sábado, 1 de maio de 2021

A Terceira Revolução: Kronstadt 1921, Posfácio, Anexos e Bibliografia

Posfácio

Dos rincões interioranos, do recôndito das fábricas, carregando, nestas torrentes de homens e mulheres, a foice e a tocha, o martelo e o fuzil; vestido com trajes do camponês e o macacão do operário; com fome no estômago e febre no coração, a perseguir continuamente a Ideia, acerca-se o Átila da invasão moderna; com o nome genérico de proletariado, inundando com suas massas sequiosas os centros luminosos da Cidade utópica (...). Desta vez, não são trevas o que estes bárbaros oferecem ao mundo, é a luz.

(Joseph Déjacque, A Humanisfera - Utopia Anárquica)

Revolta da Chibata

Em todas as civilizações, o tempo glorificou reis e chefes, que em memória de seus feitos ergueram monumentos para eternizar o seu nome, forjado pelo saque e a violência da guerra, com o sangue de milhares de vítimas anônimas, para depois condená-los à ruína do passado. Das invasões dos bandos armados originaram-se os grandes Estados conquistares, ainda mais sanguinários que seus ancestrais primitivos. “No fundo, a conquista não é somente a origem, é também o objetivo supremo de todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos, aristocráticos, democráticos, e até mesmo socialistas, supondo que o ideal dos socialistas alemães, o de um grande estado comunista, realize-se algum dia. (...) O que é o Estado senão a organização da força?” (Mikhail Bakunin, O Princípio do Estado).

Para além do encantamento das fantasias teóricas, resta a lei selvagem do mais forte, impondo-se com toda a sua verdade instintiva. Toda verborragia inútil, em torno de conceitos como divisão dos três poderes, Estado de direito, distinção entre Estado e governo, e tantas outras alegorias abstratas que povoam apenas as páginas dos livros e o discurso de pilantras mal-intencionados, dissimula na realidade a natureza una e essencialmente violenta do poder, que governa soberano, como um deus Janus, com suas duas faces invertidas: político e econômico.

Ao longo dos séculos, a luta pelo poder mobilizou os povos uns contra os outros para depois escravizá-los. No inconstante teatro de sombras da história, o único fato permanente é a relação social senhor e escravo, que atravessa as eras, imutável. Grandes multidões são dominadas pela força e submetidas à vontade de um grupo minoritário de usurpadores fortemente armados - assim como manadas inteiras de búfalos são subjugadas por uma pequena alcateia de lobos famintos. As massas escravizadas ainda hoje são obrigadas a renunciar à própria vida e proporcionar aos senhores que tudo possuem uma sobrevivência opulenta e luxuosa.

Dentre todos os sistemas escravistas, aparentemente o capitalismo não é o mais cruel. Certamente, é o mais injusto e perverso. Depois de consumada uma das escravidões mais degradantes e letais de todos os tempos, com a sujeição genocida dos povos ameríndios e africanos durante a fase do capitalismo comercial, a indústria inaugurou a infame escravidão infantil, que, como nunca antes, nem mesmo nos tempos do Faraó do Egito ou do rei Herodes, ofereceu diariamente em sacrifício milhares de crianças, a fim de saciar a fome de lucro das fábricas de Londres, Manchester e Liverpool. Em seguida, ao universalizar a chantagem do salário e, ao mesmo tempo, cultivar a miséria absoluta, o capital transformou escravos em mendigos a esmolar ao senhor o açoite benfeitor. Então, livrou-se de todos os intermediários e “libertou” os escravos para se venderem a si mesmo como coisas no mercado de trabalho. Enjaulado num profundo calabouço, o escravo esmurra o peito e grita orgulhoso: eu posso escolher minha prisão; agora, eu sou livre!  

Escravo: marcas de chicote

Em pleno século XXI, as cidades são a imagem e semelhança de um frenético formigueiro, onde o egoísmo é a única forma de socialização entre incansáveis formigas operárias. Pelas ruas e avenidas, galerias subterrâneas e vias aéreas, circulam todos os dias milhares e milhares de escravos desalmados, marchando como soldados autômatos e obedientes à cadeia de comando, talvez, esperando redenção, por saberem dizer apenas “sim, senhor”, à maneira do diligente soldado nazista que enviava sem pestanejar mulheres, crianças e homens para as câmaras de gás: eu só cumpria ordens. Mas nem sempre foi assim; um dia eles sonharam. Imagine-se no continente europeu do século XIX, o ano é 48, a revolução está na ordem do dia, na roda de conversa, nas fábricas, nas tavernas, nas praças, na rua, nas barricadas; agora, estamos em 64, e a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores provoca calafrios nos industriais vestidos de fraque e cartola, que, reunidos nos salões, brindam temerosos taças de uísque; avancemos um pouco mais, para os anos de 71, quando a Comuna de Paris ousou lançar um assalto aos céus; agora, viremos o século, para aportarmos no Brasil de 1917, onde os trabalhadores entoam a Internacional na primeira Greve Geral no país dos latifundiários. Pela primeira vez, desde Spartacus, os escravos atreveram-se a romper as correntes. Tudo isso acabou. Espírito de época, história das mentalidades?

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Detentora do poder econômico, mas não do poder político, a burguesia pavimentou suas ambições com a criação de uma visão de mundo que suprimia a antiga cosmovisão feudal, enquanto preparava o terreno para sua dominação iminente. O Iluminismo foi a expressão máxima desse movimento. Sob o pressuposto da razão, o programa iluminista exprimia “o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento). Saber significava poder e poder, dominação da natureza. A promessa do pensamento iluminista consistia em livrar a humanidade do medo do desconhecido e confiá-la a condução de seu próprio destino, por meio da ciência e da verdade. O que, do ponto de vista político, equivalia a um heliocentrismo social, na medida em que deslocava para o centro do poder o princípio da laicização do Estado com a introdução do regime republicano. O direito divino dos reis e o privilégio de nascimento da nobreza dão lugar a ideia de soberania popular, na qual todo o cidadão é representado e igualmente súdito perante as leis. Os eventos que culminaram na Queda da Bastilha, em 1789, coroaram o Século das Luzes, ao decretar o fim do arbítrio e legar para a posteridade um amanhã auspicioso.

Queda da Bastilha

No fundo, a burguesia apenas lustrou a escravocracia com verniz novo e não houve mudança de fato na estrutura das relações sociais. Ao converter interesses particulares em universais, a legislação burguesa excluiu tudo o que não era burguês de seu sistema de privilégios, desnudando o império das leis de sua quimera de igualdade e exibindo sua verdadeira natureza: uma tirania de proprietários capitalistas. A vitória da revolução, todavia, contaminou as castas subalternas, que participaram ativamente do movimento revolucionário que derrubou o Antigo Regime. A lição que foi extraída daí era a de que era possível colocar a baixo a ordem social, que parecia imutável, e construir um novo tempo sobre alicerces realmente democráticos. A Revolução Francesa forneceu o modelo: para os utópicos, o planejamento racional da sociedade; para Proudhon, a forma jurídica e o contrato social; para Marx, a luta de classes; para Bakunin, a revolução social. Assim, das entranhas da revolução burguesa, surgia a sua negação dialética: o socialismo moderno.

