ESPAÇO
& PAISAGEM
Rascunhos
para estudo dos conceitos “espaço” e “paisagem” na geografia
Autor: Jean Pires de Azevedo
Gonçalves
Quando a geografia aspirou à condição de
ciência, ao final do século XIX, emergindo daí a necessidade de constituir suas
bases epistemológicas, duas tendências opostas nortearam, como um divisor de
águas, projetos nacionais distintos, representados por duas escolas, então
denominadas, muito apropriadamente, pelos termos determinismo e possibilismo.
Anteriormente, a geografia “clássica” auxiliava o empreendimento expansionista
dos Estados absolutistas, compondo sua superestrutura feudal, e tinha na Renascença
sua matriz originária. Disso resultou uma tradição de conhecimento geográfico
adequado à sua época e, portanto, de cunho universal, naturalista e humanista.
Diante do quadro de especializações que caracterizaria a modernidade, a
geografia, que até então não fora mais que um prólogo das ciências, buscou se
alocar no campo das ciências humanas[1],
limitando-se, porém, em justificar ideologicamente o colonialismo da transição
do laissez-faire ao capital
monopolista, ora sob um prisma mercantilista (Ratzel), ora sob um prisma
liberal (La Blache). A relevância da oposição das duas tendências, acima
assinaladas, para justificar o ideário nacional de potências imperialistas, não
é atualmente bem aceita pela história do pensamento geográfico, em virtude do
distanciamento temporal e de uma orientação reacionária dominante, e, hoje,
busca-se relativizá-la por meio do argumento exclusivamente metodológico. Na
verdade, nunca se tratou de método e, sim, ideologia
a serviço do Estado. A geografia moderna nasceu em função dos Estados
nacionais e não foi senão um repositório de teorias científicas das quais
muitas eram racistas e defendiam a supremacia europeia. Neste contexto
colonialista, o determinismo concebeu um programa feudal belicoso para
justificar estratégias geopolíticas no cenário do capitalismo financeiro
nascente; enquanto o possibilismo apostou na globalização do livre mercado.
Dois subconceitos podem ser extraídos daí: espaço
(político) e paisagem (trabalho).
*****
O
resumo acima enseja a breves considerações que pretendo fazer neste ensaio,
sobre espaço e paisagem. Pois, para a geografia, não deveriam caber formulações
obscuras para a formulação de conceitos referentes a estes vocábulos. Ainda
menos incursionar pelas searas do debate filosófico, visando – pasmem! –
substituí-lo (geralmente de modo muito raso). Aliás, ciência não é orgia de
conceitos, inventados irresponsável e inescrupulosamente, a tordo e a direito, apenas
para cumprir cronogramas burocráticos departamentais. Infelizmente, muitos
parecem desconhecer esse bom alvitre e insistem que a “verdade” só pode ser revelada
por meio dos adornos da retórica, como num passe de mágica, ou, nos casos em
que a fraude é deliberada, por meio de tergiversações destinadas a incautos e
néscios de plantão que parecem sempre estar voluntariamente dispostos a serem
ludibriados por teorias fantásticas ou estrambólicas de gurus do momento. É bem
verdade que a clássica divisão platônica entre episteme (ciência) e doxa
(opinião) dá margem a esse tipo de prática viciosa, que se apoia no paradoxo de
que quanto mais obscura a linguagem, de um discurso científico (ou filosófico),
mais a realidade é, por ela, esclarecida. Nada mais mistificador. Tudo se passaria
como se uma misteriosa essência do real perpassasse por detrás das costas da
opinião vulgar, sendo acessível apenas a um seleto grupo daqueles privilegiados
que detêm a chave do segredo e compreendem as tais palavras mágicas. Como
niilistas, nos termos enunciados por Nietzsche, estes intellectual dilletantes renunciam a vida em troca do mundo
abstrato da teoria, incapazes, porém, de enxergar a um palmo diante do nariz.
É
o caso do que se passa com o valioso conceito de megalópole, que quanto mais
numerosos conceitos visam substituí-lo, mais fúteis eles são. O mesmo vale
dizer aos conceitos de espaço, lugar e paisagem, muitas vezes extremamente
elaborados em sua estrutura lógica, mas totalmente supérfluos do ponto de vista
da pragmática e realidade empírica.
(Recordo-me de uma
estudante da Universidade de São Paulo que, ao chegar ao fim do curso de
geografia, lamentava-se por terminar a faculdade sem saber o que era afinal o
espaço na geografia. A sinceridade desta estudante a impediu de assumir uma
postura dissimulada e falsa. O que é raro. A verdade é que sob um palavrório
vazio, na geografia, ninguém sabe realmente o que é esse diabo de espaço!).
Não é preciso lembrar
que tal praxe bizantina é extremamente vã e só encontra terreno no campo de
corporações comprometidas com interesses outros que não o do conhecimento. Ao
contrário, a ciência não deve perder seu vínculo com a sociedade, sua única
razão de ser. Ciência é o que faz o professor da USP Gilberto Orivaldo Chierice
e sua equipe de colaboradores. Ciência deve ser feita para a humanidade e não
para cumprir fins políticos institucionais. Sendo assim, nas ciências humanas,
um bom conceito deve aflorar do senso comum, deve fazer sentido a todos e não
ser uma aberração verborrágica que ninguém entende ou finge entender. O
conhecimento científico deve ser uma ponte entre a ciência e o cotidiano e
servir às pessoas e não a um clubinho de iniciados em certos mistérios
comprometido apenas com benefícios profissionais. Por isso, os conceitos de
espaço e paisagem não devem ser para a geografia uma discussão hermética de especialistas
que habitam acorrentados as trevas no fundo da caverna. Deve, inversamente,
fazer sentidos a todos, aos “leigos”, sem cair num utilitarismo vulgar ou
abdicar de sua complexidade. Ou seja, a construção de um conceito deve pôr
todas as cartas na mesa, sem deixar lacunas ou sonegar informação de
procedimento ou método.
*****
Para descortinar alguma
nebulosidade que paira sobre os conceitos assinalados, acredito que devo antes
fazer algumas considerações a respeito do significado e etimologia das palavras
que lhes servem, para justamente não dar asas à imaginação, com definições estapafúrdias,
e assim não perder o pé com a realidade.
Em primeiro lugar, a
palavra “espaço” tem origem direta do latim spatium.
