Tradução: Jean Fecaloma
2. Petrogrado e Kronstadt
Em fevereiro de 1921, uma
ruptura entre os bolcheviques e a classe operária provocou um abalo na
principal base de apoio do governo. Desde o início do inverno, naquele ano
inusitadamente rigoroso, mesmo para os padrões moscovitas, o frio e a fome,
combinados com a austeridade do comunismo de guerra, produziram um clima
tempestuoso sobre as grandes cidades da Rússia. Isto se deu particularmente em
Moscou e Petrogrado, onde seria suficiente uma pequena faísca para gerar uma
grande explosão. E a conjuntura do momento não tardou a produzi-la. Em 22 de
janeiro, o governo acendeu o estopim da instabilidade social quando anunciou uma
redução de um terço no fornecimento da já escassa ração de pão (1). Embora a
medida pudesse parecer muito drástica, o corte era, sim, inevitável. As grandes
nevascas e a falta de combustível paralisaram a circulação de trens que vinham
carregados de alimentos da Sibéria e do norte do Cáucaso para reabastecer as cidades
famintas do centro e norte do país. Nos primeiros dez dias de fevereiro, a
interrupção do sistema ferroviário chegou a ser total, ao ponto de inviabilizar
completamente o transporte de cereais para Moscou (2). Não atenuava em nada o
fato notório acerca das circunstâncias imprevistas e emergenciais, que obrigava
o governo a reduzir a porção de ração destinada às cidades, sobre o impacto
devastador dessas políticas na população urbana que padecia com a fome. Nestas
condições, tornava-se inevitável algum tipo de protesto popular prestes a
acontecer.
Os primeiros distúrbios
sociais sérios ocorreram a meados de fevereiro na cidade de Moscou. Manifestações
espontâneas de operários exigiam a imediata substituição do comunismo de guerra
pelo sistema de “trabalho livre”. O movimento alcançou tão grande vulto que o
governo não teve escolha e cedeu à pressão, mostrando-se aberto ao diálogo.
Assim, enviou emissários às fábricas a fim de convencer os operários da
necessidade e da permanência das políticas de crise. Todavia, não seria tarefa
fácil. Manifestantes extremamente hostis lotavam as assembleias de
trabalhadores e não permitiam aos representantes do partido expor as
justificativas do governo, tamanha as vaias e ofensas dispensadas, o que os
obrigavam, em circunstâncias tão adversas, a se retirarem da plenária. Conforme
se lê em um relatório, ao comparecer a uma dessas ruidosas reuniões, o próprio
Lênin teve de ouvir de metalúrgicos que os bolcheviques estavam arruinando o
país. Confrontado, Lênin questionou se eles preferiam aos brancos que os
comunistas. A réplica foi contundente: “Não importa quem venha - brancos,
negros ou o diabo! -, queremos que os bolcheviques caiam fora” (3).
Assim, crescia
rapidamente um sentimento de grande insatisfação popular que se alastrava pelas
cidades na medida em que greves e manifestações sucediam-se uma atrás da outra
como num efeito dominó. Os trabalhadores saíam às ruas com bandeiras e cartazes
clamando pelo restabelecimento do “livre comércio", por maiores porções de
ração, pela abolição das requisições de cereais e demais demandas econômicas.
Alguns reclamavam a restituição dos direitos políticos e das liberdades civis
cerceadas; outros marchavam pela restauração da assembleia constituinte. Entre
tantas reivindicações, algumas mensagens chocantes: “Abaixo os comunistas e os
judeus” (4). No início, as autoridades tentaram conter as manifestações com
promessas de afrouxamento das medidas do comunismo de guerra. Tudo em vão,
porém. Diante do impasse imposto pela situação, houve a necessidade da parte do
governo de convocar tropas regulares e os cadetes (kursanty) da escola militar para o restabelecimento da ordem na
cidade.
Mal os distúrbios de Moscou
foram controlados, outro movimento tomou proporções bem mais preocupantes. De
fato, uma névoa sombria de um cenário trágico cobria a ex-capital Petrogrado. “Um
fantasma do que um dia fora a capital - descreveu um contemporâneo - cuja
população dizimada pela revolução e contrarrevolução perdia toda esperança ante
um futuro incerto” (5). Localizada na região noroeste da Rússia e,
temporariamente, isolada dos principais centros de abastecimento de alimentos e
combustível do país, Petrogrado sofria ainda mais que Moscou com a fome e o
frio. As reservas disponíveis de comida baixaram a apenas um quinto daquelas
anteriores à Primeira Guerra Mundial (6). Os habitantes da cidade, desprovidos
de casacos e calçados apropriados, marchavam a pé por quilômetros até as
florestas do entorno atrás de lenha para aquecer as suas casas. No início de
fevereiro, mais de 60% das fábricas de grande porte de Petrogrado foram
forçadas a fechar suas portas por falta de combustível (7). O abastecimento de
alimentos praticamente desapareceu. Segundo testemunhou o menchevique Feodor
Dan, trabalhadores e soldados esfomeados mendigavam pelas ruas implorando por
qualquer pedaço de pão (8). Exasperados, cidadãos protestavam contra o sistema
desigual de racionamento, que favorecia algumas categorias em detrimento de
outras. As tensões agravaram-se ainda mais quando se descobriu que membros do partido
recebiam sapatos e vestimentas novos. Rumores assim, que sempre circulam em
épocas de tensão e sofrimento, foram levados a sério pela população e
contribuíram para uma onda de tumultos que abriu caminho para a revolta de Kronstadt.
Assim como em Moscou, as
manifestações de rua foram precedidas por muitas assembleias realizadas no
ambiente desolador das fábricas e oficinas vazias de Petrogrado. A crise
econômica liderava a pauta de reivindicações, sobretudo, a questão relativa à
falta de alimentos. Entretanto, oradores revezavam-se na tribuna para exigir
também o fim das requisições de grãos, a remoção dos bloqueios nas estradas, a
anulação dos privilégios quanto à distribuição de ração e a liberdade de troca
de bens pessoais por alimentos. A 23 de fevereiro, uma tumultuada e numerosa assembleia
numa das maiores metalúrgicas de Petrogrado, a fábrica Trubochny, contrastava
com o atual quadro de funcionários da empresa, que diminuíra a uma fração do total
de seu contingente de três ou quatro anos atrás. Na ocasião, os metalúrgicos
aprovaram uma resolução determinando o aumento das rações alimentares e a
distribuição imediata de calçados e vestimentas de inverno para todos os
trabalhadores. Na amanhã seguinte, retornaram à fábrica; porém, não foram
trabalhar. Largaram as ferramentas e marcharam em greve até a ilha Vasili, na
margem norte do rio Neva. Reunidos em uma manifestação massiva, os
trabalhadores davam uma demonstração de sua força. Uma delegação foi enviada
aos quartéis do regimento da Finlândia para convencer, sem sucesso, os soldados
a se juntarem ao movimento. Todavia, operários de fábricas vizinhas e também
estudantes do Instituto de Mineração abandonaram suas ocupações e uniram-se em
solidariedade aos grevistas. Em pouco tempo, uma multidão de 2.000 pessoas
organizava um protesto contundente contra o governo. Segundo alguns relatos, o
presidente bolchevique do Conselho de Sindicatos de Petrogrado N. M. Antselovitch
apareceu na manifestação e aconselhou os trabalhadores a voltarem ao trabalho,
mas foi derrubado de seu coche a socos e pontapés por uma multidão enfurecida (9).
Nem bem a situação havia escapado de controle, e Zinoviev, o presidente do
soviete e do partido em Petrogrado, mobilizou a companhia militar dos cadetes
numa operação de choque para dispersar a manifestação. Logo se seguiu um
tumulto, gritos e agressões mútuas, até que tiros disparados para o alto
dispersaram os grevistas sem derramamento de sangue (10).
A manifestação na ilha
Vasili seria o prelúdio do que ainda estava por vir. No dia seguinte, a 25 de
fevereiro, os operários de Trubochny voltaram a tomar as ruas e convocar
seus camaradas dos bairros industriais para a greve. O êxito foi imediato. Operários
deixaram as fábricas de tabaco Laferme, de calçados Skorojod e as usinas metalúrgicas
do Báltico e Patronny. Boatos de que alguns manifestantes da ilha Vasili haviam
sido mortos ou feridos pelos cadetes armados no dia anterior impulsionou o
movimento grevista a ocupar outras grandes empresas, incluindo o estaleiro de
Admiralty e as docas de Galernaya. Em vários locais, multidões reuniam-se para
ouvir discursos inflamados contra a polícia e mais uma vez o governo interveio
enviando os kursanty para debandar os
grevistas.
Tendo em vista as greves
de Moscou, as autoridades de Petrogrado, sob a supervisão de Zinoviev,
colocaram-se em estado de alerta máximo. Quando se deram as primeiras
perturbações, agiram rapidamente para manter a ordem. A 24 de fevereiro, no mesmo
dia em que ocorreram as manifestações da ilha Vasili, o Comitê do Partido
Comunista de Petrogrado constituiu um Comitê de Defesa tripartite encabeçado
por M. N. Lashevich, membro do Conselho de Guerra Revolucionário da República
Soviética, D. N. Avrov, comandante do Distrito Militar de Petrogrado, e N. M.
Antselovitch, do Conselho dos Sindicatos. Investido de poderes de exceção, o Comitê
de Defesa de Petrogrado organizou em cada distrito da cidade uma “troika de
revolucionários” responsável por impedir a propagação das manifestações
contrárias ao governo. As revtroiki
seguiam o mesmo modelo do Comitê de Defesa em um determinado bairro e eram
compostas pelo chefe do partido local, pelo comandante militar e pelo presidente
do soviete ou o comissário da escola militar. Em seguida, o Comitê Executivo do
soviete de Petrogrado, presidido pelo mesmo Zinoviev, proclamou a lei marcial
na cidade. O toque de recolher foi imposto a partir das onze da noite e reuniões
públicas foram proibidas a qualquer hora (11).
Enquanto os grevistas de
Trubochny transitam de fábrica em fábrica para convencer os trabalhadores a
unir-se em um grande protesto de massas, Zinoviev e seus colegas temiam um
confronto e buscavam uma maneira de evitar um banho de sangue. A 25 de
fevereiro, o Soviete de Petrogrado, o Conselho de Sindicatos e o comitê do partido
dirigiram uma circular “aos trabalhadores de Petrogrado Vermelho”, aconselhando-os
a permanecer em seu trabalho. O comunicado admitia as muitas dificuldades por
que sofriam os operários; mas explicava que este era o preço cobrado para
salvar a revolução de seus inimigos. Inclusive, continuava o documento, os
Guardas Brancos, amparados pelos mencheviques e os socialistas revolucionários
(SR), tentam a todo custo explorar a crise em interesse próprio para pôr em
prática seus planos maléficos. Acaso teriam os trabalhadores de “Pedro
Vermelho” esquecido dos Yudeniches e Kolchaks, os Denikins e Wrangels? Afinal,
o que poderia oferecer uma restauração branca ao povo? Apenas “o açoite do senhor
feudal e da coroa czarista”. E quais seriam as consequências se por um acaso as
fabricas fossem abandonadas? Apenas o agravamento da situação da fome e do frio.
Os trabalhadores passavam por enormes provações, é verdade, mas essa era uma
razão a mais para não se deixarem esmorecer abandonando a revolução justamente
no momento em que a vitória estava a um passo de ser alcançada (12).
Com este apelo, os
bolcheviques de Petrogrado lançaram uma ampla campanha de propaganda para conter
os protestos na cidade. Em todos os bairros, os grevistas eram aconselhados a
não fazer o jogo da contrarrevolução. Fome, exaustão e frio, segundo ditava a
propaganda do governo, foram as consequências inevitáveis de uma “guerra de
sete anos”. Teria algum sentido desistir agora de tão custosa vitória para
entregá-la de mão-beijada aos “porcos da Guarda Branca” e seus lacaios? Os
únicos beneficiários pelas greves e pelos protestos, proclamou o Soviete de Petrogrado,
serão os senhores de terra polacos do Riga e os capitalistas ingleses de
Londres, que exigiriam maiores concessões durante as novas rodadas na mesa de
negociação. Assim também os kursanty
de Petrogrado faziam coro à propaganda governamental e denunciavam o caráter
nefasto das greves, que só favoreciam “os ingleses, franceses, agentes da
Guarda Branca e os seus serviçais lacaios do capitalismo: os socialistas revolucionários
(SR) e os mencheviques” (13). Além disso, o Comitê de Defesa de Petrogrado
advertia os trabalhadores de que espias ingleses e franceses estavam
infiltrados na cidade e buscavam tirar algum proveito da confusão. Ademais, a
impressa publicou uma lista de resoluções aprovadas por diversas fábricas e
sindicatos de Petrogrado que condenavam os “agitadores” e “vagabundos” pelos
distúrbios ocorridos na cidade (14). A alcunha preferida para os “arruaceiros”
era shkurniki, ou seja, “egoístas”,
que só se preocupam com a própria pele. Ao invés do habitual “greve” (stachka o zabastovka), os jornais
empregavam o termo pejorativo volynka,
isto é, grevistas na acepção de vagabundos e subversivos. Segundo Feodor Dan,
as autoridades preferiam usar expressões depreciativas a reconhecer o movimento
como uma autêntica greve operária contra um “governo de trabalhadores” (15).