O movimento socialista almejou então derrubar a ordem burguesa sem, contudo, abolir suas premissas ideológicas: o Iluminismo. Influenciados pelo cientificismo do século XIX, os socialistas depositaram uma fé cega na razão e, por conseguinte, na missão civilizatória inerente à ideia de progresso e evolução. Marx foi ainda mais longe. Ao inverter o idealismo de Hegel e descobrir o eixo racional da história na luta de classes, arrogou-se fundador do socialismo científico (algo que, num livro de juventude, A sagrada família, atribuiu a Proudhon). Ainda que Marx alegasse mais tarde que a expressão foi usada apenas em oposição ao socialismo utópico, suas implicações não podem ser negligenciadas - mesmo porque negá-la seria admiti-la retórica. Fato é que a vantagem do marxismo em relação aos outros socialismos sempre foi atribuída à sua superioridade científica. As consequências disso não podem ser menosprezadas. Toda ciência busca não apenas desvendar a essência dos fenômenos mas alterar seu curso natural em direção a uma finalidade previsível e controlada (por exemplo, graças ao conhecimento da aerodinâmica, foi possível inventar o avião). Tal é, em última análise, a pretensão da ciência da história de Marx; em tese, o materialismo dialético é o método que deve orientar a práxis revolucionária em direção à emancipação humana - a história deixa de seguir um movimento espontâneo para torna-se objeto dos sujeitos históricos. Em outras palavras, conhecendo-se a lógica interna do desenvolvimento histórico, não seria preciso esperar o despertar do vagaroso tempo natural ou uma conjuntura favorável para que os indivíduos organizados em classes sociais pudessem interferir diretamente no processo histórico, a depender do estágio das condições materiais de produção existentes, e liberar as potencialidades latentes de uma nova organização social prevista em teoria. Segundo Marx, na contemporaneidade, as forças produtivas do capitalismo engendraram uma capacidade inédita de produção de riqueza ilimitada; base econômica pela qual a igualdade de fato, não de direito, seria estabelecida pelos socialistas.

Karl Marx

A ciência da história, na perspectiva materialista, parte das análises corretas de Marx sobre o capitalismo na sua crítica à economia política (ainda hoje sempre atuais). Grosso modo, o trabalhador é destituído de seus meios de produção (leia-se, instrumentos de trabalho, propriedade) e obrigado a vender sua força de trabalho (leia-se, seu corpo) ao dono dos meios de produção, o burguês capitalista. Ao ser expropriado da riqueza social produzida pelo seu trabalho, no processo de extração de mais-valia, o operariado consciente da exploração de que é vítima cumpre o papel que outrora pertenceu à burguesia, erigindo-se à condição de classe revolucionária. Depois de conquistar o poder, em sua luta contra a burguesia, a classe operária institui a ditadura do proletariado, que deverá desaparecer tão logo a socialização dos meios de produção seja concluída. Enfim, no último estágio do desenvolvimento histórico, o comunismo, tanto o Estado como as classes sociais deixam de existir para dar lugar a administração das coisas (leia-se, máquinas, automação, computadores, robôs, inteligência artificial etc.). (O fim da história, tanto o Estado em Hegel quanto o comunismo em Marx, é, portanto, o ápice da razão iluminista).

Ressalva-se, de passagem, que o camponês não entra nessa conta, por mais miserável que seja, pois, enquanto não for convertido em assalariado, não é conceitualmente um proletário, já que ainda está ligado a seus meios de produção (terra, ferramentas etc.), sendo, portanto, politicamente conservador. A observação não é fortuita, uma vez que, como se verá mais abaixo, a questão camponesa esteve no centro dos acontecimentos da rebelião de Kronstadt. Nota-se também que, além do papel do Estado na revolução, a concepção estrita do agente revolucionário, que exclui não só o camponês, mas também o lumpesinato, aparecerá como mais um fator de divergência entre marxistas e anarquistas.

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Na luta pela hegemonia do movimento operário, assim como os irmãos gêmeos, Esaú e Jacó, rivalizavam pela primogenitura, a concepção estatista de socialismo colocou Marx em oposição direta às convicções de seu ex-amigo Bakunin. “Na Suíça, onde está refugiado, Bakunin atua nas sombras, exalando ódio e fúria. Vive quase em absoluto estado de inspiração prometeica, faustiana, titânica, demoníaca. Tal como Blanqui, mas sempre na clandestinidade, invisível, ele conspira sem parar. Quer desencadear paixões. Quer destruir o Estado, o Império, a República, a Sociedade. Tudo que esmaga o indivíduo e o aliena. Tudo, agora mesmo, imediatamente. A revolução que está preparando por decreto é o apocalipse, o fim dos tempos e da história. Sonho grandioso e pueril” (Henri Lefebvre, La proclamation de la Commune).

Mikhail Bakunin

Fazendo eco à crítica proudhoniana do Estado do povo, que se transformaria numa ditadura de cientistas, Bakunin jamais acreditou que, uma vez no poder, o proletário organizado em classe dominante pereceria pura e simplesmente; ao contrário, dizia, tenderia a perpetuar-se como uma nova casta de parasitas sobre um novo proletariado. Assim, a I Internacional foi palco do primeiro grande cisma do socialismo, dividindo em lados opostos anarquistas e marxistas, tendo os primeiros obtido maior influência nos países latinos de economia predominante agrária, e os segundos, nos países em vias de modernização, notadamente, de cultura germânica.

Curiosamente, Marx e Engels sempre apostaram suas fichas no potencial revolucionário da Inglaterra, país com sólido desenvolvimento industrial e operariado amadurecido - embora politicamente liberal. Mas, por uma destas ironias da história, a revolução marxista alçou voo e foi pousar na agrária e semifeudal Rússia! Desiludido com o fiasco da revolução no Ocidente e a repressão que se seguiu à Comuna de Paris, Marx voltou sua atenção para o último bastião da feudalidade e manteve intensa correspondência com os revolucionários russos, a despeito dos protestos de Engels. Se é verdade que Deus escreve certo por linhas tortas, não é menos verdade que Marx decifrou nas entrelinhas o sentido cabalístico e sinuoso da história quando vaticinou que a revolução proletária teria início na improvável Rússia czarista. Mas, se à Rússia faltavam as condições objetivas, ao menos toda a estrutura de um Estado autocrático onipresente estava montada. Em fevereiro de 1917, uma série de crises internas aliada ao flagelo da I Grande Guerra Mundial levou o czar Nicolau II a abdicar do trono, num episódio conhecido como Revolução Branca. O governo provisório de caráter republicano que assumiu o poder não atendeu a principal reivindicação da população russa de retirar o país da guerra. Pouco depois, Lênin regressa do exílio e lança suas famosas Teses de Abril, sob os slogans “Paz, Pão e Terra” e “Todo o poder aos sovietes”. Em outubro, os bolcheviques, seguidos de amplo apoio dos sovietes e da notável participação dos marinheiros de Kronstadt, tomam o poder durante a chamada Revolução Vermelha.

