Autor: Jean Pires de Azevedo
Gonçalves
Senhores,
em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que
mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A
taverneira aí nos trouxe mais vinho: uma saúde!
(Álvares
de Azevedo, Noite na taverna)
A queda do muro de Berlim teve o mesmo
impacto histórico da queda da Bastilha, porém, ademais o significado nem um
pouco figurado do substantivo em comum, seus efeitos foram diametralmente
opostos. Enquanto o êxito da Revolução Francesa abriu espaço, no contexto
sócio, político e cultural, durante todo o século XIX e XX, às aspirações
progressistas do partido popular, como nunca antes, nem mesmo na democracia
ateniense ou na república romana, o malogro da Revolução Russa legou, para o
século XXI, uma onda de conservadorismo crescente, cuja influência se faz
sentir em todas as esferas da sociedade atual.
Passadas poucas
décadas, os entulhos do muro tornaram-se ruínas de um museu a céu aberto
aparentemente tão antigas e exóticas quanto as pirâmides do Egito ou, em sua
versão mais espetacular, suvenir destinado ao consumo de visitantes de parques
temáticos dignos de um “Jurassic World”. Vestígios de um passado soterrado em
seus próprios escombros, hoje é rota obrigatória de turistas deslumbrados e
preocupados em registrar em imagens a “história concreta”, cenário de selfies
sorridentes compartilhadas instantaneamente por milhares de internautas no
ciberespaço, enquanto o guia turístico, ao fundo, se esforça, por mais que
pouca atenção lhe seja dispensada, a repetir a ladainha da qual, no final, o
bem sempre triunfa o mal. Mensagem edificante, sem dúvida, inspirada pela
narrativa dos vencedores, que, na ausência dos antigos rivais, abusam de seu
real papel na história, agora purificada em enredo hollywoodiano. Mas, ao
deixar para trás Berlim unificada, apressadamente em direção a uma outra
atração turística, talvez o Coliseu em Roma ou as colunas da Acrópole
ateniense, o turista, examinando a data da passagem de retorno, se detém
consigo mesmo, lembrando dos inúmeros compromissos que o aguardam na volta,
encerrada a temporada de férias. Diante de tantas coisas mais importantes e
urgentes da vida cotidiana, a história não é senão um passatempo dentre tantos
outros. No ano seguinte, o roteiro turístico pode levar à Disneylândia ou as
Cataratas do Iguaçu.
Constatação chocante para parte dos herdeiros
dos Revolucionários de Mariane. O prestígio da ciência da História foi
rebaixado à mera mercadoria da indústria do entretenimento. Sim, pois, para os
proponentes do socialismo científico, o tiro saiu pela culatra; ironicamente, a missão histórica do “proletariado”,
detentora da razão, operou, para grande perplexidade de seus partidários, que a
tinham como trunfo de uma última cartada infalível, a favor do capital: as
condições objetivas abandonaram as certezas do socialismo científico na mesma
proporção em que os desertores do socialismo real pulavam o muro ideológico
para desfrutar do sabor da Coca-Cola ou do Big-Mc e, depois, assistir o filme “De
volta para o futuro” num incrível videocassete.
Já para a opinião
pública, o fracasso das nações socialistas demonstrou cabalmente não só a
inconsistência de um tal projeto socialista, como também a mácula de todos os
seus vícios. Realmente, os líderes da foice e do martelo colaboraram em muito
para isso, na medida em que a cúpula do Partido Comunista tornou-se uma casta
de privilegiados insensíveis aos sofrimentos do povo, ao qual muitas vezes
vivia na mais absoluta pobreza. Afinal de contas, os heróis da esquerda não almejavam
secretamente o mesmo que seus inimigos da direita, acrescentando-se-lhes, ainda,
uma dose de hipocrisia; pois, não almejavam também, como de fato obtiveram, riqueza
e poder? Ora, não foram figuras como Stálin ou Ceausescu que por si só
colaboraram mais do que ninguém para o desencanto do paraíso por trás da
cortina de ferro, com seus gulags e,
acima de tudo, extermínio em massa? Infelizmente, a URSS não eram as palavras
lindas do poeta Maiakovski. Também o socialismo estava imaturo para o amor!