A 26 de fevereiro,
intensificaram-se os distúrbios. O Soviete de Petrogrado organizou uma sessão
extraordinária para debater a questão. O comissário da Frota do Báltico, N. N.
Kuzmin, que, nas semanas seguintes, alcançará certa notoriedade por alertar
sobre o clima de revolta em Kronstadt, que poderia levar a uma possível
sublevação dos marinheiros, caso as greves não findassem, emitiu uma nota
ameaçadora aos grevistas. Da mesma forma, Lashevich, membro do Comitê de Defesa
de Petrogrado, irá propor punições severas aos trabalhadores, como a suspensão
das rações e a prisão dos principais líderes operários de Trubochny.
Prontamente, o soviete acolheu a proposta de Lashevich e emitiu um mandado para
que se cumprissem as ordens necessárias. A fábrica Laferme, que era o segundo
foco de descontentamento proletário, foi evacuada e trabalhadores de outras
empresas assumiram o controle das máquinas mediante a possibilidade de incorrerem
na mesma violação de seus camaradas grevistas (16).
A tentativa velada de
submeter pela fome os trabalhadores só contribuiu para aumentar ainda mais as
tensões. Durante os últimos dias de fevereiro, o movimento seguiu se espalhando
pelas fábricas de Petrogrado. No dia 28, os protestos tomaram conta da gigante
metalúrgica Putilov, na qual trabalhavam um contingente formidável de 6.000
operários, embora este número representasse uma sexta parte do que havia sido
durante a Primeira Guerra Mundial.
Em meio a tudo isso, aproximava-se
o quarto aniversário da Revolução de Fevereiro. O menchevique Feodor Dan
observou que os ânimos na cidade lembravam os momentos que antecederam a queda
da autocracia (17). Outro fator digno de nota concernia a uma mudança substantiva
no teor das demandas dos trabalhadores. No início, as resoluções aprovadas
pelas assembleias de fábrica expressavam, em sua maior parte, os conhecidos
problemas de ordem econômica: distribuição regular de rações; entrega de
calçados e vestimenta de inverno; eliminação dos destacamentos de bloqueio de
estrada; liberação das viagens ao campo e livre comércio entre operários e
aldeões; e distribuição equitativa da ração para todas as categorias de
trabalhadores. Nos últimos dois dias de fevereiro, inclusive, as pautas
econômicas ganharam ainda mais dramaticidade. Por exemplo, um panfleto circulou
pela cidade relatando casos de trabalhadores que foram encontrados congelados
ou mortos de fome dentro de suas casas (18). Mas o que alarmava realmente as
autoridades eram reivindicações políticas, que estavam se generalizando no
movimento grevista. Entre outras coisas, os trabalhadores lutavam para que os
destacamentos especiais de bolcheviques armados, que exerciam uma função
meramente de polícia, fossem retirados das fábricas. Da mesma forma, exigiam a
substituição por operários dos soldados que trabalhavam nas fábricas, alguns
dos quais recentemente empregados em grandes empresas de Petrogrado. Enfim,
antes esporádicas, pautas políticas e relacionadas aos direitos civis agora
adquiriam uma força inaudita e abrangente.
Portanto, não causa
surpresa o fato da oposição política manifestar sem hesitação apoio aos
grevistas de Petrogrado. Os poucos mencheviques e socialistas revolucionárias
(SR) que não estavam presos e viviam escondidos por causa da perseguição
policial saíram às ruas para distribuir panfletos aos trabalhadores. No dia
27 de fevereiro, por exemplo, apareceu o seguinte manifesto:
Uma
fundamental transformação faz-se necessário na política do governo. Antes de tudo,
os trabalhadores e camponeses precisam de liberdade. Não querem viver a mercê
do arbítrio dos bolcheviques. Desejam apenas controlar seu próprio destino.
Camaradas, apoiem as nossas palavras de ordem revolucionárias, e de maneira decidida
e organizada, conclamamos:
Liberdade a
todos os trabalhadores socialistas e não partidários detidos nas prisões do
governo; abolição da lei marcial; liberdade de expressão, imprensa e reunião
para todos os trabalhadores; eleições livres nos comitês, sindicatos e sovietes.
Convocação
de assembleias, aprovações de resoluções, envio de delegados às autoridades
para fazer valer nossas pautas, realização de nossas demandas (19).
Apesar do manifesto não
estar subscrito, sinais inequívocos demonstravam, como veio a admitir depois o
próprio Dan e os seus companheiros, que os mencheviques estavam por trás dos
protestos de fevereiro. Auxiliados por jornais simpáticos à causa menchevique,
os militantes do partido em Petrogrado imprimiram muitos panfletos com uma gama
de reivindicações que abrangiam eleições livres nos sovietes e sindicatos,
restituição das liberdades civis, fim do terror e libertação dos prisioneiros
socialistas e outros políticos de esquerda. No plano econômico, os mencheviques
apelavam para que se cessassem as requisições de cereais e recomendavam o fim
das granjas estatais de trabalho compulsório e o restabelecimento do comércio
entre a cidade e o campo, desde que regulamentado por ações preventivas contra
a especulação.
Tais imposições não eram
novidade e já haviam sido apresentadas pelos mencheviques Feodor Dan e David
Dallincom logo no início da guerra civil ao VIII Congresso dos Sovietes, em
dezembro de 1920. O que desejavam, em essência, era o cumprimento da
Constituição, de modo que todos os partidos socialistas pudessem obter
representatividade no regime soviético e que os trabalhadores pudessem gozar
das liberdades negadas de forma arbitrária pela ditadura bolchevique. Fazendo
jus ao seu papel de oposição legal, desempenhado desde 1917, os mencheviques
evitavam todo tipo de campanha visando à derrubada do governo através das armas.
Muito pelo contrário, como sugere o manifesto acima, orientavam os trabalhadores
de Petrogrado a se manifestarem dentro da ordem jurídica através de assembleias
e petições endereçadas às autoridades competentes. Resumidamente, procuravam
organizar o operariado “de maneira sistemática e decidida” e, assim, exercer
pressão sobre as autoridades no sentido das reformas política e econômica. Não obstante
o tom moderado, as críticas da oposição menchevique despertavam não apenas preocupação
ao governo mas também indignação. Para
os bolcheviques era um indício da mais abjeta traição aos princípios
fundamentais da revolução. Ademais, quem poderia garantir que, uma vez
provocados os trabalhadores, estes agiriam dentro da legalidade e não partiriam
para uma rebelião aberta contra o governo?
Diferentemente dos
mencheviques, os socialistas revolucionários (SR) depositavam todas as fichas em
um levante popular contra o regime de Lênin. No lugar deste, propunham a
restauração da assembleia constituinte dissolvida pelos bolcheviques em janeiro
de 1918. Naquela ocasião, os socialistas revolucionários (SR) haviam obtido a
maioria das cadeiras no parlamento pelo voto secreto. Portanto, a derrocada do
poder bolchevique e a assembleia constituinte constituíam o núcleo do programa
do partido. Um cartaz colado nas paredes de Petrogrado a 28 de fevereiro e
assinado por “Trabalhadores Socialistas do Distrito de Neva” - que, ora
transcrevemos - provavelmente tinha a digital dos socialistas revolucionários:
Sabemos
quem tem medo da assembleia constituinte. São os mesmos que não poderão roubar
mais o povo, senão responder perante os seus representantes por tantos enganos,
roubos e crimes cometidos.
Abaixo os
odiados comunistas! Abaixo o governo soviético! Longa vida a Assembleia
Constituinte Popular! (20)
Como se pode perceber, este
cartaz (e outros similares) apresentava um tom muito mais intransigente do que
qualquer outro material impresso já publicado pelos mencheviques. Na verdade, o
conteúdo agressivo apontava para uma organização clandestina tal como a União
pelo Renascimento da Rússia, que era uma aliança entre liberais e socialistas
de extrema esquerda que compartilhavam do objetivo comum de pôr fim ao domínio
bolchevique.
A abundante propaganda
anticomunista difundida durante as greves de fevereiro levantou a questão sobre
quem eram os líderes dos movimentos grevistas. Teriam os mencheviques e
socialistas revolucionários (SR) liderados as manifestações de rua, como
acusava o governo? Evidentemente ambos os partidos fizeram o possível para
insuflar as greves. Não há a menor sombra de dúvida da participação dos
mencheviques nos eventos de fevereiro, pois, no ano de 1921, conseguiram
recuperar boa parte do apoio da classe trabalhadora perdido em 1971. Nas greves
de Petrogrado, a influência dos mencheviques entre os trabalhadores da fábrica
Trubochny e outras empresas foi considerável (21). Oradores mencheviques eram
ouvidos com simpatia e seus panfletos e manifestos corriam de mão em mão nas
assembleias operárias. Todavia, apesar da benevolência que os operários nutriam
por eles e do papel relevante que desempenharam na disseminação das manifestações
de rua, não há qualquer evidência da participação menchevique na preparação do
movimento grevista – o mesmo vale para qualquer outro grupo de oposição. Os trabalhadores
de Petrogrado, como vimos, tinham razões de sobra para iniciar um protesto
contra o governo. No entanto, não houve qualquer planejamento - ainda que sobrasse
motivo para isso - e as greves foram resultado de um movimento espontâneo
nascido do descontentamento popular.
Depois de uma semana de
tumultos, as autoridades de Petrogrado finalmente conseguiram controlar a
situação. Não foi tarefa fácil, porém, e só se obteve êxito mediante arranjos
favoráveis na correlação das forças envolvidas e por meio de uma série de
concessões que Zinoviev e seus companheiros impuseram eficazmente. Isto era
particularmente verdadeiro porque uma boa parte da guarnição regular foi contagiada
pelo calor das manifestações e mostrava-se pouco digna de confiança e relutante
em cumprir as ordens do governo. As unidades consideradas desleais foram então
desarmadas e confinadas aos quartéis. Rumores a respeito da proibição do uso de
botas para impedir preventivamente os soldados de saírem dos quartéis e se
misturarem à multidão, repetindo os episódios funestos ocorridos há quatro anos,
circulavam entre os soldados (22). Em lugar das tropas regulares, as
autoridades confiaram a patrulha da cidade aos cadetes da escola de oficiais
comunistas, os kursanty, convocados
às centenas nas academias militares mais próximas. Ademais, todos os membros do
partido da região foram mobilizados ante a necessidade do restabelecimento da
ordem.
De um dia para o outro, Petrogrado
transformou-se em um acampamento militar. Em cada esquina, pedestres eram
parados e revistados. Teatros e restaurantes tiverem as portas fechadas. O toque
de recolher foi decretado. Aqui e ali, tiroteios isolados quebravam o silêncio
da noite na cidade desolada. À medida que as tensões iam se acumulando,
suscitava, entre os trabalhadores industriais, um forte sentimento antissemita,
que o Soviete de Petrogrado imputava à literatura racista dos agitadores
brancos (23). Acusação que em certa medida era procedente, muito embora o
antissemitismo fosse, em tempos de crise, uma constante na sociedade russa, principalmente
entre as classes camponesas e trabalhadoras. De qualquer forma, os judeus assistiam
à situação apreensivos e alguns deles realmente deixaram a cidade temendo um novo
pogrom com a queda do governo (24).
Após mobilizar forças
militares consideráveis dentro da cidade, os bolcheviques trataram de quebrar a
onda de protestos impedindo o acesso dos grevistas às dependências internas das
fábricas. Como consequência, os trabalhadores foram demitidos e perderam o
direito à ração – em especial, nos casos das fábricas Trubochny e Laferme. Ao
mesmo tempo, a Tcheka de Petrogrado realizava inúmeras prisões. Oradores que,
nas assembleias de fábrica ou manifestações de rua, questionaram o regime
bolchevique, eram presos em sinal de represália. No final de fevereiro, segundo
calculou Feodor Dan, cerca de uns 500 operários e funcionários sindicais
acabaram atrás das grades (25). Caíram também nas garras da Tcheka milhares de
estudantes, intelectuais e muitas outras pessoas que pertenciam a partidos e
grupos de oposição. Assim, a tomada de assalto de Petrogrado por oficiais da
temida polícia secreta representou um duro golpe às organizações mencheviques.
Virtualmente, todos os líderes em atividade, que ainda não estavam encarcerados,
foram então capturados. Entre eles se encontravam Kazukov e Kamensky, detidos
em fins de fevereiro, depois de organizarem um protesto de trabalhadores.
Poucos deles, incluindo Rozhkov e Dan, permaneceram livres por um ou mais dias.
Neste curto espaço de tempo, dedicavam-se febrilmente a escrever e distribuir
panfletos e cartazes, até que foram finalmente alcançados pela polícia. Em
suma, estima-se que durante os primeiros três meses de 1921, pelo menos uns 5.000
mencheviques, incluindo todo o comitê central do partido, foram feitos
prisioneiros (26). Também os socialistas revolucionários (SR) e anarquistas que
ainda se encontravam em liberdade logo se viram vítimas da persecução penal e
caíram em desgraça nas prisões do governo. Em sua obra Memoirs of a Revolutionary, Victor Serge relata que a Tcheka
responsabilizou os prisioneiros mencheviques pelas greves de Petrogrado e pretendia
fuzilá-los, mas a intervenção de Máximo Gorki em favor dos condenados acabou
por salvá-los (27).
