suas forças ao poderio militar francês. A esquadra em que havia fugido, que
incluía um encouraçado, vários contratorpedeiros e dezenas de outros navios
provenientes da frota do Mar Negro, somando uma tripulação de cerca de 5.000
homens, foi destinada para o porto de Bizerta, ao norte da Tunísia. Mas, em
novembro de 1920, Paris finalmente retirou seu apoio oficial ao governo de
Wrangel e procurou dissuadi-lo de seu projeto para derrubar o governo
bolchevique, embora continuasse a abastecer suas tropas sob o pretexto de
“razões humanitárias” (36). Mas tais esforços foram em vão. “O general Wrangel -
como bem observou um enviado inglês em Constantinopla, em março de 1921; quando
estourava a rebelião de Kronstadt - recusará, como é de se esperar, qualquer
proposta para dissolver o seu exército, pois considera particularmente oportuno
que a única força antibolchevique fora da Rússia esteja preparada para obter
vantagens dos atuais acontecimentos naquele país” (37).
De volta às movimentações
do Centro Nacional, encontra-se nos arquivos dessa organização um manuscrito
apócrifo, sem assinatura, com um rótulo subscrito “ultrassecreto” e intitulado “Memorando
sobre a questão da organização de uma sublevação em Kronstadt" (38). O Memorando está datado do ano de “1921” e
apresenta um plano detalhado para ser aplicado a uma eventual rebelião em Kronstadt.
A julgar pelas evidências contidas no documento, está claro que o plano foi
traçado por um agente do Centro Nacional de Viborg ou Helsingfors, ainda no mês
de janeiro ou início de fevereiro de 1921. O autor do memorando prevê um
levante dos marinheiros ainda “na primavera”. De acordo com o documento,
“existem sinais abundantes e inequívocos” de descontentamento da frota em
relação aos bolcheviques; se um “pequeno grupo agir rápida e decididamente,
tomará o poder em Kronstadt”, enquanto os demais o seguirão com ardor e
entusiasmo. “Entre os marinheiros – acrescenta o documento - tal grupo já
existe e está disposto a executar imediatamente as ações mais enérgicas que a
operação requer”. Se houver garantia de apoio externo, conclui, “poderemos
contar com um êxito total”.
O provável autor do Memorando está obviamente muito
familiarizado com a situação de Kronstadt. Há uma extensa e bem informada
análise sobre as fortificações da base, na qual o perigo de um bombardeio de
artilharia a partir de Krasnaya Gorka é cuidadosamente avaliado, sem, contudo,
ser considerado uma ameaça séria para a rebelião. O documento acentua, ademais,
a necessidade de abastecer os rebeldes de alimentos com bastante antecedência.
Neste ponto o autor é muito enfático. Com ajuda da França, embarcações poderão
transportar mantimentos através do Báltico até Kronstadt. Uma força tarefa
militar, prossegue o autor, deve mobilizar o Exército Russo do general Wrangel,
que receberá auxilio de uma esquadra francesa e das unidades da frota do Mar
Negro, em Bizerta. (Pressuposto básico do Memorando
é que a revolta não poderia ocorrer antes do degelo da primavera, momento em
que Kronstadt ficaria intransponível a uma invasão militar pelo continente, os
depósitos de alimentos estariam completamente abastecidos e as forças do
general Wrangel preparadas para entrar em cena).
À chegada do Exército
Russo, continua o Memorando, todo o
controle de Kronstadt passaria imediatamente às mãos de um comandante em chefe.
A fortaleza se transformaria numa “base invulnerável” para o desembarque de
tropas no continente “com o objetivo de derrubar a autoridade soviética na
Rússia". No entanto, o êxito da operação dependerá da disposição dos
franceses em proporcionar dinheiro, víveres e apoio naval. De outra maneira,
uma revolta será inevitável, sim, mas sem a menor chance de alcançar a vitória.
Se o governo francês concordar, conclui o Memorando,
tornar-se-á necessário nomear “uma pessoa com a qual poderemos entrar em acordo
a respeito da organização e das lideranças da rebelião a fim de comunicar-lhes
os detalhes do plano de sublevação e ações posteriores, bem como facilitar o
acesso de informações precisas sobre os fundos que se requerem para a
organização e demais aspectos financeiros do levante”.
Muito embora não se
conheça a identidade do autor do Memorando,
há evidências que apontam para o professor G. F. Tseidler, um dos expatriados
russos em Viborg. Tseidler havia sido diretor da Cruz Vermelha Russa em Petrogrado
antes da revolução alçar os bolcheviques ao poder. Fugiu então para a
Finlândia, onde se tornou chefe da filial da Cruz Vermelha Russa no país.
Mantinha laços estreitos com David Grimm, seu ex-colega na Universidade de Petrogrado,
que atuava como o principal agente do Centro Nacional em Helsingfors (com o
qual Tseidler estava também conectado) e de onde representava oficialmente do general
Wrangel. Como funcionário da Cruz Vermelha, Tseidler ficaria responsável,
conforme definia o Memorando Secreto, por uma função-chave na logística da
rebelião: o abastecimento de alimentos a Kronstadt. É bastante sintomático o
fato de que, em outubro de 1920, Tseidler tenha enviado um informe ao quartel
general da Cruz Vermelha Norte-Americana relatando a crise de alimentos em Petrogrado
(39). Ainda mais significativo foi o telegrama que remeteu ao Centro Nacional
em Paris alguns meses depois: “A situação requer uma resposta imediata sobre as
questões relativas a meu memorando acerca do abastecimento de alimentos. A
rebelião pode estourar a qualquer momento” (40). O telegrama é datado de “28/ /1921”.
Lamentavelmente, não há uma indicação expressa do mês na data em questão, mas
parece muito provável sugerir o mês de fevereiro, pois no dia 28 de fevereiro as
greves de Petrogrado alcançaram seu ponto alto, coincidindo, por consequência,
com a aprovação da resolução do Petropavlovsk. Ao pé do telegrama, estava escrito
à mão a palavra “correto!”, seguida pela assinatura de G. L. Vladimirov, um
general czarista que desempenhava a função de expert militar para o Centro Nacional. A menção à passagem “meu memorando
acerca do abastecimento de alimentos” pode muito bem ser uma referência
expressa ao Memorando Secreto. Uma prova a mais da autoria do Memorando coincidir com a pessoa de
Tseidler, é que, no dia cinco de abril de 1921, pouco depois dos bolcheviques
reocuparem Kronstadt, o professor publicou um panfleto lamentando o
intento fracassado dos emigrados que não conseguiram guarnecer os insurgentes
nem oferecer um plano alternativo de abastecimento a Petrogrado, em caso de uma
nova insurreição (41). Durante o levante de março, como veremos, ninguém se
esforçou tanto quanto Tseidler para aprovisionar os rebeldes a tempo de evitar-se
um desastre fragoroso.