Era algo extraordinário, o mundo testemunhava a olhos vistos a marcha inexorável da razão na história descoberta pelo gênio humano! Mas o primeiro sinal de que algo não estava funcionando muito bem na engrenagem da dialética marxista-leninista apareceu com a repressão aos marinheiros de Kronstadt, “o orgulho e glória da revolução”. Até então, o maior foco de resistência, à esquerda, a Makhnovtchina, um movimento anarquista declaradamente antibolchevique, justificava ao governo, em virtude da razão de Estado, a necessidade de lançar mão de violência para garantir o status quo. Mas não era o caso dos marinheiros, que lutaram lado a lado com os bolcheviques e reverenciavam Lênin tal e qual a figura paterna de um czar. O único pecado de Kronstadt, no entanto, foi o de prestar apoio incondicional à greve dos operários de Petrogrado! Porém, tudo que não tocava o diapasão do bolchevismo era caluniado e taxado de “contrarrevolução”. Diante de um regime que tratava indiscriminadamente seus opositores como inimigo, os marinheiros atreveram-se a dar mais um passo à frente: sonharam com a Terceira Revolução.

Press Gang

Kronstadt estava muito longe de ser contrarrevolucionária. Até bem recentemente, os soldados que ocupavam os postos mais baixos da marinha sempre foram uma ralé. Em contraste com o alto oficialato, formado por elementos da nobreza, os marinheiros viviam a bordo em condições deploráveis, sujeitos a doenças, má alimentação, castigos corporais e constantes motins. Remadores acorrentados nas galés gregas e romanas podem nos oferecer uma imagem bastante rude da vida marítima, mas nem um pouco inusitada. Mesmo na modernidade, os marinheiros eram plebeus recrutados sem aviso prévio e por meio do uso da força. São bastantes conhecidos os métodos de arregimentação compulsória da Marinha Real Britânica em tempos de guerra pela Press Gang. No século XVIII, qualquer homem podia ser enquadrado e sequestrado nas ruas, lojas, oficinas, feiras e obrigado a servir de bucha de canhão para a glória da realeza britânica. Conta-se que até um noivo e seus convidados foram raptados na igreja bem no dia de seu casamento. Além disso, o chicote não era uma exclusividade dos barcos da Antiguidade; fazia parte da rotina e do estatuto disciplinar da marinha de todos os países. No Brasil, os marujos, geralmente ex-escravos recrutados pelo uso de força policial, muito sofriam com punições físicas a que estavam frequentemente submetidos. Em sua primeira viagem ao exterior, no ano de 1906, um marinheiro de nome João Cândido tomou conhecimento da rebelião do Encouraçado Potemkin, um ano antes. Em 1909, viajou novamente para fora e teve contato com a luta dos marinheiros ingleses por melhores condições. De volta ao Brasil, o “Almirante Negro”, como ficou conhecido, juntamente com Francisco Dias Martins, o “Mão Negra”, liderou, em 1910, a Revolta da Chibata.

A rebelião do Encouraçado Minas Gerais podia ser mais um capítulo no histórico de motins de Kronstadt. A mesma base social e o sistema de coações e obrigações irmanavam esses marinheiros sob um único ideal: justiça social. Em 1921, Kronstadt insurgiu-se contra as políticas emergenciais impostas pelo comunismo de guerra. Os marinheiros provinham de famílias camponesas e conheciam de perto as mazelas do confisco de alimentos e outras duras medidas de austeridade. Após três anos de guerra civil, a população russa estava em frangalhos e não suportava mais um período de escassez prolongada. Afinal, por que lutaram pela revolução? Os marinheiros só se rebelaram contra os bolcheviques porque queriam pôr em prática o lema prometido pelo próprio Lênin: “Todo poder aos sovietes”. Mas o governo foi cada vez mais tomando as feições de um terrível Leviatã: uma "monarquia" centralizada e absolutista.

Vladimir Lenin

No interregno de fevereiro e outubro, Lênin também escreveu O Estado e a revolução, texto que mais parece um manual ou código cifrado de sentido contrário de como fazer um Estado. No livreto, Lênin retoma as proposições de Marx e Engels bastantes esquecidas sobre o “definhamento” do Estado: “O Estado é ‘uma força especial de repressão’. Esta notável e profunda definição de Engels é de uma absoluta clareza. Dele resulta que essa ‘força especial de repressão’ do proletário pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma ‘força especial de repressão’ da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a ‘abolição do Estado como Estado’. É nisso que consiste o ‘ato’ de posse dos meios de produção em nome da sociedade. Consequentemente, essa substituição de uma ‘força especial’ (a da burguesia) por outra ‘forca especial’ (a do proletário) não pode equivaler para aquela a um ‘definhamento’. Esse ‘definhamento’ ou, para falar com mais relevo e cor, essa ‘letargia’, coloca-a Engels, claramente, no período posterior ao ‘ato de posse dos meios dos meios de produção pelo Estado, em nome da sociedade’, posterior, portanto, à revolução socialista” (Lênin, Vladimir Ilyich. O estado e a revolução). E mais adiante: “O poder centralizado do Estado, característico da sociedade burguesa, nasceu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais típicas dessa máquina governamental são a burocracia e o exército permanente. (...). A burocracia e o exército permanente são ‘parasitas’ da sociedade burguesa, parasitas que tapam os poros da vida” (Idem).

Ora, “força especial de repressão”, “burocracia e o exército permanente”, mas do que se trata O Estado e a revolução senão de um espelho do príncipe bolchevique!

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Os próprios anarquistas, que talvez no início do século XX constituíssem a maioria no movimento socialista, saudaram com entusiasmo a Revolução Russa, muito embora esta representasse um tiro de misericórdia no movimento anarquista como um todo. A vitória dos bolcheviques e a fundação do Estado proletário pareciam confirmar a verdade científica das teses de Marx. A partir de então, os partidos comunistas começaram a pipocar como cogumelos nos mais diversos lugares do mundo e a estender seus tentáculos para muito além do movimento operário, como arte, ciência e filosofia, universidades, quartéis, cadeiras do parlamento etc. Em parte, o próprio intelectualismo de Marx e a concepção de vanguarda de Lênin conferiam um papel de liderança a uma minoria de intelectuais que deveria guiar as massas de trabalhadores braçais em sua missão histórica para a realização da sociedade comunista.