Entretanto, os
bolcheviques intensificaram a propaganda ideológica em torno dos inimigos do
regime numa tentativa derradeira de persuadir os grevistas a retomar o trabalho
e evitar as consequências de um eventual derramamento de sangue. Para isso,
mobilizaram a imprensa e os membros do partido que desfrutavam do apreço popular
em uma campanha destinada a recuperar a boa imagem do partido nas ruas, nas
fábricas e nos quartéis. É provável que, sim, às origens plebeias do presidente
do Conselho Pan-Russo dos Sovietes, Mikhael Kalinin, gozasse de alguma boa
vontade por parte dos operários e militares. No geral, porém, a acolhida dos
agentes do governo não era lá nem um pouco cordial. Como tema central, a
propaganda oficial condenava as greves como parte de uma conspiração contrarrevolucionária
articulada pela Guarda Branca e seus aliados mencheviques e socialistas revolucionários
(SR). Como notou Emma Goldman, depois de tanta repetição, as teses do governo
iam perdendo seu efeito de persuasão (28), não obstante alguma margem de dúvida
que certamente ainda devia restar, principalmente, porque os mencheviques e os
socialistas revolucionários (SR) não faziam a menor questão de esconder seu
envolvimento direto nas manifestações de rua.
Mas não seria unicamente
pelo emprego da força ou da propaganda que a autoridades restabeleceriam a
ordem em Petrogrado. O governo sinalizou uma série de concessões de relativa
importância como forma de neutralizar a força dos movimentos de oposição. De imediato,
distribui-se uma quantidade extra de ração aos soldados e operários, algo
equivalente a uma lata de carne em conserva e um pouco mais de meio quilo de
pão. Segundo informou o cônsul norte-americano em Viborg, a distribuição de
alimentos “produziu uma diminuição considerável nos armazéns já parcamente
abastecidos de Petrogrado” (29). Assim, para evitar o esgotamento das reservas
estocadas, houve a necessidade de remanejar alimentos de outras localidades da
Rússia para reabastecer Petrogrado.
Paralelamente, no dia 27
de fevereiro, Zinoviev anunciou muitas outras concessões que satisfaziam às
demandas mais urgentes dos trabalhadores. Desde então, o governo autorizou aos
cidadãos a permissão para sair da cidade em busca comida. Como prova de boa
vontade, Zinoviev prometeu aumentar o número de trens para facilitar as viagens
com destino à zona rural. Ademais, os destacamentos de bloqueio de estradas,
distribuídos ao redor de Petrogrado, foram instruídos a não confiscar alimentos
transportados pelos operários, desde que não se configurassem casos flagrantes
de especulação. Zinoviev também anunciou a compra de cerca 18 milhões de poods
de carvão do exterior (1 pood equivale a 16kg – N.T.), que chegariam brevemente
e contribuiriam para aliviar a escassez de combustível em Petrogrado e outra cidades.
Mas, o mais importante, conforme revelou o comissário, era um projeto, ainda em
fase de estudo, que tencionava substituir a requisição forçada de cereais por
uma taxa em espécie (30). Em outras palavras, o sistema do comunismo de guerra estava
em vias de ser alterado por uma nova política econômica que devia restabelecer,
pelo menos em parte, a liberdade do comércio entre a cidade e o campo. A 19 de
Março, para dar mostras de credibilidade, o Soviete de Petrogrado anunciou a
retirada de todos os bloqueios de estrada na província de Petrogrado. Nesse
mesmo dia, foram dispensados todos os soldados do Exército Vermelho empregados
nas fábricas de Petrogrado – mais ou menos uns dois ou três mil – e liberados
para que retornassem às aldeias de sua residência. De acordo com a explicação
oficial, cortes na produção tornavam a presença do exército desnecessária no
emprego da mão de obra na indústria (31).
Como resultado, após
vários dias de negociações tensas, as manifestações em Petrogrado foram
diminuindo rapidamente. A dois ou três de março, quase todas as fábricas
voltaram a funcionar normalmente. Não há a menor dúvida, as concessões do
governo produziram um efeito positivo na retomada da produção. Entretanto, a
mudança na conturbada conjuntura social de Petrogrado deveu-se muito mais às
terríveis consequências do frio e da fome do que as políticas do governo. Também
não foi desprezível os impactos do uso da força militar e das prisões em massa,
para não falar da incansável propaganda empreendida pelas autoridades
governamentais, que foram indispensáveis para o restabelecimento da ordem na
cidade. Mas ainda mais impressionante foi a disciplina da organização partidária
da cidade. Deixando de lado as disputas internas, os bolcheviques de Petrogrado
demonstraram uma união admirável ao assumir a responsabilidade, diga-se de
passagem, bastante desagradável, de reprimir prontamente o povo nas ruas. Tal
foi o mérito de Zinoviev, chefe do partido local, e de todos os seus subordinados.
A despeito de sua reputação de covarde, Zinoviev entrava facilmente em pânico em
situações de perigo, o chefe do partido em Petrogrado agiu com notável presença
de espírito em um momento que a repressão das manifestações de rua tornava-se
dramática.
Ademais, o movimento não entraria
em colapso tão rapidamente se uma profunda desmoralização não se abatesse sobre
a população de Petrogrado. Os trabalhadores estavam simplesmente esgotados para
manter por mais alguns dias qualquer tipo de atividade política de
enfrentamento. A fome e o frio haviam reduzido muitos deles a um estado de
indiferença total muito próximo a uma apatia profunda. Mais ainda, careciam de
liderança efetiva e de um programa coerente de ação. No passado, contavam com o
apoio da intelligenstia radical...
Mas, agora, em 1921, como muito bem percebeu Emma Goldman, os intelectuais de Petrogrado
não estavam em condições de prestar aos trabalhadores qualquer tipo de apoio,
muito menos uma liderança ativa? Para quem no passado havia sido linha de
frente nos protestos revolucionários, no presente momento sentia-se fatigado e
aterrorizado. Como erguer a voz, abatidos que estavam pelo resultado inútil do
seu esforço individual? Como a maioria de seus camaradas presos ou exilados,
quando não executados, poucos estavam dispostos a arriscar um destino parecido,
especialmente quando as probabilidades de derrota eram esmagadoras e o menor
gesto de rebeldia poderia privar sua família da preciosa ração (32). Ademais,
para muitos intelectuais e trabalhadores, os bolcheviques, em que pese todos os
seus defeitos, formavam ainda a barreira mais poderosa contra uma ofensiva branca
que poderia colocar em risco a vitória da revolução.
Por estas razões, as
greves de Petrogrado estavam predestinadas a uma curta duração. Na verdade,
terminaram quase tão repentinamente como começaram; sem esboçar qualquer perigo
ao regime. Todavia, suas consequências foram imensas. Os marinheiros da vizinha
Kronstadt, sintonizados com os recentes acontecimentos na velha capital, colocaram
em cena aquela que seria sob muitos aspectos a mais séria rebelião da história
soviética.
Kronstadt é, ao mesmo
tempo, cidade fortificada e base naval. Localizada na ilha de Kotlin, no Golfo
da Finlândia, a uns 30 quilômetros a oeste de Petrogrado, foi construída por
Pedro, o Grande, no início do século XVIII. A fortaleza original destinava-se a
proteger a nova capital da Rússia às margens do rio Neva - a celebrada “janela
de Pedro para o Ocidente”. Todavia, a partir do século IX, a ilha ganhou
importância estratégica, pois, desde os tempos da famosa rota marítima que ia dos
“vikings (varegues ou, no original, varangianos – N.T.) aos gregos”, formava a desembocadura
de saída da Rússia para o Ocidente. Atualmente, quem visita Peterhof, o
majestoso Palácio de Pedro, no continente, ao sudeste de Kotlin, pode caminhar pela
costa e ver ao longe o contorno cinzento da ilha que protege pelo mar a antiga capital.
É uma estreita faixa de terra de uns treze quilômetros de comprimento por dois
quilômetros e meio de largura, apresentando contornos irregulares de um triângulo
alargado. Inacessível pelo exterior, a faixa costeira está bem defendida por
uma série de fortes e baterias construídos sobre formações rochosas que, de norte
a sul, se alongam mar adentro.
No extremo oriente da ilha,
bem na frente de Petrogrado, está situada a cidade de Kronstadt, rodeada por
uma grossa e antiga muralha. Seu principal ponto de acesso é o Portão de Petrogrado,
a leste da ilha. Ao lado sul, encontram-se os portos e diques secos que recebem
os navios da Frota do Báltico. O Golfo da Finlândia permanece congelado durante
mais de quatro meses ao ano, de novembro até fins de março ou início de abril. Nos
meses de verão, antes da Primeira Guerra Mundial, navios a vapor de turismo
realizavam rotas de cruzeiros regularmente entre Petersburgo e Kronstadt. No
inverno, as viagens eram feita de trem a Oranienbaum, cidade e base militar
continental situada a uns 8 km ao sul da ilha de Kotlin; dali em diante se
seguia de trenó por uma estrada sobre a grossa camada de gelo na superfície do
golfo. No começo do século XX, Kronstadt era, sob todos os aspectos, um lugar
muito pitoresco: numerosos canais, ruas ladeadas por árvores e majestosos
edifícios públicos muito parecidos com os da capital Imperial embelezavam a cidade.
Entre suas principais construções, destacava-se a notável Catedral de Santo
André, construída com uma cúpula dourada e cercada por muros cor de ocre. Mas
também merecem a nossa menção os velhos edifícios do Arsenal e do Almirantado e
a Escola de Engenharia Naval (rebatizada de Casa da Educação, em 1917). No
centro da cidade, a imensa Praça da Âncora em frente à enorme Catedral dos
Marinheiros (Morskoi Sobor) [Catedral de São Nicolau dos Marinheiros, N.T.],
construída em fins do século XIX. A praça recebeu este nome a partir de meados
do século XVIII quando ali foram construídos grandes armazéns para guardar
âncoras de navios (33). A vasta área que recobre a praça tem capacidade para
receber mais de 25 mil pessoas e foi muito utilizada para exercícios de
recrutas e desfiles militares. Durante 1905 e 1917, a Praça da Âncora
converteu-se no foro revolucionário de Kronstadt; palco de reuniões diárias,
por onde se aglomeravam uma multidão de entusiásticos marinheiros, soldados e
trabalhadores, um tipo de democracia tosca, direta e eficaz, resquício da época
das assembleias populares cossacas, caracterizavam esses encontros.
Em 1921, Kronstadt era a
principal base da Frota do Báltico. A população total estava estimada em umas
50.000 pessoas, das quais mais ou menos metade era formada por civis e a outra,
militares. Estes últimos se dividiam, por sua vez, entre a tripulação de
marinheiros da frota (a maioria) e os soldados da guarnição, em sua maior parte
artilheiros que integravam o bastião principal, os fortes periféricos e o
paiol. Muitos civis mantinham vínculos com a fortaleza e a base naval, seja
como empregados do exército, seja como operários que trabalhavam nos estaleiros,
armazéns e outros estabelecimentos do litoral. O resto era constituído, sobretudo,
por operários de fábrica, artesões, pescadores, pequenos comerciantes,
empregados de cooperativas e funcionários das instituições governamentais da
cidade propriamente dita (34).
O nome de Kotlin -
chaleira ou caldeirão – era bastante adequado para a ilha, pois seus
habitantes mais notórios, os marinheiros do Báltico, estavam sempre em ebulição,
dado o seu temperamento irascível. Constituíam uma estirpe rebelde e
independente que abominava todo tipo de autoridade e privilégios. Estavam sempre
com os nervos à flor da pele, inclinados a violentas explosões contra os
oficiais ou mesmo o governo. Por seu humor bilioso, tinham um quê daqueles
audazes piratas do passado, ou dos cossacos e strel'tsy (mosqueteiros) dos séculos XVII e XVIII, cuja
soldadesca era foco de buntarstvo,
isto é, rebelião espontânea. Assim como os seus antecessores, os marinheiros
também eram vol'nitsy, ou seja,
espíritos indomados. Resistiam instintivamente à disciplina e amavam a liberdade
e a aventura. Quando inflamados por boatos ou pela vodka, davam vazão à sua
fúria saciando-a com o sangue dos ricos e poderosos. E, tais quais seus
predecessores, qualquer coisa era pretexto para um bom motim.
Kronstadt possuía uma
história de um radicalismo volátil, que datava ao primeiro grande levante
ocorrido na Rússia do século XX, a Revolução de 1905. No ano de 1901, livros
proibidos começaram a circular pela tripulação. Pouco tempo depois, os
marinheiros formavam grupos de discussão sobre temas políticos e sociais.
Passaram então a formular reivindicações concernentes às questões de seu
cotidiano, como os baixos salários, a má alimentação e a rigorosa disciplina à
que estavam continuamente submetidos. A onda de greves, jacqueries e terrorismo, que varreu o país entre 1902 e 1905,
encontrou ressonância entre os marinheiros, principalmente no que tange à
formação crítica de uma consciência política e social. Daí por diante,
insubordinação à hierarquia e outras transgressões disciplinares tornaram-se
ocorrências rotineiras. Em 1905, deflagrada a guerra russo-japonesa e tendo
iniciado a revolução, o que restava da disciplina se perdeu quando os japoneses
afundaram grande parte da frota russa nos estreitos de Tsushima. Como se não
fosse o bastante, em junho de 1905, um episódio dramático envolvendo exercícios
militares no Mar Negro agravou ainda mais a predisposição rebelde dos
marinheiros de Kronstadt: o famoso motim do encouraçado Potemkin.
