sábado, 2 de abril de 2016

ESPAÇO & PAISAGEM

ESPAÇO & PAISAGEM
Rascunhos para estudo dos conceitos “espaço” e “paisagem” na geografia

Autor: Jean Pires de Azevedo Gonçalves

Quando a geografia aspirou à condição de ciência, ao final do século XIX, emergindo daí a necessidade de constituir suas bases epistemológicas, duas tendências opostas nortearam, como um divisor de águas, projetos nacionais distintos, representados por duas escolas, então denominadas, muito apropriadamente, pelos termos determinismo e possibilismo. Anteriormente, a geografia “clássica” auxiliava o empreendimento expansionista dos Estados absolutistas, compondo sua superestrutura feudal, e tinha na Renascença sua matriz originária. Disso resultou uma tradição de conhecimento geográfico adequado à sua época e, portanto, de cunho universal, naturalista e humanista. Diante do quadro de especializações que caracterizaria a modernidade, a geografia, que até então não fora mais que um prólogo das ciências, buscou se alocar no campo das ciências humanas[1], limitando-se, porém, em justificar ideologicamente o colonialismo da transição do laissez-faire ao capital monopolista, ora sob um prisma mercantilista (Ratzel), ora sob um prisma liberal (La Blache). A relevância da oposição das duas tendências, acima assinaladas, para justificar o ideário nacional de potências imperialistas, não é atualmente bem aceita pela história do pensamento geográfico, em virtude do distanciamento temporal e de uma orientação reacionária dominante, e, hoje, busca-se relativizá-la por meio do argumento exclusivamente metodológico. Na verdade, nunca se tratou de método e, sim, ideologia a serviço do Estado. A geografia moderna nasceu em função dos Estados nacionais e não foi senão um repositório de teorias científicas das quais muitas eram racistas e defendiam a supremacia europeia. Neste contexto colonialista, o determinismo concebeu um programa feudal belicoso para justificar estratégias geopolíticas no cenário do capitalismo financeiro nascente; enquanto o possibilismo apostou na globalização do livre mercado. Dois subconceitos podem ser extraídos daí: espaço (político) e paisagem (trabalho).