O êxodo dos socialistas para setores que antes só eram ocupados pela pequena e grande burguesia, em que pese o embaraço, não consumou o divórcio definitivo entre o socialismo e os trabalhadores. Este viria com o desfecho trágico da Guerra Civil Espanhola, quando, por meio de um acordo tácito estabelecido entre as grandes potências democráticas (Inglaterra e França), a URSS e os países do eixo nazifascista, o terreno ficou livre para o general Franco consolidar seu golpe de Estado, o que representou, num plano geral e em longo prazo, uma série de capitulações que minaram pouco a pouco a revolução mundial. Pouco depois, o próprio bloco comunista sofreria abalos sísmicos. As denúncias dos crimes do stalinismo por Nikita Kruschev, a Revolução Húngara e a Primavera de Praga provocaram uma debandada nas fileiras dos partidos comunistas do mundo todo. Os mais renitentes ainda culparam o “acidente” Stalin por perverter a grande obra do materialismo histórico. A verdade é que a situação não podia ser pior por trás da cortina de ferro. Desgraçadamente, as transformações nas condições materiais de vida não remodelaram a consciência das massas e, quando a economia soviética entrou em crise nos anos 80, em breve as penosas filas da mercearia, da padaria, das feiras, do mercado negro etc. seriam substituídas pelas filas quilométricas na lanchonete McDonald’s. (Não é difícil entender porque 66% da população russa hoje se diz lamentar o colapso da URSS, conforme pesquisa noticiada e publicada no site Russia Beyond, em dezembro de 2019).

URSS: 1990

No apagar das luzes do século XX, a Queda do Muro de Berlim, em 1989, simbolizou o fracasso da grande aventura iniciada pelo iluminismo, a experiência da história, e legou para o século XXI um horizonte sombrio e pessimista. O espírito de Hegel ainda tentou assombrar o mundo através de uma aparição patética e derradeira, encarnando o fim da história na nova ordem mundial unipolar. Mas os atentados de 11 de setembro de 2001 apontaram para uma direção muito diferente daquela retratada pela ficção científica hollywoodiana, em sua plácida odisseia no espaço. A pax americana, isto é, a paz mundial imposta pelo porrete do Estado policial do governo único, pouco durou. Na verdade, o que se erguia como um deus todo-poderoso e senhor absoluto dos céus e da terra era o capital, que passava a conciliar todas as contradições, antinomias, oposições, dissonâncias, incongruências, divergências, enfim, todas as diferenças sob a batuta da mercadoria, ainda que de maneira abstrata e fetichista, enquanto que, no mundo real, onde as coisas acontecem de verdade, semeava a guerra de todos contra todos.

O período dos últimos dois séculos, canhestramente esboçado por mim, que se inicia com a Queda (simbólica) da Bastilha e termina com Queda (real) do Muro de Berlim, eu passei a denominar, para fins de meu próprio entendimento, de “Era das Utopias”. O novo ciclo que se inicia desde então, eu tenho chamado, muito a contragosto, de “Era da Distopia”. O termo me parece relativamente adequado, porque diz respeito a uma completa ausência de esperança, de utopias. A sociedade distópica é o pesadelo do fascismo desprovido de sua caricatura nazista e normalizado pela sua máxima característica: “Viva a morte, abaixo a inteligência!” Quando Adorno e Horkheimer perguntam-se no Prefácio da Dialética do esclarecimento por que a humanidade, ao invés de alcançar um sentido verdadeiramente humano, está afundando numa nova barbárie, a questão fundamental que se coloca é: o que deu errado no projeto iluminista? A ciência inaugurou uma nova idade das trevas, com a bomba atômica, a poluição e destruição do meio ambiente, a devastação da natureza, o aquecimento global, a peste globalizada (pandemias), o controle absoluto sobre os indivíduos, e não resolveu a desigualdade social e a miséria extrema, ao contrário, intensificou a concentração de renda em níveis inauditos. A panaceia dos filósofos iluministas e de todas as gerações que os sucederam revelou-se, no fim, tão opressiva, fetichista, irracional e repleta de incertezas quanto o obscurantismo do passado. A ciência criou novos medos, novos dogmas, novas mistificações e não solucionou os problemas essenciais da humanidade. Ademais, a ciência tornou-se um novo tribunal do Santo Ofício, na defesa intransigente do establishment.

Lavoratori! (pernacchia)

A distopia é o mundo da terra plana e da luta das narrativas; da religião sem Deus e do fundamentalismo do deus mundano, o dinheiro. Todos têm seu lugar ao sol na distopia, desde que possam pagar por isso e se adequar a algum nicho de mercado. Nem o socialismo escapou do canto da sereia da industrial cultural, tornando-se rótulo de vil mercadoria. Mas se valor econômico congrega, harmoniza; o cotidiano separa, dilacera. A sociedade de consumo despedaça a humanidade em infinitos átomos de inumanidade que se repelem. Como diz a música, cada um no seu quadrado! O respeito à diferença é a indiferença, a segregação, a intolerância, o ódio, a violência. Como cristãos que não seguem o único mandamento ensinado por Cristo, “ame seu inimigo”, a dissimulação é o único valor moral autêntico. Neste grande espetáculo de falsidades, partidos de esquerda e direita dançam a música orquestrada pelo capital financeiro, seguindo o ritual em que damas e cavalheiros trocam de pares conforme o comando da quadrilha. Lacaios a serviço das oligarquias, alpinistas sociais inescrupulosos, revezam-se como administradores da miséria do povo e dos lucros bilionários de acionistas e especuladores da dívida pública: alternância de poder, belas palavras para vilania! Quanto aos sindicatos, viraram máfias sem qualquer representatividade com os verdadeiros interesses dos trabalhadores, a não ser de enriquecer dirigentes corruptos. Até mesmo o anarquismo, que perdeu todo o lastro com o proletariado e os movimentos sociais, refugiando-se no diletantismo das classes médias, busca ocupar espaço numa instituição (pública ou privada) que sempre foi dominada por brilhantes intelectuais marxistas, a universidade, através de uma reabilitação - pasmem! - do positivismo - diga-se, de passagem, escola filosófica que foi a coluna vertebral do exército brasileiro e emprestou o lema à bandeira do Brasil: “Ordem e Progresso”. Seja como for, tanto marxistas como anarquistas há muito abandonaram o chão de fábrica para se instalar nas confortáveis cadeiras universitárias, limitando-se a ministrar palestras e seminários para poucos iniciados e a reproduzir todos os vícios e afetações deste oráculo do mundo moderno. Ademais, neoliberais roubam e profanam as insígnias do anarquismo com a mácula do capitalismo, aumentando ainda mais a confusão, numa conjuntura em que a direita ataca o sistema e a esquerda aparece comodamente adaptada às categorias burguesas. Enquanto isso, sob esse poço de mediocridade, no andar de baixo, na base da pirâmide, multidões escravizadas, verdadeiras bestas de carga, orgulhosas de sua ignorância, dóceis com o patrão, hostis com os iguais, carregam nas costas um pesado Palácio de Versalhes da pós-modernidade, amargando uma vida miserável, subsistindo como instrumentos falantes sem ter o que falar, brutalizados pelo trabalho, sem direito a nada, alheios a tudo, jogados à própria sorte, desamparados, humilhados, injustiçados, roubados e oprimidos pelas “forças especiais de repressão” do Estado democrático de direito!