Afora a existência do Memorando
Secreto, há outros indícios de que o Centro Nacional monitorava Kronstadt já nas
primeiras semanas de 1921. Vale a pena ressaltar, por exemplo, as reportagens
falsas, difundidas amplamente por jornais estrangeiros, sobre um levante de
marinheiros ocorrido no mês de fevereiro, que provinham da agência de notícias Russunion
- grupo de jornalistas estreitamente conectados com Centro Nacional. Vladimir
Burtsev, figura líder no Centro Nacional e diretor do órgão Obshchee Delo, diário no qual apareceram
pela primeira vez esses relatos, era ao mesmo tempo um dos chefes da Russunion.
Por isso, os escritórios do Obshchee Delo
acabaram por servir de quartel general da agência em Paris (42). Pode ser que
os boatos noticiados refletiam tão somente os desejos ardorosos dos expatriados
para que surgisse uma rebelião que colocasse em cheque o governo bolchevique.
Todavia, não era esta a opinião do londrino Daily
Herald, um jornal trabalhista de esquerda, muito bem informado, mas pouco
crítico quando se tratava de ir além de sua simpatia pró-bolchevique. Um dos
seus correspondentes internacionais argumentava que os relatos que apareceram no
jornal Le Martin e outros diários eram
uma confissão de que a “convicção de que ocorreria” uma revolta em Kronstadt nada
mais era que a prova do complô contrarrevolucionário orquestrado por exilados
brancos com o apoio Aliado (43). Por mais duvidosa que possa parecer tal afirmação,
é bastante razoável supor, à luz do Memorando Secreto, que o Centro Nacional
tenha informado ao menos os franceses sobre seus planos no Báltico e, assim,
solicitado ajuda para levar o projeto a contento (44).
Em todo caso, não se põe
em questão aqui se realmente o Centro Nacional preparava um plano de apoio a um
possível levante em Kronstadt - e, a julgar pelo Memorando Secreto, os agentes
do Centro Nacional no Báltico não tinham a menor intenção de restringir sua
atuação à condição de mero espectador. Seu objetivo, ao contrário, concentrava-se
numa colaboração assídua com os rebeldes o quanto antes; a depender, é claro,
das garantias de cooperação oferecidas pelo alto comando francês “para a
preparação e condução do levante”. Em última análise, era evidente que o Centro
Nacional buscava explorar a revolta em benefício de seus próprios interesses.
Mas teria realmente existido
um vínculo anterior unindo os marinheiros de Kronstadt ao Centro Nacional? No Memorando
Secreto, escrito durante as primeiras semanas de 1921, o autor menciona a “presença
de um grupo solidamente unido por uma enérgica liderança disposta a tudo pela
rebelião”. Esta informação, segundo consta no documento, “provinha de Kronstadt”,
e foi presumivelmente obtida por fontes amigas do Centro Nacional. Que um grupo
organizado por supostos insurgentes tenha surgido não é de forma alguma impossível
ou improvável, haja vista o descontentamento entre os marinheiros que, durante
vários meses, só fazia crescer. Tampouco seria falsa a ideia de que em uma
organização rebelde, se é que existia uma, não participasse elementos que se
tornassem futuros membros do Comitê Revolucionário Provisório. O papel de
destaque que desempenhou Petrichenko desde as primeiras horas da sublevação - a
sua assinatura subscrita na resolução de Petropavlovsk, o discurso na Praça da Âncora,
o cargo de presidente na conferência do dia dois de março e, depois, no comitê
revolucionário etc. - pode levantar a especulação de que seu envolvido na
conspiração data de muito antes do início da revolta. Cabe ainda mencionar a
declaração de um outro membro do comitê nos seguintes termos: “Nós revogamos a prisão de Kalinin no
primeiro de março” - ou seja, uma decisão tomada aparentemente por um grupo de
pessoas um dia antes do comitê estar formado (45).
É bastante razoável supor
que Petrichenko e seus confederados eram o tal “grupo solidamente unido”, ao
qual o Memorando Secreto apostava todas as suas esperanças. Talvez, Petrichenko
e seu grupo teriam sido contatados pelos agentes do Centro Nacional já nos
meses de janeiro ou fevereiro de 1921. Há inegável evidência - que examinaremos
mais adiante - de que o Comitê Revolucionário chegou a um acordo com o Centro
Nacional depois de sufocada a rebelião,
tendo, inclusive, alguns de seus membros encontrado refúgio na Finlândia.
Portanto, não se pode descartar há possibilidade de um antigo conchavo entre os
líderes da revolta e os emigrados. Todavia, apesar de todas as investigações
cuidadosas nesse sentido, não se encontrou nenhuma prova que confirmasse a tese
de um pacto. Nada indica até o presente momento que o Memorando Secreto foi
executado de fato ou que existiu qualquer conexão entre os emigrados e os
marinheiros em um período anterior à revolta. Pelo contrário, sinais
inequívocos de espontaneísmo parecem ter caracterizado o levante de Kronstadt
do começo ao fim. Sem dúvida, o fato de um grupo de líderes determinados ter
surgido rapidamente à frente do movimento não fornece evidência do contrário.
Com efeito, toda rebelião, mesmo a mais elementar, tem os seus “chefes” e “agitadores”,
que incitam, organizam e dirigem os descontentes para alguma causa comum. Eis o
caso de Kronstadt. O total improviso nos procedimentos operados pelos rebeldes
sugere de modo convincente que não houve um planejamento antecipado. Se
houvesse um plano, os marinheiros seguramente teriam aguardado as poucas
semanas que faltavam para o degelo, não apenas evitando com isso a ameaça de um
assalto de infantaria, mas também possibilitando o desprendimento dos dois navios
de guerra e a abertura de uma rota alternativa para o oeste. Os rebeldes também
não teriam permitido o regresso de Kalinin a Petrogrado, já que este poderia
ter sido usado como um valioso refém. Além disso, não esboçaram sequer uma
única ação ofensiva, limitando-se ao envio de uma força expedicionária de
caráter simbólico até Oranienbaum. Aliás, é também bastante significativo o
grande número de comunistas que tomaram parte no movimento. Pelo menos nas
primeiras etapas, os kronstadtinos não se percebiam como conspiradores revolucionários,
senão como um movimento por reformas social e política. Da mesma forma pensavam
as autoridades de Petrogrado, como observou George Katkov, pois, de outra
maneira, não teriam enviado Kalinin e Kuzmin a Kronstadt para negociar com os
rebeldes no primeiro dia de março. Nem tampouco Vasiliev, o presidente
bolchevique do soviete de Kronstadt, teria presidido a assembleia na Praça da Âncora
quando da votação da resolução do Petropavlovsk (46).