Os latinos utilizavam o termo na mesma acepção em que se usa atualmente, isto
é, de extensão, área, intervalo de tempo, etc., como fica claro nesta frase de
Ovídio: Romanae spatium est urbis et
orbis idem – “O espaço de Roma é o mesmo que o do mundo”. (No grego antigo,
σπάω [spáo] tem sentido de “quebrar”,
“romper”). Já a palavra “paisagem” vem do francês paysage, de pays, que por
sua vez tem origem do latim tardio pagensis
– derivado do latim pagus – mais o
sufixo -age, também do latim -aticum (em português “-agem”, o qual,
como no latim e no francês, designa estado,
ação ou qualidade, como em aprendizagem,
viagem, etc.). O significado de pagus é “campo, interior, bairro,
distrito, região, cantão, província, camponês, zona rural”, etc. Nota-se que a
palavra “pagão”, do latim paganus
(“rural”, “rústico”, “homem do campo”), tem origem no mesmo radical de
paisagem. Como na antiguidade as religiões eram patrióticas, isto é,
indissociáveis da cidade, aqueles que não eram cidadãos, ou seja, não eram da
cidade, eram bárbaros, selvagens, estrangeiros e também ímpios. (O próprio
cristianismo possuía um caráter urbano). Pertencendo ao mesmo tronco indo-europeu,
a língua grega, nota-se em págos (πάγος) uma ligeira diferença em
relação ao termo correlato latino, significando “cume da
montanha, colina rochosa, parte superior, nata, pico congelado”, etc. Em ambos
os casos, entretanto, percebe-se uma acepção de exterioridade (natureza, campo)
e fica claro que “paisagem” não tem nenhuma denotação política, como no caso do
moderno “país” (pays); ou como seria
o caso da palavra “região”, do latim regere,
“reinar, governar, conduzir”, etc. Ao contrário, seu sentido é justamente
aquilo que deve ser dominado e governado. Aliás, especulando-se, o sentido
político de país deve ter sua origem na autonomia dos cantões, províncias e no
campo (provavelmente, na idade média)[2]. De
qualquer forma, pode se identificar um sentido de “natureza bruta”, oposto à “cidade”
(lat.: ciuitas – civitas [civitatem];
português arcaico: cividade) e civilização (ciuis
– civis), portanto, “campestre”,
“inculto”, que é inequívoco.
Todavia, para se pensar
um conceito, é errôneo estabelecer a sua “verdade” no sentido original da
palavra, em busca de uma pretensa autenticidade primordial, como fez o filósofo
Heidegger. Ao longo do tempo, a língua sofre constantes variações, tanto no
nível do significante como também do significado. O próprio grego e latim
deturparam o sentido primeiro das palavras do proto-indo-europeu e assim por
diante; o que levaria a gênese das palavras a grunhidos incompreensíveis. A
palavra é um signo arbitrário e não um espelho da realidade. A distância entre
o conteúdo significativo de uma palavra e seu objeto é enorme e é sempre
provisório, sendo possível apenas por aproximação e analogias que têm por
última instância uma função dêitica. Apesar destas reservas, vale a pena
realizar um recuo “genealógico” sobre algumas formas lexicais elevadas à
categoria de conceitos, como foi feito acima, até para evitar mal entendidos e
mesmo um fetichismo da linguagem. No caso de “paisagem”, o significado atual
guarda ainda alguns resquícios do antigo, mas a palavra ganhou conotações novas
e próprias que se distanciaram em muito do sentido latino ou grego,
proto-itálico etc. Vulgarmente, “paisagem”, hoje, significa um determinado
ambiente de dimensões apreendidas em um lance de vista, geralmente natural ou
bucólico. Porém, a vista de uma cidade ou de um horizonte urbano também pode
ser denominada paisagem. Denotação que, a propósito, tem em comum um certo
distanciamento do observador e tem como fundação a percepção dos sentidos em
relação a um objeto exterior.
*****
Tais observações bastam
para sondar um contato preliminar sobre o conteúdo fundamental dos conceitos
espaço e paisagem. Portanto, “espaço” pode ser entendido como uma categoria
abstrata e subjetiva; enquanto “paisagem”, como uma categoria concreta e
objetiva. Ou seja, espaço é uma noção abstrata, um atributo das coisas tomado à
parte, tornado geral e que prescinde de todos os outros. Tendo em vista a
polissemia da palavra, sobre espaço,
duas determinações são inescapáveis: extensão
(corpo) e continência (o fundo
negro do Universo). Vejamos este exemplo: um observador se detém diante de uma
avenida, ladeada por inúmeros arranha-céus, repleta de automóveis e pedestres,
luzes, ruídos etc.; este observador, situando-se a si próprio, enquanto eixo
referencial de todas essas coisas, abstrai, mentalmente, todas elas,
subtraindo-as, do seu centro de visada, e remetendo-as a um plano ideal, passa
então a nomeá-las indistintamente de espaço.
(Um possível interlocutor o compreenderia perfeitamente bem se acaso ele
dissesse “este espaço é muito caótico”). Tudo permanece como antes, porém, o
pensamento opera uma economia tanto do ponto de vista da linguagem como do
entendimento. Assim, o espaço é uma ficção, um princípio, uma redução.
Portanto, espaço é, ao mesmo tempo, tudo aquilo que havia sido suprimido da
paisagem sem deixar de sê-lo. Em outras palavras, é forma que se aplica a tudo,
independente de sua natureza. “Paisagem”, por outro lado, é uma noção empírica,
extraída da percepção e dos sentidos, e leva em consideração todos os elementos
de um conjunto panorâmico, supondo ainda dimensões imodestas. Seu nível de
abstração é menor, ocupando um grau intermediário entre o conceito (geral) e o
objeto em si. Nesse sentido, a vista de um horizonte montanhoso ao redor de uma
praia é paisagem; um quadro pictórico
representando uma ponte sobre um riacho, também. Aqui não se trata de
singularidade, mas de conjunto, de elementos inter-relacionados, de
particularidade. A vista de uma casa, de uma sala, de um shopping, etc. é um
elemento da paisagem e é um lugar.
(Importante salientar que “lugar” também tem níveis de abstração próprios da
linguagem e é possível ainda inferir elementos ainda mais singulares, como as
coisas – mesa, xícara, livro, cadeira etc. – que não são lugar).
Como se pode perceber,
toda essa discussão é um problema da linguagem e do entendimento. Nenhum destes
conceitos existe por si mesmo, como fantasmagoria de uma casa mal assombrada. A
“substância” da linguagem é a pragmática e seu contexto sócio-cultural. Uma
caixa pode estar “vazia”, mas isso depende dos referenciais em questão. Nesse
sentido, um lugar pode estar vazio, como, por exemplo, uma sala de aula no horário
de intervalo ou uma sala sem móveis. Conceitualmente, o vazio não é o vácuo; e
o vácuo não é o nada. São referências diferentes. Na prática, essas referências
são muito flexíveis e provisórias. Um conceito é sempre arbitrário por definir
contornos precisos a “objetos” imprecisos. Restam sempre arestas e rotas de
fuga.