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Também tenho definido o intervalo entre a publicação do livro de Proudhon O que é a propriedade? (1840) e a Revolução Espanhola (1936-1939) como O Século do Anarquismo. O movimento anarquista nunca foi um bloco coeso e sempre existiram muitas correntes divergentes em torno de seus princípios fundamentais. Porém, a única tendência a obter êxito indiscutível foi a semente plantada por Bakunin na Espanha, que criou raízes com o federalismo, cresceu com o anarcossindicalismo e frutificou com o anarcocomunismo. Infelizmente, a única experiência efetiva e de grandes proporções do anarquismo, as coletividades libertárias na Espanha, tem sido negligenciada pelos estudiosos e adeptos anarquistas, que parecem se deter apenas em estéreis especulações de ordem moral e metafísica a encarar o fato de que o anarquismo só exerceu protagonismo histórico enquanto esteve ligado aos movimentos populares.

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Na Era da Distopia, somente a transfiguração de todos os valores, a negação de tudo que já existiu até aqui, sem reservas, nem concessões, sejam quais forem, um recomeçar do zero, uma metamorfose radical, um renascer poderão resgatar um novo sentido de humanidade, a partir de uma existência individual e social afirmativa, que se erguerá dos destroços do mundo desmoronado, desafiando as leis naturais, juntamente com criação deste novo planeta fraternal que surge triunfante entre as infinitas estrelas do universo.

À destruição!

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Hoje é Dia do Trabalho, gostaria de aproveitar a oportunidade e pedir mais um pouco de atenção, na certeza de que serei atendido, para relembrar um episódio que, se não me falha a memória, li em alguma das publicações do Edgar Rodrigues. Era Primeiro de Maio e o grande Edgard Leuenroth saiu para celebrar as derrotas e conquistas da classe trabalhadora. Foi aos lugares de costume, mas não encontrou seus antigos camaradas. A bem da verdade, não encontrou ninguém. Os sindicatos estavam fechados, as fábricas vazias, os centros de cultura já não mais existiam. Naquela data tão especial para todos os de sua geração, Leuenroth descobriu-se completamente só. As multidões de transeuntes passavam por ele sem sequer o notar, displicentes como estavam, num dia de feriado. Entristecido, o velho anarquista decidiu voltar para casa e por um destes acasos do destino (ou não) entrou na rua em que ficava a sede do antigo Partidão. Ao reconheceram Leuenroth, que passava cabisbaixo, melancólico, os comunistas saíram rapidamente da sede e foram ao seu encontro. “Por que está sozinho? Para onde está indo, camarada?” perguntaram-lhe, com uma respeitosa admiração. Leuenroth explicou que só queria comemorar o dia do trabalhador, como não encontrou ninguém, retornava para casa. Então os membros do PCB o convidaram para passar o Primeiro de Maio com eles, convite que Edgar Leuenroth prontamente aceitou.

Deem flores aos rebeldes que falharam!

Jean Fecaloma

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Tradução e Posfácio: Jean Fecaloma

Fecaloma - Punk Rock

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Para Ina, Jane e Karen

Agradecimentos

É um prazer poder expressar minha gratidão aos muitos colegas e amigos que me ajudaram na elaboração desta obra. Devo um agradecimento especial a três professores e estudiosos notáveis, que me guiaram em meus estudos de História da Rússia, na Universidade de Columbia, são eles, Geroid T. Robinson, Henry L. Roberts e Michael T. Florinsky. Também estou em dívida com Max Nomad e o professor Loren Graham, por terem lido meu manuscrito e feito críticas e comentários valiosos. Marina Tinkoff, Xenia J. Eudin, Anna M. Bourguina, N. Zhigulev, Peter Sedgwick, Edward Weber, Alexis Struve e Eino Nivanka, pela gentileza que tiveram em responder minhas questões e acrescentar uma série de sugestões de grande valia. Agradeço ao professor Philip E. Mosely, por me permitir acesso ao Archive of Russian & East European History and Culture, da Universidade de Columbia, e a seu curador, L. F. Magerovsky, pela ajuda na localização de documentos relevantes. Também quero expressar minha gratidão, pela afável ajuda que me dedicaram na pesquisa de materiais concernentes, aos funcionários das bibliotecas das universidades de Columbia, Harvard e Hoover; bem como da New York Public Library; das bibliotecas da Universidade de Helsinque e do Congresso de Washington; e dos National Archives. Muito embora eu tenha consultado diversas fontes, tenho uma dívida inestimável com os estudos pioneiros de Ida Mett e George Katkov, que estão referenciados na bibliografia. É desnecessário dizer que assumo a total responsabilidade por esta obra.

Agradeço ao Instituto Russo da Universidade de Columbia, com o qual estou vinculado como pesquisador, e, em particular, a seu diretor, o professor Marshall Shulman, pela calorosa hospitalidade e incentivo. Quero agradecer também a John Simon Guggenheim Memorial Foundation, a American Philosophical Society, a American Council of Learned Societies e o Social Science Research Council, pelo apoio prestado à minha pesquisa sobre o anarquismo russo e revoltas de massa, pela qual o presente estudo é um capítulo.

Índice

Introdução

Capítulo 1: A crise do comunismo de guerra

Capítulo 2: Petrogrado e Kronstadt

Capítulo 3: Kronstadt e os emigrados russos

Capítulo 4: O primeiro assalto

Capítulo 5: O programa de Kronstadt

Capítulo 6: A repressão

Conclusão

ANEXOS

Anexo A

Memorando sobre a questão da organização de um levante em Kronstadt*

Máximo sigilo, 1921

As informações oriundas de Kronstadt obrigam-nos a crer que, na próxima primavera, ocorrerá um levante em Kronstadt. Se houver ajuda do exterior, certamente poderemos contar com o êxito do movimento, que será favorecido pelas seguintes circunstâncias:

Agora mesmo, todos os navios de importância militar da Frota do Báltico estão reunidos no porto de Kronstadt. Nestas condições, os marinheiros constituem a principal força da fortaleza de Kronstadt, incluindo entre eles os efetivos que realizam tarefas em organizações militares em terra firme. Todo o poder está concentrado nas mãos de um pequeno grupo de marinheiros comunistas (o Soviete local, a Tcheka, o Tribunal Revolucionário, os comissários e os coletivos do partido a bordo etc.). O restante da guarnição e os trabalhadores de Kronstadt não desempenham papel significativo. É possível observar entre os marinheiros abundantes e inconfundíveis sinais de descontentamento com a ordem existente. Por isso, os marinheiros vão se unir de forma unânime aos rebeldes assim que um pequeno grupo de pessoas consiga, por meio de uma ação rápida e decisiva, tomar o poder em Kronstadt. Este grupo já existe e está pronto para realizar e conduzir as ações mais enérgicas.