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            O resumo acima enseja a breves considerações que pretendo fazer neste ensaio, sobre espaço e paisagem. Pois, para a geografia, não deveriam caber formulações obscuras para a formulação de conceitos referentes a estes vocábulos. Ainda menos incursionar pelas searas do debate filosófico, visando – pasmem! – substituí-lo (geralmente de modo muito raso). Aliás, ciência não é orgia de conceitos, inventados irresponsável e inescrupulosamente, a tordo e a direito, apenas para cumprir cronogramas burocráticos departamentais. Infelizmente, muitos parecem desconhecer esse bom alvitre e insistem que a “verdade” só pode ser revelada por meio dos adornos da retórica, como num passe de mágica, ou, nos casos em que a fraude é deliberada, por meio de tergiversações destinadas a incautos e néscios de plantão que parecem sempre estar voluntariamente dispostos a serem ludibriados por teorias fantásticas ou estrambólicas de gurus do momento. É bem verdade que a clássica divisão platônica entre episteme (ciência) e doxa (opinião) dá margem a esse tipo de prática viciosa, que se apoia no paradoxo de que quanto mais obscura a linguagem, de um discurso científico (ou filosófico), mais a realidade é, por ela, esclarecida. Nada mais mistificador. Tudo se passaria como se uma misteriosa essência do real perpassasse por detrás das costas da opinião vulgar, sendo acessível apenas a um seleto grupo daqueles privilegiados que detêm a chave do segredo e compreendem as tais palavras mágicas. Como niilistas, nos termos enunciados por Nietzsche, estes intellectual dilletantes renunciam a vida em troca do mundo abstrato da teoria, incapazes, porém, de enxergar a um palmo diante do nariz.
            É o caso do que se passa com o valioso conceito de megalópole, que quanto mais numerosos conceitos visam substituí-lo, mais fúteis eles são. O mesmo vale dizer aos conceitos de espaço, lugar e paisagem, muitas vezes extremamente elaborados em sua estrutura lógica, mas totalmente supérfluos do ponto de vista da pragmática e realidade empírica.
(Recordo-me de uma estudante da Universidade de São Paulo que, ao chegar ao fim do curso de geografia, lamentava-se por terminar a faculdade sem saber o que era afinal o espaço na geografia. A sinceridade desta estudante a impediu de assumir uma postura dissimulada e falsa. O que é raro. A verdade é que sob um palavrório vazio, na geografia, ninguém sabe realmente o que é esse diabo de espaço!).
Não é preciso lembrar que tal praxe bizantina é extremamente vã e só encontra terreno no campo de corporações comprometidas com interesses outros que não o do conhecimento. Ao contrário, a ciência não deve perder seu vínculo com a sociedade, sua única razão de ser. Ciência é o que faz o professor da USP Gilberto Orivaldo Chierice e sua equipe de colaboradores. Ciência deve ser feita para a humanidade e não para cumprir fins políticos institucionais. Sendo assim, nas ciências humanas, um bom conceito deve aflorar do senso comum, deve fazer sentido a todos e não ser uma aberração verborrágica que ninguém entende ou finge entender. O conhecimento científico deve ser uma ponte entre a ciência e o cotidiano e servir às pessoas e não a um clubinho de iniciados em certos mistérios comprometido apenas com benefícios profissionais. Por isso, os conceitos de espaço e paisagem não devem ser para a geografia uma discussão hermética de especialistas que habitam acorrentados as trevas no fundo da caverna. Deve, inversamente, fazer sentidos a todos, aos “leigos”, sem cair num utilitarismo vulgar ou abdicar de sua complexidade. Ou seja, a construção de um conceito deve pôr todas as cartas na mesa, sem deixar lacunas ou sonegar informação de procedimento ou método.