Já o capitalismo provou
que a liberdade podia ser reduzida às possibilidades de consumo daqueles poucos
que estão totalmente integrados à economia de mercado. (A maior parte da
população mundial, porém, está fora). No mundo sob a égide do dinheiro, a igualdade
é uma quimera, tanto quanto a solidariedade, viável somente no excedente
circunscrito à margem de lucro e compatível à caridade filantrópica. Para os
arautos do capital, conforme a tradição dos velhos ditames do pensamento
conservador, o ser humano está mais para as lições de Hobbes do que para os
devaneios sentimentais do “bom selvagem” de Rousseau – este pai desnaturado com
pretensões a pedagogo. O “homem” é mau por natureza e, desde que o mundo é
mundo, sempre existiram ricos e pobres, senhores e escravos, conquistadores e
servos etc. Essa é a ordem universal das coisas, podendo ser verificada até
mesmo numa comunidade de babuínos. É inútil alterá-la.
Nesse sentido, o
capitalismo, como uma via de mão única, foi entronado ao posto de corolário
lógico da história que é, ao mesmo tempo, o próprio fim da História (momento
pleno de racionalidade), ao negar a própria historicidade para reafirmá-la enquanto
apoteose teleológica do capital.
Na história sem o nexo
racional do movimento dialético, escopo da razão que se revela em seus
resultados e, ao mesmo tempo, indistinta do entretenimento, a circulação da
mercadoria é a única portadora de racionalidade possível: a equivalência do
valor de troca. Sob seu imperativo, toda sociedade se mobiliza em torno da
relação de compra e venda, mas, se
possível, da diversão também, concebível no tempo livre de consumo. Fora dos
limites mercantis, não há espaço para ilusões de futuro alternativo, mesmo
diante da iminente hecatombe ambiental provocada pela Era Industrial. Apesar
disso, tampouco é o fim das utopias, como tanto fora alardeado quando da
derrocada do socialismo no leste europeu. Novas utopias ressurgem, como a democracia, o Estado de direito e aquela que, mais do que qualquer outra, promete
redimir todos os males da humanidade: o
mercado. Como um deus ex machina,
o mercado aparece como a única entidade, ética, imparcial e objetiva, capaz de
purgar todas as mazelas e os pecados da natureza humana.
Do neoliberalismo em
voga no início dos anos 80 mas, principalmente, a partir dos anos 90, quando mal
dissipava ainda a poeira dos escombros do muro de Berlim, duas perspectivas
utópicas concorreram entre si pela vaga deixada em aberto no estafe ideológico
do fim da Guerra Fria: uma utopia positiva (Friedman) e outra negativa (Kurz)
[este autor encontrou especial acolhida no Brasil e em Portugal]. Ambas reduzem
a complexidade das relações sociais, culturais, políticas e econômicas à mão
invisível do mercado. Nada de real nelas está fora dos cálculos e dos jargões
econômicos. Tudo o que foge da rígida relação produção-consumo é visto com maus
olhos e não concernentes, como a originalidade, a ousadia, a inovação, o
experimentalismo, a irreverência, a contestação, a subversão, a criatividade, a
arte, a revolução, a humanidade. A abstração encarnada no “homem médio” da
cultura de massa e indústria cultural é a única possível nesta cidade do sol da
mercadoria. No interior de seus muros, onde tudo é média estatística ou ativos,
a loucura e a genialidade são perigosas e devem ser evitadas, pois, tudo que
escapa ao perfil do cidadão consumidor é perturbador e põe em risco a aurea mediocritas, da qual estas duas
perspectivas não podem sair, causando então mal-estar e merecendo o ostracismo
no manicômio metafórico da exclusão e da não-existência social. Aqui e alhures,
somente é permitido diferenças rigorosamente inofensivas, absorvidas pelo
padrão de consumo. Os milhares de seres humanos (homens e mulheres) que não são
nem Homens nem cidadãos dessa utopia em decomposição perene são condenados ao
desterro em paisagens áridas e desérticas da não circulação de mercadorias.
Entre o ser e o não ser, repete-se indefinidamente em cada indivíduo não
“monetizado” as aflições de um Hamlet, eternizadas pelo bardo inglês: “Quem
suportaria o azorrague e o desprezo do tempo, os erros dos déspotas, as afrontas
do orgulho, as torturas do amor não correspondido, as delongas da justiça, a
insolência do poder, os pontapés que o mérito paciente recebe dos indignos, se
pudesse encontrar a paz para si mesmo, na ponta dum punhal?” Os pontapés que o mérito paciente recebe dos
indignos! Sem dúvida, nada de grandioso, honesto e digno pode aspirar à
existência; nada de sublime pode ser desejado. Nessa república sem amor, sem
paixão, os poetas são sumariamente expulsos, simplesmente porque não podem ser
estimados pela abstração quantitativa do preço vil. Toda dúvida recai apenas no
ato de comprar ou não comprar: um smatphone, um notebook, um televisor led! No
entanto, a natureza indolente dos humanos, movida por instintos imprevisíveis,
põe sempre tudo a perder. “Ah, se não fosse os seres humanos”, poderia lamentar
um adepto destas utopias!