Os marinheiros não
necessitavam de agentes externos para erguer o estandarte da insurreição. Durante
meses, foram acumulando queixas e mais queixas: alimentação inadequada, desabastecimento
de combustível, redução da concessão de licenças, burocratização dos encargos da
frota, denúncia sobre a opressão bolchevique nas suas aldeias etc. Em janeiro
de 1921, como vimos, não menos de 5.000 marinheiros do Báltico desligaram-se do
Partido Comunista, desgostosos com a política do regime. Deserção e faltas no
serviço tornaram-se frequentes. Quando recebiam licença, os marinheiros presenciavam
os métodos de requisições de alimentos e eram submetidos à revista nos
bloqueios de inspeção de estradas. Em fevereiro de 1921, portanto, as
potencialidades de uma possível rebelião em Kronstadt estavam completamente amadurecidas.
Não foram as maquinações de emigrados e agentes estrangeiros de inteligência
que idealizaram a revolta. A onda de sublevações camponesas em todo o país e as
greves operárias na vizinha Petrogrado configuram-se como os reais fatores que
levaram a irrupção do movimento de Kronstadt. E, quando a revolta dos
marinheiros tornou-se um fato concreto, esta seguiu o mesmíssimo padrão das
primeiras explosões sociais de 1905 e que se repetiu por toda a guerra civil, atravessando,
portanto, o regime czarista e o bolchevique, indistintamente. O motim na base
naval de Petrogrado de outubro de 1918, por exemplo, foi um precedente particularmente
notável ao de Kronstadt, em março de 1921. Naquela época, os marinheiros também
protestaram contra o confisco de cereais e a nomeação arbitrária de comissários
políticos, e anteciparam os rebeldes de Kronstadt com seus lemas de “sovietes
livres” e “abaixo a comissariocracia”. Também é de destacar-se a influência que
exerceram sobre a rebelião de 1918 os socialistas revolucionários de esquerda
(SR), os maximalistas, os anarquistas e os rebeldes ultrarradicais
independentes.
Neste sentido, os kronstadtinos
sempre negaram as acusações de colaboracionismo com grupos contrarrevolucionários,
fossem estes endógenos, fossem exógenos. Negaram, sobretudo, as afirmações de
que pretendiam restaurar a velha ordem. “Somos defensores do poder dos
trabalhadores - declarava o diário rebelde Izvesia
-; somos contra a autoridade tirânica de qualquer partido” (47). Os rebeldes
insistiam que a revolta era um movimento genuinamente popular e espontâneo. Indagavam
aos seus detratores: nenhum agitador contrarrevolucionário fez a cabeça dos
rebeldes antes dos conflitos; nenhum tipo de literatura antibolchevique
circulou entre os marinheiros; nunca se recebeu dinheiro ou qualquer ajuda do
exterior. Tal é o testemunho dos sobreviventes que fugiram para a Finlândia
quando do assalto final a Kronstadt (48).
De particular interesse
são as afirmações de Petrichenko no exílio. Nós, os marinheiros de Kronstadt,
relatou em um artigo escrito em 1925, longe de sermos contrarrevolucionários,
somos os guardiões da revolução. Durante a guerra civil, lutamos com inaudita valentia
para defender Petrogrado e a Rússia dos brancos; e, em março de 1921, nossa
sincera devoção à causa permaneceu intacta. Isolados do mundo exterior, não podíamos
receber nenhuma ajuda de fontes estrangeiras, ainda que desejássemos. Não somos
agentes de nenhum grupo do exterior: nem dos capitalistas, muito menos dos
mencheviques e dos socialistas revolucionários (SR). Nossa revolta surgiu espontaneamente
contra a opressão bolchevique. Nunca tivemos um plano preconcebido; tateávamos
o caminho à medida que as circunstâncias impunham-se diante de nós. É possível
que outros grupos tenham feito planos para fomentar uma insurreição - na
verdade, isso é bem comum nessas ocasiões. Mas isso não teve nada que ver com o
Comitê Revolucionário Provisório. Durante todo o levante, a iniciativa nunca
escapou de nossas mãos. E quando ouvimos falar sobre elementos da direita que
tentavam explorar a rebelião em proveito próprio, imediatamente colocamos de
sobreaviso nossos apoiadores por meio de um artigo intitulado “Cavalheiros ou
Camaradas” (49).
Trata-se aqui do
editorial de 6 de março do jornal rebelde Izvestiia:
“Camaradas, estamos
comemorando agora uma grande vitória contra a ditadura comunista; mas os nossos
inimigos comemoram igualmente conosco. Os motivos de nossa alegria são
completamente diferentes dos deles. Enquanto que o que nos inspira é o ardente
desejo de restaurar o poder real dos sovietes e, por conseguinte, realizar a
insigne esperança do trabalhador livre e do camponês em desfrutar livremente do
direito sobre os produtos do seu trabalho ou da sua terra. Já nossos inimigos
guiam-se pela esperança de restabelecer o jugo czarista e os privilégios dos
generais sobre a sociedade. Nossos interesses são distintos e, portanto, não
são nossos camaradas. Vocês desejam o fim do domínio comunista para reconstruir
suas vidas pacificamente e usufruir o livre trabalho criador. Nossos inimigos
desejam a escravidão dos operários e camponeses. Vocês buscam a liberdade;
eles, colocar-lhes grilhões. Vigiem atentamente, não deixem os lobos em pele de
cordeiro assumir o comando de nossa esperança” (50).
A despeito da existência
do Memorando Secreto, o fato é que os emigrados russos não conseguiram
organizar nem inspirar a rebelião. Porém, não permaneceram de braços cruzados quando
os rebeldes iniciaram o motim. Assim sendo, a revolta armada movia interesses
diametralmente opostos. Os marinheiros lutavam por um sistema de sovietes
representado apenas por operários e camponeses sem qualquer mediação ou
representação de uma assembleia constituinte, que julgavam desnecessária.