No ápice da revolução, um
dos primeiros transtornos registrados em Kronstadt teve início em outubro de
1905, inaugurando uma pauta de contestação que iria perdurar pelos anos
seguintes. Numa grande assembleia realizada na Praça da Âncora, milhares de
marinheiros e soldados descontentes manifestaram suas queixas que, dessa vez,
iam além das habituais reivindicações por melhores alimentação e vestimentas,
soldo mais alto, turnos menores e relaxamento da disciplina. Ouviram-se gritos
pela derrubada da autocracia e a favor de uma república democrática com plenas
liberdades civis para todos. Nos dias seguintes, os ânimos exaltaram-se ainda
mais. A 25 de outubro, uma reclamação corriqueira sobre a péssima qualidade da
comida servida no bandejão desencadeou uma baderna generalizada. “Matem o
comandante”, berravam os marinheiros, ao som de um estrondoso bater de botas e
de incessantes golpes de talheres nas bandejas (31). No dia seguinte, Kronstadt
estava em polvorosa. A revolta completamente espontânea degenerou-se
rapidamente em uma orgia de pilhagem e destruição que só encontrou paralelo nos
motins dos strel'tsy no reinado de
Pedro, o Grande. Uma turba formada por marinheiros e soldados ensandecidos
corria pelas ruas da cidade estilhaçando vidraças e incendiando edifícios. Barricadas
foram erguidas e casas ocupadas ante a chegada das forças punitivas de São
Petersburgo. Até que as tropas imperiais pudessem reestabelecer a ordem, o motim
já havia resultado em dezessete mortos e oitenta e dois feridos. Foram presos
quase 3.000 amotinados, muitos dos quais condenados a anos de prisão ou ao
exílio. No entanto, nenhuma sentença de morte foi decretada (36).
A 19 de julho de 1906,
quando os raios crepusculares da revolução de 1905 esmaeciam na escuridão da
noite, uma segunda e mais explosiva rebelião popular tomou o porto de Sveaborg,
em Kronstadt. Como em outubro, a revolta foi espontânea e desorganizada, escapando
do controle por dois dias seguidos antes dos reforços policiais conseguirem
conter os revoltosos. As reivindicações dos rebeldes seguiam essencialmente as
mesmas, acrescidas, no entanto, de uma gota amarga de desilusão pelo fracasso
do movimento anterior. Entretanto, o ódio à autoridade e à disciplina seguirá
sendo a tônica da rebeldia dos marinheiros. “Vocês beberam o nosso sangue por
tempo demais!”, gritava um marinheiro a um oficial em meio ao tumulto. Gritos
assim sintetizavam o sentimento dos insurgentes (37). A luta foi travada com
uma ferocidade nunca vista. De um lado, um sentimento de frustração e os
sucessivos ultrajes impulsionavam os rebeldes; de outro, a confiança em uma
rápida vitória, num momento em que a maré revolucionária começara a baixar na
Rússia, inspirava as autoridades. Envoltos em uma atmosfera asfixiante emanada
pela repressão, 36 líderes rebeldes foram executados e centenas encarcerados ou
desterrados para a Sibéria (38).
É importante ressaltar os
primeiros casos de rebelião espontânea em Kronstadt, porque, sob muitos
aspectos, como veremos a seguir, pressagiavam os tormentosos acontecimentos de
março de 1921. Isto é especialmente verdadeiro quando se trata da rebelião
sucedida em 1917. Nessa ocasião, Kronstadt mais uma vez foi palco de um
movimento revolucionário desenfreado. Sob a influência da extrema esquerda, que
ao longo daquele ano teve grande ascendência ideológica sobre a tempestuosa
população da ilha Kotlin, Kronstadt principiou uma comuna revolucionária aos
moldes da Comuna de Paris de 1871 - relíquia histórica e lendária das
revoluções sociais no imaginário popular. Em março de 1917, o soviete independente
de Kronstadt, dirigido por bolcheviques, anarquistas, socialistas
revolucionários (SR) de extrema esquerda e radicais de tendência
anarcopopulista não afiliados a nenhum partido, recusou-se a obedecer à
autoridade do governo provincial ao se proclamar “o único poder na cidade”
(39). Desde então, o soviete de Kronstadt exerceu uma autoridade política
plena, baseado apenas nas assembleias realizadas diariamente na Praça da Âncora.
Aliás, a Praça da Âncora, segundo descreveu Elfim Yarchuk, um anarquista do
soviete de Kronstadt, transformou-se em uma “universidade livre”, onde oradores
revolucionários de todas as tendências defendiam suas teses perante grandes
multidões ansiosas por ouvi-los. Um líder bolchevique local, Ivan Flerovsky,
apelidou orgulhosamente as reuniões de marinheiros, soldados e operários de “veche
de Kronstadt”, uma referência às tumultuosas assembleias populares que floresciam
nas cidades russas durante a Idade Média (40).
O soviete e o foro da Praça
da Âncora tornaram-se juntos a instância política que satisfazia as
necessidades dos habitantes de Kronstadt sem a necessidade de recorrer a
qualquer mediação de um parlamento nacional ou outro organismo central de
governo. Em grande parte, a vida social e econômica da cidade prosperava sob a
atmosfera libertária da cidade, que era administrada pelos próprios cidadãos
mediante o funcionamento de comitês locais de toda a classe – comitê executivo,
comitê naval, comitê de alimentação, comitê de fábricas e de oficinas. Para
defender a soberania da ilha das intromissões exteriores, uma milícia popular
foi organizada. De fato, os kronstadtinos demonstravam um genuíno talento para
criar e gerir organizações espontâneas. Além dos diversos comitês espalhados
pela cidade, homens e mulheres, que trabalhavam em um mesmo ofício ou residiam
na mesma vizinhança, formavam pequenas comunas agrícolas com aproximadamente 50
integrantes a fim de cultivar toda sorte de terra arável disponível nas áreas
isoladas da ilha. Durante a guerra civil, relatou Yarchuck, essas hortas
coletivas ajudaram a salvar a cidade da inanição (41).
Portanto, zelosa de sua
autonomia local, a população de Kronstadt respondia calorosamente ao apelo
lançado por Lênin em 1917 de “todo poder aos sovietes”. Os kronstadtinos
interpretaram o slogan em sentido literal, segundo o qual cada localidade trataria
de cuidar de seus próprios assuntos, com pouca ou nenhuma interferência de qualquer
autoridade central. Assim eles compreendiam, disse Yarchuck, a verdadeira
essência do “socialismo” (42). Consideravam a sua comuna revolucionária como um
autêntico modelo de autogestão descentralizada que deveria servir de exemplo a todo
o resto do país. “Em que pese todas as virtudes revolucionárias de Kronstadt -
observava Ivan Flerovsky - os marinheiros detinham de uma fragilidade séria:
acreditavam ingenuamente que bastava a força de vontade para instituir o poder
dos sovietes em toda a Rússia” (43). Claro, tais esperanças se mostrariam vãs e,
nos anos subsequentes à ditadura bolchevique, a comuna libertária de Kronstadt
se tornaria um espectro da utopia perdida. No fundo, a revolta de 1921 foi um
esforço titânico dos kronstadtinos para refundar a idade de ouro de uma vida
social espontânea sob a égide do “todo poder aos sovietes locais”.
Durante a revolução de
1917, a Frota do Báltico manteve-se em constante estado de erupção. De quando
em quando, violentas explosões sociais atingiam toda forma de autoridade
política e militar. Assim como no ano de 1905, ocasião em que os marinheiros
dirigiram toda a sua fúria contra os oficiais, a quem tinham por representantes
de uma era de privilégios arcaicos e poder arbitrário, os kronstadtinos estavam
especialmente ansiosos por se libertar da rígida disciplina e da servidão penal,
pelas quais Kotlin devia sua reputação de “Sakhalin dos marinheiros” (44).
Portanto, quando estourou a revolução de fevereiro, os marinheiros aproveitaram
a primeira oportunidade para quebrar os grilhões que os prendiam ao
recrutamento obrigatório e acertar as contas com os odiados superiores. A 28 de
fevereiro, uma multidão de marinheiros enfurecidos arrastou o comandante da
base, o almirante R. N. Viren, até a Praça da Âncora e lá o executaram. O ato
extremo desencadeou uma festa sangrenta na qual mais de quarenta oficiais da
armada e do exército de Kronstadt foram assassinados e outros duzentos, presos.
Enfim, durante os distúrbios de fevereiro, uma onda de violência varreu todo o
complexo de bases da Frota do Báltico. Sem contar as vítimas do exército, cerca
de setenta e seis oficiais da marinha foram assassinados, dentre eles, o
almirante Butakov - equivalente a Viren, em Sveaborg - e o almirante Nepenin,
comandante-em-chefe de toda a Frota do Báltico, cujo quartel-general estava
estabelecido em Helsingfors (Helsinki) (45).
A sede de vingança revelou
apenas um dos muitos aspectos do extremismo revolucionário que a sublevação de
fevereiro suscitou em Kronstadt. Um espírito libertário irrefreável apoderou-se
da cidade. Presumivelmente, bolcheviques, anarquistas, maximalistas socialistas
revolucionários (SR) e outros grupos ultrarradicais fizeram todo o possível
para incitá-los à rebelião e, em pouco tempo, passaram a exercer sobre eles e a
população da ilha uma influência avassaladora. O alvo principal na mira dos
heterogêneos grupos extremistas não era definitivamente os oficiais militares,
mas o governo provisório. Nos meses seguintes, os marinheiros participaram de toda
manifestação revolucionária organizada por eles contra o novo regime. Em abril
de 1917, os kronstadtinos compareceram às manifestações de rua de Petrogrado.
Em junho, marcharam em apoio a um grupo de anarquistas que havia levantado
barricadas em resposta a um contra-ataque do governo. Novamente, durante as
tormentosas Jornadas de Julho, avançaram sobre Petrogrado ao primeiro sinal de revolução
social e ali desempenharam um papel de capital importância na insurreição que,
no entanto, acabou por fracassar. Pelos feitos heroicos de julho, mereceram de
Trotsky o epíteto de “orgulho e glória da revolução”. (Em um incidente muito
conhecido, um grupo de marinheiros apoderou-se de Victor Chernov, socialista
revolucionário (SR) e ministro da agricultura, que, não fosse a rápida
intervenção de Trotsky, teria sido linchado) (46).
Em fins de agosto,
durante a marcha do general Kornilov sobre a capital, os marinheiros reagruparam-se
em defesa da revolução. A tripulação do Petropavlovsk, navio de guerra que
esteve na vanguarda dos acontecimentos de julho, mostrou-se intransigente
quanto à transferência imediata do poder aos sovietes. Além disso, os
marinheiros queriam a prisão e execução de Kornilov. Quatro oficiais de opinião
contrária foram capturados e justiçados no ato (47). Nas semanas seguintes,
fiéis à reputação de revolucionários irredutíveis, os marinheiros continuaram exercendo
pressão para derrubar do governo provisório. A 25 de outubro, chegara o momento
tão esperado; Lênin lança sua bem-sucedida escalada ao poder. Os marinheiros
com suas embarcações precipitam-se até a capital em auxílio aos revolucionários
e unem-se aos guardas vermelhos de Petrogrado no assalto ao Palácio de Inverno,
enquanto o cruzador Aurora disparava salvas de tiros de festim para
desmoralizar a pífia resistência que ainda restava do governo provisório. Pelo
papel que desempenharam em outubro, os homens de Kronstadt fizeram jus ao título
de “orgulho e glória da revolução”, com o qual foram honrados por Trotsky nas Jornadas
de Julho.
No entanto, mesmo após a
queda de Kerensky, a militância revolucionária de Kronstadt manteve-se
efervescente. Na verdade, a vitória só havia excitado a sanha por vingança dos
marinheiros contra as classes sociais depostas do poder. A afamada propensão
por ações violentas da frota ocasionou desfechos particularmente trágicos, como
os dos dias 6 e 7 de janeiro de 1918. Naquela noite, um bando de marinheiros
impetuosos invadiu o hospital de Petrogrado e assassinou dois ex-ministros
Kadets do governo provisório, Shingarev e Kokoshkin, que estavam mantidos em
custódia hospitalar. O comissário de justiça L. N. Steinberg, seguindo
instruções de Lênin, instaurou procedimento de investigação para apurar o caso.
Porém, Lênin reconsiderou a acusação e arquivou a denúncia, receoso de uma reação
intempestiva dos marinheiros (48). Na verdade, Lênin aproveitava-se
estrategicamente da crueldade dos marinheiros enquanto uma espécie de guarda
petroriana sempre pronta a defender os sovietes. De fato, na noite em que
antecedeu os assassinatos no hospital, Lênin enviara um destacamento de homens
de Kronstadt, liderado por Anatoli Zhelezniakov, um bravo e jovem anarquista,
para dissolver a assembleia constituinte em que os bolcheviques não haviam conquistado
maioria parlamentar (49). Mas os marinheiros tinham suas próprias razões para
se oporem à assembleia constituinte. Como temos visto, para eles, as instituições
políticas eram absolutamente inúteis, ainda mais quando dominadas por partidos
conservadores. Na opinião dos marinheiros, a sociedade futura seria regida pela
democracia direta dos sovietes locais. Ao contrário, o parlamento nacional só
podia significar um passo para trás, um retrocesso “burguês”, imposto pelo
governo provisório, tão arduamente derrubado por eles.