O governo soviético está bem informado sobre a atitude hostil dos marinheiros. Por isso, o governo disponibilizou aos armazéns de Kronstadt uma quantidade de alimentos suficiente para durar apenas uma semana, enquanto anteriormente enviava provisões para um mês inteiro. A desconfiança das autoridades soviéticas em relação aos marinheiros é tão grande que um regimento de infantaria do Exército Vermelho foi destacado para vigiar as rotas que seguem para Kronstadt sobre a camada de gelo que agora cobre o Golfo da Finlândia. Mas no caso de um levante, se a ação for devidamente preparada, este regimento será surpreendido e não poderá oferecer resistência.

Ao apoderar-se do controle da frota e das fortificações de Kronstadt, a rebelião garantirá a vantagem sobre os outros fortes que estão localizados nas imediações da ilha de Kotlin. A artilharia dos fortes tem um ângulo de tiro que não permite atingir Kronstadt, enquanto as baterias de Kronstadt podem direcionar sua linha de fogo contra os fortes (o forte “Obruchev”, que se rebelou em maio de 1919, rendeu-se meia hora depois que as baterias de Kronstadt abriram fogo contra ele).

A única resistência militar concebível dos bolcheviques, quando tão logo iniciar a rebelião, virá das baterias de Krasnaya Gorka (o forte situado no continente, na costa sul do Golfo de Finlândia).

Mas a artilharia de Krasnaya Gorka é totalmente impotente diante dos navios e baterias de Kronstadt. Há pelo menos 32 canhões de 12 polegadas e 8 canhões de 10 polegadas nos navios de Kronstadt (sem contar os canhões de menor calibre, sobre os quais não há informações confiáveis de seu estado de funcionamento). Krasnaya Gorka possui apenas 8 peças de 12 polegadas e 4 de 8 polegadas; o restante de sua artilharia é de calibre insuficiente para ameaçar Kronstadt.

Além disso, todo o suprimento de granadas da artilharia de Kronstadt, Krasnaya Gorka e da Frota do Báltico está guardado nos depósitos de pólvora de Kronstadt e, portanto, nas mãos dos rebeldes. Por fim, os bolcheviques não poderão reprimir o levante de Kronstadt com fogo de artilharia proveniente das baterias de Krasnaya Gorka. Pelo contrário, devemos supor que em caso de um duelo de artilharia, entre Krasnaya Gorka e Kronstadt, este último vencerá (o levante de Krasnaya Gorka em maio [junho] 1919 foi reprimido após um bombardeio de quatro horas que destruiu todos os edifícios na região de Krasnaya Gorka - os próprios bolcheviques proibiram disparar contra as baterias de Krasnaya Gorka, a fim de preservá-las para uso posterior).

Pelo que se afirmou acima, percebemos claramente que existem circunstâncias excepcionalmente favoráveis ​​para que uma rebelião em Kronstadt resulte exitosa: 1) presença de um grupo de organizadores enérgicos e bem articulados para preparar o levante; 2) índole naturalmente rebelde dos marinheiros; 3) limitação do teatro de operações às estreitas e pequenas dimensões de Kronstadt, garantindo o total sucesso do levante; e 4) a possibilidade de sigilo total na preparação da rebelião, devido ao isolamento de Kronstadt em relação à Rússia e da união e solidariedade que reina entre os marinheiros.

Se a rebelião obtiver êxito, os bolcheviques, que não possuem navios de guerra além dos de Kronstadt, nem dispõem da possibilidade de concentrar artilharia terrestre com suficiente poder para neutralizar as baterias de Kronstadt (particularmente porque as de Krasnava Gorka não podem lhes fazer frente), não poderão render Kronstadt por meio de bombardeios provindos da costa ou do desembarque de tropas.

Devemos notar também que a fortaleza de Kronstadt e a frota estão equipadas com abundante artilharia leve capaz de conter invasões e fazer fogo de barragem impenetrável. Para o desembarque, seria necessário render primeiro essa artilharia, tarefa pela qual os bolcheviques não poderão realizar devido ao apoio contra invasões efetuado pelos pesados ​​canhões e a frota de Kronstadt.

Tendo em vista o que foi exposto acima, a situação militar em Kronstadt após a revolta poderá ser considerada completamente segura e a base estará em condições de resistir o tempo que for necessário.

No entanto, as condições de vida no interior da fortaleza após a rebelião poderão ser fatais para Kronstadt. As reservas de comida são suficientes apenas para poucos dias. Se Kronstadt não for abastecida imediatamente após a rebelião e não se assegurar a regularidade do envio de suprimentos, a fome inevitável forçará Kronstadt a se submeter novamente à autoridade bolchevique. As organizações antibolcheviques russas não são fortes o bastante para resolver esse problema de abastecimento e serão forçadas a pedir ajuda ao governo francês.

A fim de se evitar qualquer atraso no abastecimento de alimentos a Kronstadt, imediatamente após o levante, é necessário que, antes mesmo do tempo estipulado, quantidades de víveres necessárias sejam transportadas em navios de cargas; navios estes que aguardam ordens para zarpar dos portos do Mar Báltico para Kronstadt.

Salvo em caso de uma rendição de Kronstadt, por causa da escassez de alimentos, resta o perigo dos rebeldes terem seu moral abalado, o que poderá resultar na restauração da autoridade bolchevique em Kronstadt. Esta situação seria inevitável se os marinheiros rebeldes não receberem garantias de apoio e simpatia do exterior, em particular do Exército Russo comandado pelo General Wrangel, assim como, se os marinheiros se sentirem isolados ao perceberem que a rebelião não está se espalhando pelo resto da Rússia e, consequentemente, derrubando o poder soviético.

A este respeito, seria extremamente desejável que em curtíssimo prazo alguns navios franceses aportassem em Kronstadt após deflagrado o levante, a título simbólico da presença de ajuda francesa. Ainda mais desejável seria a chegada em Kronstadt de algumas unidades do exército russo. Estas unidades deveriam dar preferência à frota russa do Mar Negro, atualmente ancorada em Bizerte. A chegada de marinheiros do Mar Negro em socorro a seus camaradas da frota do Báltico deixaria estes últimos completamente entusiasmados.

Devemos ter em mente que, em Kronstadt, não se pode contar com um comando rebelde bem organizado, especialmente nos primeiros dias do levante. A este respeito, a chegada de unidades do Exército Russo ou da frota comandada pelo General Wrangel teria um efeito extremamente benéfico, porque todo o comando de Kronstadt passaria automaticamente para as mãos dos oficiais superiores dessas unidades.

Além disso, se se supor que as operações militares partirão de Kronstadt para derrubar a autoridade soviética na Rússia, seria necessário também para este propósito que as forças armadas russas do general Wrangel acudissem Kronstadt.

A este respeito, convém mencionar que, para tais operações - ou, simplesmente, como simples ameaça - Kronstadt pode servir como uma base invulnerável. O objetivo mais próximo de Kronstadt é a indefesa cidade de Petrogrado, cuja conquista teria o significado de que metade da batalha contra os bolcheviques estaria vencida.

No entanto, se por alguma razão for considerado indesejável realizar uma campanha a partir de Kronstadt contra a Rússia Soviética no futuro próximo, então o fato de Kronstadt estar fortificada com tropas antibolcheviques russas, que atuariam em coordenação com o comando francês, ainda contém um significado considerável no desenvolvimento da situação geral militar e política na Europa durante a próxima primavera.