Todavia, como diz o
ditado, “nem tudo que reluz é ouro”, mas, mercadoria, valor em constante
obsolescência, e sob seu conteúdo instável e evanescente as possibilidades de
consumo são sempre determinadas pelo maior poder aquisitivo. Funda-se então na
Berlim etérea da economia monetária um novo apartheid
social, dividindo compradores de não compradores, autômatos consumistas de
minorias (sem dinheiro) que são maiorias!, num cenário sombrio em que o
nazifascismo dos anos 30 e 40, se comparado, seria apenas uma caricatura
bizarra. Da concorrência e do individualismo feroz, emerge a realidade
verdadeira, nua e crua, a qual transcende de longe a forma mercadoria e seu
rastro seguido por uma multidão de avarentos cuja sobrevivência depende de suas
permanências no interior do templo do deus-mercado. De fato, por detrás das
ideias das utopias neoliberais, novos muros de concreto são erguidos pelo mundo
afora: muros étnicos e muros que separam classes sociais, às vezes, países e
continentes inteiros. Dissipada a ilusão da ontologia utópica (positiva ou
negativa) inspirada pelo mercado, reaparecem as reais relações de poder, nem um
pouco mediadas, as contradições e a exploração. No seio da sociedade,
multiplicam-se conflitos entre excluídos que a esquerda desmoralizada não pode
mais representar e incluídos representados por uma direita totalmente
despudorada, da qual, entre suas fileiras, sobressaem patrulhas de grupos
neofascistas, em defesa do stablishment,
e que fazem coro aos gritos insanos de um general franquista: “Morte à
inteligência!”
Exemplos não faltam,
como passeatas de rua, que mais se parecem um circo de horror, sem apresentarem
reivindicações e intransigentes ao debate, ao ostentar apenas ódio e
intolerância e um apelo à força bruta, como tentativa desesperada de
salvaguardar a ordem social; humoristas sem graça, trajados de terno e gravata!
(mais se assemelham a executivos, políticos e juízes), e artistas sem talento,
todos reacionários e ignorantes, a vomitar cantilenas das mais esdrúxulas e retrógradas;
fóruns de discussão na internet recheados de comentários preconceituosos e
agressivos, sem conteúdo algum; jornalismo tendencioso, parcial, mentiroso;
etc.
Nesse contexto, a ciência
não é uma exceção à regra. (Na verdade, isso não é tão surpreendente assim,
pois a ciência, pelos menos desde o século XIX, sempre se prestou a justificar
o status quo colonialista e
eurocêntrico). O emprego das técnicas e tecnologia para criar objetos
encantados e atraentes do ponto de vista do consumo subjuga todo conhecimento às
determinações da produção em série e quase instantânea. A inovação é
consentida, desde que dentro de conceitos totalmente estandardizados e
prescritos pelas pesquisas de marketing.
Também as ciências humanas esvaziam seu conteúdo crítico e incorporam o
espírito da organização empresarial, cuja maior concessão honrosa atribuída a
um professor universitário é a mesma de um gerente de banco, ocupados
obsessivamente em bater metas. Nietzsche já havia alertado sobre o caráter
mesquinho do cientista (“homem teórico”), em sua confiança cega – e ao mesmo
tempo estúpida – no saber (conceitual); homem
teórico que, na definição do grande filósofo, não era senão “homem
alexandrino”, bibliotecário e revisor. Mas nada como o cientista alienado,
restrito à sua área específica de conhecimento, tecnocrata prepotentemente e
especialista burro, que se contenta em corrigir o mundo, de dentro de seu
minúsculo feudo, através da técnica e dos poderes mágicos do deus-mercado. De
tal personalidade, das profundezas vazias do seu ser, só se retém as aparências
de uma postura cuidadosamente afetada, cuja vaidade despropositada e ridícula,
tamanha sua insignificância, é incrementada, porém, pelo poder hierárquico auferido
pelo cargo, moeda de troca de inúmeros abusos[1].