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Para descortinar alguma nebulosidade que paira sobre os conceitos assinalados, acredito que devo antes fazer algumas considerações a respeito do significado e etimologia das palavras que lhes servem, para justamente não dar asas à imaginação, com definições estapafúrdias, e assim não perder o pé com a realidade.
Em primeiro lugar, a palavra “espaço” tem origem direta do latim spatium. Os latinos utilizavam o termo na mesma acepção em que se usa atualmente, isto é, de extensão, área, intervalo de tempo, etc., como fica claro nesta frase de Ovídio: Romanae spatium est urbis et orbis idem – “O espaço de Roma é o mesmo que o do mundo”. (No grego antigo, σπάω [spáo] tem sentido de “quebrar”, “romper”). Já a palavra “paisagem” vem do francês paysage, de pays, que por sua vez tem origem do latim tardio pagensis – derivado do latim pagus – mais o sufixo -age, também do latim -aticum (em português “-agem”, o qual, como no latim e no francês, designa estado, ação ou qualidade, como em aprendizagem, viagem, etc.). O significado de pagus é “campo, interior, bairro, distrito, região, cantão, província, camponês, zona rural”, etc. Nota-se que a palavra “pagão”, do latim paganus (“rural”, “rústico”, “homem do campo”), tem origem no mesmo radical de paisagem. Como na antiguidade as religiões eram patrióticas, isto é, indissociáveis da cidade, aqueles que não eram cidadãos, ou seja, não eram da cidade, eram bárbaros, selvagens, estrangeiros e também ímpios. (O próprio cristianismo possuía um caráter urbano). Pertencendo ao mesmo tronco indo-europeu, a língua grega, nota-se em págos (πάγος) uma ligeira diferença em relação ao termo correlato latino, significando “cume da montanha, colina rochosa, parte superior, nata, pico congelado”, etc. Em ambos os casos, entretanto, percebe-se uma acepção de exterioridade (natureza, campo) e fica claro que “paisagem” não tem nenhuma denotação política, como no caso do moderno “país” (pays); ou como seria o caso da palavra “região”, do latim regere, “reinar, governar, conduzir”, etc. Ao contrário, seu sentido é justamente aquilo que deve ser dominado e governado. Aliás, especulando-se, o sentido político de país deve ter sua origem na autonomia dos cantões, províncias e no campo (provavelmente, na idade média)[2]. De qualquer forma, pode se identificar um sentido de “natureza bruta”, oposto à “cidade” (lat.: ciuitas civitas [civitatem]; português arcaico: cividade) e civilização (ciuiscivis), portanto, “campestre”, “inculto”, que é inequívoco.
Todavia, para se pensar um conceito, é errôneo estabelecer a sua “verdade” no sentido original da palavra, em busca de uma pretensa autenticidade primordial, como fez o filósofo Heidegger. Ao longo do tempo, a língua sofre constantes variações, tanto no nível do significante como também do significado. O próprio grego e latim deturparam o sentido primeiro das palavras do proto-indo-europeu e assim por diante; o que levaria a gênese das palavras a grunhidos incompreensíveis. A palavra é um signo arbitrário e não um espelho da realidade. A distância entre o conteúdo significativo de uma palavra e seu objeto é enorme e é sempre provisório, sendo possível apenas por aproximação e analogias que têm por última instância uma função dêitica. Apesar destas reservas, vale a pena realizar um recuo “genealógico” sobre algumas formas lexicais elevadas à categoria de conceitos, como foi feito acima, até para evitar mal entendidos e mesmo um fetichismo da linguagem. No caso de “paisagem”, o significado atual guarda ainda alguns resquícios do antigo, mas a palavra ganhou conotações novas e próprias que se distanciaram em muito do sentido latino ou grego, proto-itálico etc. Vulgarmente, “paisagem”, hoje, significa um determinado ambiente de dimensões apreendidas em um lance de vista, geralmente natural ou bucólico. Porém, a vista de uma cidade ou de um horizonte urbano também pode ser denominada paisagem. Denotação que, a propósito, tem em comum um certo distanciamento do observador e tem como fundação a percepção dos sentidos em relação a um objeto exterior.

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Tais observações bastam para sondar um contato preliminar sobre o conteúdo fundamental dos conceitos espaço e paisagem. Portanto, “espaço” pode ser entendido como uma categoria abstrata e subjetiva; enquanto “paisagem”, como uma categoria concreta e objetiva. Ou seja, espaço é uma noção abstrata, um atributo das coisas tomado à parte, tornado geral e que prescinde de todos os outros. Tendo em vista a polissemia da palavra, sobre espaço, duas determinações são inescapáveis: extensão (corpo) e continência (o fundo negro do Universo). Vejamos este exemplo: um observador se detém diante de uma avenida, ladeada por inúmeros arranha-céus, repleta de automóveis e pedestres, luzes, ruídos etc.; este observador, situando-se a si próprio, enquanto eixo referencial de todas essas coisas, abstrai, mentalmente, todas elas, subtraindo-as, do seu centro de visada, e remetendo-as a um plano ideal, passa então a nomeá-las indistintamente de espaço. (Um possível interlocutor o compreenderia perfeitamente bem se acaso ele dissesse “este espaço é muito caótico”). Tudo permanece como antes, porém, o pensamento opera uma economia tanto do ponto de vista da linguagem como do entendimento. Assim, o espaço é uma ficção, um princípio, uma redução. Portanto, espaço é, ao mesmo tempo, tudo aquilo que havia sido suprimido da paisagem sem deixar de sê-lo. Em outras palavras, é forma que se aplica a tudo, independente de sua natureza. “Paisagem”, por outro lado, é uma noção empírica, extraída da percepção e dos sentidos, e leva em consideração todos os elementos de um conjunto panorâmico, supondo ainda dimensões imodestas. Seu nível de abstração é menor, ocupando um grau intermediário entre o conceito (geral) e o objeto em si. Nesse sentido, a vista de um horizonte montanhoso ao redor de uma praia é paisagem; um quadro pictórico representando uma ponte sobre um riacho, também. Aqui não se trata de singularidade, mas de conjunto, de elementos inter-relacionados, de particularidade. A vista de uma casa, de uma sala, de um shopping, etc. é um elemento da paisagem e é um lugar. (Importante salientar que “lugar” também tem níveis de abstração próprios da linguagem e é possível ainda inferir elementos ainda mais singulares, como as coisas – mesa, xícara, livro, cadeira etc. – que não são lugar).
Como se pode perceber, toda essa discussão é um problema da linguagem e do entendimento. Nenhum destes conceitos existe por si mesmo, como fantasmagoria de uma casa mal assombrada. A “substância” da linguagem é a pragmática e seu contexto sócio-cultural. Uma caixa pode estar “vazia”, mas isso depende dos referenciais em questão. Nesse sentido, um lugar pode estar vazio, como, por exemplo, uma sala de aula no horário de intervalo ou uma sala sem móveis. Conceitualmente, o vazio não é o vácuo; e o vácuo não é o nada. São referências diferentes. Na prática, essas referências são muito flexíveis e provisórias. Um conceito é sempre arbitrário por definir contornos precisos a “objetos” imprecisos. Restam sempre arestas e rotas de fuga.