Todavia, é necessário termos em mente que se o êxito inicial do levante de Kronstadt for prejudicado pelo abastecimento inadequado da cidade ou devido à desmoralização dos marinheiros do Báltico ou da guarnição de Kronstadt, pela falta de apoio moral e militar, o resultado significará, então, uma situação em que a autoridade soviética não será enfraquecida, mas fortalecida, e seus inimigos desacreditados.

Em vista do que foi exposto acima, as organizações antibolcheviques russas devem se abster de contribuir para o sucesso da rebelião em Kronstadt se não receberem do governo francês total garantia de sua decisão de tomar as medidas necessárias, em particular: 1) comprometimento com apoio financeiro para a preparação da insurreição, que, para um resultado favorável, requer uma soma baixíssima, talvez, de cerca de 200.000 francos; 2) financiar Kronstadt após a rebelião; 3) assegurar o abastecimento de alimentos para Kronstadt e garantir que as primeiras entregas de alimentos cheguem à cidade imediatamente após a tomada de poder, e 4) estar de acordo, após a revolta, com o envio a Kronstadt de navios de guerra franceses e também de unidades do exército e da marinha do general Wrangel.

Com relação ao que foi exposto, não se deve esquecer que mesmo que o comando francês e as organizações antibolcheviques russas não participem da preparação e direção do levante, a revolta ocorrerá assim mesmo na próxima primavera. No entanto, após um breve período de sucesso, a revolta estará fadada ao fracasso, o que fortalecerá em muito o prestígio da autoridade soviética e privará seus inimigos de uma oportunidade única - que provavelmente não se repetirá - de tomar Kronstadt e infligir ao bolchevique o mais severo dos golpes, do qual ele não poderá se recuperar.

Se, em princípio, o governo francês estiver de acordo com as considerações formuladas acima, será desejável que se designe uma pessoa com quem os representantes dos organizadores da rebelião possam entrar em acordo mais detalhado e a quem eles possam comunicar os detalhes do plano do levante e outras ações, bem como fornecer informações mais precisas sobre os fundos necessários para a organização e demais financiamentos do movimento.

Anexo B

Porque estamos lutando*

Depois de fazer a Revolução de Outubro, a classe trabalhadora esperava obter sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior do ser humana. O poder de polícia e da monarquia gendarme passou para as mãos dos usurpadores comunistas, que, em lugar de libertar, incitou no povo o temor permanente das câmaras de tortura da Tcheka, que excederam em muito os horrores dos métodos da gendarmeria czarista.

Baionetas, balas e ordens inflexíveis dos oprichniki da Tcheka foi o que os trabalhadores da Rússia Soviética receberam depois de muita luta e sofrimento. O glorioso emblema do Estado de trabalhadores - a foice e o martelo - foi de fato substituído pela baioneta e as grades da prisão, que mantêm tranquila e despreocupada a vida da nova burocracia de comissários e funcionários.

Ainda mais infame e criminoso é a servidão moral que os comunistas inauguraram: eles também manipulam as convicções íntimas dos trabalhadores, induzindo-os a pensar à maneira comunista. Através dos sindicatos burocratizados, eles acorrentaram os operários à esteira da fábrica, para que o trabalho se transforme em uma nova escravidão, em vez da alegria pelo dever cumprido. Dos protestos camponeses, expressos em levantes espontâneos, às reivindicações dos trabalhadores, obrigados pelas condições de vida a entrarem em greve, eles responderam com execuções em massa e derramamento de sangue, que faria corar até os generais czaristas. A Rússia operária, a primeira a hastear a bandeira vermelha da emancipação do trabalho, está encharcada pelo sangue dos que foram martirizados em nome da glória e dominação comunista. Neste mar de sangue, os comunistas afogaram todas as brilhantes promessas e slogans da revolução operária. A realidade está cada vez mais clara: o Partido Comunista Russo não é um defensor dos trabalhadores, como fingiu ser. Os interesses do povo trabalhador lhe são estranhos.

Tendo conquistado o poder, seu único medo é perdê-lo e, daí, todos os meios para continuar governando são aceitáveis: calúnia, violência, mentira, assassinato e até se vingando nas famílias dos rebeldes.

Mas a paciência de trabalhadores tão sofridos está chegando ao fim. Aqui e ali o país é iluminado pelas chamas da insurreição, na luta contra a opressão e a violência. As greves operárias generalizam-se. Mas os agentes da okhrana bolchevique não dormem e fazem de tudo para impedir a terceira revolução, inevitável. Apesar de tudo, a revolução está aí, sendo executada pelas mãos dos próprios trabalhadores. Os generais do comunismo testemunham o levante de um povo que está convencido de que as ideias do socialismo foram traídas. No entanto, ao temerem por sua pele e perceberem que não vão escapar da ira dos trabalhadores, ainda tentam, com a ajuda de seus oprichniki, aterrorizar os rebeldes ameaçando-os com prisão, fuzilamento e outras atrocidades. Mas a vida sob o jugo da ditadura comunista tornou-se mais terrível que a morte.

O povo trabalhador se revolta e já entendeu que não há meio termo na luta contra os comunistas e a nova servidão por eles instituída. É necessário ir até o fim. Os comunistas querem dar a impressão de que fazem concessões: na província de Petrogrado, os bloqueios de estradas foram retirados e 10 milhões de rublos de ouro foram adquiridos para a compra de alimentos do exterior. Mas não se deixem enganar, porque por trás desta isca esconde-se a mão de ferro do senhor, o ditador, que quer recuperar cem vezes mais, quando tudo estiver tranquilo novamente, do que se ofereceu.

Basta! Chega de meio-termo. Vencer ou morrer! Kronstadt Vermelha dá o exemplo, atemorizando tanto os contrarrevolucionários da direita e da esquerda. Aqui a revolução deu um passo à frente. Aqui, a bandeira da rebelião foi hasteada contra a violência e opressão do regime comunista que em três anos suplantou trezentos anos de monarquia. Aqui, em Kronstadt, foi lançada a pedra angular da terceira revolução, rompendo os últimos grilhões das massas trabalhadoras e abrindo um novo e amplo caminho para a criação do mundo socialista.

Essa nova revolução levantará as massas trabalhadoras do Oriente e do Ocidente, pois servirá de exemplo para a nova construção do socialismo, em oposição à “criação” burocrática, dos comunistas. As massas trabalhadoras estrangeiras poderão ver com seus próprios olhos que tudo o que foi criado até agora pelos comunistas em nome da vontade dos trabalhadores e camponeses não é de fato o socialismo.

O primeiro passo nessa direção foi dado, sem um único tiro, sem uma única gota de sangue. Os trabalhadores não querem sangue, a menos que sejam obrigados a agir em sua autodefesa. Apesar de todos os atos ultrajantes que os comunistas nos têm dispensado, somos sensatos o bastante para nos limitarmos a isolá-los da vida pública e impedi-los de atrapalhar nosso trabalho revolucionário com seu malicioso e falso ativismo.