Também não aceitavam outorgar direitos políticos de nenhuma espécie aos
latifundiários e às classes médias, que seguiriam sendo uma minoria despossuída
e proscrita. Não era esta, porém, a perspectiva dos expatriados, esperançosos em
se apoderar do levante para fazer valer os seus propósitos. Para Alexander
Kerensky, o primeiro-ministro do desventuroso governo provisório, o colapso
iminente do bolchevismo eram favas contadas (51). De forma similar, o líder
Kadet Miliukov, que havia abandonado toda fé numa intervenção armada, deu as
boas vindas à revolta, considerando-a como o começo de um movimento invencível das
massas russas de libertação. Em uma entrevista a um correspondente em Paris do
New York Times, Miliukov expressou seu otimismo com os derradeiros dias do
regime de Lênin e solicitou ao governo norte-americano somente donativos de
alimento, crendo desnecessário o envio de tropas e armas. Seu colega Vinaver,
no entanto, adotou uma postura um pouco mais cautelosa ao declarar o seguinte:
“É impossível dizer ainda quais as probabilidades de êxito deste movimento em
particular. Os bolcheviques podem até abatê-lo por algum tempo, mas não serão
capazes de destruí-lo a longo-prazo (52).
Por sua parte, os membros
do Centro Nacional não cabiam de contentamento. A rebelião em Kronstadt
realizava precisamente as previsões do autor do Memorando Secreto, apenas umas
semanas antes do esperado. Urgia, então, a problemática de como captar
recurssos aos rebeldes. “A sublevação de Kronstadt - conforme é revelado em uma
circular confidencial dos arquivos do centro - palpita o coração auspicioso de
todos os exilados russos”. Continua a circular: devemos enviar imediatamente
alimentos e remédios em nome da Cruz Vermelha; em seguida, devemos proporcionar
aos insurgentes aviões, lanchas, combustível e roupas, de tal modo a difundir a
revolta para todo o continente antes mesmo que os bolcheviques consigam reunir
forças para detê-la (53). No dia 6 de março, o jornal Obshchee Delo, de Burtsev, órgão semioficial do Centro Nacional,
publicou um apelo apaixonado a todos os emigrados russos para se unirem em
torno da última chance para salvar a Rússia: a rebelião dos marinheiros de Kronstadt:
“Estamos vivenciando um
momento que não mais se repetirá. Não podemos mais nos contentar com uma
postura de espectadores passivos ante a atual conjuntura. Conclamamos a todos a
colaborar com efetivo apoio material em auxílio dos revolucionários de Kronstadt.
É preciso armar os insurgentes e ofertar alimento a Petrogrado. A luta contra
os bolcheviques é a luta de todos nós! Tagarelar em meio aos terríveis dias de
hoje, atolados num lamaçal de debates e resoluções sem fim... Ai de nós, ai da
Rússia! Se a Europa, que já perdeu tantas oportunidades, perder essa também,
então... Ai da Europa, ai do mundo inteiro!” (54).
Por mais que os emigrados
estivessem demasiadamente divididos para que pudessem realizar um amplo e
contundente esforço mútuo em prol dos rebeldes, não fizeram ouvidos moucos ao
apelo de Burtsev. No dia seguinte, a sete de março, a União Russa de Comércio e
Indústria de Paris comunicou a seus representantes em Helsingfors a intenção de
enviar alimentos e outros abastecimentos a Kronstadt. Ao mesmo tempo, para
garantir pleno apoio aos rebeldes, ofereceram um sistema de radio comunicador
ao Comitê Revolucionário de Kronstadt (o rádio operador de Petropavlovsk era
capaz de captar mensagens através do Reval). A rádio anunciava um considerável
aporte inicial de dois milhões de marcos finlandeses mobilizados para custear
as operações rebeldes na “sagrada causa de libertação da Rússia”, além da
promessa de ajuda por meio de provisão de alimentos feita pelo ministro francês
de relações exteriores ao embaixador do governo provisório em Paris, o senhor
V. A. Maklakov. No dia 9 de março, a União de Comércio e Indústria constituiu
um comitê especial para organizar uma rede efetiva de abastecimento às cidades
de Kronstadt e Petrogrado. Aderiram rapidamente à iniciativa outros grupos
antibolcheviques e, no dia seguinte, uma reunião conjunta foi estabelecida para
traçar um plano de ação (55).
Paralelamente, um comitê
foi organizado pela filial do Centro Nacional em Helsingfors com a finalidade
de criar um canal de abastecimento que atendesse os insurgentes. O professor
Grimm, principal representante de Wrangel na Finlândia, foi eleito presidente
da organização, enquanto o professor Tseidler encarregou-se, em Paris, centro
financeiro da imigração russa, da onerosa incumbência de angariar fundos para o
empreendimento. O presidente da União Comércio e Indústria, N. Kh. Denisov,
arrecadou de imediato a soma de 100.000 francos. Após regressar à Finlândia, Tseidler
recebeu 5.000 libras inglesas do então presidente do Banco Internacional de
Paris, o conde V. N. Kokovtsov, que outrora ocupara os cargos de ministro das
finanças e primeiro-ministro no reinado do czar Nicolau II. O Banco Russo-Asiático
contribuiu com mais 225.000 francos. Fundos adicionais foram acrescentados por
outros bancos russos, companhias de seguro e órgãos financeiros de toda a
Europa e pela Cruz Vermelha Russa, que repassou todas as contribuições para
Tseidler, seu representante na Finlândia. A 16 de Março, Kokovtsov informou ao
Comitê Russo Branco de Paris que os depósitos prometidos aos rebeldes pela
União de Comércio e Indústria ultrapassavam os 775 mil francos ou os dois
milhões de marcos finlandeses (56).
Além da campanha de arrecadação
de fundos, os emigrados também buscaram ajuda das potências da Entente.
Representantes do Centro Nacional telegrafaram em caráter de urgência ao
presidente Harding e a Herbert Hoover, então secretário do Comércio dos Estados
Unidos, pleiteando uma remessa imediata de alimentos para os marinheiros de Kronstadt.
Petições similares foram encaminhadas pelo Comitê Parlamentar Russo
estabelecido em Paris e pelo general Wrangel de Constantinopla, que,
oportunamente, enviou também uma mensagem a Kokovtsov, oferecendo apoio militar
a Kronstadt tão logo pudesse mobilizar os seus homens do Exército Russo (57). A
partir de uma conferência realizada em Paris pelos deputados remanescentes da assembleia
constituinte, foi decidido enviar uma mensagem por telégrafo a Boris
Bakhmetiev, embaixador do governo provisório em Washington, para que este
persuadisse o governo norte-americano a intervir diretamente na situação. O
governo dos Estados Unidos, pouco disposto a reiniciar as políticas
intervencionistas adotadas durante a guerra civil, ignorou tais apelos. Uma
colaboração britânica era ainda mais incerta, não obstante os poucos esforços
dos emigrados para obter apoio de Londres. Na verdade, naquele exato momento,
um acordo comercial entre a Grã-Bretanha e a Rússia Soviética estava prestes a
ser fechado, reflexo do modus vivendi
que vigorava desde a conclusão das hostilidades no ano anterior.