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Feitas as devidas reservas sobre a precariedade dos conceitos, grosso modo, diante do que foi exposto acima, poder-se-ia estabelecer uma escala de valores em que o espaço ocupa o degrau mais alto (geral, universal), a paisagem, o degrau intermediário (particular), e o lugar, o degrau mais baixo (singular); sempre considerando os diversos níveis de abstração e de relação. Ou dito de outro modo, partindo-se do mais impreciso ao mais definido, tendo-se, a partir disso, o espaço e a paisagem em pontas opostas. (O lugar do sujeito é o ponto de intersecção nessa antinomia). Todavia, tal escala também carece de estabilidade. É possível, diante de uma paisagem, indicar um determinado aspecto dela e nomeá-lo de “espaço”, de acordo com sua especificidade (por exemplo, “o espaço verde, arborizado, em uma montanha rochosa”). O mesmo poderia ser dito em relação a um lugar, situando e nomeando nele um “espaço”. (Dentro de uma sala, o espaço ao lado da poltrona etc.). Também um lugar pode conter uma paisagem. Por exemplo, um interlocutor poderia dizer acertadamente, tanto em termos gramaticais como da competência linguística, a respeito de uma cidade: “Belo Horizonte é um lugar maravilhoso!” Essa sentença é bastante capciosa, mas bastante ilustrativa.
No discurso científico, entretanto, faz-se necessário congelar o significado dos conceitos, até mesmo para fins operacionais. Esse procedimento, embora necessário, incorre em muitos riscos, como o perigo de uma constante recaída no mencionado fetiche da linguagem. Quando não se tem consciência desses riscos, o cientista se torna um sacerdote e suas pesquisas, uma exegese de textos canônicos compilados de autores consagrados (de preferência alemães ou franceses!). O critério de objetividade distancia-se do objeto e passa a ser dado por uma coleção de citação de textos. Tudo se passa como se os autores desses textos fossem tais como os profetas e tivessem um canal direto de comunicação com um ente superior que lhes revelasse a verdade. Nada podendo ser questionado, a única liberdade possível para um pesquisador é a escolha entre um desses autores, bastando-lhe reproduzi-lo fielmente, e, assim, anular-se e abster-se de si mesmo (heteronomia) enquanto sujeito pensante, em completa prostração ao seu ídolo e em cumprimento servil dos ritos corporativos. Insurgir-se contra tais dogmas resulta em severas represálias que se justificam em nome do critério de objetividade! Se todos os membros da corporação estão obrigados ao pagamento de tributos, os insubordinados, que ousam a ser criativos, devem ser condenados ao mais completo desterro, a um severo ostracismo institucional. Ou, inversamente, quando os altos postos da hierarquia conferem autoridade a seus titulares, estes se arrogam no direito exclusivo de propriedade sobre tais autores e, a partir disso, usam e abusam de sua condição de “proprietários”, interpretando a seu bel prazer os textos pretensamente canônicos pertencentes à sua alçada, muitas vezes deturpando-os de modo muito conveniente, tendo em vista sempre um projeto pessoal. Em geral, o instinto de rebanho guia os homens teóricos da ciência moderna no âmbito de suas especializações. Porém, tal discussão desvia em muito do objetivo do nosso assunto.