Durante toda a guerra
civil de 1918-1920, os marinheiros de Kronstadt e toda a Frota do Báltico
seguiram sendo o porta-estandarte da revolução. Mais de 40.000 marinheiros se
lançarão numa luta atroz contra os inimigos brancos (50). Notáveis por sua
coragem e ferocidade, navegando flotilhas fluviais ou percorrendo por terra em
trens blindados, estavam presentes, ao lado do Exército Vermelho, em todos os fronts de combate. Na batalha crucial de
Sviiazhsk - “o Valmy da Revolução Russa” [Batalha
de Valmy, travada a 20 de setembro de 1792, durante as guerras no contexto
da Revolução Francesa – N.T.] -, proporcionaram a Trotsky sua mais destemida
tropa de choque e ajudaram-no a rechaçar a poderosa força inimiga que ameaçava
penetrar o coração do território bolchevique.
Ao mesmo tempo, foi se
desenvolvendo pouco a pouco um sério atrito entre os marinheiros e o governo.
As primeiras notas dissonantes ressonaram quando, imediatamente após o golpe de
outubro, Lênin anunciou um gabinete composto exclusivamente de bolcheviques. O
soviete de Kronstadt, temeroso pela excessiva concentração de poder nas mãos de
um único partido, passou a pressionar os bolcheviques em favor de um governo de
coalizão representado por todos os grupos socialistas – um presságio do
programa de Kronstadt de março de 1921. Rumores ameaçadores circulavam entre os
marinheiros, alarmados que estavam com a possibilidade do surgimento de uma
nova ditadura no país. Se o atual Conselho de Comissários do Povo incorresse
numa pérfida traição aos ideais democráticos da revolução, concordavam os
marinheiros, os mesmos canhões que subjugaram o Palácio de Inverno em outubro
se voltariam facilmente contra o quartel general da nova administração, o instituto
Smolny (51). Aparentemente, Lênin desdenhou das hostilidades da frota quando,
em novembro de 1917, por alguma ironia do destino, ameaçou alguns de seus
correligionários, que se empenhavam pela admissão de outros grupos socialistas
no governo, com um resoluto basta, caso contrário, “chamaremos os marinheiros”
(52).
No início de 1918, as
queixas em relação ao caráter arbitrário e burocrático do governo comunista já
não eram um fato isolado. Em março, a situação agravou-se ainda mais com o
fechamento e transferência das funções do comitê central (Tsentrobalt) eleito pela frota a um conselho de comissários
designados pelo partido. Multiplicavam-se os marinheiros que desconfiavam dos
bolcheviques por traírem os princípios da revolução. Impressão que se
intensificou com o Tratado de Brest-Litovsk, assinado no mesmo mês de março.
Muitos marinheiros bandearam-se para o lado daqueles que, como os comunistas de
esquerda, anarquistas e socialistas revolucionários (SR) de esquerda, opunham-se
ao tratado por considerá-lo uma rendição ao imperialismo alemão ou mesmo um
abandono do ideal da revolução mundial. No mês seguinte, a tripulação de vários
navios do Báltico aprovou uma resolução redigida em termos decididos em que
acusava o governo de planejar a destruição da frota a mando dos alemães. A
resolução chegou ao ponto de expor expressamente um programa revolucionário
para derrubar o governo bolchevique e implantar no lugar um regime fiel aos
princípios da revolução. Nada disso aconteceu. Porém, em julho de 1918, muitos
marinheiros uniram-se aos socialistas revolucionários (SR) de esquerda que se
sublevaram em Moscou. Na ocasião, os insurgentes tomaram de assalto o quartel
general da Tcheka e aprisionaram por um breve período o oficial de alta patente
M. I. Latsis (53).
Em outubro, novos
tumultos ganharam as ruas. Uma assembleia realizada na base naval de Petrogrado
aprovou uma deliberação determinando, ao mesmo tempo, o rompimento do acordo de
Brest-Litovsk e a luta de resistência contra as forças alemãs que haviam ocupado
a Ucrânia - país de onde se recrutavam, a propósito, muitos marinheiros (54).
Paralelamente, os marinheiros manifestaram publicamente seu repúdio ao
monopólio do poder político pelos bolcheviques. Condenavam a repressão aos
elementos anarquistas e socialistas de oposição e postulavam eleições livres
para os sovietes com representação plena a todos os partidos de esquerda.
Finalmente, denunciavam a recém-inaugurada política emergencial de confisco de
cereais, chamando os destacamentos encarregados de “ladrões” e “saqueadores de
camponeses” (55).
O motim de outubro de
1918 foi rapidamente reprimido pelas tropas do governo. Porém, as
reivindicações do movimento surpreendentemente antecipavam o programa da
rebelião de Kronstadt de 1921, até mesmo no que diz respeito aos seus lemas de
“sovietes livres” e “fora a comissariocracia”. Na verdade, os dois episódios
constituíam-se conjunturas distintas de uma única e ampla agenda histórica. Se
observarmos a movimentação da Frota do Báltico de 1905 até 1921, notaremos a
existência de muitos elos de um mesmo continuum, comprovando o que Pavel Dybenko,
líder militar bolchevique e ex-marinheiro em Kronstadt, chamava de “o eterno
espírito rebelde" dos marinheiros de Kronstadt (56). Descobriremos desde
sempre o mesmo repúdio ao privilégio e à autoridade, o mesmo ódio à arregimentação
obrigatória, o mesmo sonho de autonomia local e autogestão. Sublinharemos, ademais,
o forte antagonismo a tudo que envolvia um governo central profundamente
enraizado na tradição anarquista e populista das classes baixas que datava da
construção de um poderoso aparato burocrático de Estado entre os séculos XVII e
XVIII. Isolada do continente, a cidade-fortaleza de Kronstadt chegou a se
transformar, mais do que qualquer outra de suas bases-irmãs do Báltico, no
baluarte de um primitivo inconformismo anárquico. Os marinheiros de Kronstadt,
famosos pelo ardor revolucionário e espírito independente, nunca toleraram o
arbítrio ou a sujeição, fossem quais fossem. Ostentavam um sacrossanto modo de
ser, espontâneo e avesso a todo tipo de centralização. Os marinheiros desejavam
viver em uma sociedade livre, baseada nos sovietes locais e numa democracia
direta e popular, tal como rezavam as tradições do círculo cossaco (Kazachiy
Krug) e do veche medieval [assembleias
e conselhos do povo – N.T.]. Sempre propensos a uma recaída repentina em
momentos de paroxismo violento contra os donos do poder, fossem estes oficiais,
burocratas, latifundiários ou privilegiados de qualquer espécie, no mês de
março do ano de 1921, o instinto indomável dos marinheiros irá encontrar a sua forma
última e mais acabada.
Entretanto, à medida que
se prolongava a guerra civil, a insatisfação dos marinheiros assumia contornos
desproporcionais. Eternamente aborrecidos, descontavam seu ódio contra a
disciplina militar. A revolução de 1917 desestruturou completamente a
organização do exército e da marinha. A tradicional hierarquia de comando desmoronou-se
como um castelo de cartas e deixou um vácuo de autoridade que seria preenchido
por inúmeros comitês de soldados e marinheiros. Estes elegiam seus próprios
líderes e descumpriam qualquer ordem vinda de cima. A situação caótica no meio
militar seguia, a par e passo, a confusa conjuntura econômica industrial, encampada
por comitês locais de fábrica que submetiam ao “controle operário” uma empresa
atrás da outra. Nos primeiros meses que se passaram à revolução de outubro, a
política bolchevique promovia um processo espontâneo de descentralização em todas
as instituições sociais. Por decreto do governo, a hierarquia militar e as patentes
tradicionais foram abolidas e substituídas por uma força “socialista” de
combate “organizada de abaixo para cima através de eleições para os postos de
comando e baseada na disciplina da camaradagem e do respeito mútuo” (57). Na
prática, isto levou ao colapso da autoridade central e uma pane no circuito
regular de mando, dando ensejo ao hábito inveterado dos recrutas russos para incursões
violentas dedicadas ao saque e à pilhagem.
Não obstante, a guerra
civil em 1918 abriu caminho para uma rápida inversão na política militar bolchevique.
A sobrevivência do regime requeria, de um lado, o fim da caótica situação
resultante do vácuo de poder nas instituições e, de outro, a restauração de uma
rígida disciplina militar nas forças armadas. Na qualidade de comissário de
guerra, Trotsky surgia como o principal opositor do “espírito guerrilheiro” (partzanshchina) que contaminava
indiscriminadamente os soldados e marinheiros. Seguindo os procedimentos
militares tradicionais, Trotsky prontamente reestruturou uma nova e efetiva
força de combate. Evidentemente, não restituiu a antiga hierarquia militar.
Todavia, trouxe de volta à ativa milhares de ex-oficiais imperiais que passaram
a exercer a função de “especialistas militares” (voenspety), ainda que sob a atenta supervisão de comissários
políticos. Desta maneira, supria a falta de experiência e conhecimento técnico
necessários até que se formasse um novo regimento de comandantes vermelhos. O
sistema de comitês dentro do Exército Vermelho foi então eliminado e uma
estrita obediência às ordens superiores foi imposta incondicionalmente. Chegava
ao fim de forma rápida e repentina o período da indisciplina (58).
Não demorou muito para que
o governo ampliasse essas medidas a todas as forças armadas. Encontrou, todavia,
uma obstinada resistência entre os marinheiros. Como observou Dybenko, os
esforços realizados pelos bolcheviques para pôr fim aos comitês de embarcação e
garantir a obediência hierárquica suscitaram uma avalanche de protestos na Frota
do Báltico (59). Para os marinheiros, cuja aversão à autoridade era um proverbial
estado de espírito, qualquer tentativa no sentido de restaurar a disciplina
significava uma traição aos princípios de liberdade por que tanto lutaram no
ano de 1917. Não só remetia ao implacável recrutamento dos tempos czaristas,
como também minava a autonomia do serviço militar que os marinheiros entendiam ser
a mais eficiente. Ademais, os marinheiros não estavam dispostos a entregar
todos os frutos da vitória ao partido que tanto ajudaram a chegar ao poder e
que precisamente agora parecia querer abandoná-los. Assim, foi se desenvolvendo
de forma progressiva um constante atrito entre os marinheiros e os comissários
e comandantes bolcheviques. Enquanto isso, escaramuças ocasionais ocorreriam
com frequência envolvendo a frota e unidades da Tcheka, que, no ápice da guerra
civil, estavam lado a lado na luta pela revolução.
Porém, quando a guerra
civil terminou, ao invés de melhorar, a situação piorou ainda mais. Da noite
para o dia, as severas políticas do governo perderam a sua razão de ser. Os
camponeses não viam mais necessidade do confisco da produção nem da proibição
do livre comércio. Da mesma forma, a subordinação dos sindicatos ao Estado, a
férrea disciplina nas fábricas, a direção unipessoal, bem como a gestão
verticalizada, com o retorno dos especialistas e técnicos “burgueses” aos
postos de supervisão, pareciam injustificáveis, o que irritava demais os
operários. Também os marinheiros e soldados mantinham a expectativa de uma
institucionalização dos princípios democráticos na vida militar. Assim, a
resistência à disciplina, a abolição dos comitês de embarcação e a nomeação de
comissários e “especialistas militares” em posições de mando somavam fatores de
uma ameaçadora instabilidade. Afora isto, entraram em cena elementos residuais
que alimentariam ainda mais o espírito rebelde da tripulação e das guarnições
do Báltico. Em primeiro lugar, uma vez eliminado para sempre o perigo
representado pelos brancos, pela primeira os homens obtiveram licença em muitos
meses e, ao voltarem para suas aldeias, testemunharam a olhos vistos a
violência empregada nos procedimentos de confisco de cereais pelos
destacamentos armados. Alguns soldados, inclusive, foram detidos pelas
patrulhas de inspeção de estrada e submetidos à humilhante revista, a fim de se
verificar se não transportavam alimentos ilegalmente. Já nas cidades, os
recrutas puderam constatar toda a miséria humana que a guerra é capaz de
produzir. Em toda parte, encontravam uma população descontente e insatisfeita.
Ouviram queixas de seus pais e irmãos, que em vários aspectos eram as suas
próprias. “Durante anos - observava Stepan Petrichenko, figura líder na
sublevação de Kronstadt - a censura bolchevique ocultou o que se sucedia em
nossas casas, enquanto estávamos no front
ou no mar. Quando regressamos aos nossos lares, nossos pais indagavam porque
tínhamos lutado ao lado dos opressores. Assim começamos a refletir” (60). É
fácil imaginar em que medida argumentos como os de Petrichenko inspiraram a
indignação de seus camaradas quando retrocediam aos seus postos. Na verdade,
houve um efeito tão drástico sobre o moral daqueles homens, que o governo tomou
providências para restringir as licenças na frota. Em dezembro de 1920, a
situação por si só conduziu a protestos furiosos a bordo do Sebastopol, um dos
grandes encouraçados atracados no porto de Kronstadt. O descontentamento da
tripulação do Sebastopol terá um efeito de gatilho deflagrador dos eventos de
fevereiro e março. Durante o inverno de 1920-1921, a taxa de deserções entre os
marinheiros do Báltico cresceu a níveis alarmantes e, no início de 1921, a
frota desintegrava-se como força militar organizada (61).