A esperança de um apoio
estrangeiro vinha da França, que era o país das nações aliadas que mais fazia
oposição ao regime bolchevique. Sabemos por meio de documentos de arquivo que o
Centro Nacional manteve constantemente contato com o ministro francês de relações
exteriores durante todo o levante de Kronstadt (58). O jornal de Kerensky, em
Berlim, noticiava, sem qualquer fundamento real, operações da esquadra francesa
no porto de Reval, em missão de ajuda aos rebeldes (59). Ademais, segundo o
periódico trabalhista Daily Herald,
os insurgentes realmente receberam ajuda financeira dos franceses. “Posso
afirmar categoricamente - escreveu um correspondente internacional do Herald - que o governo francês está
interessado nos desdobramentos da rebelião da fortaleza de Kronstadt e, em
vista disso, enviou uma grande soma de dinheiro para os amotinados através de
um professor [evidentemente, Tseidler], residente em Viborg. Abastecimentos
também foram enviados com a cumplicidade da Cruz Vermelha” (60).
É possível, supostamente,
que uma parte das vultosas somas em dinheiro reunidas tão rapidamente pelos
emigrados de Paris e remetidas a Tseidler, em Viborg, fossem oriundas do
governo francês. (Deve se fazer a ressalta de que os franceses continuavam
abastecendo as forças de Wrangel na Turquia durante todo o período em questão).
Mas, apesar do apoio, a França avançava lentamente (bem mais devagar, é
verdade, que a Grã-Bretanha) para um entendimento com o regime soviético e, por
isso, é muito improvável que tenha proporcionado alguma ajuda apreciável aos
sublevados de Kronstadt. Segundo o bem informado jornal de Pavel Miliukov, os
franceses recusaram-se a interferir política ou militarmente na crise, limitando-se
a requisitar da Finlândia a permissão para transportar alimentos para a faminta
população de Kronstadt. Isto coincide com uma informação detalhada e
extremamente valiosa do cônsul norte-americano em Viborg, Harold Quarton, que
teria comunicado ao secretário de estado em Washington sobre as operações do
governo francês. O cônsul chegou a admitir que de todas as potências
estrangeiras a França era a que mais estava empenhada na questão da rebelião, embora
sua ajuda de fato tenha sido pouca ou mesmo nula (61).
Sobre as acusações de
cumplicidade entre a Cruz Vermelha e os conspiradores, os bolcheviques (e o Daily Herald) pisavam efetivamente em
terreno firme, pois não há menor sombra dúvida de que a Cruz Vermelha Russa foi
usada como uma fachada para as tentativas do Centro Nacional em organizar uma
rede de abastecimento para Kronstadt. Isto é confirmado na correspondência
privada dos agentes do Centro Nacional no Báltico (62). Mas carecem de todo
fundamento as denúncias dos soviéticos a respeito do envolvimento da Cruz
Vermelha Internacional e da Cruz Vermelha Norte-Americana nas operações de
assistência aos rebeldes. De fato, o professor Tseidler esperava utilizar as
reservas de alimentos em Stettin e Narva; para tanto, a Cruz Vermelha Russa,
estabelecida em Paris, telegrafou para Genebra solicitando a permissão para
liberar a carga que, todavia, nunca foi enviada. Além disso, Tseidler pediu ao
encarregado da Cruz Vermelha Norte-Americana no Báltico, o coronel Ryan, a
distribuição dos alimentos armazenados pela instituição em Viborg. (O Centro Nacional
creditava-se a um direito especial sobre esses produtos alimentícios, já que
foram adquiridos originalmente pelo general Yudenich em 1919, para alimentar a
população de Petrogrado, uma vez derrotados os bolcheviques; entretanto, os
alimentos foram entregues à Cruz Vermelha Norte-Americana para socorrer os
refugiados russos na região do Báltico) (63). Também foram infrutíferas as
conversações que se deram a 11 de março quando Ryan se dirigiu ansiosamente a
Paris para propugnar apoio aos emigrados perante seus superiores do quartel-general
europeu da Cruz Vermelha Norte-Americana. Como Ryan relatou a um jornalista do Obshchee Delo, ao menos dois obstáculos
interpuseram-se sobre o seu caminho: primeiro, o regimento interno da
organização impedia qualquer tipo de cooperação com grupos políticos ou militares;
e, segundo, mesmo que isso pudesse ser contornado, o governo finlandês
não permitiria o transporte de carregamentos de alimento por seu território
(64). Durante a revolta de Kronstadt, segundo as palavras de Harold Quarton, os
finlandeses foram “zelosos em respeitar o tratado de paz recentemente firmado” com
o governo soviético (14 de outubro de 1920), o que desmonta a tese bolchevique
sobre uma suposta cumplicidade entre a Finlândia e os brancos. O estado-maior
finlandês considerava a sublevação prematura e condenada ao fracasso e não desejava
ceder sequer um único pretexto para que se justificassem represálias militares
por parte dos bolcheviques. Em suma, como posteriormente observou Tseidler, os
finlandeses comprometeram-se apenas em fornecer provisões de remédio como parte
de ações humanitárias (65), que, entretanto, jamais foram cumpridas.
Em Paris, o Centro Nacional
e seus simpatizantes ficaram exasperados com o bloqueio das rotas por onde
deveriam ser transportados os suprimentos. O príncipe C. E. Lvov, predecessor
de Kerensky no cargo de primeiro-ministro do governo provisório, suplicou ao embaixador
finlandês para que reconsiderasse a sua decisão política e, em seguida, procurou
novamente os franceses para obter apoio para uma intervenção na Rússia. Também compareceu
ao quartel general da Cruz Vermelha Norte-Americana onde requisitou a abertura dos
armazéns em Viborg. Porém, seus esforços resultaram em nada (66). Enquanto
isso, o tempo estava se esgotando. A situação das reservas de alimentos em Kronstadt
era desesperadora – tão desesperada que, no dia 13 de março, Petrichenko telegrafou
ao professor Grimm autorizando-o a pedir socorro à Finlândia e demais países
simpáticos à causa. Segundo Quarton, de um lado, o estado-maior finlandês
opinava (e com razão, como provariam os eventos subsequentes) que os estoques
de alimentos ficariam escassos antes mesmo dos últimos dias do mês de março. Mas,
por outro lado, Quarton aconselhou Washington a não realizar nenhum envio de
provisões pelo triênio, pois temia que pudessem ser interceptadas (67). O
comissário dos Estados Unidos em Berlim era da mesma opinião, uma vez que fora convencido
por alguns emigrados de que uma intervenção na Rússia só contribuiria para
tirar Lênin das dificuldades causadas pela instabilidade da conjuntura interna
ao unir a nação contra a ameaça de uma nova invasão estrangeira. Assim sendo, o
comissionado norte-americano classificava de “prematura e sujeita à má
interpretação” a rogatória dos exilados de Paris para que se abastecessem os
rebeldes, ainda que sob alegações de filantropia (68). A resposta do comissionado,
diga-se de passagem, foi comunicada pelo Secretário de Estado ao quartel-general
nacional da Cruz Vermelha Norte-Americana em Washington e, talvez, influenciou
na decisão de não intervenção. “A Cruz Vermelha - escreveu um secretário nacional
poucas semanas depois da revolta - nunca prestou qualquer tipo de socorro aos rebeldes
de Kronstadt (69).