*****
Feitas as devidas
reservas sobre a precariedade dos conceitos, grosso modo, diante do que foi exposto
acima, poder-se-ia estabelecer uma escala de valores em que o espaço ocupa o
degrau mais alto (geral, universal), a paisagem, o degrau intermediário
(particular), e o lugar, o degrau mais baixo (singular); sempre considerando os
diversos níveis de abstração e de relação. Ou dito de outro modo, partindo-se
do mais impreciso ao mais definido, tendo-se, a partir disso, o espaço e a
paisagem em pontas opostas. (O lugar do
sujeito é o ponto de intersecção nessa antinomia). Todavia, tal escala
também carece de estabilidade. É possível, diante de uma paisagem, indicar um
determinado aspecto dela e nomeá-lo de “espaço”, de acordo com sua
especificidade (por exemplo, “o espaço verde, arborizado, em uma montanha
rochosa”). O mesmo poderia ser dito em relação a um lugar, situando e nomeando
nele um “espaço”. (Dentro de uma sala, o espaço ao lado da poltrona etc.).
Também um lugar pode conter uma paisagem. Por exemplo, um interlocutor poderia
dizer acertadamente, tanto em termos gramaticais como da competência
linguística, a respeito de uma cidade: “Belo Horizonte é um lugar maravilhoso!”
Essa sentença é bastante capciosa, mas bastante ilustrativa.
No discurso científico,
entretanto, faz-se necessário congelar o significado dos conceitos, até mesmo
para fins operacionais. Esse procedimento, embora necessário, incorre em muitos
riscos, como o perigo de uma constante recaída no mencionado fetiche da
linguagem. Quando não se tem consciência desses riscos, o cientista se torna um
sacerdote e suas pesquisas, uma exegese de textos canônicos compilados de
autores consagrados (de preferência alemães ou franceses!). O critério de
objetividade distancia-se do objeto e passa a ser dado por uma coleção de
citação de textos. Tudo se passa como se os autores desses textos fossem tais
como os profetas e tivessem um canal direto de comunicação com um ente superior
que lhes revelasse a verdade. Nada podendo ser questionado, a única liberdade
possível para um pesquisador é a escolha entre um desses autores, bastando-lhe
reproduzi-lo fielmente, e, assim, anular-se e abster-se de si mesmo
(heteronomia) enquanto sujeito pensante, em completa prostração ao seu ídolo e
em cumprimento servil dos ritos corporativos. Insurgir-se contra tais dogmas
resulta em severas represálias que se justificam em nome do critério de
objetividade! Se todos os membros da corporação estão obrigados ao pagamento de
tributos, os insubordinados, que ousam a ser criativos, devem ser condenados ao
mais completo desterro, a um severo ostracismo institucional. Ou, inversamente,
quando os altos postos da hierarquia conferem autoridade a seus titulares,
estes se arrogam no direito exclusivo de propriedade sobre tais autores e, a
partir disso, usam e abusam de sua condição de “proprietários”, interpretando a
seu bel prazer os textos pretensamente canônicos pertencentes à sua alçada,
muitas vezes deturpando-os de modo muito conveniente, tendo em vista sempre um
projeto pessoal. Em geral, o instinto de rebanho guia os homens teóricos da
ciência moderna no âmbito de suas especializações. Porém, tal discussão desvia
em muito do objetivo do nosso assunto.
*****
Aceitando-se, assim,
para fins pragmáticos, certa rigidez dos conceitos, pode se pensar o espaço na
geografia, que, evidentemente, não é o espaço da geometria, da matemática, da
física, ou da filosofia. Portanto, o
espaço não é o objeto de estudo da geografia! Pois, caso contrário, seria
uma insensatez “mapear”, por ventura, os desenhos de uma xícara de chá! O que
não significa que a geografia dispense o conceito de espaço (pressuposto em
todas aquelas disciplinas). O mesmo pode se dizer em relação à paisagem, que também
não é um termo exclusivo da geografia. Porém, estes conceitos aplicados à
geografia podem ser bem concernentes, como se percebe na distinção entre paisagem natural e a paisagem antrópica. (Todavia, nem sempre
essa distinção é tão evidente; às vezes, uma paisagem aparentemente natural
sofreu intensa ação humana ao longo do tempo).
Feitas estas
observações, vou refletir sobre cinco níveis de análise que me acompanham desde
que elaborei minha monografia de conclusão de curso – “Utopia: princípios de uma
geografia libertária” (2003) –; de minha dissertação de mestrado, “Ocupar e
resistir: problemas da habitação do centro pós-moderno” (2006) –; e de minha
tese de doutorado, “Ocupar, resistir, construir, morar” (2012).
Nível
1: Todo
corpo é extenso (princípio cartesiano). Ou seja, todas as coisas têm uma espacialidade; isto é, é possível
inferir de todas as coisas uma propriedade comum, o fato de terem e ocuparem um
espaço. Espaço é um conceito abstrato
(ou, como diria Nobert Elias, uma categoria de síntese de alto nível de
complexidade[3])
e, portanto, subjetivo. Diz respeito a uma operação mental que reduz a uma
entidade significante uma propriedade necessária a todas as coisas: corporeidade
– continente que também está contido. Em contrapartida, o espaço é vazio, ou
melhor, nada, ou seja, não existe enquanto uma entidade isolada e real
(ontológica) – sua existência é apenas mental (ontologia ideal). A lógica
aristotélica distingue a multidão de característica de um ser e denomina-as de atributos
ou predicados. Sob seus
pressupostos, alguns atributos são contingentes, como, por exemplo, as cores de
um objeto; outros, necessários, como a forma, sua essência. (Uma garrafa é um
objeto para se guardar líquido [essência], mas pode ter individualmente várias
cores, tamanhos, formas etc.). O racionalismo, diante do devir inerente do
mundo empírico e, daí, dos enganos dos sentidos, conferiu condição de verdade
imutável às ideias, como a do espaço
(axioma: todo corpo é extenso – a
extensão é a única constância na multidão transitória dos fenômenos). Já o
empirismo, ao contrário, propôs o argumento de que as ideias são inferidas da
materialidade, através da experiência (nominalismo). Ambas as escolas
filosóficas são uma reatualização do platonismo e do aristotelismo e, por
conseguinte, da querela dos universais (escolástica). Essa discussão, de fundo
filosófico, não compete à geografia. Para a geografia importa saber o conceito
em seu sentido mais trivial, isto é, espaço enquanto categoria abstrata
inerente a todas as coisas e que também contém todas as coisas. Porém, tal
definição de espaço é muito genérica e não se restringe somente à geografia.