Outro perigo tomou grande
vulto durante o período: o impacto da crise de alimentos e de combustível sobre
a frota. Os marinheiros só não passavam mais fome e frio que a população civil
em geral. Com o início do inverno, a vida nos quartéis e nas embarcações
tornou-se insuportável por falta de calefação. Tampouco havia botas ou abrigos
de inverno para os marinheiros enfrentar os terríveis efeitos de um frio
inusitadamente rigoroso que afetou toda a região do Báltico entre novembro e abril.
Pior ainda era a péssima qualidade das rações alimentares que se entregavam aos
homens em quantidade insuficiente (62). Motivo de queixas frequentes na armada
russa, a má nutrição havia originado revoltas no passado. E, no presente
momento, fins de 1920, um surto de escorbuto grassou pela tripulação da Frota
do Báltico. Em dezembro, segundo fontes de emigrados em Helsingfors, os
marinheiros de Kronstadt enviaram uma delegação a Moscou a fim de solicitar
rações de melhor qualidade. Mas os delegados acabaram detidos pelas autoridades
moscovitas. F. F. Raskolnikov, comandante da frota, intercedeu por seus homens
e advertiu que, a menos que se libertassem imediatamente a delegação dos
marinheiros, Kronstadt podia apontar seus canhões em direção a Petrogrado.
Todavia, não se deram ouvidos as palavras que algum tempo depois se revelariam
proféticas (63).
Até mesmo os marinheiros
que pertenciam ao Partido Comunista não estavam imunes à crescente onda de
oposição que se avolumava entre a frota de Kronstadt. Como comungavam do mesmo
espírito independente de seus camaradas, também eles nunca se curvaram à
disciplina partidária ou militar. Em fins de 1920, surgiu uma “oposição da
frota” à semelhança da “oposição militar” no Exército Vermelho e da “oposição
dos trabalhadores” nas fábricas. Estes movimentos compartilhavam da
autodeterminação local e da democracia partidária e rejeitavam com veemência a arregimentação
compulsória e o rígido controle central. A “oposição da frota" advogava pela
criação de uma marinha organizada no soviete segundo delineamentos
“socialistas”; ideia pela qual eram considerados antiquados os conceitos de
hierarquia e autoridade. Propugnava a implementação de comitês de embarcações
mediante eleições simples. Por último, não aceitava a presença de
“especialistas militares” e a “conduta ditatorial” (diktatorstvo) de certos funcionários bolcheviques na administração
política da frota (64).
Fato ainda mais
estarrecedor verificou-se quando um número crescente de marinheiros
bolcheviques, para os quais a “oposição da frota” sequer contemplava uma fração
de todo o seu descontentamento, deu um passo atrevido ao rasgar seus
carnês partidários. Em janeiro de 1921, pelo menos uns cinco mil
marinheiros do Báltico abandonaram o Partido Comunista. Entre agosto de 1920 e
março de 1921, o partido perdeu metade de seus quatro mil filiados em Kronstadt
(65). Funcionários bolcheviques acusavam elementos suspeitos pela debandada
geral. Segundo eles, estes haviam abarrotado as colunas do partido durante a
guerra civil, período em que a inscrição partidária fora facilitada e liberada
de qualquer restrição regulamentar, como ocorreu, por exemplo, em agosto de
1919, durante a campanha assim intitulada “semana do partido”. Os interlocutores
partidários justificavam o excesso de deserções pelo grande número de
militantes de última hora. Como medida de precaução, centenas de filiados
suspeitos tiveram seus registros cassados ou transferidos para as frotas do Mar
Negro e do Mar Cáspio ou, ainda, do extremo Oriente (66).
As autoridades do partido
dividiram-se na luta pelo controle político da frota, opondo Trotsky,
Comissário de Guerra, a Zinoviev, chefe do partido em Petrogrado. A querela não
era nova. Em outubro de 1917, Trotsky substituiu Zinoviev na função de adjunto
de Lênin, o que trouxe grande ressentimento para o chefe do partido de Petrogrado.
Durante os meses de 1920, segundo Feodor Raskolnikov, comandante da frota, e E.
I. Batis, chefe do diretório político (Pubalt)
- ambos leais a Trotsky -, Zinoviev tratou de desqualificar seu rival
chamando-o de “ditador” e apresentando-se a si próprio como um campeão da
democracia partidária e da autodeterminação local. Em novembro de 1920, por
insistência de Zinoviev, o comitê partidário de Petrogrado solicitou a
transferência da administração política da Frota do Báltico para a jurisdição
do Pubalt; tramitação burocrática que
encontrou resistência tenaz dos apoiadores de Trotsky (67).
Como resultado da
disputa, os comissários e outros administradores do partido perderam boa parte
de sua influência sobre os marinheiros. Isto já era evidente no início de
dezembro, quando na ocasião de uma assembleia geral celebrada na base naval de Petrogrado,
um grupo expressivo de marinheiros retirou-se em sinal de protesto à maneira como
foram eleitos os delegados no VIII Congresso dos Sovietes (eleição que, segundo
parece, foi dominada por funcionários do partido que pertenciam ao departamento
político local). No começo do inverno, a tensão seguirá crescendo até atingir
um clímax na Segunda Conferência dos Comunistas da Frota do Báltico, promovido
em Petrogrado a 15 de fevereiro. A “oposição da frota”, que tinha emergido como
uma poderosa força na conjuntura de então, obteve esmagadora maioria e exigiu a
imediata descentralização do controle político. Isto convergia com a transferência
da sede da autoridade do Pubalt [Politicheskoye Upravleniye Baltiyskogo Flota: Diretoria
Política da Frota do Báltico - N.T.] e de seus departamentos políticos para os
comitês partidários locais, tal como proposto por Zinoviev e seus companheiros
no mês de novembro. A resolução aprovada desferia críticas ao Pubalt por seu alheamento em relação à
grave situação vivida pelas massas populares e também pelo distanciamento dessa
diretoria das bases partidárias. O Pubalt
havia se transformado, segundo afirmava a resolução, em um “órgão
burocrático sem legitimidade alguma”; e para restabelecer a autodeterminação local
seria necessário reelaborar toda a estrutura política da frota “segundo
princípios democráticos”. Alguns delegados pleiteavam também a abolição dos
departamentos políticos da frota, uma demanda que encontrava eco entre os rebeldes
de Kronstadt. Um funcionário do partido advertiu que, a menos que se fizessem
alguma reforma, “em dois ou três meses haverá uma revolta” (68).
Em meados de fevereiro de 1921, as tensões na Frota do Báltico alcançaram um ponto crítico. Antes de terminar o mês, uma onda de greves inundou a cidade de Petrogrado. Quase ao mesmo tempo, notícias de tumultos ocasionados pelas greves chegaram a Kronstadt. A tradicional solidariedade revolucionária à classe trabalhadora de “Pedro Vermelho” era para os kronstadtinos uma regra desde pelo menos 1905 e 1917. A chegada das primeiras notícias sobre os incidentes de Petrogrado acarretou uma série de boatos que inflamou ainda mais o caráter passional dos marinheiros. Por exemplo, corriam rumores de que as tropas governamentais haviam atirado em manifestantes na ilha Vasili e que líderes grevistas estavam sendo fuzilados nas masmorras da Tcheka (69). Um clima eletrizante pairava no ar. Não é de se admirar, portanto, que histórias assim se propagavam como um relâmpago na tempestade. Alarmado, Kuzmin advertiu ao soviete de Petrogrado sobre uma possível irrupção na frota, caso as greves não fossem esmagadas o quanto antes. Mas a advertência chegou tarde demais. No mesmo dia, 26 de fevereiro, as tripulações do Petropavlovsk e do Sebastopol organizaram uma reunião de emergência e decidiram enviar uma delegação a Petrogrado para averiguar o que estava se passando de fato na cidade. Os dois navios de guerra, então aprisionados lado a lado nas águas congeladas do porto de Kronstadt, sempre foram um termômetro do sentimento dos rebeldes. Durante os dias de julho de 1917, segundo vimos, o Petropavlovsk tornou-se um símbolo da oposição militar ao governo provisório e, no mês seguinte, quatro de seus oficiais foram fuzilados em meio à duvidosa acusação de apoio ao general Kornilov. Portanto, não exagera Pavel Dybenko, ex-membro da tripulação, ao comentar em suas memórias acerca da “eterna rebeldia do Petropavlovsk” (70). O Sebastopol também partilhava de uma história de comportamento indomável; sua tripulação mal acabara de amotinar-se em razão da revogação das licenças.
Quando a delegação de Kronstadt chegou a Petrogrado, encontrou as fábricas cercadas por tropas e cadetes militares. Nos setores que ainda funcionavam, batalhões comunistas mantinham vigilância estrita e os operários emudeciam constrangidos com o aproximar dos marinheiros. “Alguém podia pensar - observava Petrichenko, líder da revolta prestes a estourar - que não eram trabalhadores, mas prisioneiros condenados a trabalhos forçados da época czarista” (71). A 28 de fevereiro, indignados com as cenas testemunhadas, os emissários voltaram a Kronstadt e apresentaram um relatório para uma assembleia histórica realizada a bordo do Petropavlovsk.
O relatória expressava
total simpatia pelas demandas dos grevistas e reivindicava ampla autodeterminação
das fábricas e também da frota. A assembleia então votou uma longa resolução
que se transformou no estatuto político da rebelião de Kronstadt:
Depois de
ter ouvido o informe dos representantes enviados a Petrogrado pela Assembleia
Geral das Equipagens para examinar a situação, os marinheiros decidiram:
1.
Considerando que os atuais sovietes não expressam a vontade dos operários e
camponeses, estabelecemos o que se segue: proceder imediatamente a novas
eleições mediante o voto secreto, com plena liberdade de palavra e ação a todos
os operários e camponeses durante a campanha eleitoral;
2.
Estabelecer a liberdade de expressão e de imprensa para todos os operários e
camponeses, para os anarquistas e partidos socialistas de esquerda;
3.
Assegurar a liberdade de reunião para os sindicatos e as organizações
camponeses;
4. Convocar
uma conferência não partidária com a participação de todos operários, soldados
do exército vermelho e marinheiros de Petrogrado, Kronstadt e da província de Petrogrado,
para a data de 10 de março de 1921, o mais tardar;
5. Libertar
todos os prisioneiros políticos de partidos socialistas, assim como todos os
operários, camponeses, soldados e marinheiros presos em consequência dos
movimentos operários e campesinos;
6. Eleger
uma comissão para revisar os processos referentes às detenções injustificadas em
presídios e campos de concentração;
7. Abolir
todos os departamentos políticos, porque a nenhum partido político deve se
conceder privilégios especiais para a propaganda de suas ideias nem receber
apoio financeiro do Estado para tais propósitos. Em lugar disso, devem se
estabelecer comissões de cultura e de educação eleitas localmente e financiadas
pelo Estado;
8.
Desobstruir de imediato todos os bloqueios de inspeção de estrada;
9. Ajustar
equitativamente as rações para todos os trabalhadores, excetuando os que
realizam tarefas insalubres;
10. Abolir
os destacamentos comunistas de choque em todas as unidades do exército, assim
como a guarda comunista nas fábricas e usinas. Em caso de necessidade, estes
guardas ou destacamentos poderão ser designados no exército pelas companhias e
nas usinas e fábricas pelos próprios operários;
11.
Conceder aos camponeses plena liberdade de ação no que concerne às suas terras
e também ao direito de possuir gado, com a condição de que os mesmos executem
suas tarefas sem empregar trabalho assalariado;
12. Requerer
a todas as unidades do exército, assim como aos nossos camaradas cadetes (kursanty),
que aprovem a nossa resolução;
13.
Requisitar à imprensa a ampla publicidade de todas as nossas resoluções;
14.
Designar uma comissão itinerante de controle;
15. Permitir
a livre produção do artesanato, desde que isento do emprego de mão de obra
assalariada;
Petrichenko,
presidente da Assembleia da Esquadra
Perepelkin,
Secretário (72).
A resolução do Petropavlovsk
repercutia não apenas o descontentamento da Frota do Báltico, mas também de
toda a população russa das cidades e aldeias do país. Portanto, os marinheiros,
que eram de origem plebeia, sonhavam com uma vida melhor para os seus camaradas
camponeses e operários. Na verdade, dos quinze pontos da resolução, apenas um -
a abolição dos departamentos políticos da frota – restringia-se especialmente à
situação dos marinheiros. O restante do documento aparecia como uma saraivada
de críticas às políticas do comunismo de guerra, cuja justificativa
perdera de todo sentindo há muito tempo. O fato de que alguns dos responsáveis
pela resolução terem recebido licença há pouco tempo e testemunhado as
condições precárias dos aldeões, dentre eles, o próprio presidente da
assembleia Petrichenko, obviamente, influenciou bastante na elaboração das
proposições de modo a incluir a pauta camponesa. Isto é especialmente
verdadeiro no que tange ao item 11, que trata da permissão aos camponeses de
usufruir livremente de sua terra desde que o uso de mão de obra assalariada
fosse dispensado. O que implicava nada mais nada menos que a abolição das
requisições de alimentos e também, talvez, a extinção das granjas estatais. Do
mesmo modo, a função de capataz atribuída aos marinheiros nas fábricas de Petrogrado
pode ter influenciado também para a inclusão no programa das principais
demandas dos operários: o fim dos bloqueios de estrada, do racionamento de
ração com porções privilegiadas e da vigilância das fábricas por militares.