A Cruz Vermelha Russa, por
outro lado, trabalhou intensamente para ajudar os insurgentes até não haver
mais esperança. Na condição de chefe da filial da Cruz Vermelha na Finlândia,
Tseidler continuou reunindo fundos de simpatizantes em todo o continente. Mas
sua maior preocupação consistia ainda em encontrar alguma maneira de abastecer os
marinheiros sitiados. A 16 de Março, quando a rebelião aproximava-se de seu ato
final, o barão P. V. Vilken, companheiro de Tseidler e Grimm, marchou através
do gelo até Kronstadt e apresentou-se aos rebeldes como representante da Cruz
Vermelha Russa. Ex-capitão da Armada Imperial, Vilken servira na marinha como comandante
do Sebastopol e chefe da divisão de barcos lança-minas da Frota do Báltico. Os
bolcheviques chamavam-lhe, com razão, de agente branco. No entanto, diferentemente
do que sustentavam os comunistas, Vilken nunca se utilizou da Cruz Vermelha
internacional ou Norte-Americana como disfarce. A “missão secreta” do ex-capitão,
como denominou Quarton, redundava em ofertar alimentos e remédios para o Comitê
Revolucionário Provisório até que uma rota de abastecimento fosse
viabilizada (70). No passado, a missão teria se deparado com uma negativa
categórica. Mas, neste momento, os marinheiros estavam desesperadamente carentes
de alimentos e seus estoques de remédios completamente esgotados. Renunciaram a
toda desconfiança acerca das motivações de Vilken (os líderes rebeldes
conheciam bem os antecedentes do ex-capitão), e o Comitê Revolucionário aceitou
a doação. A Cruz Vermelha, explicou Petrichenko, era uma “organização
filantrópica e não política” (71).
Mas, como assinalou
Petrichenko - e os comunistas assim o reconheceram -, nunca chegou aos insurgentes
qualquer ajuda vinda do exterior (72). Umas poucas toneladas de farinha e toucinho
foram transportadas em trenós por contrabandista finlandeses. Mesmo este
carregamento chegou demasiadamente tarde e foi parar nas mãos dos bolcheviques
(73). Assim, os enormes esforços realizados pelos emigrados Kadets para
abastecer Kronstadt resultarão em um fracasso total. Os carregamentos de
alimentos da Cruz Vermelha nunca foram liberados; o acesso através da Finlândia
permaneceu bloqueado; as tentativas para obter navios quebra-gelos e balsas de
transporte mostraram-se inúteis. A 16 de março, veio o golpe final, com a
assinatura do acordo comercial anglo-soviético: uma “apunhalada pelas costas”,
para citar a reação amargurada do Obshchee
Delo (74). O tratado definitivamente desencorajou países como a
Finlândia a revisar suas políticas de neutralidade. Em suma, não se moveu uma
palha para pôr em prática o plano arquitetado pelo Memorando Secreto,
confirmando plenamente as advertências de seu autor. Talvez, o socorro teria
sido enviado se a revolta não irrompesse antes do previsto, o que fragilizou a posição
dos emigrados. Aliás, os rebeldes só receberam algum auxílio nos campos de
refugiados na Finlândia, depois de reprimida a revolta.
A despeito das alegações
de Burtsev pela união em nome da “causa comum” para destituir os bolcheviques
do poder, os expatriados russos mantiveram-se irremediavelmente divididos.
Durante toda a rebelião, os mencheviques, os socialistas revolucionários (SR) e
os liberais do Centro Nacional trilharam caminhos distintos e nunca houve
cooperação entre eles, seja de concentração de energias, seja de mobilização de
recursos. Por fim, os socialistas revolucionários (SR) elaboraram seus próprios
planos para guarnecer os rebeldes - infrutíferos, afinal.
A rebelião de Kronstadt revigorou
os ânimos dos socialistas revolucionárias (SR) no exílio. Em Paris, Berlim e Praga,
os mais renomados líderes partidários - entre eles, Alexander Kerensky, chefe do
governo provisório, e Victor Chernov, presidente da assembleia constituinte - dedicaram-se
a tarefa de arrecadar fundos para serem invertidos na compra de alimentos e
outras provisões necessárias e, com isso, manter acesa a chama da insurreição.
Através do exame de publicações relativas à correspondência privada
interceptada por agentes da inteligência bolcheviques, sabemos que Kerensky e
Chernov conseguiram juntar importantes somas em dinheiro. Duas cartas de V. M.
Zenzinov, escritas em Praga e endereçadas a um membro do Centro Administrativo
do SR, em Paris – datadas de 8 e 13 de março -, mencionam quantias que ultrapassavam
a casa dos 100 mil francos franceses, mais o montante de $25.000 dólares
enviado por Boris Bakhmetiev, o embaixador de Kerensky em Nova York. As cartas
também revelam um estoque de 50.000 poods de farinha em Amsterdã destinados a Kronstadt
(75).