Sendo assim, o ponto de partida da geografia quando se trata de pensar o
conceito de espaço é a representação
cartográfica.
A representação
cartográfica também é uma redução em escala infinitamente menor da dimensão
incomensurável e imensa diversidade da superfície do planeta Terra. O mapa,
porém, é uma forma antiquíssima de representação e não teve relação alguma com
a ciência geográfica. A afirmação contrária não passaria de um anacronismo
chulo. A representação cartográfica enquanto prática da geografia surge no
contexto da formação dos Estados nacionais. Diante do imperativo econômico,
isto é, do capitalismo, o espaço geográfico em sentido moderno reduz a natureza
à condição de recurso, portanto, de coisa
– natureza reificada. A cartografia
produz um inventário das reservas naturais destinadas à produção de riqueza. E,
desse modo, tanto a paisagem natural como a antrópica (recursos humanos) são
potencialmente orientadas para esse fim. O levantamento destes recursos tem por
fundo o desenvolvimento econômico de uma determinada nação e suas relações
comerciais. Nesse sentido, também é uma abstração, realizada por meio de
procedimentos analíticos e técnicos, sob o pano de fundo da economia. Assim, o
espaço geográfico só existe como produto cultural e bem situado historicamente.
A paisagem é o conteúdo
empírico, concreto, perceptível, da variedade de elementos da superfície da
Terra, implicada no espaço geográfico. Entretanto, a paisagem não é espaço. O que significa dizer que o espaço é um
pressuposto da paisagem. (Em termos dialéticos, “espaço é paisagem”; tomando-se
em consideração um juízo de reflexão nessa sentença, ou melhor, de contradição).
Nas sociedades
pré-capitalistas, o espaço geográfico não existe. O espaço geográfico ganha
estatuto ontológico somente nas sociedades capitalistas. Pois, com o
desenvolvimento das relações capitalistas, as relações sociais passam a ser
mediadas pela mercadoria; a propriedade (imóvel), até então justificada
diretamente pela força, pela tradição e pelas relações de sangue, passa a ter
mobilidade, ou seja, valor de troca.
Além disso, as transações comerciais exigem a unificação e universalização dos
pesos e medidas, assim como o censo e a jurisdição das fronteiras dos Estados
nacionais. Daí se pode concluir que, no capitalismo, o espaço não é paisagem, mas mercadoria. (Novamente, juízo de
reflexão, a “paisagem é espaço”). Assim, no modo de produção capitalista, o
espaço geográfico se torna uma abstração
concreta (“universal-real”), o que vale dizer que é, socialmente, a única
realidade efetiva (essencial), enquanto a paisagem passa à condição de sua
aparência (fenômeno). Dito em outras palavras: o espaço que era mera forma
ideal ganha substância de realidade e se torna fundamental; de atributo passa,
de modo metonímico, à condição de ser
(ontológico).
Nível
2: Como
já foi dito aqui, exaustivamente, espaço
é uma categoria engendrada pelo pensamento; não existe como coisa em si, como
uma coisa externa ao pensamento. Porém, no modo de produção capitalista, como
em nenhum outro, algumas noções abstratas tomam tamanho vulto socialmente que
acabam tornando-se centrais e ontológicas: é o caso do Estado e do valor. A
propriedade privada tornando-se móvel, pela ação do dinheiro, também encontra
grau de realização em uma esfera abstrata, jurídica e contratual. Toda a
sociedade se organiza em torno de sua realização. Empiricamente, não há nenhuma
relação intrínseca e necessária entre o solo e uma pessoa; mas a atividade
social é constituída de tal modo que torna possível a ficção da propriedade
privada: o selo inviolável do proprietário da terra. A propriedade privada é o
modelo da questão territorial. O vínculo da propriedade privada com a noção de
território é incontestável. Basta lembrar que metade do território
estadunidense foi comprada como qualquer mercadoria. A lógica é mesma. No
entanto, a expropriação – acumulação primitiva – é, frequentemente, o
fundamento da formação territorial, assim como o foi da propriedade privada, e
aí o que está em jogo, no fundo, são as relações de poder (espaço e política).
Consolidadas as
relações capitalistas, no âmbito territorial, algumas unidades de medidas
expressam a forma do valor na questão da terra, como o hectare, alqueire, o
are, etc. A mais importante é o metro quadrado (m2), que é a unidade mínima,
servindo de base a todas as outras, tanto no campo quanto na cidade. No
capitalismo, ela é essencial (o terreno construído, baldio, etc., são contingenciais,
meros fenômenos, dos negócios
imobiliários). No intercâmbio de mercadorias envolvendo paisagem, não é o
conteúdo concreto mas o metro quadrado o parâmetro da troca e do valor. Por
exemplo, o preço médio do metro quadrado do bairro de Botafogo em 2012 era de
R$ 13.520,00. Aqui não são as características físicas que entram no cálculo
final dos especuladores. Outro exemplo: a oferta de um imóvel por uma corretora
imobiliária será anunciada do seguinte modo: “vendo imóvel na Lapa de 92 m2 por
675 mil”; etc. Ou seja, não é o imóvel em si que entra na circulação de
mercadorias, e, sim, uma abstração, o espaço.
É o espaço que vai ao mercado enquanto expressão do valor, e não as aparências
concretas, a paisagem, o bairro, a arquitetura etc., que só entram na relação
de troca enquanto valor de uso.
Na lógica da troca,
poder-se-ia estabelecer o metro quadrado em Botafogo sendo equivalente a dez
computadores ou a cinquenta relógios e assim por diante até chegar a sua
expressão em dinheiro (à época, em 2012, de R$ 13.520,00). O que torna possível
esta equivalência é o tempo de trabalho
socialmente necessário; isto é, trabalho
abstrato (substância do valor), como ensina Marx, em O capital. O metro quadrado de um apartamento no bairro do Morumbi,
idêntico a um apartamento no bairro do Ipiranga, vale mais por causa do maior quantum de trabalho agregado na mercadoria
“Morumbi”, incluído aí o capital simbólico. Portanto, a paisagem concreta,
empírica, aparece como simples aparência, fenômeno, uma modalidade da
mercadoria (valor de uso). O espaço aqui é reificado; é uma coisa abstrata e
concreta. Essa coisa diáfana se realiza, alcançando status ontológico, apenas
socialmente, mas fundamentalmente. A atividade social lhe confere existência.
