KRONSTADT
Emma
Goldman
Tradução:
Ateneu Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP.
No começo do meu
período russo, a questão das greves havia me intrigado bastante. As pessoas
tinham me dito que a última tentativa do tipo foi esmagada e os participantes
enviados à prisão. Eu não tinha acreditado nisso, e, como em todas as coisas
similares, eu fui atrás de Zorin por informações. “Greves sob a ditadura do proletariado?”,
ele exclamou, “Não existe isso”. Ele até me repreendeu por dar crédito a contos
tão loucos e impossíveis. Contra quem, de fato, os trabalhadores entrariam em greve
na Rússia soviética? Ele argumentou. Contra eles mesmos? Eles eram os mestres do
país, tanto política como industrialmente. Certamente, havia alguns entre os operários
que não tinham completa consciência de classe e não estavam cientes de seus próprios
verdadeiros interesses. Estes às vezes ficavam frustrados, mas eram elementos incitados
pelos shkurniky, por egoístas e inimigos da Revolução. Eles eram parasitas que
estavam propositalmente enganando o pobre povo. Eram o pior tipo de sabotazhniky,
não melhores do que contrarrevolucionários completos, e, é claro, as autoridades
soviéticas tinham que proteger o país contra o seu tipo. A maioria deles estava
na prisão.
Desde então eu aprendi por
observação e experiência pessoal que os verdadeiros sabotazhniky,
contrarrevolucionários e bandidos nas instituições penais soviéticas eram uma
minoria insignificante. A maior parte da população prisional consistia de
hereges sociais que eram culpados de pecado capital contra a Igreja Comunista.
Pois nenhuma ofensa era considerada mais hedionda do que considerar visões
políticas em oposição ao partido, e a expressar qualquer protesto contra os
males e crimes do bolchevismo. Eu descobri que de longe o maior número era de
prisioneiros políticos, assim como camponeses e operários culpados de exigir
melhor tratamento e condições. Estes fatos, apesar de rigidamente guardados do
público, eram não obstante conhecimento comum, como de fato era a maioria das
coisas que estavam acontecendo secretamente por baixo da superfície soviética.
Como a informação proibida vazava era um mistério, mas ela de fato vazou e se
espalharia com a rapidez e a intensidade de um incêndio florestal.
Dentro de menos de
vinte e quatro horas depois de nosso retorno a Petrogrado, nós descobrimos que
a cidade estava fervilhando com descontentamento e conversas sobre greve. A
causa disso era o sofrimento crescente devido ao incomum inverno severo assim
como parcialmente à habitual estreiteza de visão soviética. Pesadas tempestades
de neve haviam atrasado os magros suprimentos de comida e combustível para a
cidade. Além disso, o Petro-Soviete tinha cometido a estupidez de fechar várias
fábricas e cortar as rações de seus empregados quase pela metade. Ao mesmo
tempo, se tornou conhecido que os membros do partido nas oficinas tinham
recebido um suprimento novo de calçados e roupas, enquanto o resto dos
trabalhadores estava coberto e calçado miseravelmente. Para tapar o clímax, as
autoridades vetaram a reunião convocada pelos operários para discutir maneiras
de melhorar a situação.
Em Petrogrado, a
sensação comum entre os elementos não comunistas era que a situação era muito
grave. A atmosfera estava carregada até o ponto de explosão. Nós decidimos, é
claro, permanecer na cidade. Não que esperávamos impedir a confusão iminente,
mas queríamos estar presentes caso pudéssemos servir de ajuda ao povo.
A tempestade irrompeu
antes mesmo que qualquer pessoa esperasse. Em fevereiro de 1921, os
trabalhadores de várias fábricas de Petrogrado entraram em greve. O inverno foi
excepcionalmente frio, e as pessoas da capital sofriam intensamente com o frio,
a fome e a exaustão. Eles pediam por um aumento de suas rações de alimentos,
por um pouco de combustível e por roupas. As reclamações dos trabalhadores,
ignoradas pelas autoridades, rapidamente assumiram um caráter político.
Começou com a greve dos
operários nas fábricas de Troubetskoy. Suas exigências eram modestas o
suficiente: um aumento em suas rações de alimento, como haviam lhes prometido
há tempos atrás, e também a distribuição dos calçados à mão. O PetroSoviete se
recusou a negociar com os grevistas até que eles retornassem ao trabalho. A tentativa
de manifestação dos grevistas na rua foi suprimida: companhias de kursanti armados,
consistindo de jovens comunistas treinados militarmente, foram enviadas para dispersar
os trabalhadores reunidos ao redor das fábricas. Os cadetes buscavam incitar a multidão
atirando no ar, mas infelizmente os operários estavam desarmados e não houve derramamento
de sangue. Os grevistas recorreram a uma arma mais poderosa, a solidariedade de
seus companheiros, resultando em empregados de outras cinco fábricas baixando
suas ferramentas e se juntando ao movimento grevista. Vieram quase todos os operários
das docas da Galernaya, das oficinas do Almirantado, das moendas de Patronny e
das fábricas de Baltiysky e Laferm.
Por todos os relatos,
eu levantei que o manejo dos grevistas não foi camarada de maneira alguma. Liza
Zorin, que de todos os comunistas que eu conheci havia permanecido como a mais
próxima do povo, estava presente na dispersão da manifestação. Mesmo uma
comunista fervorosa como Liza Zorin tinha sido incitada a protestar contra os
métodos utilizados. Liza e eu tínhamos nos afastado há muito tempo atrás,
portanto eu portanto muito surpresa dela sentir a necessidade de abrir seu
coração para mim. Ela nunca acreditaria que homens do Exército Vermelho fossem
avançar sobre operários, ela protestou. Algumas mulheres desmaiaram com a
visão, e outras ficaram histéricas. Uma mulher que estava de pé perto dela
tinha evidentemente reconhecido ela como membro ativo do partido e sem dúvida a
considerou responsável pela cena brutal. Ela ficou tão enraivecida com a
brutalidade dos militares que avançou sobre Liza violentamente e a acertou no
rosto em cheio, levando-a a sangrar profusamente. Apesar de cambalear pelo
golpe, a velha Liza, que sempre me provocou por minha sentimentalidade, disse à
sua agressora que aquilo não importava de maneira alguma. A última, fiel aos
seus instintos proletários, salvou a mulher da prisão e a acompanhou até sua
casa. “Para reassegurar à mulher distraída, eu implorei a ela que me deixasse
acompanhá-lha até sua casa”, Liza relatou. Lá ela encontrou as condições mais chocantes.
Em um quarto escuro e úmido, vivia uma família operária com seus seis filhos,
seminus no amargo frio. “Sua casa – era um buraco pavoroso que eu pensava que não
mais existia em nosso país. Um quarto escuro, frio e úmido, ocupado pela mulher,
seu marido e seus seis filhos. E pensar que eu tinha vivido no Hotel Astoria
todo este tempo!”, ela lamentou. Mais tarde, ela se mudou. Ela sabia que não
era culpa do seu partido que tais condições chocantes ainda prevaleciam na
Rússia soviética, ela continuou. Nem era a teimosia comunista a responsável
pela greve. O bloqueio e a conspiração imperialista mundial contra a República
Operária eram os culpados pela pobreza e pelo sofrimento. De qualquer maneira,
ela não podia mais permanecer em seu cômodo confortável. O quarto da mulher
desesperada e seus filhos com queimaduras de frio assombrariam os seus dias.
Pobre Liza! Ela era leal e fiel, e de caráter altíssimo.
Mas oh, tão cega
politicamente!
O apelo dos operários
por mais pão e um pouco de combustível logo estourou em decididas exigências
políticas, graças à arbitrariedade e crueldade das autoridades. Um manifesto,
que foi colado nas paredes ninguém sabia por quem, convocava “uma mudança
completa na política do governo”. Ele declarava que, “antes de tudo, os operários
e os camponeses precisam de liberdade. Eles não querem viver sob os decretos
dos bolcheviques; eles querem controlar seus próprios destinos”. A cada dia a situação
crescia em tensão e novas exigências estavam sendo expressas por meio de proclamações
nas paredes e nos prédios. Por fim, apareceu um chamado pela Uchredilka, a
Assembleia Constituinte tão odiada e denunciada pelo partido dominante.
Lei marcial foi
declarada e os operários receberam a ordem de voltar para as oficinas sob pena
de serem privados de suas rações. Isso não teve qualquer efeito, e como
consequência alguns sindicatos foram liquidados, seus oficiais e os grevistas
mais insistentes colocados na prisão.
Com impotência
angustiante, nós vimos grupos de homens cercados por tchekistas e soldados
armados conduzidos por nossas janelas. Na esperança de fazer os líderes
soviéticos perceberem a loucura e o perigo de suas táticas, Sasha tentou falar com
Zinoviev, enquanto eu procurei Madame Ravich, Zorin e Zipperovich, líder do Sindicato
do Soviete de Petrogrado. Mas todos eles nos negaram com a desculpa de que estavam
muito ocupados defendendo a cidade de complôs contrarrevolucionários tramados
por mencheviques e socialistas revolucionários. Esta fórmula já tinha ficado conhecida
após ser repetida por três anos, mas ainda ajudava a jogar areia nos olhos da militância
de base comunista.
A greve continuava a se
espalhar, a despeito de todas as medidas extremas. Eram feitas prisões atrás de
prisões, mas a própria estupidez com que as autoridades lidaram com a situação
serviram para encorajar os elementos sombrios. Proclamações antirrevolucionárias
e antissemitas começaram a aparecer, e rumores furiosos de supressão militar e
de brutalidade da Tcheka contra os grevistas encheram a cidade.
Os operários estavam
determinados, mas era aparente que em breve eles se submeteriam por causa da
fome. Não havia nenhuma maneira do público ajudar os grevistas mesmo se tivesse
qualquer coisa para dar. Todas as avenidas que levavam aos distritos
industriais da cidade foram cortadas por tropas concentradas. Ademais, a própria
população estava em uma carência pavorosa. O pouco que podíamos reunir em alimentos
e roupa era uma mera gota no oceano. Nós todos percebemos que as chances entre
a ditadura e os operários eram muito desiguais para permitir que os grevistas resistissem
por muito mais tempo.
Nesta situação tensa e
desesperada, logo foi introduzido um novo fator que manteve a esperança de
solução. Eram os marinheiros de Kronstadt. Quando os marinheiros de Kronstadt
souberam do que estava acontecendo em Petrogrado, eles expressaram sua
solidariedade com os grevistas em suas exigências econômicas e revolucionárias,
mas se recusaram a apoiar qualquer convocação para a Assembleia
Constituinte. Fiéis às
suas tradições revolucionárias e à sua solidariedade com os trabalhadores, tão
lealmente demonstradas na revolução de 1905, e mais tarde nas sublevações de
março e outubro de 1917, agora eles novamente se levantaram em favor dos
proletários atacados em Petrogrado. De maneira nenhuma às cegas.
Silenciosamente e sem forasteiros saberem a respeito, eles haviam enviado um
comitê para investigar as alegações dos grevistas. Seu relato incitou os
marinheiros dos navios de guerra Petropavlovsk e Sevastopol a adotarem uma resolução
a favor das exigências de seus irmãos operários em greve. Eles se declararam
devotados à Revolução e aos Sovietes, assim como leais ao Partido Comunista.
Eles protestavam, todavia, contra a atitude arbitrária de certos comissários e
enfatizavam a necessidade de maior autodeterminação para os corpos organizados
dos trabalhadores. Eles também exigiram liberdade de reunião para sindicatos e
organizações camponesas e a libertação de todos os operários e prisioneiros
políticos das prisões soviéticas e dos campos de concentração.
O exemplo dessas
brigadas foi seguido pelos Primeiro e Segundo Esquadrões da Frota do Báltico
estacionados em Kronstadt. Em uma reunião a céu aberto em 1º de março,
realizada com o conhecimento do Comitê Executivo do Soviete de Kronstadt, à qual
compareceram 16.000 marinheiros, homens do Exército Vermelho e trabalhadores de
Kronstadt, resoluções similares foram adotadas por unanimidade com a exceção de
apenas três votos. Os dissidentes incluíam Vassiliev, Presidente do Soviete de Kronstadt,
que presidia a reunião; Kuzmin, o Comissário da Frota do Báltico; e Kalinin, Presidente
das Repúblicas Socialistas Soviéticas Federadas. Kalinin, Kuzmin e Vassiliev
falaram contra a resolução, a qual mais tarde se tornou a base do conflito
entre Kronstadt e o governo. Ela expressava a exigência popular por Sovietes
eleitos pela livre escolha do povo.
Dois anarquistas que
tinham comparecido à reunião retornaram para nos contar da ordem, do entusiasmo
e do belo espírito que havia prevalecido ali. Desde os primeiros dias de
Outubro eles não viam tal manifestação espontânea de solidariedade e camaradagem
fervente. Se nós estivéssemos lá..., eles lamentaram. A presença de Sasha, a
quem os marinheiros de Kronstadt tinham defendido valentemente quando esteve em
perigo de deportação à Califórnia em 1917, e de mim, a quem os marinheiros conheciam
por reputação, teria dado mais peso à resolução, eles declararam. Nós concordamos
que teria sido uma experiência maravilhosa participar da primeira grande reunião
de massa no solo soviético que não foi feita à máquina. Gorki tinha me assegurado
há muito tempo atrás que os homens da Frota do Báltico tinham nascido anarquistas
e que meu lugar era com eles. Eu frequentemente quis ir a Kronstadt conhecer as
tripulações e conversar com elas, mas eu senti que no meu estado mental confuso
e perturbado eu não podia lhes dar nada de construtivo. Mas agora eu sabia que se
fosse até eles, os bolcheviques iriam bradar que eu estava incitando os
marinheiros contra o regime. Sasha disse que ele não se importava com o que os
comunistas diriam.
Ele se juntaria aos
trabalhadores em seu protesto a favor dos operários grevistas de Petrogrado.
Nosso companheiros
enfatizaram que as expressões de simpatia por parte de Kronstadt com os grevistas
não poderia de forma alguma ser interpretada como ação antissoviética. Na
verdade, todo o espírito dos marinheiros e das resoluções aprovadas em suas
assembleias era completamente soviético. Eles se opunham fortemente à atitude autocrática
das autoridades de Petrogrado aos grevistas esfomeados, mas em nenhum momento a
reunião mostrou a menor oposição aos comunistas. Na verdade, a grande reunião
tinha sido realizada sob os auspícios do Soviete de Kronstadt. Para mostrar sua
lealdade, os marinheiros receberam Kalinin em sua cidade com música, e sua
palestra foi escutada com respeito e atenção. Mesmo depois que ele e seus
camaradas atacaram os marinheiros e condenaram sua resolução, Kalinin foi
escoltado de volta à estação da forma mais amigável, nossos informantes
afirmaram.
Nós ouvimos o rumor de
que, em uma reunião de trezentos delegados da frota, da guarnição e do
Sindicato do Soviete, Kuzmin e Vassiliev foram presos pelos marinheiros. Nós
perguntamos a nossos dois companheiros o que eles sabiam sobre o assunto. Eles
admitiram que os dois homens tinham sido detidos. A razão para isso foi porque
na reunião Kuzmin havia denunciado os marinheiros como traidores, e os grevistas
de Petrogrado como shkurniky, e havia declarado que dali em diante o Partido Comunista
“iria combatê-los até o fim como contrarrevolucionários”. Os delegados também
tinham descoberto que Kuzmin tinha dado ordens para a remoção de toda a comida
e munição de Kronstadt, condenando desse modo a cidade à fome. Portanto, foi decidido
pelos marinheiros e pela guarnição de Kronstadt deter Kuzmin e Vassiliev e tomar
precauções para que nenhum suprimento fosse removido do município. Mas não houve
nenhuma indicação de quaisquer intenções rebeldes ou de que eles tinham deixado
de acreditar na integridade revolucionária dos comunistas. Pelo contrário, aos delegados
comunistas na reunião foi permitido igualdade de voz. Outra prova de sua confiança
no regime foi dada pelos delegados ao enviar um comitê de trinta homens para
conferenciar com o Petro-Soviete com vistas a um ajuste amigável da greve.
Nos sentimos cheios de
orgulho com a esplêndida solidariedade dos marinheiros e soldados de Kronstadt
com seus irmãos grevistas em Petrogrado e esperávamos que um rápido fim da
confusão viesse em breve, graças à mediação dos marinheiros.
Nossas esperanças foram
frustradas uma hora depois que recebemos a notícia da ação de Kronstadt. Uma
ordem assinada por Lenin e Trotsky se espalhou como um incêndio por Petrogrado.
Ela declarava que Kronstadt havia se amotinado contra o governo soviético, e
denunciava os marinheiros como “instrumentos de ex-generais czaristas que,
junto com traidores socialistas revolucionários, planejaram uma conspiração
contrarrevolucionária contra a República proletária”.
“Absurdo! Isso não é
nada menos que loucura!”, Sasha gritou quando leu a cópia da ordem. “Lenin e
Trotsky devem ter sido mal informados por alguém. Eles não poderiam acreditar
de forma alguma que os marinheiros eram culpados de contrarrevolução. Por quê?
As tripulações do Petropavlovsk e do Sevastopol particularmente tinham sido os
apoiadores mais fiéis dos bolcheviques em Outubro e desde então. E o próprio
Trotsky não os saudou como ‘o orgulho e a glória da Revolução’?”
Nós devemos ir a Moscou
de uma vez, Sasha declarou. Era imperativo ver Lenin e Trotsky e explicar a
eles que foi tudo um terrível mal entendido, uma trapalhada que pode mostrar-se
fatal à própria Revolução. Foi muito difícil para Sasha desistir de sua fé na
integridade revolucionária dos homens que tinham aparecido como apóstolos proletários
para milhões ao redor do mundo. Eu concordei com ele que Lenin e Trotsky tinham
sido enganados por Zinoviev, que esteve telefonando à noite para o Kremlin com
relatórios detalhados sobre Kronstadt. Zinoviev não era conhecido nem mesmo entre
seus próprios camaradas por ter coragem pessoal. Ele entrou em pânico com os primeiros
sintomas de descontentamento mostrado pelos trabalhadores de Petrogrado.
Quando ele soube que a
guarnição local tinha expressado simpatia com os grevistas, ele perdeu a cabeça
completamente e ordenou que uma metralhadora fosse colocada no Astoria para sua
proteção. O levante de Kronstadt tinha colocado terror em seu coração e isso o
levou a bombardear Moscou com histórias malucas. Eu sabia tudo isso, assim como
Sasha, mas eu não pude acreditar que Lenin e Trotsky realmente achavam que os homens
de Kronstadt eram culpados de contrarrevolução ou eram capazes de cooperar com
Generais Brancos, como alegou-se na ordem de Lenin.
Lei marcial
extraordinária foi declarado sobre toda a Província de Petrogrado, e ninguém
além de oficiais especialmente autorizados poderia deixar a cidade. A imprensa
bolchevique iniciou uma campanha de calúnia e difamação contra Kronstadt, proclamando
que os marinheiros e soldados tinham ficado do lado do “General Czarista Kozlovsky”,
e declarando o povo de Kronstadt fora da lei. Sasha começou a perceber que a
situação envolvia muito mais que mera mal informação por parte de Lenin e Trotsky.
Este iria comparecer à sessão especial do Petro-Soviete onde o destino de Kronstadt
seria decidido. Nós decidimos estar presentes.
Em 4 de março, o
Soviete de Petrogrado deveria se reunir e se sentia geralmente que o destino de
Kronstadt seria então decidido. Trotsky iria falar na reunião, e como eu ainda
não havia tido a oportunidade de escutá-lo na Rússia, eu estava ansiosa por comparecer.
Minha atitude sobre a questão de Kronstadt ainda não estava decidida. Eu não
podia acreditar que os bolcheviques iriam deliberadamente fabricar a estória
sobre o General Kozlovsky como o líder dos marinheiros. A reunião do Soviete,
eu esperava, iria esclarecer o assunto.
Era minha primeira
oportunidade na Rússia de ouvir Trotsky. Nós poderíamos lembrá-lo de suas
palavras de despedida em Nova Iorque, eu pensei: a esperança que ele tinha
expressado de que em breve fôssemos para a Rússia ajudar no grande trabalho que
se tornou possível pela queda do czarismo. Nós iríamos implorar a ele que nos
deixasse resolver a dificuldade de Kronstadt em um espírito amigável, dispor de
nosso tempo e de nossas energias, até mesmo de nossas vidas, no teste supremo
que a Revolução estava colocando diante do Partido Comunista.
Infelizmente, o trem de
Trotsky se atrasou e ele não apareceu na sessão. Os homens que falaram à
reunião estavam além da razão e do apelo. Fanatismo desvairado estava em suas
palavras, e medo cego, em seus corações.
O Palácio Tauride
estava lotado. A atmosfera estava muito tensa. A plataforma estava fortemente
protegida por kursanti, e soldados tchekistas munidos de baionetas ficavam de
pé entre ela e a plateia. Zinoviev, que presidia, parecia à beira de um colapso
nervoso. Por várias vezes ele se levantava para falar e então se sentava
novamente.
Todos esperavam por
Trotsky. Mas quando deu 10 horas e ele não havia chegado, Zinoviev abriu a
reunião.
Quando ele finalmente
começou a falar, ele manteve sua cabeça virando para a esquerda e para a
direita como se temesse um ataque súbito, e sua voz, sempre fina como a de um
adolescente, subiu para um tom estridente, extremamente dissonante e de maneira
alguma convincente. Antes que ele tivesse falado por quinze minutos, eu estava convencida
de que ele mesmo não acreditava na história de Kozlovsky. “É claro que Kozlovsky
está velho e não pode fazer nada”, ele disse, “mas os Oficiais Brancos estão atrás
dele e estão enganando os marinheiros”. No entanto, por dias os jornais
soviéticos haviam anunciado o General Kozlovsky como o espírito motor da
“sublevação”. Ele denunciava o “General Kozlovsky” como o espírito maligno dos
homens de Kronstadt, apesar da maioria da plateia saber que aquele oficial
militar tinha sido colocado em Kronstadt pelo próprio Trotsky como especialista
em artilharia. Isso não evitou que Zinoviev, como presidente do especialmente
criado Comitê de Defesa, proclamasse que Kronstadt tinha se levantado contra a
Revolução e buscava realizar os planos de Kozlovsky e seus comparsas czaristas.
Kalinin se desvencilhou
de suas maneiras comumente bondosas e atacou os marinheiros em termos cruéis,
esquecendo as honras prestadas a ele em Kronstadt há apenas alguns dias. Ele, a
quem os marinheiros tinham permitido deixar Kronstadt ileso, delirou como um
peixeiro. Ele denunciou os marinheiros como contrarrevolucionários e clamou por
sua subjugação imediata. Vários outros comunistas o seguiram. “Nenhum medida
pode ser severa demais para os contrarrevolucionários que ousam levantar sua mão
contra nossa gloriosa Revolução”, ele declarou. As luzes menos brilhantes entre
os palestrantes falaram com o mesmo esforço, incitando seus zelotes comunistas,
ignorantes dos fatos reais, a um frenesi vingativo contra os homens que ontem
haviam sido aclamados como heróis e irmãos.
Quando a reunião foi
aberta para discussão, um operário do arsenal de Petrogrado exigiu ser
escutado. Sobre a gritaria da multidão que berrava e batia o pé, uma única voz lutava
para ser ouvida – a voz tensa e grave de um homem nas fileiras da frente. Ele
era delegado dos empregados grevistas nas fábricas do arsenal. Ele foi levado a
protestar, ele declarou, contra as deturpações proferidas da plataforma contra
os bravos e leais homens de Kronstadt. Ele falou com profunda emoção e,
ignorando as constantes interrupções, ele destemidamente declarou que os
operários haviam sido levados à greve por causa da indiferença do governo às
suas reclamações; os marinheiros de Kronstadt, longe de serem
contrarrevolucionários, estavam devotados à revolução. Encarando Zinoviev e
apontando seu dedo diretamente para ele, o homem esbravejou: “Foi a indiferença
cruel por parte de você e de seu partido que nos levaram a entrar em greve e que
incitaram a simpatia de nossos irmãos marinheiros, que lutaram lado a lado
conosco na Revolução. Eles não são culpados de nenhum outro crime, e vocês
sabem disso. Conscientemente, vocês os difamam e convocam sua destruição”.
Gritos de “Contrarrevolucionário! Traidor! Shkurnik! Bandido menchevique!”
transformaram a assembleia em um hospício. O velho operário continuou de pé,
com sua voz se elevando sobre o tumulto.
Encarando Zinoviev, ele
o lembrou de que as autoridades bolcheviques estavam agora agindo para com os
operários e marinheiros como o governo Kerensky havia agido para com os
bolcheviques. “Há mais ou menos três anos atrás, Lenin, Trotsky, Zinoviev e
todos vocês” ele gritou, “foram denunciados como traidores e espiões alemães.
Nós, os operários e marinheiros, viemos ao seu resgate e salvamos vocês do governo
de Kerensky. Fomos nós que colocamos vocês no poder. Vocês se esqueceram disso?
Agora vocês nos ameaçam com a espada. Lembrem-se, vocês estão brincando com
fogo. Vocês estão repetindo as trapalhadas e os crimes do governo Kerensky.
Cuidado para que um
destino semelhante não pegue vocês!”.
O desafio fez Zinoviev
estremecer. Os outros na plataforma se moviam inquietamente em seus assentos. A
plateia comunista parecia temeroso por um instante pelo aviso portento, e
naquele momento outra voz ressoou. Um homem alto vestindo um uniforme de
marinheiro se levantou no fundo. Nada havia mudado no espírito revolucionário
de seus irmãos no mar, ele declarou. Até o último homem, eles estavam prontos
para defender a Revolução com cada gota de sangue. Ele se referiu ao glorioso passado
revolucionário de Kronstadt, apelou aos comunistas para que não cometessem fratricídio.
E então ele prosseguiu à leitura da resolução de Kronstadt adotada na reunião
de 1º de março. O tumulto que a sua ousadia provocou tornou impossível para qualquer
um que não estivesse perto dele o escutasse. Mas ele se manteve firme e continuou
a ler até o final.
Mas a voz destes filhos
do povo caiu sobre ouvidos surdos. A única resposta a estes dois resolutos
filhos da Revolução foi a resolução de Zinoviev exigindo a rendição completa e
imediata de Kronstadt sob a pena de extermínio. O Petro-Soviete, suas paixões
inflamadas pela demagogia bolchevique, aprovou a resolução. Ela passou pela sessão
em meio a um pandemônio de confusão, com todas as vozes opositoras amordaçadas.
Os marinheiros de
Kronstadt foram os primeiros a servirem à Revolução. Eles haviam desempenhado
um importante papel na revolução de 1905; estiveram nas fileiras da frente em
1917. Sob o regime de Kerensky, proclamaram a Comuna de Kronstadt e se opuseram
à Assembleia Constituinte. Eles foram a guarda pioneira na Revolução de
Outubro. Na grande luta contra Yudenitch, os marinheiros ofereceram a defesa
mais forte de Petrogrado, e Trotsky os elogiou como “o orgulho e a glória da Revolução”.
Agora, todavia, eles tinham ousado levantar sua voz em protesto contra os novos
soberanos da Rússia. Isso foi alta traição do ponto de vista bolchevique. Os marinheiros
de Kronstadt estavam condenados.
Petrogrado estava
inflamada sobre a decisão do Soviete; mesmo alguns dos comunistas,
especialmente aqueles da seção francesa, estavam repletos de indignação.
Mas nenhum deles teve a
coragem de protestar, mesmo nos círculos do partido, contra o massacre
proposto. Assim que a resolução do Petro-Soviete se tornou conhecida, um grupo
de conhecidos homens letrados de Petrogrado se reuniram para conferenciar quanto
a se algo não poderia ser feito para evitar o crime planejado. Alguém sugeriu
que Gorki fosse abordado para encabeçar um comitê de protesto às autoridades
soviéticas.
Esperava-se que ele
emulasse o exemplo de seu ilustre compatriota Tolstoi, que em sua famosa carta
ao czar havia levantado sua voz contra o terrível massacre de operários.
Agora também tal voz
era necessária, e Gorki era considerado o homem certo a chamar os czares atuais
a refletirem. Mas a maioria dos presentes na reunião rejeitou a ideia.
Gorki era dos
bolcheviques, eles disseram; ele não faria nada. Em várias ocasiões anteriores
haviam apelado a ele, mas ele se recusou a interceder. A conferência não trouxe
resultados.
A atmosfera,
sobrecarregada com a histeria da paixão e do ódio, arrastou-se para dentro de
meu ser e me agarrou pela garganta. Por toda a noite eu quis esbravejar contra o
escárnio de homens que se rebaixavam às mais baixas trapaças políticas em nome
de um grande ideal. Minha voz parecia ter me deixado, pois eu não podia
pronunciar nenhum som. Meus pensamentos voltaram para uma outra ocasião onde o
espírito da vingança e do ódio havia entrado em frenesi – a véspera do
registro, 4 de junho de 1917, em Hunts Point Palace, Nova Iorque. Eu então fui
capaz de falar, completamente desatenta ao perigo dos patriotas ébrios com a
guerra. O que eu poderia fazer agora? Por que eu não marquei o fratricídio que
estava prestes a ser realizado pelos bolcheviques, como eu marquei o crime de
Woodrow Wilson que dedicou os jovens homens da América ao Moloque da guerra? Eu
tinha perdido a coragem que tinha me sustentado ao longo dos anos lutando
contra toda injustiça e todo erro? Ou foi o desamparo que paralisou minha
vontade, o desespero que se instalou em meu coração com a percepção crescente
de que eu tinha confundido um fantasma com uma força vital? Nada poderia alterar
aquela consciência esmagadora ou tornar qualquer protesto válido.
No entanto, o silêncio
frente ao massacre iminente também era intolerável. Eu tinha que me fazer
ouvida. Mas não pelos obcecados, que sufocariam minha voz como haviam feito com
os outros. Eu tornaria minha posição conhecida em uma declaração ao poder
supremo da Defesa Soviética naquela mesma noite.
Quando estávamos a sós
e eu conversei com Sasha sobre o assunto, eu fiquei feliz em saber que meu
velho amigo tinha concebido o mesmo plano. Ele sugeriu que nossa carta fosse um
protesto conjunto e lidasse exclusivamente com a resolução assassina aprovada
pelo Petro-Soviete. Dois companheiros que estavam conosco na sessão compartilhavam
sua visão e se ofereceram a assinar seus nomes ao nosso apelo conjunto às
autoridades.
Eu não tinha esperança
de que nossa mensagem exercesse qualquer moderação ou controle sobre os eventos
decretados contra os marinheiros. Mas eu estava determinada a ter minha atitude
registrada de maneira a servir de testemunha futura de que eu não permaneci
calada à maior traição da Revolução pelo Partido Comunista.
Às duas da manhã, Sasha
entrou em contato por telefone com Zinoviev, para informá-lo de que tinha algo
importante a comunicar a ele em relação a Kronstadt.
Talvez Zinoviev tivesse
presumido que era algo que poderia ajudar a conspiração contra Kronstadt. De
outra forma, ele dificilmente teria se incomodado a enviar rapidamente Madame
Ravich até ele àquela hora da noite, dez minutos depois que Sasha havia falado com
ele. Ele poderia confiar nela absolutamente, dizia a nota de Zinoviev, e ela
deveria receber a mensagem [N.E.: Esta mesma nota encontra-se na pág. 23].
A prova de que nosso
apelo caiu em ouvidos surdos nos veio no mesmo dia da chegada de Trotsky e de
seu ultimato a Kronstadt. Por ordem do Governo dos Operários e dos Camponeses,
ele declarou aos marinheiros e soldados de Kronstadt que ele iria “abater como
perdizes” todos aqueles que haviam ousado “levantar sua mão contra a pátria
socialista”. Os navios e as tripulações rebeldes receberam o comando de se submeterem
imediatamente às ordens do governo soviético ou serem subjugados pela força das
armas. Somente aqueles que se rendessem incondicionalmente poderiam contar com
a misericórdia da República Soviética.
O aviso final foi
assinado por Trotsky, como Presidente do Soviete Militar Revolucionário, e por
Kamenev, o Comandante Chefe do Exército Vermelho. Ousar questionar o direito
divino dos soberanos era novamente punível com a morte.
Trotsky manteve sua
palavra. Tendo sido ajudado a alcançar a autoridade pelos homens de Kronstadt,
ele estava agora em posição de pagar completamente seu débito com “o orgulho e
a glória da Revolução Russa”. Os melhores especialistas militares e estrategistas
do regime de Romanov estavam a seu serviço, entre eles o notório Tukhachevsky,
a quem Trotsky apontou comandante chefe do ataque a Kronstadt. Além disso,
havia hordas de tchekistas, com três anos de treinamento na arte do
assassinato; kursanti e comunistas especialmente selecionados por sua
obediência cega às ordens; e as tropas mais confiáveis de várias frentes. Entre
os dias 1º e 17 de março, vários regimentos da guarnição de Petrogrado e todos
os marinheiros do porto foram desarmados e enviados à Ucrânia e ao Cáucaso. Os
bolcheviques tinham medo de confiar neles na situação de Kronstadt: no primeiro
momento psicológico, eles teriam ajudado Kronstadt. De fato, muitos soldados
vermelhos do Krasnaya Gorka e das guarnições adjacentes também tinham simpatia
por Kronstadt e foram forçados sob mira de armas a atacarem os marinheiros. Com
tal força amontoada contra a cidade condenada, esperava-se que o motim fosse
facilmente reprimido, especialmente depois que os soldados e marinheiros da
guarnição de Petrogrado tinham sido desarmados e aqueles que expressaram
solidariedade com seus camaradas sitiados tinham sido removidos da zona de
perigo.
Da janela do meu quarto
no Hotel Internacional eu os vi sendo conduzidos em pequenos grupos, cercados
por fortes destacamentos de tropas da Tcheka. Seu passo tinha perdido seu
vigor, suas mãos pendiam aos seus lados e suas cabeças estavam curvadas em
pesar.
Os grevistas de
Petrogrado não eram temidos pelas autoridades. Eles estavam enfraquecidos por
lento esfomeamento e sua energia se debilitou. Eles foram desmoralizados pelas
mentiras espalhadas contra eles e seus irmãos de Kronstadt, e seu espírito foi
quebrado pelo veneno de dúvida instilado pela propaganda bolchevique.
Eles não tinham mais
força ou confiança restantes para ajudar seus camaradas de Kronstadt que tão
altruisticamente apoiaram sua causa e estavam prestes a desistir de suas vidas
por eles.
Kronstadt foi
abandonada por Petrogrado e cortada do resto da Rússia. Ela ficou sozinha. Não
poderia oferecer quase nenhuma resistência. “Ela irá cair com o primeiro tiro”,
a imprensa soviética proclamava. Eles estavam enganados. Kronstadt não havia pensado
em motim ou resistência ao governo soviético. Até o último momento, estava determinada
a não derramar sangue. Ela apelou o tempo inteiro por compreensão e solução
amigável. Mas, forçada a se defender contra o ataque militar não provocado, lutou
como um leão. Durante dez dias e noites angustiantes, os marinheiros e os operários
da cidade sitiada resistiram contra fogo de artilharia contínuo vindo de três lados
e bombas despejadas por aviões sobre a comunidade não combatente.
Heroicamente, eles
repeliram as repetidas tentativas dos bolcheviques de invadir a fortaleza por
tropas especiais de Moscou. Trotsky e Tukhachevsky tinham toda a vantagem sobre
os homens de Kronstadt. Toda a maquinaria do Estado comunista os apoiava, e a
imprensa centralizada continuava a espalhar veneno contra os supostos “amotinados
e contrarrevolucionários”. Eles tinham suprimentos ilimitados e homens que
vestiam mortalhas brancas para se misturarem com a neve do golfo finlandês congelado
para camuflar o ataque noturno contra os homens de Kronstadt, que não suspeitavam
de nada. Estes não tinham nada além de sua coragem resoluta e sua fé persistente
na justiça de sua causa e nos Sovietes livres que eles defenderam como a salvação
da Rússia da ditadura. Eles não tinham nem mesmo um quebra-gelo para cessar a
investida do inimigo comunista. Eles estavam exaustos pela fome e pelo frio e por
noites de vigília em claro. No entanto, eles se mantiveram, lutando desesperadamente
contra a probabilidade esmagadora.
Durante o suspense
assustador, os dias e as noites que eram preenchidos com o estrondo de
artilharia pesada, não ressoou uma única voz entre o rugido das armas para gritar
contra ou convocar uma parada do terrível banho de sangue. Gorki, Maxim Gorki, onde
estava ele? Sua voz seria ouvida. “Deixem-nos ir com ele”, eu implorei com alguns
da inteligência. Ele nunca fez o menor protesto em graves casos individuais,
nem naqueles concernentes a membros de sua própria profissão, nem quando ele
sabia da inocência dos homens condenados. Ele não protestaria agora. Era
inútil.
A inteligência, os
homens e as mulheres que já tinham carregado a tocha revolucionária, líderes do
pensamento, escritores e poetas, estavam tão impotentes quanto eu e paralisados
pela futilidade do esforço individual. A maioria dos seus camaradas e amigos já
estava na prisão ou no exílio; alguns haviam sido executados.
Eles se sentiam arrasados
demais pelo colapso de todos os valores humanos.
Eu me voltei para os
comunistas que conhecíamos, implorando para que fizessem alguma coisa. Alguns
deles perceberam o crime monstruoso que o seu partido estava cometendo contra
Kronstadt. Eles admitiram que a acusação de contrarrevolução era uma fabricação
absoluta. O suposto líder, Kozlovsky, era uma pessoa sem valor assustada demais
com o seu próprio destino para ter qualquer coisa a ver com qualquer protesto
dos marinheiros. Estes eram de altíssima qualidade, seu único objetivo era o bem-estar
da Rússia. Longe de ficarem do lado dos generais czaristas, eles tinham até mesmo
recusado a ajuda oferecida a eles por Tchernov, o líder dos socialistas revolucionários.
Eles não queriam ajuda externa. Eles exigiram o direito de escolher seus
próprios delegados nas próximas eleições ao Soviete de Kronstadt e justiça para
os grevistas em Petrogrado.
Estes amigos comunistas
passaram noites conosco – falando, falando – mas nenhum deles ousou levantar
sua voz em protesto aberto. Nós não percebíamos, eles disseram, as
consequências que isso traria. Eles seriam excluídos do partido, eles e suas famílias
seriam privados do trabalho e das rações e estariam literalmente condenados à morte
por fome. Ou eles simplesmente desapareceriam e ninguém jamais saberia o que havia
acontecido com eles. No entanto, não era o medo que entorpecia sua vontade,
eles nos asseguravam. Foi a completa inutilidade do protesto ou do apelo. Nada,
nada poderia parar a biga do Estado comunista. Ela passou por cima deles e não
deixou nenhuma vitalidade restante, nem mesmo para gritar contra ela.
Eu estava envolvida
pela terrível apreensão de que nós também – Sasha e eu – pudéssemos chegar ao
mesmo estado e consentíssemos covardemente como essas pessoas. Qualquer outra
coisa seria preferível a isso. Prisão, exílio, mesmo a morte. Ou escapar!
Escapar do horrível fingimento e presença revolucionários.
A ideia de que eu
poderia querer deixar a Rússia nunca havia passado antes pela minha mente. Eu
ficava espantada e chocada só de pensar. Eu, deixar a Rússia ao seu Calvário!
No entanto, eu senti que até mesmo daria esse passo ao invés de me tornar uma
engrenagem na máquina, uma coisa inanimada para ser manipulada à vontade.
O bombardeio de
Kronstadt continuou sem cessar por dez dias e noites e então veio a uma parada
súbita na manhã de 17 de março. A tranquilidade que caiu sobre Kronstadt era
ainda mais assustadora que os tiros incessantes da noite anterior. Ela deixou
todo mundo em um suspense agoniante, e era impossível saber o que tinha acontecido
e por que o bombardeio havia cessado. No final da tarde, a tensão deu lugar ao
horror mudo. Kronstadt tinha sido subjugada – dezenas de milhares assassinados
– a cidade encharcada de sangue. O rio Neva era uma cova para as massas de
homens, kursanti e jovens comunistas cuja artilharia pesada havia ultrapassado
o gelo. Os heroicos marinheiros e soldados tinham defendido sua posição até o
último suspiro.
Aqueles que não tiveram
a sorte de morrer lutando tinham caído nas mãos do inimigo para serem
executados ou enviados para a lenta tortura nas regiões congeladas do norte da
Rússia.
Em 7 de março, Trotsky
iniciou o bombardeamento de Kronstadt, e no dia 17 a fortaleza e a cidade foram
tomadas, após numerosos ataques envolvendo um enorme sacrifício humano. Então,
Kronstadt foi “liquidada” e o “complô contrarrevolucionário” se extinguiu em
sangue. A “conquista” da cidade foi caracterizada por selvageria brutal, apesar
de nem um único comunista preso pelos marinheiros de Kronstadt ter sido ferido ou
morto por eles. Mesmo antes do assalto à fortaleza, os bolcheviques
sumariamente executaram numerosos soldados do Exército Vermelho cujo espírito
revolucionário e solidariedade lhes causaram a recusa a participarem no banho
de sangue.
Nós estávamos
atordoados. Sasha, com o último fio de sua esperança nos bolcheviques rompido,
desesperadamente vagou pelas ruas. Chumbo estava em meus membros, uma fadiga
indescritível em cada nervo. Eu me sentei frouxa, olhando para a noite.
Petrogrado estava envolta por um manto negro, um corpo cadavérico. As lâmpadas
da rua brilhavam em amarelo, como velas em sua cabeça e seus pés.
Na manhã seguinte, 18
de março, ainda cansada de sono depois da falta deste durante dezessete dias
ansiosos, eu fui despertada pelos passos pesados de muitos pés.