Toda ajuda deveria ficar
sob a responsabilidade de Victor Chernov, que estava na cidade báltica de
Reval. Chernov desempenhava para os socialistas revolucionários (SR) um papel
análogo ao de Tseidler e Grimm para o Centro Nacional Kadet. Na primeira semana
da rebelião de Kronstadt, Chernov transmitiu a seguinte mensagem de rádio ao
Comitê Revolucionário Provisório:
“Eu, Victor Chernov, presidente
da assembleia constituinte, dirijo minhas saudações fraternas aos heroicos
camaradas marinheiros, soldados do Exército Vermelho e operários, que, pela
terceira vez, desde 1905, levantam-se para extirpar o jugo da tirania que ora
recai sobre seus ombros. Venho oferecer meus préstimos a Kronstadt, dispondo de
homens e provisões provenientes das cooperativas russas no exterior. Peço que
me informem do que precisam e em que quantidade. Estou preparado para lhes
assistir em pessoa, dedicando toda minha energia e autoridade a serviço da
revolução do povo. Tenho fé na vitória final das massas trabalhadoras. Glória a
quem levantar a bandeira da libertação do povo! Abaixo o despotismo de direita
e de esquerda!” (76)
O Comitê Revolucionário
realizou uma reunião extraordinária para deliberar a respeito da oferta de
Chernov. Apenas Valk votou a favor; enquanto Perepelkin, contra. Os demais
acompanharam Petrichenko e Kilgast, que recomendavam suspender a questão por
tempo indeterminado (77). Chernov recebeu a seguinte resposta: “O Comitê
Revolucionário Provisório de Kronstadt manifesta a sua profunda gratidão a
todos os nossos irmãos do exterior pela simpatia que nos devotam. O Comitê
Revolucionário Provisório reitera seus sinceros agradecimentos a Chernov.
Contudo, pelo presente momento, vê-se obrigado a recusar a proposta até que
fique mais esclarecida a situação atual. Mas tudo será levado em consideração”
(78). Apesar da recusa, o tom da resposta não era hostil, pois, muito embora os
marinheiros dispensassem toda ajuda do exterior pela profunda convicção de que
a revolta de Kronstadt desencadearia um movimento de massa toda por toda a
Rússia continental, não desejavam fechar o leque de possibilidades em caso de necessidade
posterior. O fato é que, ao fim e ao cabo, os rebeldes nunca pediram socorro
aos socialistas revolucionárias (SR).
Diferentemente dos Kadets
e socialistas revolucionários (SR), os mencheviques abstiveram-se de qualquer
participação em uma conspiração antibolchevique, e permaneceram indiferentes à rebelião
de Kronstadt. A partir do momento em que Lênin e seus partidários tomaram o
poder, os mencheviques passaram a atuar como um partido de oposição, buscando auferir
representatividade política mediante eleições livres e justas para os sovietes.
Durante a guerra civil, consideravam os brancos um mal maior que os
bolcheviques e, por isso, opuseram-se a qualquer manifestação a favor de uma
insurreição armada contra o regime, sob pena de expulsão partidária por
associação à contrarrevolução. (Ivan Maisky, o futuro diplomata soviético, fui
expulso do partido depois de tomar parte do governo antibolchevique SR de Samara).
Até 1921, a despeito de todas as denúncias de despotismo e terror bolchevique,
os mencheviques permaneceram fiéis à sua convicção de que a luta armada contra
o governo de Lênin só podia beneficiar os contrarrevolucionários. O jornal Sotsialisticheski Vestnik (“O
correio socialista”), que era o principal órgão de imprensa menchevique no
exterior, embora simpatizasse com a postura dos marinheiros de Kronstadt em sua
luta contra a ditadura unipartidária e as políticas do comunismo de guerra,
tomava todo o cuidado para não se envolver nas ações intervencionistas dos Kadets
e dos socialistas revolucionários (SR). Nosso propósito, anunciava o periódico,
é combater o bolchevismo, não com canhões, mas, sim, com o poder irresistível
das massas trabalhadoras (79).
Em suma, os russos no
exílio (com a exceção parcial dos mencheviques) felicitarão a rebelião e
providenciarão todos os meios possíveis para amparar os insurgentes. Por este
ângulo, as denúncias dos soviéticos contra os rebeldes são bastante justificadas.
Mas não é certo que os emigrados tenham planejado a rebelião. Pelo contrário, apesar
das intrigas tramadas em Paris e em Helsingfors, a sublevação de Kronstadt foi
um movimento espontâneo e independente do começo ao fim. Todas as evidências demonstram
que a revolta não foi resultado de uma conspiração adventícia. A existência de
um incipiente complô nos círculos russos do estrangeiro que compartilhavam da
mesma hostilidade dos marinheiros contra o regime bolchevique sequer
desempenhou um fator irrelevante para os desdobramentos da revolta. Os membros
do Centro Nacional formularam um prognóstico sobre uma iminente rebelião em
Kronstadt e, com base nessas projeções, traçaram planos para viabilizá-la. Com
a ajuda dos franceses, os emigrados tentaram prover os rebeldes com alimentos,
remédios, tropas e equipe militar. Objetivo derradeiro do Centro Nacional era
assumir todo o controle da rebelião e fazer de Kronstadt um trampolim para uma
nova intervenção, que deveria levar à derrocada o regime bolchevique. Todavia,
não houve tempo para levar a termo o programa prenunciado pelo Memorando. A rebelião precipitou-se
demasiadamente rápido, várias semanas antes do esperado, impossibilitando as
condições mínimas para o êxito da revolta - o derretimento do gelo, a criação
de uma rede de abastecimentos, a obtenção do apoio francês e o translado do
exército de Wrangel para uma região próxima ao teatro da guerra.
O fato dos Kadets e dos
socialistas revolucionários (SR) tentarem se aproveitar da revolta em causa
própria não é, por óbvio, surpreendente. Mas, ao fim e ao cabo, foram os
marinheiros e o Comitê Revolucionário que deram a tônica aos acontecimentos de
Kronstadt. Enquanto a situação não chegava às raias do desespero, os rebeldes
mantinham-se confiantes e esperançosos de que o seu exemplo provocaria uma
revolução de massas na Rússia Continental; por isso, não solicitaram nenhum
apoio do exterior. Sequer chegaram a receber algum auxílio dos emigrados, e,
salvo a visita do barão Vilken, a 16 de março, quase não houve nenhum contato
com quem quer que fosse que se supunha estar por trás do motim. Diremos, de
passagem, que todas as evidências disponíveis não revelam a presença de nenhum
vínculo entre os exilados e os ex-oficiais czaristas de Kronstadt, que, supostamente,
representariam o elo natural no caso de uma eventual colaboração branca.