São ideias, símbolos, signos, coisas, substâncias que existem efetivamente,
como numa metafísica real. Um empirismo vulgar (ou um materialismo burro)
poderia se perguntar: onde está o espaço?
Não está diante das sensações da visão, não se pode vê-lo, do mesmo modo que
Mach negava o átomo. O fato é que o materialismo vulgar ignora que a sociedade
produz coisas imateriais que, por sua vez, cumprem funções essenciais no
interior das relações humanas e, de fato, alteram a matéria (objetividade). Ao
nível das relações sociais, as noções ideais são determinantes, ultrapassando
em muito sua condição ideal. Mesmo na relação de troca de mercadoria (dinheiro),
condicionada por um componente quantitativo e que poderia, em última instância,
ser comprovada pela contabilidade, há um elemento moral, que veio primeiro e
que é a confiança entre os agentes no ato da troca. Se não houvesse esse
pressuposto ético na gênese do comércio, o capitalismo seria impossível, mesmo
na sua última forma totalmente objetiva, o cartão de crédito e débito (dinheiro
digital). O crédito (acreditar, crer), ao contrário do que muitos afirmam, não
é uma forma moderna, mas um dos modos mais arcaicos nas relações de troca. A
promessa move montanhas! Portanto, a paisagem convertida em categoria econômica
perde sua materialidade e se metamorfoseia em sua negação, o espaço, que
adquire estatuto de realidade social última.
Eis aqui um ponto
central que parece negar tudo o que foi dito: a atividade social se realiza não
só por relações objetivas, a exploração do trabalho ou as coerções ligadas ao
poder, mas também por relações subjetivas. Foi esse o teor da crítica de Marx
ao materialismo vulgar em suas Teses
contra Feuerbach e é esse a ponto central da formulação weberiana.
Entretanto, não há um primado nem da objetividade nem da subjetividade, mas uma
relação mutua e dialética entre sujeito e objeto. O espaço, enquanto extensão,
medida, é um epifenômeno da paisagem, mas, enquanto valor, sua própria essência.
A partir daí, a paisagem, tanto natural
como antrópica, será produzida a partir do espaço. (O subjetivo torna-se
objetivo e vice-versa).
Nível
3: As
sociedades humanas além de produzirem bens materiais também são produtoras de
bens imateriais, às vezes, chamados de moral (ethos). Esses bens imateriais são ideias, símbolos, signos,
imagens, mensagens, valores, condutas, hábitos, regras, normas etc. Os grandes
poemas épicos e os textos do Velho Testamento, por exemplo, foram transmitidos
oralmente até que, tardiamente, foram registrados sob a forma da escrita. Tanto
um como outro, instigavam o sentimento de unidade patriótica e a identificação
a um repertório cultural atribuído a um povo supostamente ligado por sólidos
laços de ancestralidade. Por meio de referenciais significativos, constituía-se
assim a organização social. Nesse sentido, o imaginário é, ao mesmo tempo,
estruturante e estrutura e, do mesmo modo, como já foi apontado pelo estudo
linguístico, a linguagem é uma estrutura-estruturante, assim como o mito, em
sociedades tribais. Muitas outras representações, cosmogonias, visões de mundo
e também o pensamento lógico foram, entretanto, engendrados a partir da base
hierárquica em uma dada comunidade. Relações de poder que são, a um só tempo, política
e econômica, superestrutura e estrutura. Não cabe aqui estabelecer a primazia
do sujeito ou do objeto, do ovo ou da galinha. O mais cauteloso, talvez, seria
tomar uma posição semelhante à de Bourdieu. Porém, como poderia afirmar David
Hume, o que está por trás de todas essas condicionantes, materiais e imateriais,
subjetivas ou objetivas, é a violência pura e simples. Ou dito de outro modo,
todo o edifício da civilização, com suas obras artísticas e alta cultura, tem
em seus alicerces a força bruta: o poderoso tacape nas mãos sanguinárias do
primata humano que subjuga a mulher e os mais fracos. Toda a lei, sem exceção,
é a lei do mais forte. Por isso, toda a civilização tem em sua característica
essencial aquilo que poderíamos chamar hipocrisia.
A hipocrisia é cimento das relações humanas no âmbito das instituições sociais.
Assim é a justiça: determinação universal para pôr em prática regimes de
exceção. Assim também é o Estado democrático de direito, as instituições, a
religião, etc. Nesse sentido, não há fator de coesão social mais poderoso do
que a hipocrisia, isto é, a mentira.
Esta hipocrisia tem uma função de assepsia ao transubstanciar todas as
impurezas da conflituosa realidade social em aparência translúcida, racional,
lógica, burocrática. É por meio da razão que a violência atinge seu mais alto
grau devastador.
Esta
digressão abre terreno para pensar o espaço propriamente geográfico. Fato
primordial, esse espaço é uma mentira,
uma grande hipocrisia. Fato primordial, o
espaço geográfico é produto da violência. Ele tem início no renascimento
comercial e urbano na baixa Idade Média; portanto, quando do surgimento da
burguesia. Nasce do incremento das rotas comerciais que atravessaram todo o
continente europeu e além. Nasce da necessidade de estabelecer padrões de pesos
e medidas, moedas, legislação e unidade e homogeneidade territorial. Nasce da
contabilidade, do cálculo e, acima de tudo, do lucro, da riqueza móvel, da
moeda. Em suma, tem por pressuposto o mercado, um sistema de transporte, uma
centralização política vertical, um exército permanente e regular, tribunais,
política fiscal e de arrecadação subordinadas a uma burocracia central, um
direito nacional e internacional, um território uniforme e instituições
nacionais estáveis.
No início da Era
Moderna, o feudalismo faz inúmeras concessões, através do poder feudal e
absoluto dos reis, aos interesses da burguesia cada vez mais poderosa. Mais
tarde, com as Revoluções Burguesas – a ascensão da burguesia à classe dominante,
de fato e de direito –, constituem-se os Estados modernos e o sentido
propriamente político de soberania nacional. No bojo desse desenvolvimento, a
nacionalidade é forjada pelas artes, cultura e ciências, de onde surgem
concepções de unidade étnica, biológica, linguística, cultural, de laços
estreitos de um grupo humano ao solo dito materno, de caráter e de raça, de
forte componente racista e xenofóbico, de ícones, símbolos e representações
nacionalistas etc. De fato, na natureza não existem fronteiras, tratados,
território, soberania, recursos naturais, acidentes geográficos etc.; ou, para
usar uma expressão filosófica, a natureza em estado bruto é natura naturans. Todo o resto é, por outro lado, natureza transformada e
singular, que se concretiza histórica e socialmente, enquanto idiossincrasias
humanas, por assim dizer, natura naturata
(em sentido laico e humanizado) – mundo criado[4].