No decurso da
modernidade, a ciência foi monopolizada pela universidade, que também se
prestou a mero instrumento da burguesia. Isso não impediu, porém, que elementos
extremamente progressistas, de origem burguesa, surgissem de seu meio ou que
intelectuais oriundos das classes não burguesas, como, no caso do Brasil,
Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg, entre outros, encontrassem na
academia espaço para uma atuação brilhante. A propósito, com o fim do
verdadeiro movimento socialista em 39, término da Guerra Civil Espanhola, a
universidade foi o único palco de onde brotavam questionamentos à ordem social
e mesmo espaço de subversão. Não por acaso, Maio de 68 foi protagonizado por
estudantes e, às vezes, professores. Entretanto, a universidade também tem seus
modismos, e autores consagrados de hoje de uma hora para outra saem de moda,
juntamente com a “verdade eterna” de seus ensinamentos, para dar lugar a uma
“nova onda”, dessa vez encerrando em definitivo as querelas acerca do
conhecimento... Claro, até a próxima estação! Desnecessário dizer que os
autores em moda representam os anseios da conjuntura do momento, ou, para usar
uma expressão mais elegante, muito a gosto da academia, o “espírito de época”. Na
atual fase pós-queda do muro de Berlim, a universidade recrudesce sua antiga
vocação conservadora, advogando uma total separação entre ciência e sociedade e
orientando suas pesquisas através da produção de conhecimento supostamente
desinteressado, diga-se, ciência “neutra”: tecnologia. [Segundo Paulo Henrique
Amorim, em entrevista a Luis Nassif sobre seu livro O quarto poder, o jornalismo dos Estados Unidos usa uma expressão,
evidentemente inspirada no Mito da Caverna, que diz que “o âncora é aquele que
fica numa caverna, dizendo às pessoas que estão lá fora o que é que está
acontecendo lá fora”. Podíamos parodiar essa frase e dizer, com algumas
diferenças, que o professor universitário é aquele que fica numa caverna,
dizendo às pessoas lá de fora que lá fora é exatamente igual à realidade da
caverna].
Já no caso da geografia,
esta surgiu como ciência acadêmica ostensivamente a serviço dos Estados
nacionais e do imperialismo, tendo evidente caráter reacionário. Mais ou menos
na década de 70 (século XX), a geografia, no entanto, tentou romper com seu
passado filando-se tardiamente ao marxismo e, daí em diante, se transformou na
última vanguarda de um movimento crítico e contestador dentro da universidade
quando críticas contundentes ao marxismo-socialismo já se avolumavam em todas
as outras disciplinas universitárias. Contudo, a partir dos anos 90, mas
principalmente na primeira década dos anos 2000, e a perspectivas para o futuro
não são muito melhores, houve um refluxo drástico dessa geografia crítica,
surgindo em contrapartida uma reação altamente conservadora. Nesse contexto, se
antes se tinha clareza do papel da geografia como ideologia justificadora dos
grandes potentados imperialistas, agora seu passado é atenuado, dando lugar a
uma apologia delirante da relevância da geografia para as ciências. Por outro
lado, nos bastidores departamentais, mais especificamente no âmbito da
antinomia burocracia-criação, a primeira tem atraído muito mais seus quadros do
que a segunda, porque, de certo modo, a burocracia é o jeito mais fácil de
ascender profissionalmente e, acima de tudo, aderir a um grupo político
dominante[2].
Por isso, não é o mérito que está em jogo, este é forjado, antes, por uma
estrutura social e econômica injusta e, ao nível das instituições, por uma
série de práticas obscuras, quase sempre resultadas de manobras antiéticas,
cujo processo desleal é no final esterilizado sob a aparência de insidiosa
legalidade, culminando por fim em premiações bajulatórias. Em paralelo,
internamente à corporação, constitui-se uma espécie de hegemonia da
mediocridade, contente por nivelar tudo por baixo e inibir assim eventuais
guerras de ego, que, diante de perspectivas criativas, instaura uma
inescrupulosa caça às bruxas, objetivando sempre a manutenção da normalidade. Essa
tendência burocrática, monótona, corporativa e, acima de tudo, revisionista
(apologética e histérica) da geografia seria cômica – pois a sociedade em geral
não dá a mínima para a suposta importância da geografia enquanto ciência – se
não ocultasse um aspecto perigoso, que pouca importância tem do ponto de vista
do conhecimento, mas não do ideológico. Ela é reflexo de inúmeras tendências fascitoides
que, como vimos, ganham espaço cada vez maior na sociedade.
Felizmente,
há ainda nas universidades pesquisadores comprometidos com o conhecimento
criativo e que se recusam a compor a tecnoburocracia. É bem verdade que são
elementos isolados e marginalizados. Mas encontram na academia brechas de onde
conseguem resistir à normatização organizacional. Essas pessoas compreendem bem
a verdadeira finalidade da ciência – tanto nas ciências humanas como nas
ciências exatas e biológicas – que é, de um lado, a recusa de todo discurso
taxativo detentor de uma verdade absoluta e, de outro, a percepção de que n possibilidades reais se constituem
como virtualidades sempre abertas para o novo e imprevisível. Nesse sentido,
todo discurso que se recobre do aval científico para afirmar peremptoriamente
qualquer aspecto da realidade, no fundo, limita a realidade infinitita ao
cabresto de um repertório conceitual finito, e por traz de sua pretensa
imparcialidade, sempre se esconde um engajamento político, dissimulado pelos
malabarismos da retórica. Mas a verdadeira ciência não se obriga a prestar
homenagem a autoridades nem a engolir os cânones de certa tradição do
conhecimento. A postura mais apropriada ao trabalho intelectual é, em primeiro
lugar, abster de todo caráter profético, evitando correlatamente o dogmatismo
escolástico e a fé intransigente na autoridade dos textos canônicos, e, em
segundo lugar, ter clareza de que não existe ciência imparcial, que todo
conhecimento se presta a algum interesse, político e econômico. A ciência que
se diz neutra é como um camaleão que, oportunista, adquire as cores de um
determinado ambiente para se omitir quando em perigo ou atacar suas presas.
Contudo, apesar de
realmente existirem pesquisadores sérios na academia, o fato é que esse espaço
está cada vez mais fechado e propenso à burocratização crescente, sempre tendo
em vista o modelo de empreendimento empresarial. Talvez a verdadeira ciência,
isto é, a ciência libertadora das
alienações, num contexto como o descrito acima, deva novamente romper com
as instituições dominantes, estagnadas em disputas de poder pelo poder, e se voltar ao mundo, enquanto ciência da vida (no caso da geografia:
uma geografia da vida).
O presente texto será
introdutório de uma série de outros textos que pretendo publicar nos blogs
“Geografia – isso não serve para fazer nada”, “Geografia X Anarquia” e
“Atualidade da Geografia”. Vale a pena fazer algumas considerações sobre a
asserção que o intitula, isto é, “Geografia – isso não serve para fazer nada”. Todo
estudante de linguística ou de lógica sabe que as “línguas naturais” carregam
sempre ambiguidades. No caso da sentença, formulada quase como um ato de
desespero, no intuito de encontrar uma finalidade para a geografia, a saber, “a
geografia serve para fazer a guerra”, é possível, por meio da negação
determinada (dialética; juízo reflexivo), descobrir sua antítese: a geografia serve, em primeiro lugar, para
fazer a paz! Nesse caso, paz não
é totalmente o oposto de guerra, mas implica a síntese que define um estado de guerra contra a guerra. Esse é
o sentido profundo do pacifismo. Com respeito ao mencionado título deste
artigo, o advérbio “não” produz um efeito de antagonismo, aduzindo um sentido
positivo e outro negativo. O primeiro, de inerência, reafirma o sentido atual e
expresso da sentença, ou seja, a geografia de fato não serve para fazer nada. O
segundo, de reflexão, isto é, da relação necessária de termos em uma totalidade
definida, nega o sentido expresso da primeira sentença pressupondo o seu
contrário, que a geografia não (!)
serve para fazer nada ou não fazer nada.
A forma é a mesma; os conteúdos, contraditórios. Portanto, a segunda proposição
contém uma virtualidade, uma ruptura com o marasmo da geografia expresso na
primeira sentença e que está posto. A negação do “fazer nada” pressupõe uma
possibilidade de a geografia, desde que implodida por dentro, possa um dia ser
útil à sociedade – utilidade que não deve ser entendida como utilitarismo, mas
como conhecimento que responda a questões cruciais da humanidade, como a crise
ambiental e a superação da sociedade de classe (apenas às classes dominantes,
ou a seus lacaios, interessa a interpretação de que não existem mais classes
sociais). Essa geografia deve estar comprometida a uma nova forma de
apropriação coletiva, responsável e mesmo simbiótica, da natureza, tendo por
finalidade o bem estar de toda a humanidade e a preservação do planeta e suas
formas de vida. Isso é muito diferente do que existiu até aqui e, de fato, nada
tem a ver com desenvolvimento sustentável e o crescimento econômico. A
geografia deve se reinventar, através de um novo paradigma social, antiestatal
e antieconômico, o que implica todo repúdio a sua história e seus ídolos.
[1] A verdade é que muitos estão muito
aquém do nível que se espera de um especialista medíocre, como é caso de tipos escroques como o Wagner.
[2] Estes grupos agem como verdadeiras
quadrilhas no sentido de angariar capital político contra possíveis
adversários. Sem dúvida, aí não é o conhecimento que está em jogo, apenas o
poder pelo poder.
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