Não foram, entretanto, as
questões econômicas que tanto alarmaram as autoridades bolcheviques quando
estas tomaram conhecimento das proposições do Petropavlovsk. Algumas das
propostas, na verdade, como a retirada dos bloqueios de estrada (item 8), já
estavam em fase de conclusão. Ademais, naquele momento, o governo estudava
uma política econômica que visava atender aos anseios populares de um modo
muito mais amplo que o tímido programa dos marinheiros. O que escandalizou
o governo foram as pautas de ordem política, que apareciam como um tiro
certeiro no coração da ditadura bolchevique. Nascia daí a necessidade de
repremir imediatamente o movimento de Kronstadt. Curiosamente, os marinheiros
não queriam a derrubada do governo soviético, muito menos a restauração da assembleia
constituinte ou a reabilitação dos direitos políticos da alta burguesia e das
classes médias. Por seu gênio indócil, sentiam verdadeiro desprezo pelos
elementos moderados ou conservadores da sociedade russa, que, a depender de sua
vontade inclemente, não mereciam sequer de um minuto de paz e tranquilidade. Mas
a declaração inicial da resolução - “os atuais sovietes não expressam a vontade
dos operários e camponeses” -, soava como um claro desafio ao monopólio
político do poder bolchevique. Novas eleições para os sovietes locais,
associadas à liberdade de expressão dos trabalhadores, camponeses e grupos
políticos da ala esquerda em geral, era algo que Lênin e seus seguidores não
podiam a tolerar. Com efeito, a resolução do Petropavlovsk significava uma
séria advertência para que o governo soviético cumprisse a sua própria
constituição, o que equivalia a uma repetição dos mesmos direitos e liberdades
que Lênin defendera em 1917. De acordo com o raciocínio lógico dos marinheiros,
portanto, expressava um retorno a outubro, e evocava a velha consigna leninista
de “todo poder aos sovietes”. Mas, obviamente, não era a perspectiva
bolchevique: confrontados em suas pretensões de guardiões da revolução, de
representantes exclusivos do proletariado, a declaração dos marinheiros aparecia
como um claro manifesto contrarrevolucionário, e assim devia ser compreendida.
A aprovação da resolução
do Petropavlovsk precipitou a marcha dos acontecimentos. No dia primeiro de março,
uma multidão de marinheiros, soldados e trabalhadores reuniram-se na Praça da Âncora.
Cerca de 15.000 pessoas compareceram à assembleia, mais de um quarto do total
da população militar e civil de Kronstadt. Chegaram até nós vários relatos de
testemunhas oculares que estiveram no encontro, tanto comunistas como não
comunistas (73), proporcionando-nos em seu conjunto um quadro vívido e
detalhado sobre o que se sucedeu naquele dia. Na tribuna, discursavam dois
funcionários bolcheviques pertencentes ao alto escalão, nomeadamente, M. I. Kalinin
e N. N. Kuzmin. De acordo com algumas dessas narrativas, Zinoviev havia
acompanhado os dois colegas até Oranienbaum, mas decidiu não prosseguir, pois
temia ser maltratado pelos marinheiros. Mas, não à toa, Kalinin foi um dos
enviados de Petrogrado para tentar salvar a situação. O então presidente da
República Soviética, ao que parece, despertava o afeto da gente simples por ter
sido ex-operário de fábrica e filho de uma família camponesa da província de
Tver. Na semana anterior, Kalinin havia sido um dos poucos oradores
bolcheviques a cativar a atenção dos grevistas. Assim sendo, sua popularidade
podia fazer com que os marinheiros recobrassem a consciência de quão insensato
estavam sendo ao confrontar o governo. Bandas, bandeiras e uma guarda militar
de honra aguardavam a chegada do presidente, um claro sinal de boa vontade por
parte dos kronstadtinos. A recepção acolhedora trazia certa esperança ao
governo, pois proporcionava a oportunidade de evitar o agravamento da situação.
Aliás, uma atmosfera amistosa marcou o início da assembleia na Praça da Âncora,
presidida pelo chefe bolchevique do soviete de Kronstadt P. D. Vasiliev. Mas os
ânimos começaram a se alterar quando o informe dos delegados destacados para a
investigação das manifestações grevistas de Petrogrado foi apresentado aos
presentes. Entretanto, a assembleia atingiu seu ponto crítico com a leitura na
íntegra da resolução do Petropavlovsk. Imediatamente, Kalinin pôs-se em pé e
tomou a palavra contra o documento. Ato contínuo, o presidente foi interrompido
pelos marinheiros e virou alvo de zombarias: “Basta, Kalinych, sua casa deve
ser realmente bem confortável e muito aquecida”. “Olhe para todos os cargos que
você conseguiu... Aposto que ganhou muito dinheiro com eles”. “Nós sabemos
perfeitamente do que necessitamos, camarada Kalinin; quanto a você, meu velho,
faça o favor de ir embora e voltar para a companhia de sua senhora esposa”. Kalinin esforçou-se
ainda por se fazer ouvir, mas suas palavras foram silenciadas por assobios e
vaias ensurdecedores.
Kuzmin, alto comissário
adjunto ao Conselho Revolucionário de Guerra da frota, recebeu tratamento
similar. Em seu esforço para ganhar a atenção da multidão, lembrou aos
marinheiros do seu papel heroico na revolução e na guerra civil. Mas, de repente,
alguém gritou: “Acaso se esqueceu de que um em cada dez de seus homens tombou
no massacre da Frente Norte? Chega, fora daqui!” A frase é nebulosa, mas talvez
lance insinuações sobre a atuação de Kuzmin como comissário durante a guerra
civil na Frente Norte (área de Arcangel e Murmansk). Ao que parece, Kuzmin
teria participação no fuzilamento de bolcheviques amotinados ou indisciplinados.
(Tais incidentes não eram incomuns. Um caso famoso ocorreu quando um grupo de
recrutas de Petrogrado apoderou-se de um navio no Volga e fugiu para Nizhni Novgorod.
Por ordem de Trotsky, uma canhoneira improvisada interceptou os desertores. Instaurada
a corte marcial, foram condenados à pena de morte o comandante, o comissário e
um em cada dez homens escolhidos aleatoriamente) (75). Seja como for, Kuzmin
não se intimidou e respondeu de modo ameaçador: “O trabalhadores nunca
perdoaram os traidores da causa, e assim continuará no futuro. Em meu lugar,
vocês teriam matado um homem a cada cinco, e não um a cada dez”. “Basta!”,
gritou alguém. “Você não pode nos ameaçar. Chutem ele daí!" Por vários
minutos, chacotas de todos os tipos e perguntas capciosas forçaram Kuzmin a um
silêncio constrangedor. Então, numa última tentativa de se manifestar, o
comissário denunciou a resolução de Petropavlovsk como um documento contrarrevolucionário;
em seguida, alertou dizendo que a indisciplina e a traição seriam esmagadas com
a mão de ferro do proletariado. Enfim, acabou expulso do palanque em meio a um
ruidoso coro de vaias e impropérios (76).
Mal os dois bolcheviques
desceram do estrado, marinheiros e soldados assumiram o lugar. Um atrás do
outro, questionavam as autoridades sobre a falta de alimentos e de combustível,
denunciavam o confisco de cereais, os bloqueios de estradas e, sobretudo,
indagavam o porquê do governo manter em vigor medidas emergências mesmo depois
de meses do término da guerra civil. Enquanto o povo sofria, acusavam os
oradores, os comissários possuíam abrigo decente e boa alimentação. Uma das
principais vozes de acusação era a de Petrichenko, antigo funcionário do Petropavlovsk
e líder da revolta. Fazendo eco às míticas tradições eslavas relativas ao folclore
boiardo e aos lendários oficiais da velha Moscóvia, Petrichenko acusou os
bolcheviques de “esconder a verdade do povo”. As lendas populares, como
veremos, estavam profundamente enraizadas na psicologia inconformista dos
marinheiros e formavam o núcleo de uma ideologia profundamente primitiva. Assim
sendo, Petrichenko convenceu a assembleia a aprovar a resolução do Petropavlovsk
(que levava a sua assinatura) e a conclamar eleições livres em todo o país.
A despeito dos protestos
veementes dos bolcheviques Kalinin, Kuzmin e Vasiliev, a votação foi realizada
e a resolução aprovada por esmagadora maioria. Em seguida, decidiram convocar
uma conferência especial, que, ao que parece, devia expirar naquele mesmo dia.
A conferência devia providenciar novas eleições para o soviete de Kronstadt.
Finalmente, a assembleia deliberou o envio de uma delegação de trinta homens para
Petrogrado com o objetivo de comunicar a população da cidade a respeito das resoluções
dos marinheiros e, ao mesmo tempo, requerer a presença de observadores
imparciais para fiscalizar as eleições em primeira mão. Mas, ao chegar ao
continente, os delegados foram presos e nunca mais se ouviu falar neles (77).
Encerrada a assembleia, Kalinin
e Kuzmin dirigiram-se ao quartel general local do partido onde se reuniriam
para estudar os próximos movimentos no tabuleiro a serem realizados. Conforme
relatou a célebre anarquista Emma Goldman, que acompanhava os acontecimentos do
Hotel Astoria, em Petrogrado, Kalinin partiu de Kronstadt ainda sob um clima
bastante fraternal (78). Diante do que acabara de ocorrer, isto parecia difícil
de acreditar. Segundo fontes soviéticas, antes de deixar a ilha, Kalinin foi
detido no Portão de Petrogrado. Sabemos pelos insurgentes, entrevistados
posteriormente na Finlândia, que muitos marinheiros desejavam prender Kalinin,
mas foram dissuadidos porque isto violaria o princípio de liberdade enunciado
pela própria resolução. Em todo caso, tal questão não é relevante. O que de
fato importa é que, com a aprovação da resolução dos marinheiros na Praça da Âncora,
as circunstâncias tomaram rapidamente a direção inevitável de um motim.
Dado o desfecho
desastroso da assembleia, Victor Serge culpou Kalinin e Kuzmin pelo fracasso
nas negociações, pois, segundo suas palavras, nem um nem outro fez a menor
questão em evitar uma atitude truculenta ao proferir discursos torpes e
intransigentes que só podiam incitar a fúria dos marinheiros. Longe de
apaziguar os revoltosos de Kronstadt, escreveu Serge em suas memórias, os dois
oficiais trataram-nos como patifes e traidores. Além disso, ameaçaram os
marinheiros com represálias implacáveis, ordenando-os de modo autoritário a ter
prudência (80). Há seguramente um exagero nas descrições de Serge. A rebelião
seguia causas internas muito mais poderosas que meros discursos e provocações
poderiam insuflar numa tumultuosa assembleia. Ademais, os marinheiros pareciam
predispostos a desafiar os comunistas, interrompendo-os com gritos e assobios a
cada palavra por eles pronunciada. Por outro lado, é inegável que Kalinin e Kuzmin
poderiam ter assumido uma postura mais condescendente perante um auditório tão suscetível.
Há poucas dúvidas de que a falta de diplomacia de ambos reforçou ainda mais o
sentimento hostil da frota em relação à burocracia bolchevique.
Entretanto, as autoridades
estavam apavoradas demais com o fiasco das tratativas com os marinheiros de
Kronstadt. Apesar do grande número de militantes do partido na frota, estes
também foram tragados pela correnteza irresistível da rebelião. Mesmo quando Kalinin
e Kuzmin mal esboçaram um gesto em desacordo à volúpia transgressora da
assembleia, sendo, por isso, achincalhados, não houve uma única manifestação em
apoio por parte de seus companheiros bolcheviques (excetuando Vasiliev). Na
verdade, a maioria dos comunistas de Kronstadt votou a favor da resolução do Petropavlovsk,
enquanto uns poucos se abstiveram. Este racha interno, como observa Leonard
Shapiro, distinguiu o levante de Kronstadt de todas as rebeliões anteriores
contra o governo soviético (81).
No dia seguinte, a dois
de março, a incipiente revolta avançou mais um passo ao realizar a conferência
(convocada pela assembleia da Praça de Âncora) referente à reeleição do soviete
de Kronstadt. Participaram cerca de 300 delegados, escolhidos apressadamente em
número par, através de cada navio, unidade militar, fábrica, sindicato etc., logo
na parte da manhã ou mesmo durante a noite anterior. Ao que parece, não se
permitiu aos comunistas presidir assembleias eleitorais ou mesmo eleger
delegados, como ocorria no passado. Aliás, os comunistas passaram a receber o
mesmo tratamento que seus camaradas Kalinin e Kuzmin: eram interpelados e
censurados quando se manifestavam. Por exemplo, o comissário bolchevique
responsável pela guarnição principal sequer pôde objetar sobre procedimentos
irregulares que estavam sendo executados antes mesmo de ser advertido por um
“especialista militar” responsável pela artilharia, o ex-general czarista Kozlovsky,
um dos protagonistas do nosso relato. “O tempo dos comunistas acabou - declarou
Kozlovsky ao comissário - a partir de agora, sou eu quem vai fazer o que tem de
ser feito”. É provável que cenas como esta se repetiram durante toda manhã em
muitas outras unidades. Todavia, ainda que a maioria dos delegados eleitos não
fosse filiado ao partido, os comunistas articulavam-se para obter uma
minoria muito importante que chegava talvez a um terço do número total (82).