Eis a natureza do espaço!
Talvez, entre a Revolução
de Avis e à descolonização da África, o mundo todo passou a ser traçado sob o
paradigma do Estado nacional e de seu condicional inexorável: o genocídio. Sem dúvida, o conceito
eurocêntrico de Estado nacional foi imposto ao resto do mundo à base das baionetas,
canhões, napalm e mísseis nucleares. Povos, para os quais o conceito de nação
era totalmente estranho, hoje, no mundo globalizado, ou geograficizado,
introjetaram e projetam elementos identificadores alienígenas à sua cultura,
reproduzindo-os frequentemente de modo bastante particular.
Nível
4: Entre
os antigos não existiam limites territoriais precisos. Os povos de origem
greco-latina demarcavam a propriedade por meio de pedras e troncos,
representados pelo deus Termo, conforme os preceitos da religião doméstica
(Fustel de Coulanges). Para os germanos, apenas a colheita era considerada
propriedade; o solo, não (idem). As fronteiras dos impérios também nunca foram
bem definidas, sendo o território protegido localmente por exércitos, fortes,
governos provinciais, etc. Na Idade Média, o poder político estava descentralizado
e disperso nos senhorios feudais e a propriedade apenas de direito pertencia ao
Rei (ele próprio um senhor feudal, frequentemente, menos poderoso que seus
vassalos). A noção abstrata de território, através de fronteiras precisas e
consagradas por tratados internacionais, aparece apenas com a invenção do
Estado nacional na Modernidade. Evidentemente, nenhum Estado é separado por
acidentes naturais. Estas demarcações são artificiais, oriundas da prática
simbólica, política e econômica. É, como vimos, o espaço geográfico por
excelência.
O
espaço, nessa perspectiva, tem um componente político que ordena e administra um
dado território delimitado por convenção, pressupondo recursos naturais e
humanos como fonte de riqueza. Em última instância, sua força motriz é a
pilhagem. Essa unidade potítica-nacional-territorial é denominada “país”. Ainda
que artificial, há fatores históricos e culturais pelos quais a nacionalidade é
justificada e que dão suposta consistência à ocupação do solo na esfera do
direito. Esses fatores, porém, não são homogêneos como apregoa a ideologia
nacional. Na maioria das vezes, as discrepâncias, política-social-econômicas e
regionais, que recobrem uma área territorial, são gritantes. A identidade
nacional é, assim, forjada a ferro e fogo, inculcada na mentalidade desde a
mais tenra idade, doutrinada nas escolas e nos quartéis, mas principalmente nas
torturantes aulas de geografia. Como toda identidade, afirma-se em detrimento
do “diferente”.
Além disso, esta identidade
nacional se afirma por suposto consenso que, em última instância, encontra
respaldo legal em termos contratuais celebrados pelas partes (classes sociais)
envolvidas e em pé de igualdade; isto é, por meio de um pacto abstrato e
exterior firmados pelos sócios (capital-trabalho), que, pressupõe-se,
reconhecem todas as clausulas estabelecidas, ainda que as desconheçam todas de
fato, e aceitam como mediador a figura aparentemente neutra do Estado. Assim, a cidadania moderna confunde
individualidade, coletividade e pessoa pública com pessoa jurídica, que, no
Estado moderno, é anterior ao nascimento dos indivíduos reais. Não é, todavia, a solidariedade afetiva e de intimidade que diz
respeito aos laços concretos que no Estado de direito foram relegados à esfera
da privacidade. (O sociólogo Ferdinand Tönnies estabeleceu a diferença entre comunidade e sociedade; aquela correspondente aos grupos unidos pelo parentesco,
vizinhança e costume; esta, à vontade individual e exterior aos interesses do
grupo). No entanto, a sociabilidade formal que se dá no âmbito político e
jurídico é performática, ritualística e aparente, expressão ideológica do
conteúdo econômico e desigual da sociedade de classes. Sendo assim, a maior
parte da “sociedade”, a imensa maioria dos indivíduos, fica de fora das grandes
tomadas de decisão coletiva e da apropriação da riqueza gerada pelo coletivo. O
conceito de nação encobre a exploração social e a segregação, conferindo a
sensação ilusória de pertencimento e fraternidade. Portanto, o processo de
lavagem cerebral, ou de introjeção-projeção de valores formadores da identidade
referente à nacionalidade, é, no fundo, uma sabotagem da própria individualidade,
da solidariedade, da coletividade e da unidade de classe, e não é senão é
alienação política, econômica e social. O soldado (proletário), por exemplo,
mata e morre por uma bandeira, por um desenho que está num mapa, por uma causa
abstrata e alheia aos seus verdadeiros interesses, mas incutida como sua e, ao
mesmo tempo, maior de que a própria vida: questões de Estado. Sim, de fato, os
senhores da guerra (o capital, governos e empresários), muito distantes do
front, do campo de batalha, sem correr riscos, brindam os resultados sangrentos
da guerra como numa partida de xadrez. A cada lance, a cada peça perdida,
terreno conquistado são os recursos naturais e humanos que estão em xeque. Em
suma, é sempre o capital que inventa as regras do jogo.
O espaço geográfico tem,
nesse contexto, caráter estratégico. As classes dominantes, cujo Estado de fato
representa, determinam o destino da sociedade, tendo em vista seus próprios
interesses de classe, forjados universalmente como interesses da nação. Aqui o
Estado é a encarnação moderna do Leviatã.
Teoricamente,
do outro lado do espaço está a paisagem. Essa é constituída pelo trabalho – espaço construído – e tem
seus alicerces assentados na economia liberal. O trabalho molda a superfície da
terra e, nessa inter-relação, produz riqueza. Grandes extensões da superfície
da Terra podem ser completamente transformadas e apropriadas. O trabalho
confere, assim, o direito de propriedade privada. Tanto o liberalismo clássico
quanto o marxismo partem desse axioma. Proudhon, apesar de todos os seus
defeitos, não se furtou em responder o dilema, proposto por ele mesmo, pelo
qual questionava se a instituição da propriedade privada tinha por germe a
política ou a economia; após submeter esta antinomia a rigoroso escrutínio,
chegou à conclusão de que a propriedade é impossível, pois sua origem é um
produto social e não natural. (O liberalismo naturaliza a economia). Sendo
impossível, toda teoria política ou econômica era vã, porque partia de um
pressuposto histórico e social, corolário da força, ou melhor, do roubo. Mas, o
liberalismo – bem como suas teorias afiliadas (que, inclusive, o contestam) –
concebeu o corpo como propriedade privada do indivíduo e tudo aquilo que
aparece modificado pela ação corporal, a matéria exterior moldada, também é, em
teoria, extensão do próprio corpo – propriedade (aquilo de que é próprio) inorgânica e descontínua.
Dentro dessa lógica, o trabalho (atividade corporal ou mental) é alienado
quando se torna mercadoria, passível de ser vendido a terceiros. É nesse
sentido que a paisagem se torna fruto do trabalho alienado e que, por isso, também
pode ser um objeto sujeito à venalidade, entrando no circuito da troca de
mercadorias.
*****
Mas como já se disse
repetidas vezes aqui, a sociedade se organiza por valores objetivos e
subjetivos. Todos sabem que o tempo do relógio é uma invenção, uma convenção
cultural instituída ao longo dos séculos. Esse tempo é estranho a muitas
culturas que têm outras percepções temporais: o nascer do sol, as fases da lua,
as estações do ano, as migrações da fauna, o ciclo da agricultura, o
deslocamento da sombra etc., que são infinitas manifestações do tempo empírico,
qualitativo. A contagem do tempo através de símbolos numéricos tem a mesma
função das medidas espaciais, como a régua, isto é: estabelecer referenciais
homogêneos e universais. Uma hora poderia ter cem minutos; um minuto, 50
segundo; um dia, 20 horas etc. Contudo, não é uma invenção sem lastro real.
Como a linguagem, em última análise, o tempo abstrato tem uma função dêitica e
indica a passagem das inúmeras manifestações temporais em uma única unidade de
medida. O tempo abstrato reduz o tempo concreto a uma noção ideal; sua
identidade é conferida pela negação determinada (A é não-A). Dito com outras
palavras, o tempo do relógio é uma mediação (artificial) que, no entanto, se
torna socialmente imediata, natural, ou melhor, segunda natureza. A sociedade humana, ela própria natureza,
reinventa a natureza a partir da própria natureza, transformando-a (em produto
humano, cultural), e não se reconhece mais enquanto natureza, pelo
distanciamento e pela identificação com sua própria produção (espelho) – podemos
chamar o ser humano de natureza negativa.
Por isso, o tempo do relógio tem funções pragmáticas, importantíssimas para a
administração e o funcionamento das instituições sociais. No capitalismo o
tempo abstrato é essencial. As estações do ano, as fases da lua, o nascer do
sol etc., nesse modo de produção, são contingências, os quais quase passam
despercebidas e estão em função do tempo abstrato. No mundo rural, o tempo
qualitativo ainda mobiliza a organização social. Nas sociedades urbanas,
segunda natureza por excelência, é o tempo do relógio que regula todas as
atividades humanas. A história humana é uma constante superação da natureza.
Mitigadas as necessidades primárias, como a alimentação, o abrigo, etc., outras
necessidades mais refinadas e complexas aparecem como prementes e são, do mesmo
modo, superadas. A paisagem é talhada na superfície da terra assim como uma
pedra de mármore é esculpida. “Vênus de Milos” ou o “Pensador”, de Rodin, não
perderam as suas qualidades físicas minerais ao receberem a forma humana, mas
se tornaram produto cultural, transformaram-se em obra-prima.
Para a geografia, a
paisagem é reduzida a espaço geográfico, ou seja, um manancial de matéria-prima
inventariado e disponível às demandas política e econômica dos Estados
nacionais.
Nível
5: O
espaço é definido no seu sentido mais trivial, de uso corrente, e irredutível à
rigidez do conceito. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista
rigoroso, seu uso um tanto irresponsável é bastante temerário, principalmente
quando não se tem clareza de sua natureza banal, por outro lado, seu alcance é
extremamente poderoso. Aliás, uma possível tentativa de defini-lo limitaria em
muito sua potência, ao ponto de inutilizá-lo por completo e sabotar o seu
alcance. Seu uso, no entanto, é muito flexível e se aplica a muitas situações.
Pode ser referido ao céu, à noite, às estrelas e à escuridão do infinito, o
universo. Pode se referir ao chão, à rua, às casas, aos prédios, a uma floresta,
rios, montanhas etc. Pode se referir a distância entre uma mesa e uma cadeira,
ou entre uma casa e uma escola etc. Enfim, nesse sentido, espaço é bastante
versátil. Seu significado emerge do senso comum, da definição do dicionário, da
acepção consagrada já evocada acima, de extensão, área, sítio, lugar,
intervalo, duração etc. Aqui a utilização do vocábulo carece da necessidade de
se encontrar uma essência pura e dispensa definições prévias do conceito para
dar início a um argumento. Tampouco é restrito à especialização de uma ciência
ou a códigos corporativistas. É o espaço compreensível a todas as pessoas,
sejam elas leigas ou não. Nesse caso, poderíamos dizer com o Wittgenstein,
“permita Deus ao filósofo ver o que está adiante de todo mundo”. Nessa
proposição, o que está em jogo é a pragmática. Se, por exemplo, enuncio a
expressão “valorização do espaço” para me referir ao valor agregado ao terreno
construído e arredor ou à especulação imobiliária e tal expressão cumpre sua
função comunicativa, sendo perfeitamente entendida pelo meu interlocutor,
então, o termo espaço é perfeitamente legítimo. O que seria um equívoco é
conceder ao termo uma áurea conceitual, hermética e exclusiva, e usá-lo como um
tapa buraco retórico em textos “científicos”. Tal procedimento, ao invés de
esclarecer, gera mais mistificações e distanciamento entre o trabalho do
especialista e a sociedade e é infrutífero. É o que costumeiramente ocorre na geografia;
daí esta ciência perder todo diálogo com a sociedade e se tornar totalmente
dispensável.
Do
que foi dito sobre o espaço em sentido trivial, poder-se-ia dizer a mesma coisa
com relação à paisagem, salientando, inclusive, um valor estético, relacionado
à beleza, entre suas múltiplas acepções.