Todavia, o que é factível
de demonstração é que realmente algum tipo de acordo entre os rebeldes e os
emigrados foi acertado após o desfecho trágico do levante, o que envolveu a
fuga dos líderes rebeldes para a Finlândia. Em março de 1921, Petrichenko e
vários de seus companheiros que estavam refugiados no acampamento do Forte Ino
ofereceram voluntariamente seus serviços ao General Wrangel. No final do mês,
escreveu o professor Grimm, representante de Wrangel, em Helsingfors: os
líderes rebeldes apresentaram-se como voluntários para uma renovada campanha
militar contra o governo bolchevique e, assim, restaurar “as conquistas da
revolução de março de 1917”. Os marinheiros expuseram um programa de seis
pontos fundamentais para qualquer empresa em comum: 1) toda terra aos
camponeses; 2) sindicatos livres para os operários; 3) plena independência dos
estados limítrofes; 4) liberdade total para os fugitivos de Kronstadt; 5)
remoção das dragonas (ombreiras franjadas) de todo uniforme militar; e 6) preservação
do lema “todo o poder aos sovietes, não aos partidos”. É surpreendente,
todavia, o argumento de que lema só deveria ser preservado como uma
“conveniente manobra política”, até que os comunistas fossem depostos do poder.
Uma vez vitoriosa a intervenção, o lema seria engavetado e se instalaria uma
ditadura militar provisória para impedir que o país se enveredasse na anarquia.
Este último ponto foi incluído, sem dúvida, como um obséquio a Wrangel. Os
marinheiros insistiram, em todo caso, que, com seu devido tempo, o povo russo
deveria viver “em liberdade para decidir por si mesmo que tipo de governo
desejava” (80).
Grimm manifestou
imediatamente seu assentimento aos termos do acordo e também Wrangel enviou uma
resposta favorável semanas mais tarde. Ademais, ao que tudo indica, o pacto foi
cumprido. Com efeito, durante o verão de 1921, a julgar pelas informações da
polícia secreta soviética, Petrichenko, em colaboração com Grimm e o barão
Vilken, recrutou um grupo de marinheiros refugiados que foram introduzidos
clandestinamente em Petrogrado. A ideia era assegurar uma cabeça de ponte na
cidade para, no momento oportuno, tomar de assalto o poder dos comunistas. Dentro
da cidade, os marinheiros atuaram sob a direção da Organização de Luta de Petrogrado,
grupo clandestino afiliado ao Centro Nacional e liderado por V. N. Tagantsev,
antigo professor de geografia na universidade de Petrogrado. Ao que parece, as
forças do general Wrangel seriam eventualmente acionadas, mas, antes que isso
ocorresse, a organização foi descoberta e aniquilada (81).
Todavia, os refugiados não
desanimaram. Em junho de 1921, o congresso da União Nacional, convocado pelo
Centro Nacional para unir os emigrados em uma cruzada antibolchevique, recebeu
uma mensagem de um grupo de ex-amotinados de Kronstadt, àquela altura, residentes
na Finlândia, em que demonstrava apoio incondicional às resoluções do programa
(82). Ademais, nos arquivos do Centro Nacional, encontra-se um documento
confidencial, datado de 30 de outubro de 1921, e assinado por Petrichenko e
Yakovenko (presidente e vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório),
no qual autorizam um certo Vsevolod Nikolaievich Skosyrev a se juntar ao Comitê
Nacional Russo de Paris na qualidade de representante dos refugiados, para
“coordenar as atividades da organização com outros grupos que compartilham de uma
única plataforma de luta armada contra os comunistas (83).
Nada prova, no entanto, a
existência de uma conexão entre o Centro Nacional e o Comitê Revolucionário,
seja antes, seja durante a revolta. Muito mais provável teria sido a experiência
amarga que a derrota provocou unindo personagens tão distintos após o fim da
rebelião. Por seu turno, os bolcheviques insistiam em negar a natureza
espontânea da rebelião, acusando vários grupos do espectro político da oposição
- de monarquistas, à direita, a anarquistas, à esquerda – de envolvimento com o
serviço de espionagem Aliado. Mas até o momento não se apresentou nenhuma prova
convincente que confirme tais ilações. O próprio Lênin admitia a total
inconsistência das alegações acerca do envolvimento dos emigrados com os
rebeldes de Kronstadt. A 15 de março, em pronunciamento ao X Congresso do Partido,
Lênin afirmou o seguinte: “Kronstadt abomina tanto os guardas brancos como os
bolcheviques” (84). Embora insistisse no importante papel dos emigrados nos
desdobramentos da insurreição, Lênin reconhecia o motim de Kronstadt não como uma
mera repetição das incursões brancas na guerra civil. Considerava a rebelião
como um sintoma do profundo abismo que separou o partido bolchevique do povo
russo. Se, por um lado, houve alguma interferência da guarda branca, afirmou o
líder bolchevique, “por outro, o movimento expressava uma tendência contrarrevolucionária
pequeno-burguesa; uma manifestação espontânea de tipo anarquista,
pequeno-burguesa”. Queria dizer com isso que, no fundo, a revolta refletia o descontentamento
de pequenos proprietários pertencentes a uma fração do campesinato russo que
não tinham em boa conta o Estado e seus órgãos de controle, senão o desejo de
que se os deixassem em paz para trabalhar a sua terra como bem lhes aprouvessem.
“Sem dúvida - acrescentava Lênin -, Kronstadt representa um perigo maior que
Denikin, Yudenich e Kolchak juntos; pois estamos lidando com uma situação cujas
implicações pressupõem não só a ruína da propriedade camponesa, mas a liberação
de numerosos elementos potencialmente revoltosos com a desmobilização do
exército” (85).
Bukarin adotou um ponto
de vista semelhante. Muito mais sério do que Kronstadt, declarou ao congresso,
é a “mentalidade pequeno-burguesa inerente ao campesinato que ameaçava contaminar
toda a classe operária”. O que significava um risco extremo se comparado à
tentativa circunstancial de algum general iniciar, porventura, um motim em Kronstadt.
Poucos meses depois, Bukarin retomou o assunto. “Os documentos que têm sido
revelados até hoje - afirmou ao III Congresso do Komintern, em Julho de 1921 -
mostram claramente que as razões da revolta não se explicam somente pela
participação dos guardas brancos, senão por elementos de caráter pequeno-burguês
que se manifestaram contra o sistema socialista de emergência econômica” (86).
Mesmo com toda a campanha
mentirosa disseminada pela máquina de propaganda oficial, as observações de
Lênin e Bukarin evidenciavam, por vias tortuosas, a verdadeira essência da
rebelião de Kronstadt, a saber: longe de ser uma conspiração branca, o motim
dos marinheiros era uma revolta espontânea camponesa que encontrara eco numa
grande insatisfação da classe operária e que se generalizava por todo o país. Movimentos
de tipo espontâneo, na Rússia soviética, eram revoltas do povo contra o
governo, ou seja, um protesto de massa contra a ditadura bolchevique e as
políticas do comunismo de guerra. O levante de Kronstadt, portanto, constituiu
a expressão mais eloquente e dramática desse fenômeno social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário