domingo, 1 de agosto de 2021

Kronstadt, por Emma Goldman

 


KRONSTADT

Emma Goldman

Tradução: Ateneu Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP.

No começo do meu período russo, a questão das greves havia me intrigado bastante. As pessoas tinham me dito que a última tentativa do tipo foi esmagada e os participantes enviados à prisão. Eu não tinha acreditado nisso, e, como em todas as coisas similares, eu fui atrás de Zorin por informações. “Greves sob a ditadura do proletariado?”, ele exclamou, “Não existe isso”. Ele até me repreendeu por dar crédito a contos tão loucos e impossíveis. Contra quem, de fato, os trabalhadores entrariam em greve na Rússia soviética? Ele argumentou. Contra eles mesmos? Eles eram os mestres do país, tanto política como industrialmente. Certamente, havia alguns entre os operários que não tinham completa consciência de classe e não estavam cientes de seus próprios verdadeiros interesses. Estes às vezes ficavam frustrados, mas eram elementos incitados pelos shkurniky, por egoístas e inimigos da Revolução. Eles eram parasitas que estavam propositalmente enganando o pobre povo. Eram o pior tipo de sabotazhniky, não melhores do que contrarrevolucionários completos, e, é claro, as autoridades soviéticas tinham que proteger o país contra o seu tipo. A maioria deles estava na prisão.

Desde então eu aprendi por observação e experiência pessoal que os verdadeiros sabotazhniky, contrarrevolucionários e bandidos nas instituições penais soviéticas eram uma minoria insignificante. A maior parte da população prisional consistia de hereges sociais que eram culpados de pecado capital contra a Igreja Comunista. Pois nenhuma ofensa era considerada mais hedionda do que considerar visões políticas em oposição ao partido, e a expressar qualquer protesto contra os males e crimes do bolchevismo. Eu descobri que de longe o maior número era de prisioneiros políticos, assim como camponeses e operários culpados de exigir melhor tratamento e condições. Estes fatos, apesar de rigidamente guardados do público, eram não obstante conhecimento comum, como de fato era a maioria das coisas que estavam acontecendo secretamente por baixo da superfície soviética. Como a informação proibida vazava era um mistério, mas ela de fato vazou e se espalharia com a rapidez e a intensidade de um incêndio florestal.

Dentro de menos de vinte e quatro horas depois de nosso retorno a Petrogrado, nós descobrimos que a cidade estava fervilhando com descontentamento e conversas sobre greve. A causa disso era o sofrimento crescente devido ao incomum inverno severo assim como parcialmente à habitual estreiteza de visão soviética. Pesadas tempestades de neve haviam atrasado os magros suprimentos de comida e combustível para a cidade. Além disso, o Petro-Soviete tinha cometido a estupidez de fechar várias fábricas e cortar as rações de seus empregados quase pela metade. Ao mesmo tempo, se tornou conhecido que os membros do partido nas oficinas tinham recebido um suprimento novo de calçados e roupas, enquanto o resto dos trabalhadores estava coberto e calçado miseravelmente. Para tapar o clímax, as autoridades vetaram a reunião convocada pelos operários para discutir maneiras de melhorar a situação.

Em Petrogrado, a sensação comum entre os elementos não comunistas era que a situação era muito grave. A atmosfera estava carregada até o ponto de explosão. Nós decidimos, é claro, permanecer na cidade. Não que esperávamos impedir a confusão iminente, mas queríamos estar presentes caso pudéssemos servir de ajuda ao povo.

A tempestade irrompeu antes mesmo que qualquer pessoa esperasse. Em fevereiro de 1921, os trabalhadores de várias fábricas de Petrogrado entraram em greve. O inverno foi excepcionalmente frio, e as pessoas da capital sofriam intensamente com o frio, a fome e a exaustão. Eles pediam por um aumento de suas rações de alimentos, por um pouco de combustível e por roupas. As reclamações dos trabalhadores, ignoradas pelas autoridades, rapidamente assumiram um caráter político.

Começou com a greve dos operários nas fábricas de Troubetskoy. Suas exigências eram modestas o suficiente: um aumento em suas rações de alimento, como haviam lhes prometido há tempos atrás, e também a distribuição dos calçados à mão. O PetroSoviete se recusou a negociar com os grevistas até que eles retornassem ao trabalho. A tentativa de manifestação dos grevistas na rua foi suprimida: companhias de kursanti armados, consistindo de jovens comunistas treinados militarmente, foram enviadas para dispersar os trabalhadores reunidos ao redor das fábricas. Os cadetes buscavam incitar a multidão atirando no ar, mas infelizmente os operários estavam desarmados e não houve derramamento de sangue. Os grevistas recorreram a uma arma mais poderosa, a solidariedade de seus companheiros, resultando em empregados de outras cinco fábricas baixando suas ferramentas e se juntando ao movimento grevista. Vieram quase todos os operários das docas da Galernaya, das oficinas do Almirantado, das moendas de Patronny e das fábricas de Baltiysky e Laferm.

Por todos os relatos, eu levantei que o manejo dos grevistas não foi camarada de maneira alguma. Liza Zorin, que de todos os comunistas que eu conheci havia permanecido como a mais próxima do povo, estava presente na dispersão da manifestação. Mesmo uma comunista fervorosa como Liza Zorin tinha sido incitada a protestar contra os métodos utilizados. Liza e eu tínhamos nos afastado há muito tempo atrás, portanto eu portanto muito surpresa dela sentir a necessidade de abrir seu coração para mim. Ela nunca acreditaria que homens do Exército Vermelho fossem avançar sobre operários, ela protestou. Algumas mulheres desmaiaram com a visão, e outras ficaram histéricas. Uma mulher que estava de pé perto dela tinha evidentemente reconhecido ela como membro ativo do partido e sem dúvida a considerou responsável pela cena brutal. Ela ficou tão enraivecida com a brutalidade dos militares que avançou sobre Liza violentamente e a acertou no rosto em cheio, levando-a a sangrar profusamente. Apesar de cambalear pelo golpe, a velha Liza, que sempre me provocou por minha sentimentalidade, disse à sua agressora que aquilo não importava de maneira alguma. A última, fiel aos seus instintos proletários, salvou a mulher da prisão e a acompanhou até sua casa. “Para reassegurar à mulher distraída, eu implorei a ela que me deixasse acompanhá-lha até sua casa”, Liza relatou. Lá ela encontrou as condições mais chocantes. Em um quarto escuro e úmido, vivia uma família operária com seus seis filhos, seminus no amargo frio. “Sua casa – era um buraco pavoroso que eu pensava que não mais existia em nosso país. Um quarto escuro, frio e úmido, ocupado pela mulher, seu marido e seus seis filhos. E pensar que eu tinha vivido no Hotel Astoria todo este tempo!”, ela lamentou. Mais tarde, ela se mudou. Ela sabia que não era culpa do seu partido que tais condições chocantes ainda prevaleciam na Rússia soviética, ela continuou. Nem era a teimosia comunista a responsável pela greve. O bloqueio e a conspiração imperialista mundial contra a República Operária eram os culpados pela pobreza e pelo sofrimento. De qualquer maneira, ela não podia mais permanecer em seu cômodo confortável. O quarto da mulher desesperada e seus filhos com queimaduras de frio assombrariam os seus dias. Pobre Liza! Ela era leal e fiel, e de caráter altíssimo.

Mas oh, tão cega politicamente!

O apelo dos operários por mais pão e um pouco de combustível logo estourou em decididas exigências políticas, graças à arbitrariedade e crueldade das autoridades. Um manifesto, que foi colado nas paredes ninguém sabia por quem, convocava “uma mudança completa na política do governo”. Ele declarava que, “antes de tudo, os operários e os camponeses precisam de liberdade. Eles não querem viver sob os decretos dos bolcheviques; eles querem controlar seus próprios destinos”. A cada dia a situação crescia em tensão e novas exigências estavam sendo expressas por meio de proclamações nas paredes e nos prédios. Por fim, apareceu um chamado pela Uchredilka, a Assembleia Constituinte tão odiada e denunciada pelo partido dominante.

Lei marcial foi declarada e os operários receberam a ordem de voltar para as oficinas sob pena de serem privados de suas rações. Isso não teve qualquer efeito, e como consequência alguns sindicatos foram liquidados, seus oficiais e os grevistas mais insistentes colocados na prisão.

Com impotência angustiante, nós vimos grupos de homens cercados por tchekistas e soldados armados conduzidos por nossas janelas. Na esperança de fazer os líderes soviéticos perceberem a loucura e o perigo de suas táticas, Sasha tentou falar com Zinoviev, enquanto eu procurei Madame Ravich, Zorin e Zipperovich, líder do Sindicato do Soviete de Petrogrado. Mas todos eles nos negaram com a desculpa de que estavam muito ocupados defendendo a cidade de complôs contrarrevolucionários tramados por mencheviques e socialistas revolucionários. Esta fórmula já tinha ficado conhecida após ser repetida por três anos, mas ainda ajudava a jogar areia nos olhos da militância de base comunista.

A greve continuava a se espalhar, a despeito de todas as medidas extremas. Eram feitas prisões atrás de prisões, mas a própria estupidez com que as autoridades lidaram com a situação serviram para encorajar os elementos sombrios. Proclamações antirrevolucionárias e antissemitas começaram a aparecer, e rumores furiosos de supressão militar e de brutalidade da Tcheka contra os grevistas encheram a cidade.

Os operários estavam determinados, mas era aparente que em breve eles se submeteriam por causa da fome. Não havia nenhuma maneira do público ajudar os grevistas mesmo se tivesse qualquer coisa para dar. Todas as avenidas que levavam aos distritos industriais da cidade foram cortadas por tropas concentradas. Ademais, a própria população estava em uma carência pavorosa. O pouco que podíamos reunir em alimentos e roupa era uma mera gota no oceano. Nós todos percebemos que as chances entre a ditadura e os operários eram muito desiguais para permitir que os grevistas resistissem por muito mais tempo.

Nesta situação tensa e desesperada, logo foi introduzido um novo fator que manteve a esperança de solução. Eram os marinheiros de Kronstadt. Quando os marinheiros de Kronstadt souberam do que estava acontecendo em Petrogrado, eles expressaram sua solidariedade com os grevistas em suas exigências econômicas e revolucionárias, mas se recusaram a apoiar qualquer convocação para a Assembleia

Constituinte. Fiéis às suas tradições revolucionárias e à sua solidariedade com os trabalhadores, tão lealmente demonstradas na revolução de 1905, e mais tarde nas sublevações de março e outubro de 1917, agora eles novamente se levantaram em favor dos proletários atacados em Petrogrado. De maneira nenhuma às cegas. Silenciosamente e sem forasteiros saberem a respeito, eles haviam enviado um comitê para investigar as alegações dos grevistas. Seu relato incitou os marinheiros dos navios de guerra Petropavlovsk e Sevastopol a adotarem uma resolução a favor das exigências de seus irmãos operários em greve. Eles se declararam devotados à Revolução e aos Sovietes, assim como leais ao Partido Comunista. Eles protestavam, todavia, contra a atitude arbitrária de certos comissários e enfatizavam a necessidade de maior autodeterminação para os corpos organizados dos trabalhadores. Eles também exigiram liberdade de reunião para sindicatos e organizações camponesas e a libertação de todos os operários e prisioneiros políticos das prisões soviéticas e dos campos de concentração.

O exemplo dessas brigadas foi seguido pelos Primeiro e Segundo Esquadrões da Frota do Báltico estacionados em Kronstadt. Em uma reunião a céu aberto em 1º de março, realizada com o conhecimento do Comitê Executivo do Soviete de Kronstadt, à qual compareceram 16.000 marinheiros, homens do Exército Vermelho e trabalhadores de Kronstadt, resoluções similares foram adotadas por unanimidade com a exceção de apenas três votos. Os dissidentes incluíam Vassiliev, Presidente do Soviete de Kronstadt, que presidia a reunião; Kuzmin, o Comissário da Frota do Báltico; e Kalinin, Presidente das Repúblicas Socialistas Soviéticas Federadas. Kalinin, Kuzmin e Vassiliev falaram contra a resolução, a qual mais tarde se tornou a base do conflito entre Kronstadt e o governo. Ela expressava a exigência popular por Sovietes eleitos pela livre escolha do povo.

Dois anarquistas que tinham comparecido à reunião retornaram para nos contar da ordem, do entusiasmo e do belo espírito que havia prevalecido ali. Desde os primeiros dias de Outubro eles não viam tal manifestação espontânea de solidariedade e camaradagem fervente. Se nós estivéssemos lá..., eles lamentaram. A presença de Sasha, a quem os marinheiros de Kronstadt tinham defendido valentemente quando esteve em perigo de deportação à Califórnia em 1917, e de mim, a quem os marinheiros conheciam por reputação, teria dado mais peso à resolução, eles declararam. Nós concordamos que teria sido uma experiência maravilhosa participar da primeira grande reunião de massa no solo soviético que não foi feita à máquina. Gorki tinha me assegurado há muito tempo atrás que os homens da Frota do Báltico tinham nascido anarquistas e que meu lugar era com eles. Eu frequentemente quis ir a Kronstadt conhecer as tripulações e conversar com elas, mas eu senti que no meu estado mental confuso e perturbado eu não podia lhes dar nada de construtivo. Mas agora eu sabia que se fosse até eles, os bolcheviques iriam bradar que eu estava incitando os marinheiros contra o regime. Sasha disse que ele não se importava com o que os comunistas diriam.

Ele se juntaria aos trabalhadores em seu protesto a favor dos operários grevistas de Petrogrado.

Nosso companheiros enfatizaram que as expressões de simpatia por parte de Kronstadt com os grevistas não poderia de forma alguma ser interpretada como ação antissoviética. Na verdade, todo o espírito dos marinheiros e das resoluções aprovadas em suas assembleias era completamente soviético. Eles se opunham fortemente à atitude autocrática das autoridades de Petrogrado aos grevistas esfomeados, mas em nenhum momento a reunião mostrou a menor oposição aos comunistas. Na verdade, a grande reunião tinha sido realizada sob os auspícios do Soviete de Kronstadt. Para mostrar sua lealdade, os marinheiros receberam Kalinin em sua cidade com música, e sua palestra foi escutada com respeito e atenção. Mesmo depois que ele e seus camaradas atacaram os marinheiros e condenaram sua resolução, Kalinin foi escoltado de volta à estação da forma mais amigável, nossos informantes afirmaram.

Nós ouvimos o rumor de que, em uma reunião de trezentos delegados da frota, da guarnição e do Sindicato do Soviete, Kuzmin e Vassiliev foram presos pelos marinheiros. Nós perguntamos a nossos dois companheiros o que eles sabiam sobre o assunto. Eles admitiram que os dois homens tinham sido detidos. A razão para isso foi porque na reunião Kuzmin havia denunciado os marinheiros como traidores, e os grevistas de Petrogrado como shkurniky, e havia declarado que dali em diante o Partido Comunista “iria combatê-los até o fim como contrarrevolucionários”. Os delegados também tinham descoberto que Kuzmin tinha dado ordens para a remoção de toda a comida e munição de Kronstadt, condenando desse modo a cidade à fome. Portanto, foi decidido pelos marinheiros e pela guarnição de Kronstadt deter Kuzmin e Vassiliev e tomar precauções para que nenhum suprimento fosse removido do município. Mas não houve nenhuma indicação de quaisquer intenções rebeldes ou de que eles tinham deixado de acreditar na integridade revolucionária dos comunistas. Pelo contrário, aos delegados comunistas na reunião foi permitido igualdade de voz. Outra prova de sua confiança no regime foi dada pelos delegados ao enviar um comitê de trinta homens para conferenciar com o Petro-Soviete com vistas a um ajuste amigável da greve.

Nos sentimos cheios de orgulho com a esplêndida solidariedade dos marinheiros e soldados de Kronstadt com seus irmãos grevistas em Petrogrado e esperávamos que um rápido fim da confusão viesse em breve, graças à mediação dos marinheiros.

Nossas esperanças foram frustradas uma hora depois que recebemos a notícia da ação de Kronstadt. Uma ordem assinada por Lenin e Trotsky se espalhou como um incêndio por Petrogrado. Ela declarava que Kronstadt havia se amotinado contra o governo soviético, e denunciava os marinheiros como “instrumentos de ex-generais czaristas que, junto com traidores socialistas revolucionários, planejaram uma conspiração contrarrevolucionária contra a República proletária”.

“Absurdo! Isso não é nada menos que loucura!”, Sasha gritou quando leu a cópia da ordem. “Lenin e Trotsky devem ter sido mal informados por alguém. Eles não poderiam acreditar de forma alguma que os marinheiros eram culpados de contrarrevolução. Por quê? As tripulações do Petropavlovsk e do Sevastopol particularmente tinham sido os apoiadores mais fiéis dos bolcheviques em Outubro e desde então. E o próprio Trotsky não os saudou como ‘o orgulho e a glória da Revolução’?”

Nós devemos ir a Moscou de uma vez, Sasha declarou. Era imperativo ver Lenin e Trotsky e explicar a eles que foi tudo um terrível mal entendido, uma trapalhada que pode mostrar-se fatal à própria Revolução. Foi muito difícil para Sasha desistir de sua fé na integridade revolucionária dos homens que tinham aparecido como apóstolos proletários para milhões ao redor do mundo. Eu concordei com ele que Lenin e Trotsky tinham sido enganados por Zinoviev, que esteve telefonando à noite para o Kremlin com relatórios detalhados sobre Kronstadt. Zinoviev não era conhecido nem mesmo entre seus próprios camaradas por ter coragem pessoal. Ele entrou em pânico com os primeiros sintomas de descontentamento mostrado pelos trabalhadores de Petrogrado.

Quando ele soube que a guarnição local tinha expressado simpatia com os grevistas, ele perdeu a cabeça completamente e ordenou que uma metralhadora fosse colocada no Astoria para sua proteção. O levante de Kronstadt tinha colocado terror em seu coração e isso o levou a bombardear Moscou com histórias malucas. Eu sabia tudo isso, assim como Sasha, mas eu não pude acreditar que Lenin e Trotsky realmente achavam que os homens de Kronstadt eram culpados de contrarrevolução ou eram capazes de cooperar com Generais Brancos, como alegou-se na ordem de Lenin.

Lei marcial extraordinária foi declarado sobre toda a Província de Petrogrado, e ninguém além de oficiais especialmente autorizados poderia deixar a cidade. A imprensa bolchevique iniciou uma campanha de calúnia e difamação contra Kronstadt, proclamando que os marinheiros e soldados tinham ficado do lado do “General Czarista Kozlovsky”, e declarando o povo de Kronstadt fora da lei. Sasha começou a perceber que a situação envolvia muito mais que mera mal informação por parte de Lenin e Trotsky. Este iria comparecer à sessão especial do Petro-Soviete onde o destino de Kronstadt seria decidido. Nós decidimos estar presentes.

Em 4 de março, o Soviete de Petrogrado deveria se reunir e se sentia geralmente que o destino de Kronstadt seria então decidido. Trotsky iria falar na reunião, e como eu ainda não havia tido a oportunidade de escutá-lo na Rússia, eu estava ansiosa por comparecer. Minha atitude sobre a questão de Kronstadt ainda não estava decidida. Eu não podia acreditar que os bolcheviques iriam deliberadamente fabricar a estória sobre o General Kozlovsky como o líder dos marinheiros. A reunião do Soviete, eu esperava, iria esclarecer o assunto.

Era minha primeira oportunidade na Rússia de ouvir Trotsky. Nós poderíamos lembrá-lo de suas palavras de despedida em Nova Iorque, eu pensei: a esperança que ele tinha expressado de que em breve fôssemos para a Rússia ajudar no grande trabalho que se tornou possível pela queda do czarismo. Nós iríamos implorar a ele que nos deixasse resolver a dificuldade de Kronstadt em um espírito amigável, dispor de nosso tempo e de nossas energias, até mesmo de nossas vidas, no teste supremo que a Revolução estava colocando diante do Partido Comunista.

Infelizmente, o trem de Trotsky se atrasou e ele não apareceu na sessão. Os homens que falaram à reunião estavam além da razão e do apelo. Fanatismo desvairado estava em suas palavras, e medo cego, em seus corações.

O Palácio Tauride estava lotado. A atmosfera estava muito tensa. A plataforma estava fortemente protegida por kursanti, e soldados tchekistas munidos de baionetas ficavam de pé entre ela e a plateia. Zinoviev, que presidia, parecia à beira de um colapso nervoso. Por várias vezes ele se levantava para falar e então se sentava novamente.

Todos esperavam por Trotsky. Mas quando deu 10 horas e ele não havia chegado, Zinoviev abriu a reunião.

Quando ele finalmente começou a falar, ele manteve sua cabeça virando para a esquerda e para a direita como se temesse um ataque súbito, e sua voz, sempre fina como a de um adolescente, subiu para um tom estridente, extremamente dissonante e de maneira alguma convincente. Antes que ele tivesse falado por quinze minutos, eu estava convencida de que ele mesmo não acreditava na história de Kozlovsky. “É claro que Kozlovsky está velho e não pode fazer nada”, ele disse, “mas os Oficiais Brancos estão atrás dele e estão enganando os marinheiros”. No entanto, por dias os jornais soviéticos haviam anunciado o General Kozlovsky como o espírito motor da “sublevação”. Ele denunciava o “General Kozlovsky” como o espírito maligno dos homens de Kronstadt, apesar da maioria da plateia saber que aquele oficial militar tinha sido colocado em Kronstadt pelo próprio Trotsky como especialista em artilharia. Isso não evitou que Zinoviev, como presidente do especialmente criado Comitê de Defesa, proclamasse que Kronstadt tinha se levantado contra a Revolução e buscava realizar os planos de Kozlovsky e seus comparsas czaristas.

Kalinin se desvencilhou de suas maneiras comumente bondosas e atacou os marinheiros em termos cruéis, esquecendo as honras prestadas a ele em Kronstadt há apenas alguns dias. Ele, a quem os marinheiros tinham permitido deixar Kronstadt ileso, delirou como um peixeiro. Ele denunciou os marinheiros como contrarrevolucionários e clamou por sua subjugação imediata. Vários outros comunistas o seguiram. “Nenhum medida pode ser severa demais para os contrarrevolucionários que ousam levantar sua mão contra nossa gloriosa Revolução”, ele declarou. As luzes menos brilhantes entre os palestrantes falaram com o mesmo esforço, incitando seus zelotes comunistas, ignorantes dos fatos reais, a um frenesi vingativo contra os homens que ontem haviam sido aclamados como heróis e irmãos.

Quando a reunião foi aberta para discussão, um operário do arsenal de Petrogrado exigiu ser escutado. Sobre a gritaria da multidão que berrava e batia o pé, uma única voz lutava para ser ouvida – a voz tensa e grave de um homem nas fileiras da frente. Ele era delegado dos empregados grevistas nas fábricas do arsenal. Ele foi levado a protestar, ele declarou, contra as deturpações proferidas da plataforma contra os bravos e leais homens de Kronstadt. Ele falou com profunda emoção e, ignorando as constantes interrupções, ele destemidamente declarou que os operários haviam sido levados à greve por causa da indiferença do governo às suas reclamações; os marinheiros de Kronstadt, longe de serem contrarrevolucionários, estavam devotados à revolução. Encarando Zinoviev e apontando seu dedo diretamente para ele, o homem esbravejou: “Foi a indiferença cruel por parte de você e de seu partido que nos levaram a entrar em greve e que incitaram a simpatia de nossos irmãos marinheiros, que lutaram lado a lado conosco na Revolução. Eles não são culpados de nenhum outro crime, e vocês sabem disso. Conscientemente, vocês os difamam e convocam sua destruição”. Gritos de “Contrarrevolucionário! Traidor! Shkurnik! Bandido menchevique!” transformaram a assembleia em um hospício. O velho operário continuou de pé, com sua voz se elevando sobre o tumulto.

Encarando Zinoviev, ele o lembrou de que as autoridades bolcheviques estavam agora agindo para com os operários e marinheiros como o governo Kerensky havia agido para com os bolcheviques. “Há mais ou menos três anos atrás, Lenin, Trotsky, Zinoviev e todos vocês” ele gritou, “foram denunciados como traidores e espiões alemães. Nós, os operários e marinheiros, viemos ao seu resgate e salvamos vocês do governo de Kerensky. Fomos nós que colocamos vocês no poder. Vocês se esqueceram disso? Agora vocês nos ameaçam com a espada. Lembrem-se, vocês estão brincando com fogo. Vocês estão repetindo as trapalhadas e os crimes do governo Kerensky.

Cuidado para que um destino semelhante não pegue vocês!”.

O desafio fez Zinoviev estremecer. Os outros na plataforma se moviam inquietamente em seus assentos. A plateia comunista parecia temeroso por um instante pelo aviso portento, e naquele momento outra voz ressoou. Um homem alto vestindo um uniforme de marinheiro se levantou no fundo. Nada havia mudado no espírito revolucionário de seus irmãos no mar, ele declarou. Até o último homem, eles estavam prontos para defender a Revolução com cada gota de sangue. Ele se referiu ao glorioso passado revolucionário de Kronstadt, apelou aos comunistas para que não cometessem fratricídio. E então ele prosseguiu à leitura da resolução de Kronstadt adotada na reunião de 1º de março. O tumulto que a sua ousadia provocou tornou impossível para qualquer um que não estivesse perto dele o escutasse. Mas ele se manteve firme e continuou a ler até o final.

Mas a voz destes filhos do povo caiu sobre ouvidos surdos. A única resposta a estes dois resolutos filhos da Revolução foi a resolução de Zinoviev exigindo a rendição completa e imediata de Kronstadt sob a pena de extermínio. O Petro-Soviete, suas paixões inflamadas pela demagogia bolchevique, aprovou a resolução. Ela passou pela sessão em meio a um pandemônio de confusão, com todas as vozes opositoras amordaçadas.

Os marinheiros de Kronstadt foram os primeiros a servirem à Revolução. Eles haviam desempenhado um importante papel na revolução de 1905; estiveram nas fileiras da frente em 1917. Sob o regime de Kerensky, proclamaram a Comuna de Kronstadt e se opuseram à Assembleia Constituinte. Eles foram a guarda pioneira na Revolução de Outubro. Na grande luta contra Yudenitch, os marinheiros ofereceram a defesa mais forte de Petrogrado, e Trotsky os elogiou como “o orgulho e a glória da Revolução”. Agora, todavia, eles tinham ousado levantar sua voz em protesto contra os novos soberanos da Rússia. Isso foi alta traição do ponto de vista bolchevique. Os marinheiros de Kronstadt estavam condenados.

Petrogrado estava inflamada sobre a decisão do Soviete; mesmo alguns dos comunistas, especialmente aqueles da seção francesa, estavam repletos de indignação.

Mas nenhum deles teve a coragem de protestar, mesmo nos círculos do partido, contra o massacre proposto. Assim que a resolução do Petro-Soviete se tornou conhecida, um grupo de conhecidos homens letrados de Petrogrado se reuniram para conferenciar quanto a se algo não poderia ser feito para evitar o crime planejado. Alguém sugeriu que Gorki fosse abordado para encabeçar um comitê de protesto às autoridades soviéticas.

Esperava-se que ele emulasse o exemplo de seu ilustre compatriota Tolstoi, que em sua famosa carta ao czar havia levantado sua voz contra o terrível massacre de operários.

Agora também tal voz era necessária, e Gorki era considerado o homem certo a chamar os czares atuais a refletirem. Mas a maioria dos presentes na reunião rejeitou a ideia.

Gorki era dos bolcheviques, eles disseram; ele não faria nada. Em várias ocasiões anteriores haviam apelado a ele, mas ele se recusou a interceder. A conferência não trouxe resultados.

A atmosfera, sobrecarregada com a histeria da paixão e do ódio, arrastou-se para dentro de meu ser e me agarrou pela garganta. Por toda a noite eu quis esbravejar contra o escárnio de homens que se rebaixavam às mais baixas trapaças políticas em nome de um grande ideal. Minha voz parecia ter me deixado, pois eu não podia pronunciar nenhum som. Meus pensamentos voltaram para uma outra ocasião onde o espírito da vingança e do ódio havia entrado em frenesi – a véspera do registro, 4 de junho de 1917, em Hunts Point Palace, Nova Iorque. Eu então fui capaz de falar, completamente desatenta ao perigo dos patriotas ébrios com a guerra. O que eu poderia fazer agora? Por que eu não marquei o fratricídio que estava prestes a ser realizado pelos bolcheviques, como eu marquei o crime de Woodrow Wilson que dedicou os jovens homens da América ao Moloque da guerra? Eu tinha perdido a coragem que tinha me sustentado ao longo dos anos lutando contra toda injustiça e todo erro? Ou foi o desamparo que paralisou minha vontade, o desespero que se instalou em meu coração com a percepção crescente de que eu tinha confundido um fantasma com uma força vital? Nada poderia alterar aquela consciência esmagadora ou tornar qualquer protesto válido.

No entanto, o silêncio frente ao massacre iminente também era intolerável. Eu tinha que me fazer ouvida. Mas não pelos obcecados, que sufocariam minha voz como haviam feito com os outros. Eu tornaria minha posição conhecida em uma declaração ao poder supremo da Defesa Soviética naquela mesma noite.

Quando estávamos a sós e eu conversei com Sasha sobre o assunto, eu fiquei feliz em saber que meu velho amigo tinha concebido o mesmo plano. Ele sugeriu que nossa carta fosse um protesto conjunto e lidasse exclusivamente com a resolução assassina aprovada pelo Petro-Soviete. Dois companheiros que estavam conosco na sessão compartilhavam sua visão e se ofereceram a assinar seus nomes ao nosso apelo conjunto às autoridades.

Eu não tinha esperança de que nossa mensagem exercesse qualquer moderação ou controle sobre os eventos decretados contra os marinheiros. Mas eu estava determinada a ter minha atitude registrada de maneira a servir de testemunha futura de que eu não permaneci calada à maior traição da Revolução pelo Partido Comunista.

Às duas da manhã, Sasha entrou em contato por telefone com Zinoviev, para informá-lo de que tinha algo importante a comunicar a ele em relação a Kronstadt.

Talvez Zinoviev tivesse presumido que era algo que poderia ajudar a conspiração contra Kronstadt. De outra forma, ele dificilmente teria se incomodado a enviar rapidamente Madame Ravich até ele àquela hora da noite, dez minutos depois que Sasha havia falado com ele. Ele poderia confiar nela absolutamente, dizia a nota de Zinoviev, e ela deveria receber a mensagem [N.E.: Esta mesma nota encontra-se na pág. 23].

A prova de que nosso apelo caiu em ouvidos surdos nos veio no mesmo dia da chegada de Trotsky e de seu ultimato a Kronstadt. Por ordem do Governo dos Operários e dos Camponeses, ele declarou aos marinheiros e soldados de Kronstadt que ele iria “abater como perdizes” todos aqueles que haviam ousado “levantar sua mão contra a pátria socialista”. Os navios e as tripulações rebeldes receberam o comando de se submeterem imediatamente às ordens do governo soviético ou serem subjugados pela força das armas. Somente aqueles que se rendessem incondicionalmente poderiam contar com a misericórdia da República Soviética.

O aviso final foi assinado por Trotsky, como Presidente do Soviete Militar Revolucionário, e por Kamenev, o Comandante Chefe do Exército Vermelho. Ousar questionar o direito divino dos soberanos era novamente punível com a morte.

Trotsky manteve sua palavra. Tendo sido ajudado a alcançar a autoridade pelos homens de Kronstadt, ele estava agora em posição de pagar completamente seu débito com “o orgulho e a glória da Revolução Russa”. Os melhores especialistas militares e estrategistas do regime de Romanov estavam a seu serviço, entre eles o notório Tukhachevsky, a quem Trotsky apontou comandante chefe do ataque a Kronstadt. Além disso, havia hordas de tchekistas, com três anos de treinamento na arte do assassinato; kursanti e comunistas especialmente selecionados por sua obediência cega às ordens; e as tropas mais confiáveis de várias frentes. Entre os dias 1º e 17 de março, vários regimentos da guarnição de Petrogrado e todos os marinheiros do porto foram desarmados e enviados à Ucrânia e ao Cáucaso. Os bolcheviques tinham medo de confiar neles na situação de Kronstadt: no primeiro momento psicológico, eles teriam ajudado Kronstadt. De fato, muitos soldados vermelhos do Krasnaya Gorka e das guarnições adjacentes também tinham simpatia por Kronstadt e foram forçados sob mira de armas a atacarem os marinheiros. Com tal força amontoada contra a cidade condenada, esperava-se que o motim fosse facilmente reprimido, especialmente depois que os soldados e marinheiros da guarnição de Petrogrado tinham sido desarmados e aqueles que expressaram solidariedade com seus camaradas sitiados tinham sido removidos da zona de perigo.

Da janela do meu quarto no Hotel Internacional eu os vi sendo conduzidos em pequenos grupos, cercados por fortes destacamentos de tropas da Tcheka. Seu passo tinha perdido seu vigor, suas mãos pendiam aos seus lados e suas cabeças estavam curvadas em pesar.

Os grevistas de Petrogrado não eram temidos pelas autoridades. Eles estavam enfraquecidos por lento esfomeamento e sua energia se debilitou. Eles foram desmoralizados pelas mentiras espalhadas contra eles e seus irmãos de Kronstadt, e seu espírito foi quebrado pelo veneno de dúvida instilado pela propaganda bolchevique.

Eles não tinham mais força ou confiança restantes para ajudar seus camaradas de Kronstadt que tão altruisticamente apoiaram sua causa e estavam prestes a desistir de suas vidas por eles.

Kronstadt foi abandonada por Petrogrado e cortada do resto da Rússia. Ela ficou sozinha. Não poderia oferecer quase nenhuma resistência. “Ela irá cair com o primeiro tiro”, a imprensa soviética proclamava. Eles estavam enganados. Kronstadt não havia pensado em motim ou resistência ao governo soviético. Até o último momento, estava determinada a não derramar sangue. Ela apelou o tempo inteiro por compreensão e solução amigável. Mas, forçada a se defender contra o ataque militar não provocado, lutou como um leão. Durante dez dias e noites angustiantes, os marinheiros e os operários da cidade sitiada resistiram contra fogo de artilharia contínuo vindo de três lados e bombas despejadas por aviões sobre a comunidade não combatente.

Heroicamente, eles repeliram as repetidas tentativas dos bolcheviques de invadir a fortaleza por tropas especiais de Moscou. Trotsky e Tukhachevsky tinham toda a vantagem sobre os homens de Kronstadt. Toda a maquinaria do Estado comunista os apoiava, e a imprensa centralizada continuava a espalhar veneno contra os supostos “amotinados e contrarrevolucionários”. Eles tinham suprimentos ilimitados e homens que vestiam mortalhas brancas para se misturarem com a neve do golfo finlandês congelado para camuflar o ataque noturno contra os homens de Kronstadt, que não suspeitavam de nada. Estes não tinham nada além de sua coragem resoluta e sua fé persistente na justiça de sua causa e nos Sovietes livres que eles defenderam como a salvação da Rússia da ditadura. Eles não tinham nem mesmo um quebra-gelo para cessar a investida do inimigo comunista. Eles estavam exaustos pela fome e pelo frio e por noites de vigília em claro. No entanto, eles se mantiveram, lutando desesperadamente contra a probabilidade esmagadora.

Durante o suspense assustador, os dias e as noites que eram preenchidos com o estrondo de artilharia pesada, não ressoou uma única voz entre o rugido das armas para gritar contra ou convocar uma parada do terrível banho de sangue. Gorki, Maxim Gorki, onde estava ele? Sua voz seria ouvida. “Deixem-nos ir com ele”, eu implorei com alguns da inteligência. Ele nunca fez o menor protesto em graves casos individuais, nem naqueles concernentes a membros de sua própria profissão, nem quando ele sabia da inocência dos homens condenados. Ele não protestaria agora. Era inútil.

A inteligência, os homens e as mulheres que já tinham carregado a tocha revolucionária, líderes do pensamento, escritores e poetas, estavam tão impotentes quanto eu e paralisados pela futilidade do esforço individual. A maioria dos seus camaradas e amigos já estava na prisão ou no exílio; alguns haviam sido executados.

Eles se sentiam arrasados demais pelo colapso de todos os valores humanos.

Eu me voltei para os comunistas que conhecíamos, implorando para que fizessem alguma coisa. Alguns deles perceberam o crime monstruoso que o seu partido estava cometendo contra Kronstadt. Eles admitiram que a acusação de contrarrevolução era uma fabricação absoluta. O suposto líder, Kozlovsky, era uma pessoa sem valor assustada demais com o seu próprio destino para ter qualquer coisa a ver com qualquer protesto dos marinheiros. Estes eram de altíssima qualidade, seu único objetivo era o bem-estar da Rússia. Longe de ficarem do lado dos generais czaristas, eles tinham até mesmo recusado a ajuda oferecida a eles por Tchernov, o líder dos socialistas revolucionários. Eles não queriam ajuda externa. Eles exigiram o direito de escolher seus próprios delegados nas próximas eleições ao Soviete de Kronstadt e justiça para os grevistas em Petrogrado.

Estes amigos comunistas passaram noites conosco – falando, falando – mas nenhum deles ousou levantar sua voz em protesto aberto. Nós não percebíamos, eles disseram, as consequências que isso traria. Eles seriam excluídos do partido, eles e suas famílias seriam privados do trabalho e das rações e estariam literalmente condenados à morte por fome. Ou eles simplesmente desapareceriam e ninguém jamais saberia o que havia acontecido com eles. No entanto, não era o medo que entorpecia sua vontade, eles nos asseguravam. Foi a completa inutilidade do protesto ou do apelo. Nada, nada poderia parar a biga do Estado comunista. Ela passou por cima deles e não deixou nenhuma vitalidade restante, nem mesmo para gritar contra ela.

Eu estava envolvida pela terrível apreensão de que nós também – Sasha e eu – pudéssemos chegar ao mesmo estado e consentíssemos covardemente como essas pessoas. Qualquer outra coisa seria preferível a isso. Prisão, exílio, mesmo a morte. Ou escapar! Escapar do horrível fingimento e presença revolucionários.

A ideia de que eu poderia querer deixar a Rússia nunca havia passado antes pela minha mente. Eu ficava espantada e chocada só de pensar. Eu, deixar a Rússia ao seu Calvário! No entanto, eu senti que até mesmo daria esse passo ao invés de me tornar uma engrenagem na máquina, uma coisa inanimada para ser manipulada à vontade.

O bombardeio de Kronstadt continuou sem cessar por dez dias e noites e então veio a uma parada súbita na manhã de 17 de março. A tranquilidade que caiu sobre Kronstadt era ainda mais assustadora que os tiros incessantes da noite anterior. Ela deixou todo mundo em um suspense agoniante, e era impossível saber o que tinha acontecido e por que o bombardeio havia cessado. No final da tarde, a tensão deu lugar ao horror mudo. Kronstadt tinha sido subjugada – dezenas de milhares assassinados – a cidade encharcada de sangue. O rio Neva era uma cova para as massas de homens, kursanti e jovens comunistas cuja artilharia pesada havia ultrapassado o gelo. Os heroicos marinheiros e soldados tinham defendido sua posição até o último suspiro.

Aqueles que não tiveram a sorte de morrer lutando tinham caído nas mãos do inimigo para serem executados ou enviados para a lenta tortura nas regiões congeladas do norte da Rússia.

Em 7 de março, Trotsky iniciou o bombardeamento de Kronstadt, e no dia 17 a fortaleza e a cidade foram tomadas, após numerosos ataques envolvendo um enorme sacrifício humano. Então, Kronstadt foi “liquidada” e o “complô contrarrevolucionário” se extinguiu em sangue. A “conquista” da cidade foi caracterizada por selvageria brutal, apesar de nem um único comunista preso pelos marinheiros de Kronstadt ter sido ferido ou morto por eles. Mesmo antes do assalto à fortaleza, os bolcheviques sumariamente executaram numerosos soldados do Exército Vermelho cujo espírito revolucionário e solidariedade lhes causaram a recusa a participarem no banho de sangue.

Nós estávamos atordoados. Sasha, com o último fio de sua esperança nos bolcheviques rompido, desesperadamente vagou pelas ruas. Chumbo estava em meus membros, uma fadiga indescritível em cada nervo. Eu me sentei frouxa, olhando para a noite. Petrogrado estava envolta por um manto negro, um corpo cadavérico. As lâmpadas da rua brilhavam em amarelo, como velas em sua cabeça e seus pés.

Na manhã seguinte, 18 de março, ainda cansada de sono depois da falta deste durante dezessete dias ansiosos, eu fui despertada pelos passos pesados de muitos pés.

Os comunistas marchavam, bandas tocavam canções militares e cantavam a Internacional. Sua melodia, que já foi exultante ao meu ouvido, agora soava como uma marcha fúnebre para a esperança flamejante da humanidade. 18 de março – o aniversário da Comuna de Paris de 1871, esmagada dois meses mais tarde por Thiers e Gallifet, os açougueiros de trinta mil comunardos. Igualada em Kronstadt em 18 de março de 1921. Em 17 de março, o governo comunista completou sua “vitória” sobre o proletariado de Kronstadt e em 18 de março comemorou os mártires da Comuna de Paris. Foi aparente para todos os que foram testemunhas mudas do ultraje cometido pelos bolcheviques que o crime contra Kronstadt foi muito maior que o massacre dos comunardos em 1871, pois foi feito em nome da Revolução Social, em nome da República Socialista. A história não irá ser enganada. Nos anais da Revolução Russa os nomes de Trotsky, Zinoviev e Dibenko serão adicionados aos de Thiers e Gallifet.

Dezessete dias apavorantes, mais apavorantes do que qualquer coisa que eu conheci na Rússia. Dias agoniantes, por causa da minha impotência total frente às coisas terríveis que aconteciam perante meus olhos. Foi justamente naquela época em que aconteceu de eu visitar um amigo que era paciente em um hospital por meses. Eu o encontrei bastante aflito. Muitos daqueles feridos no ataque a Kronstadt foram trazidos ao mesmo hospital, a maioria kursanti. Eu tive a oportunidade de falar com um deles.

Seu sofrimento físico, ele disse, não era nada comparado com sua agonia mental. Ele percebeu tarde demais que foi enganado pelo grito de “contrarrevolução”. Nenhum general czarista, nenhum Guarda Branco em Kronstadt havia liderado os marinheiros – ele encontrou somente seus camaradas, marinheiros, soldados e operários, que tinham lutado heroicamente pela Revolução.

As rações dos pacientes comuns nos hospitais eram longe de satisfatórias, mas os kursanti feridos recebiam o melhor de tudo, e um comitê seleto de membros comunistas foi designado para cuidar de seu conforto. Alguns dos kursanti, entre eles o homem com quem eu falei, se recusaram a aceitar os privilégios especiais. “Eles querem nos pagar por assassinato”, eles disseram. Temendo que toda a instituição fosse influenciada por estas vítimas acordadas, a gerência ordenou que fossem removidos para uma ala separada, a “ala comunista”, como os pacientes a chamavam.

A significância completa da “liquidação” de Kronstadt foi revelada pelo próprio Lenin três dias após o horror. No Décimo Congresso do Partido Comunista, realizado em Moscou enquanto o cerco a Kronstadt estava em progresso, Lenin inesperadamente mudou sua inspirada canção comunista para um igualmente inspirado canto de louvor à Nova Política Econômica. Livre comércio, concessões aos capitalistas, contratação privada do trabalho em fazendas e fábricas, tudo condenado por mais de três anos como uma rançosa contrarrevolução e punida por prisão e até mesmo a morte, estava agora escrito por Lenin na gloriosa bandeira da ditadura. Descaradamente como sempre, ele admitiu o que as pessoas sinceras e pensantes dentro e fora do partido já sabiam há dezessete dias: que “os homens de Kronstadt realmente não queriam os contrarrevolucionários. Mas eles também não nos queriam”. Os ingênuos marinheiros tinham levado a sério o lema da Revolução: “Todo o Poder aos Sovietes”, o qual Lenin e seu partido tinham solenemente prometido cumprir. Essa tinha sido sua ofensa imperdoável. Por isso eles tiveram que morrer. Eles tiveram que ser martirizados para fertilizar o solo para a nova colheita de lemas de Lenin, que invertiam completamente o anterior. Sua obra-prima, a Nova Política Econômica, o NEP. Ironia do bolchevismo!

Lenin defendeu o livre comércio – um passo mais reacionário que qualquer um de que os marinheiros de Kronstadt foram acusados.

A confissão pública de Lenin em relação a Kronstadt não parou a caça pelos marinheiros, soldados e operários da cidade derrotada. Eles foram presos às centenas, e a Tcheka de novo se ocupou com “tiro ao alvo”.

Estranhamente, os anarquistas não tinham sido mencionados em conexão com o “motim” de Kronstadt. Mas no Décimo Congresso, Lenin tinha declarado que a guerra mais sem misericórdia deveria ser travada contra a “pequena burguesia”, incluindo os elementos anarquistas. As inclinações anarcossindicalistas da oposição operária provaram que estas tendências tinham se desenvolvido dentro do próprio Partido Comunista, ele disse. O chamado às armas de Lenin contra os anarquistas foi recebido com uma resposta imediata. Os grupos de Petrogrado foram atacados e vários de seus membros foram presos. Além disso, a Tcheka fechou os escritórios de impressão e publicação do Golos Trouda, pertencente ao ramo anarcossindicalista de nossas fileiras.

Nós compramos nosso bilhete para Moscou antes que isso acontecesse. Quando soubemos sobre as prisões em massa, decidimos ficar um pouco mais caso também fôssemos procurados. Nós não fomos incomodados, entretanto, talvez porque era necessário ter algumas celebridades anarquistas à solta para mostrar que somente “bandidos” estavam nas prisões soviéticas.

Kronstadt quebrou o último fio que me prendia aos bolcheviques. O massacre bruto que eles instigaram falou mais eloquentemente contra eles do que qualquer outra coisa. Quaisquer que fossem seus pretextos no passado, os bolcheviques agora provaram ser eles mesmos os inimigos mais perniciosos da Revolução. Eu não podia ter mais nada a ver com eles.

* Este texto é originalmente parte do livro The Kronstadt Rebellion (Berlin, Der Sindikalist, 1922). No Brasil, foi publicado como Kronstadt (Ateneu Diogo Giménez, 2011: http://anarkio.net/Pdf/kronstadt.pdf). Tradução: Ateneu Diego Giménez / COB-AIT Piracicaba/SP. Seleção e edição por Pablo Mizraji. ITHA, 2017