Operários e camponeses marcham sempre avante; deixaram para trás a assembleia constituinte, com seu regime burguês, e passarão pela ditadura do Partido Comunista, com sua Tcheka e seu capitalismo de estado, cujo garrote preso no pescoço dos trabalhadores sufoca, ameaçando estrangulá-los. A circunstância atual oferece finalmente aos trabalhadores uma oportunidade de ter seus sovietes livremente eleitos, funcionando sem a qualquer pressão partidária, e de reorganizar os sindicatos burocratizados em associações livres de operários, camponeses e da intelectualidade trabalhadora. O último cassetete da autocracia comunista está finalmente destruído.

Anexo C

Socialismo entre aspas*

Ao fazer a Revolução de Outubro, os marinheiros, soldados vermelhos, operários e camponeses derramaram seu sangue pelo poder dos sovietes, pela criação de uma república dos trabalhadores. O Partido Comunista voltou sua atenção para as aspirações das massas. Ao inscrever em sua bandeira slogans sedutores, que entusiasmaram os trabalhadores, atraiu-os para seu partido e prometeu conduzi-los ao esplendoroso reino do socialismo, que só eles, os bolcheviques, sabiam construir.

Naturalmente, uma alegria ilimitada se apoderou dos trabalhadores e camponeses. “Por fim, a escravidão que suportávamos sob o jugo dos latifundiários e capitalistas será em breve tão remoto quanto uma lenda”, pensaram. Parecia que havia chegado a era do trabalho livre nos campos, fábricas e oficinas.

Parecia que todo o poder havia passado para as mãos dos trabalhadores.

Por meio de uma propaganda hábil, os comunistas persuadiram os filhos do povo trabalhador a se integrarem nas fileiras do partido, onde foram agrilhoados por uma disciplina severa. Logo, quando os comunistas se sentiram fortes o suficiente, primeiro expulsaram do poder os socialistas de outras tendências e depois, enquanto afastavam os próprios trabalhadores e camponeses do controle da nau do Estado, governam o país em seu nome. Os comunistas substituíram assim o poder que usurparam por uma dominação arbitrária de comissários que exercem, na Rússia Soviética, um poder sobre os cidadãos de corpo e alma. Contra toda razão e contra a vontade dos trabalhadores, começaram a construir meticulosamente o socialismo de Estado, com escravos em vez de trabalhadores livres.

Após desorganizar a produção sob o sistema do “controle operário”, os bolcheviques nacionalizaram fábricas e oficinas. De escravos dos capitalistas, os trabalhadores foram transformados em escravos das empresas estatais. Em breve, isso não foi suficiente. Por isso, foi introduzido o método de trabalho intensivo: o sistema Taylor (1). Todo trabalhador camponês foi declarado inimigo do povo e identificado com os kulaks. Com grande energia, os comunistas arruinaram os camponeses quando fundaram fazendas estatais – o latifúndio do novo proprietário de terras: o Estado. Foi isso que os camponeses receberam do socialismo bolchevique, em vez do livre usufruto das terras que acabavam de conquistar. Em troca dos grãos e de vacas e cavalos confiscados, as invasões da Tcheka e os pelotões de fuzilamento.

Que excelente negócio em um Estado de trabalhadores: chumbo e baionetas por um pouco de pão!

A vida dos cidadãos tornou-se desesperadamente monótona e rotineira. Um viver regulado pelos cronogramas fixados pelas autoridades. Em vez do livre desenvolvimento individual e do trabalho livre, surgiu uma escravidão inaudita e inimaginável. Todo pensamento independente, toda crítica justa sobre as ações de governantes criminosos tornou-se um crime passível de punição por meio de prisão e, às vezes, até execução. A pena de morte, essa mácula da dignidade humana, começou a florescer na dita “sociedade socialista”.

Eis o brilhante reino do socialismo, que a ditadura do Partido Comunista tem nos oferecido. Recebemos o socialismo de Estado no qual os sovietes estão repletos de funcionários que votam obedientes ao que é ditado pelo comitê do partido e seus infalíveis comissários. O lema “quem não trabalha não come” foi distorcido pela nova ordem “soviética” em “Tudo para os comissários”. Quanto aos operários, camponeses e à intelligentsia operária, só lhes restou o trabalho descolorido e incansável no cárcere.

A situação tornou-se insuportável e a Kronstadt Revolucionária foi a primeira a romper os cadeados e as grades de ferro desta prisão, para lutar por um tipo diferente de socialismo, por uma República Soviética de trabalhadores, onde os produtores serão donos de seus produtos, que estarão à sua disposição, assim como bem entenderem.

Anexo D

Forte Imperador Alexander I*

Um dos fortes mais interessantes do complexo de fortalezas de Kronstadt é o Forte Imperador Alexander I, construído entre 1835 e 1845 e que possui o formato arredondado. Para nossa sorte, se quisermos sentir in loco um pouco mais a “atmosfera” da rebelião dos marinheiros de Kronstadt, podemos visitar um forte muito parecido aqui mesmo no Brasil, no estado da Bahia, Salvador: o Forte de São Marcelo, construído por volta de 1650. Claro, abstraindo o clima tropical da Bahia, se isso for possível!

Forte Imperador Alexande I

Forte São Marcelo

NOTAS

* “Dokladnaia zapiska po voprosu ob organizatsii vosstaniia v Kronshtadte”, manuscrito, Columbia Russian Archive. (Traduzido do russo por Avrich.) 1 O autor do memorando supõe que a sublevação ocorrerá depois do degelo.

* “Za chto my boremsia”, Izvestiia Vremennogo Revoliutsionnogo Komiteta, março 8 de 1921, Pravda o Kronshtadte, págs. 82-84. (Traduzido do russo por Avrich.)

* “Sotsializm v kavyehkakh”, Izvestiia Vremennogo Revoliutsionnogo Komiteta, marzo 16 de 1921, Pravda o Kronshtadte, págs. 172-74. (Traduzido do russo por Avrich.)

* Pequena contribuição deste esforçado tradutor!

(1) O sistema Taylor foi uma criação da Rússia czarista, como revela Tragtenberg: “O crescimento econômico russo estava também amparado na criação da Escola Técnica de Moscou, dirigida por Della Voce, onde fora introduzido o método de trabalho fundado na sua subdivisão por séries homogêneas e definidas por normas impessoais. Essa escola, no começo do século, fora visitada por norte-americanos, que levaram o método para os EUA e lá criaram escolas iguais. O engenheiro Taylor estudou numa dessas escolas e desenvolveu o método que ele chamou de organização científica de trabalho, também conhecido como taylorismo (Tragtenberg, Maurício. “A Revolução Russa”, Faísca Publicações Libertárias: São Paulo, 2007, pág. 59). Como vimos, toda estrutura da Rússia czarista foi reaproveitada pelos bolcheviques - N.T.

Bibiografia