A conferência teve início
no grande auditório da Casa de Educação, outrora Escola de Engenharia Naval, um
dos edifícios mais notáveis da cidade. Grupos de marinheiros armados do navio
de guerra Petropavlovsk foram posicionados em lugares-chave de acesso aos
salões para impedir qualquer interferência externa no decorrer a reunião. A
presença dos marinheiros no local também servia de aparato intimidatório no
sentido de coibir eventuais manifestações em defesa do regime bolchevique. Como
era de se esperar, a conferência foi presidida pelo camarada Petrichenko. Desde
o início, segundo temos visto, até o final da revolta, duas semanas depois, sua
figura assumirá um papel de destaque na organização do movimento de Kronstadt.
Nascido em uma família camponesa ucraniana, Stepan Maximovich Petrichenko reunia
em si qualidades inerentes de um líder rebelde. Era um jovem vibrante, na casa
dos seus 30 anos, bonito e de sólida compleição. Além disso, era dotado de um
forte caráter magnético que lhe rendia um grande séquito de devotos. Em que
pese o seu sotaque ucraniano, discursava com aptidão e desenvoltura, através de
uma linguagem simples e direta que não escondia sua educação camponesa. Marinheiro
experiente, Petrichenko ingressou na armada em 1912, quase uma década antes dos
trágicos acontecimentos de que será protagonista. Antes disso, trabalhou como
funileiro em seu distrito de origem. Segundo todas as nossas fontes consultadas,
Petrichenko demonstrava uma aguda inteligência que contrariava os parcos dois
anos de escola formal a que havia estudado durante a infância. A propósito,
todos os que o conheceram afirmaram categoricamente que possuía grande energia
e criatividade (83).
A conferência presidida por
Petrichenko principiou com a eleição de um comitê formado por cinco
homens. Em seguida, os delegados ouviram uns poucos discursos antes de
iniciarem os trabalhos pertinentes à preparação das novas eleições para o
soviete. Os oficiais comunistas Kuzmin e Vasiliev foram os primeiros a subir na
tribuna e, obviamente, opunham-se à resolução do Petropavlovsk. Para a
consternação de todos, os dois oficiais repetiram o mesmo tom dos discursos do
dia anterior. Kuzmin, em particular, provocou indignação dos delegados ao
recordar que ainda não havia sido formalizado um tratado de paz com a Polônia;
fato que, naquele momento, em face de uma divisão na autoridade governamental -
qualquer dvoevlastie ou poder
paralelo -, poderia instigar o marechal Pilsudski a reavivar as hostilidades
contrarrevolucionárias latentes. Os olhos do Ocidente, argumentava Kuzmin,
estão fixados na Rússia Soviética, espreitando para contra-atacar a qualquer
sinal de debilidade interna. Quanto às greves de Petrogrado, prosseguiu o comissário,
Kronstadt estava grosseiramente mal informada sobre a gravidade e a extensão
dos distúrbios. Ocorrera, sem dúvida, um atrito momentâneo, mas muito breve, e
agora, a cidade estava em paz. Em um dado momento, ao se questionar sobre a
extrema tensão que reinava na Frota do Báltico, Kuzmin defendeu a conduta dos comissários,
como ele mesmo, a quem os marinheiros, em assembleias recentes, tomaram como
objeto de escárnio. Tal discurso dificilmente poderia agradar uma assembleia
tão irredutível a qualquer defesa em prol do governo. Mas o que irritou mais
que qualquer outra coisa os marinheiros foram as considerações finais de Kuzmin.
Este encerrou sua fala fazendo a mesma ameaça implícita de seu discurso
anterior. “Vocês me têm aqui de peito aberto - disse o oficial -, podem
inclusive até me fuzilar, se assim por bem entenderem. Mas ai de vocês se por
um acaso atreverem-se a levantar um dedo contra o governo... Os bolcheviques
lutarão até sua última gota de sangue em defesa da revolução” (84).
O tom desafiante do
discurso de Kuzmin deixou o auditório completamente atordoado. Dada à atmosfera
explosiva que contaminava a conferência, a situação extrema exigia todo o
cuidado necessário. Mas cautela foi exatamente o que faltou a Kuzmin, preocupado
que estava com as negociações do acordo de paz com a Polônia (vigorava um
armistício desde outubro e as conversações tinham lugar em Riga). A ameaça de
uma nova intervenção polaca auxiliada por tropas francesas era real e nem um
pouco desprezível. Petrogrado encontrava-se particularmente venerável e os
oficiais soviéticos temiam que qualquer indício de divisões internas pudessem
modificar as disposições da Polônia sobre a mesa de negociações ou mesmo
conduzir os dois países a uma guerra aberta. Ademais, após atingir um pico no
último dia de fevereiro, as greves de Petrogrado perdiam força pouco a pouco.
Mas os boatos envolvendo os episódios de fuzilamento e conflitos em grande
escala lançavam os marinheiros num caminho tortuoso. A 2 de março, quando as
manifestações em Petrogrado quase cessavam de todo, os rebeldes redigiram um
pronunciamento totalmente equivocado (a ser publicado no dia seguinte), no qual
versavam sobre uma “insurreição geral” prestes a acontecer na capital (85). Este
mal-entendido encorajou os kronstadtinos a tomar atitudes drásticas, das quais
não poucos se arrependeriam alguns dias depois.
O presidente do então
extinto soviete de Kronstadt, Vasiliev, proferiu um discurso tão ameaçador
quanto o de Kuzmin. Ao encerrar, a assembleia voltou-se ostensivamente contra
os bolcheviques, apesar do grande número de delegados comunistas presentes na
conferência. Como observou Alexander Berkman, as hostilidades dos marinheiros
não se destinava ao partido propriamente dito, senão aos burocratas e comissários,
cuja arrogância - assim diziam os marinheiros - estava estampada nos discursos
de Kuzmin e Vasiliev. Segundo Beckman, o discurso de Kuzmin, em particular, foi
“uma fagulha em um barril de pólvora” (86). Os rebeldes ficaram tão enfurecidos
que mandaram prender os dois oficiais, além do comissário da esquadra de Kronstadt (um
bolchevique chamado Korshunov, supervisor do Petropavlovsk e do Sebastopol).
Isto representava um flagrante ato de insubordinação, muito mais grave do que a
breve detenção de Kalinin no dia anterior. Assim, os marinheiros davam mais um
passo em direção a um dissenso inconciliável. Por outro lado, os delegados
rebeldes recusaram uma moção cujo teor propunha a prisão e a deposição de armas
de todos os comunistas de Kronstadt. Embora uma pequena minoria vociferasse contra
eles, a maioria estava decidida a cumprir os princípios da resolução do Petropavlovsk,
ou seja, o estatuto previsto pelo movimento que garantia a liberdade de
expressão a todos os grupos políticos de esquerda, o que incluía os
bolcheviques.
Por mais grave que
pudesse parecer, a prisão dos três oficiais ainda não significava uma irreversível
declaração de guerra. No entanto, esta não tardaria a chegar. Após a retirada
dos prisioneiros, Petrichenko restabeleceu a ordem na assembleia. Em seguida, a
resolução do Petropavlovsk foi lida em voz alta e aprovada mais uma vez por
aclamação, selando um pacto sem volta. A conferência tratou de pôr em prática a
proposta fundamental do movimento: a eleição de um novo soviete. De repente,
ouviu-se um grito no auditório, e os trabalhos foram interrompidos abruptamente.
Um marinheiro do Sebastopol anunciava aos berros que estava a caminho uma
composição de quinze vagões lotados de comunistas fortemente armados com fuzis
e metralhadoras. A notícia produziu o efeito de uma bomba devastadora, transformando
a conferência numa grande balbúrdia. Só depois de transcorrido um longo período
de comoção intensa, é que foi restabelecida a tranquilidade necessária para
retomar a assembleia. No debate que se seguiu, alguns propuseram enviar outra
delegação a Petrogrado, com o fim de articular uma aliança com os grevistas,
mas o temor de novas detenções inviabilizou a proposta. Assim, perturbados ante
a perspectiva de um ataque bolchevique, a conferência deu o seu passo fatal: aprovaram
a formação de um Comitê Revolucionário Provisório encarregado de administrar a
cidade e as guarnições até que um novo soviete estivesse eleito. Em
virtude do exíguo tempo disponível para a realização do pleito eleitoral, cinco
membros da comissão, escolhidos pela assembleia, compuseram o Comitê Revolucionário
Provisório. A formação do Comitê Revolucionário Provisório arrastou o movimento
dos marinheiros para além dos limites do simples protesto. Tinha início a
rebelião de Kronstadt (87).
Mais uma vez boatos selaram
o destino dos marinheiros de Kronstadt. Realmente, o discurso dos dois oficiais
bolcheviques não podia provocar mais que a indignação dos delegados e uma
reação intempestiva da assembleia. Mas a história de que os comunistas estavam preparando
um ataque à assembleia lançou a sorte dos marinheiros pela travessia do Rubicão
da insurreição com a formação do Comitê Revolucionário Provisório. Quem
inventou o boato? Segundo Petrichenko, os próprios comunistas, com o propósito
de esvaziar a conferência (88). Embora isso fosse possível, não há nenhuma
prova que sustente a explicação do líder da rebelião. É igualmente provável que
o marinheiro que divulgou a notícia falsa desejava agitar as coisas contra
os comunistas. Porém, é de se notar que Petrichenko deu total crédito ao boato
e, mais, anunciou à assembleia que dois mil comunistas estavam a caminho para
reprimir o movimento de Kronstadt. Mais uma vez a reunião acabou num verdadeiro
pandemônio e os delegados extremamente exaltados deixaram às pressas o
auditório (89).
O boato dos dois mil
comunistas pode ter surgido durante a ocasião em que se observou um grupo de
recrutas comunistas, liderados por um membro da Tcheka de Kronstadt, saírem da
Escola Superior do Partido exatamente no momento em que se realizava a
conferência na Casa de Educação. Longe de esboçarem a menor intenção em atacar
a reunião, os recrutas fugiam de Kronstadt para o forte de Krasnaya Gorka,
localizado ao sudoeste do continente. Outro incidente, ocorrido no dia
anterior, pode ter contribuído também para suscitar a crença dos marinheiros
num ataque comunista. Após o término da assembleia na Praça da Âncora, um
grande número de bolcheviques legalistas considerou a possibilidade real de
empreender uma ação militar contra os insurgentes. Para tanto, um comissário da
fortaleza de Kronstadt, um certo Novikov, apoderou-se do arsenal em busca de
artilharia leve e metralhadoras. Quando se constatou que não haveria apoio
suficiente para a campanha, Novikov e seus homens decidiram abandonar a ilha. Próximo
à costa de Carelia, no Forte Totleben, Novikov foi interceptado mas conseguiu
escapar a cavalo através do gelo (90).
Porém, os insurgentes não
permaneceram impassíveis. O Comitê Revolucionário Provisório recém-criado
estabeleceu um quartel-general a bordo do Petropavlovsk, o centro da conjuração
apenas dois dias antes. Atuando de forma expedita, o comitê enviou destacamentos
armados com a missão de ocupar os arsenais de guerra, a central telefônica, os depósitos
de alimentos, a estação de água, a estação de eletricidade, o quartel da Tcheka,
entre outros pontos estratégicos. À meia-noite, as tropas se apoderaram de toda
cidade sem encontrar resistência alguma. Ademais, todos os navios de guerra, os
fortes e as baterias militares reconheceram de imediato a autoridade do Comitê
Revolucionário. À primeira hora do dia, cópias da resolução do Petropavlovsk foram
remetidas pelo correio para serem distribuídas em Oranienbaum, Petrogrado e
outras cidades da vizinhança. Durante a noite, a Esquadrilha Aérea Naval,
situada em Oranienbaum, reconheceu a legitimidade do Comitê Revolucionário e
enviou uma delegação a Kronstadt. A revolta começava a se espalhar.
No dia seguinte, a três
de março, o Comitê Revolucionário Provisório inaugurou o jornal Izvestiia Vremennogo Revoiutsionnogo
Komiteta Matrosov, Krasnoarmeitsev i Rabochikh gor. Kronshtadta [Notícias
do Comitê Revolucionário Provisório dos Marinheiros, Soldados e Trabalhadores
da Cidade de Kronstadt). O diário foi publicado sem interrupção até o dia 16,
véspera do assalto decisivo contra os rebeldes. No primeiro número, Petrichenko,
como chefe do comitê, pedia apoio à população de Kronstadt: “Camaradas e concidadãos:
o Comitê Provisório está determinado a evitar o derramamento de uma só gota de
sangue... a tarefa do Comitê Revolucionário Provisório consiste em organizar condições
para que ocorram na cidade e nas fortalezas um esforço amigável e cooperativo
de todos os concidadãos para que haja eleições limpas e justas para um novo
soviete. ENTÃO, CAMARADAS, APOIEMOS A ORDEM, A SERENIDADE, A FIRMEZA, A NOVA E
IGUALITÁRIA SOCIEDADE SOCIALISTA, QUE PROMOVERÁ O BEM-ESTAR DE TODOS E O PODER DO
POVO TRABALHADOR” (91). No mesmo dia, o Comitê Revolucionário proibiu a
saída da cidade sem a apresentação de uma permissão especial. Ato contínuo, foram
canceladas todas as licenças militares. Além disso, passou a vigorar o toque de
recolher a partir das 11 horas da noite e foi restabelecido a retroivki local (92), uma imitação ad hoc do Comitê de Defesa de Petrogrado,
de Zinoviev. Assim, Kronstadt ultrapassou uma linha sem retorno. Com três
líderes bolcheviques no cárcere e rebeldes controlando a cidade, um confronto
direto contra o governo fazia da rebelião inevitável.
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