Apontamentos
do espaço em Henri Lefebvre
A minha leitura do
espaço nos textos de Henri Lefebvre incorre em algumas questões que considero
pertinentes à geografia. Primeiramente, o pensador francês não define o espaço
como exterioridade abstrata pura e simplesmente nem destaca a paisagem como
elemento material epistemológico, pois, para Lefebvre, o espaço é extremamente fluído
e irredutível a sistematizações. Portanto, não é uma categoria elaborada e
acessível ao conhecimento por meio de uma teoria metodológica formalista,
baseada no raciocínio dedutivo (de gabinete), mas pelo envolvimento concreto do
conteúdo sob uma perspectiva materialista da lógica dialética. Parte-se da
forma pura (princípio da identidade), que se implode, em sua autoafirmação
positiva (tautológica), como negação. A superação/supressão (aufheben) da
contradição gerada pela identidade é o conteúdo concreto. Por isso, a dinâmica
da realidade espacial só pode ser entendida no movimento que jamais abstém do
pensamento o mundo empírico em devir.
Neste sentido, tomando-se
provisoriamente o mencionado axioma cartesiano “todo corpo é extenso”, Lefebvre
dessacraliza a consciência do “res cogitans”, diluindo o dualismo corpo e mente
na “res extensa”. Assim, o espaço revela sua natureza mundana e é corpo (a
consciência é mera contingência) em atividade; ou, dito de outro modo, é forma
que reveste a potência contida em todas as coisas existentes no universo. Por
isso, toda existência implica na produção de espaço por entes espaciais. Os
seres viventes, assim como os seres ditos “inanimados”, são e produzem espaço.
A vida é uma das modalidades do existir.
As sociedades humanas, movidas pelo
querer viver, produziram e produzem espaço desde o seu surgimento. Embora
elemento natural, estas sociedades dominaram as forças da natureza e criaram um
ambiente “artificial”, que nada mais é que a transformação da natureza em forma
natural humana. Essa humanização do mundo poderia ser equiparada a qualquer
outro elemento natural que deixa marcas na superfície terrestre, como o
vulcanismo. Mas dada a versatilidade de manipulação da matéria pelas sociedade
humanas, isto é, a liberdade, que supera em muito as limitações anatômicas da
espécie, a humanidade definiu, aos seus próprios olhos, a sua criação de
cultura ou civilização. A prática espacial, subjacente à atividade humana,
moldou o mundo em âmbitos materiais e imateriais. A geografia denomina estas
transformações da natureza como paisagem antrópica. Porém, esta ciência,
ateve-se ao nível mais concreto, hipostasiando as representações, para a esfera
da teoria pura. A prática espacial, de fato, envolve uma complexidade de
representações que tem origem no vivido.
Do paleolítico ao ciberespaço; do espaço
empírico ao espaço mental... enfim, do ponto de vista histórico, o
desenvolvimento das sociedades humanas sempre foi marcado pela escassez,
primeiro, de suas necessidades fisiológicas, mais elementares, em oposição a um
mundo hostil de inacessíveis recursos naturais infinitos. O conflito entre
grupos humanos foi assim inevitável. No limite, lutava-se por pão. A fome, o
frio, a aridez, enfim, as intempéries naturais dispunham os seres humanos em
uma guerra hobbesiana de todos contra todos, vivenciada por tribos nômades e
sedentárias, no campo e na cidade. Nas comunidades que alcançavam relativa
estabilidade, seguiam-se as lutas pelo poder por parte dos segmentos sociais
mais agressivos que, a partir disso, buscavam subjugar a “plebe” e os
estrangeiros à situação de escravidão. Tal condição belicosa não impediu a
criação de obras, expressas nos monumentos, na arquitetura grandiosa de
templos, cidades, castelos etc. Somente na modernidade, principalmente com o
advento da Revolução Industrial, a lógica da escassez começou a se inverter. O
capitalismo conciliou ciência e técnica e tornou possível uma produção
potencialmente infinita. A produção industrial representou uma superação quase
absoluta da primeira natureza, expressa no desenvolvimento urbano mundial.
Porém, a produção capitalista, fundada no lucro pelo lucro e na mais-valia,
concentrou a riqueza produzida nas mão de uma minoria, enquanto a maior parte
da população no planeta ainda subsiste sob as agruras da escassez ordinária.
Deste modo, a guerra não foi extinta em mundo em que a paz é virtualmente real.
Pode se dizer também que a produção em série, estandardizada e para o consumo
descartável significou o fim da criação da obra. Em vez de liberdade
(humanismo), os indivíduos se converteram em autômatos, a serviço do
mercado.
Lefebvre acabou por lançar as bases da
geografia no século XXI, pois identificou o paradoxo contido na sociedade da
abundância, que gera uma inédita escassez de espaço. No limite, o colapso
ambiental está diretamente associada com o crescimento econômico, seja ele
sustentável ou não. Ao dilema de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”,
poder-se-ia acrescentar o abismo da destruição irreversível dos recursos
naturais em escala planetária.
Conclusão
Não
é possível, no âmbito das ciências humanas, estabelecer a primazia entre o
político e o econômico; no nível do vivido, estas atividades não são distintas,
sendo possível separá-las apenas pela análise. A importância de cada uma é
determinada conjunturalmente. O mesmo se poderia dizer em relação ao espaço e à
paisagem. Embora espaço, na modernidade, tenha um viés político e paisagem,
econômico, nem sempre é possível decantá-las em substâncias puras e distintas.
Espaço pode estar carregado de implicações econômicas, assim como a paisagem de
implicações políticas. Tudo pode depender de uma questão de perspectiva em uma
dada situação e um contexto.
[1] A geografia não tinha – e não
tem! – como rivalizar com as ciências especializadas em vista de seu caráter de
síntese e formação fragmentária. No terreno dos estudos naturais, suas
pesquisas sempre ficam muito aquém da produção das demais ciências como a
geologia, meteorologia, agronomia etc.
[2] Aqui poderia ser interessante
estudar a estrutura da sociedade de língua francesa no período do Antigo Regime
e anterior. Instituições antigas como pays
d’état, pays d’élection e pays d’imposition devem certamente estar
na base do seu atual sentido de centralidade política e administrativa.
[3]
Embora mencione aqui Nobert
Elias, penso que sua recusa em utilizar o termo abstração e preferir síntese de alto grau de complexidade é
etimologicamente equivocada. O sentido de síntese
é justamente aquilo que é concreto;
enquanto o de abstrato, o que é separado.
[4] Os termos natura naturans e
natura naturata da seiva platônica e célebres em Spinosa são apropriados por
mim de um modo ligeiramente distinto. Escreverei um texto sobre esse tema.
Posts relacionados:
Apresentação, Atualidade da geografia, Possibilismo X determinismo, Música e geografia
Posts relacionados:
Apresentação, Atualidade da geografia, Possibilismo X determinismo, Música e geografia
Nenhum comentário:
Postar um comentário