Os comunistas
marchavam, bandas tocavam canções militares e cantavam a Internacional. Sua
melodia, que já foi exultante ao meu ouvido, agora soava como uma marcha
fúnebre para a esperança flamejante da humanidade. 18 de março – o aniversário
da Comuna de Paris de 1871, esmagada dois meses mais tarde por Thiers e Gallifet,
os açougueiros de trinta mil comunardos. Igualada em Kronstadt em 18 de março
de 1921. Em 17 de março, o governo comunista completou sua “vitória” sobre o proletariado
de Kronstadt e em 18 de março comemorou os mártires da Comuna de Paris. Foi
aparente para todos os que foram testemunhas mudas do ultraje cometido pelos
bolcheviques que o crime contra Kronstadt foi muito maior que o massacre dos comunardos
em 1871, pois foi feito em nome da Revolução Social, em nome da República
Socialista. A história não irá ser enganada. Nos anais da Revolução Russa os nomes
de Trotsky, Zinoviev e Dibenko serão adicionados aos de Thiers e Gallifet.
Dezessete dias apavorantes,
mais apavorantes do que qualquer coisa que eu conheci na Rússia. Dias
agoniantes, por causa da minha impotência total frente às coisas terríveis que
aconteciam perante meus olhos. Foi justamente naquela época em que aconteceu de
eu visitar um amigo que era paciente em um hospital por meses. Eu o encontrei
bastante aflito. Muitos daqueles feridos no ataque a Kronstadt foram trazidos ao
mesmo hospital, a maioria kursanti. Eu tive a oportunidade de falar com um
deles.
Seu sofrimento físico,
ele disse, não era nada comparado com sua agonia mental. Ele percebeu tarde
demais que foi enganado pelo grito de “contrarrevolução”. Nenhum general
czarista, nenhum Guarda Branco em Kronstadt havia liderado os marinheiros – ele
encontrou somente seus camaradas, marinheiros, soldados e operários, que tinham
lutado heroicamente pela Revolução.
As rações dos pacientes
comuns nos hospitais eram longe de satisfatórias, mas os kursanti feridos
recebiam o melhor de tudo, e um comitê seleto de membros comunistas foi designado
para cuidar de seu conforto. Alguns dos kursanti, entre eles o homem com quem
eu falei, se recusaram a aceitar os privilégios especiais. “Eles querem nos
pagar por assassinato”, eles disseram. Temendo que toda a instituição fosse
influenciada por estas vítimas acordadas, a gerência ordenou que fossem
removidos para uma ala separada, a “ala comunista”, como os pacientes a
chamavam.
A significância
completa da “liquidação” de Kronstadt foi revelada pelo próprio Lenin três dias
após o horror. No Décimo Congresso do Partido Comunista, realizado em Moscou
enquanto o cerco a Kronstadt estava em progresso, Lenin inesperadamente mudou
sua inspirada canção comunista para um igualmente inspirado canto de louvor à Nova
Política Econômica. Livre comércio, concessões aos capitalistas, contratação privada
do trabalho em fazendas e fábricas, tudo condenado por mais de três anos como uma
rançosa contrarrevolução e punida por prisão e até mesmo a morte, estava agora escrito
por Lenin na gloriosa bandeira da ditadura. Descaradamente como sempre, ele admitiu
o que as pessoas sinceras e pensantes dentro e fora do partido já sabiam há dezessete
dias: que “os homens de Kronstadt realmente não queriam os contrarrevolucionários.
Mas eles também não nos queriam”. Os ingênuos marinheiros tinham levado a sério
o lema da Revolução: “Todo o Poder aos Sovietes”, o qual Lenin e seu partido
tinham solenemente prometido cumprir. Essa tinha sido sua ofensa imperdoável.
Por isso eles tiveram que morrer. Eles tiveram que ser martirizados para fertilizar
o solo para a nova colheita de lemas de Lenin, que invertiam completamente o anterior.
Sua obra-prima, a Nova Política Econômica, o NEP. Ironia do bolchevismo!
Lenin defendeu o livre
comércio – um passo mais reacionário que qualquer um de que os marinheiros de
Kronstadt foram acusados.
A confissão pública de
Lenin em relação a Kronstadt não parou a caça pelos marinheiros, soldados e
operários da cidade derrotada. Eles foram presos às centenas, e a Tcheka de
novo se ocupou com “tiro ao alvo”.
Estranhamente, os
anarquistas não tinham sido mencionados em conexão com o “motim” de Kronstadt.
Mas no Décimo Congresso, Lenin tinha declarado que a guerra mais sem
misericórdia deveria ser travada contra a “pequena burguesia”, incluindo os elementos
anarquistas. As inclinações anarcossindicalistas da oposição operária provaram
que estas tendências tinham se desenvolvido dentro do próprio Partido Comunista,
ele disse. O chamado às armas de Lenin contra os anarquistas foi recebido com
uma resposta imediata. Os grupos de Petrogrado foram atacados e vários de seus membros
foram presos. Além disso, a Tcheka fechou os escritórios de impressão e publicação
do Golos Trouda, pertencente ao ramo anarcossindicalista de nossas fileiras.
Nós compramos nosso
bilhete para Moscou antes que isso acontecesse. Quando soubemos sobre as
prisões em massa, decidimos ficar um pouco mais caso também fôssemos
procurados. Nós não fomos incomodados, entretanto, talvez porque era necessário
ter algumas celebridades anarquistas à solta para mostrar que somente “bandidos”
estavam nas prisões soviéticas.
Kronstadt quebrou o
último fio que me prendia aos bolcheviques. O massacre bruto que eles
instigaram falou mais eloquentemente contra eles do que qualquer outra coisa.
Quaisquer que fossem seus pretextos no passado, os bolcheviques agora provaram
ser eles mesmos os inimigos mais perniciosos da Revolução. Eu não podia ter mais
nada a ver com eles.
* Este texto é
originalmente parte do livro The
Kronstadt Rebellion (Berlin, Der Sindikalist, 1922). No Brasil, foi
publicado como Kronstadt (Ateneu
Diogo Giménez, 2011: http://anarkio.net/Pdf/kronstadt.pdf). Tradução: Ateneu
Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP. Seleção e edição por Pablo Mizraji.
ITHA, 2017