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Aceitando-se, assim, para fins pragmáticos, certa rigidez dos conceitos, pode se pensar o espaço na geografia, que, evidentemente, não é o espaço da geometria, da matemática, da física, ou da filosofia. Portanto, o espaço não é o objeto de estudo da geografia! Pois, caso contrário, seria uma insensatez “mapear”, por ventura, os desenhos de uma xícara de chá! O que não significa que a geografia dispense o conceito de espaço (pressuposto em todas aquelas disciplinas). O mesmo pode se dizer em relação à paisagem, que também não é um termo exclusivo da geografia. Porém, estes conceitos aplicados à geografia podem ser bem concernentes, como se percebe na distinção entre paisagem natural e a paisagem antrópica. (Todavia, nem sempre essa distinção é tão evidente; às vezes, uma paisagem aparentemente natural sofreu intensa ação humana ao longo do tempo).
Feitas estas observações, vou refletir sobre cinco níveis de análise que me acompanham desde que elaborei minha monografia de conclusão de curso – “Utopia: princípios de uma geografia libertária” (2003) –; de minha dissertação de mestrado, “Ocupar e resistir: problemas da habitação do centro pós-moderno” (2006) –; e de minha tese de doutorado, “Ocupar, resistir, construir, morar” (2012).

Nível 1: Todo corpo é extenso (princípio cartesiano). Ou seja, todas as coisas têm uma espacialidade; isto é, é possível inferir de todas as coisas uma propriedade comum, o fato de terem e ocuparem um espaço. Espaço é um conceito abstrato (ou, como diria Nobert Elias, uma categoria de síntese de alto nível de complexidade[3]) e, portanto, subjetivo. Diz respeito a uma operação mental que reduz a uma entidade significante uma propriedade necessária a todas as coisas: corporeidade – continente que também está contido. Em contrapartida, o espaço é vazio, ou melhor, nada, ou seja, não existe enquanto uma entidade isolada e real (ontológica) – sua existência é apenas mental (ontologia ideal). A lógica aristotélica distingue a multidão de característica de um ser e denomina-as de atributos ou predicados. Sob seus pressupostos, alguns atributos são contingentes, como, por exemplo, as cores de um objeto; outros, necessários, como a forma, sua essência. (Uma garrafa é um objeto para se guardar líquido [essência], mas pode ter individualmente várias cores, tamanhos, formas etc.). O racionalismo, diante do devir inerente do mundo empírico e, daí, dos enganos dos sentidos, conferiu condição de verdade imutável às ideias, como a do espaço (axioma: todo corpo é extenso – a extensão é a única constância na multidão transitória dos fenômenos). Já o empirismo, ao contrário, propôs o argumento de que as ideias são inferidas da materialidade, através da experiência (nominalismo). Ambas as escolas filosóficas são uma reatualização do platonismo e do aristotelismo e, por conseguinte, da querela dos universais (escolástica). Essa discussão, de fundo filosófico, não compete à geografia. Para a geografia importa saber o conceito em seu sentido mais trivial, isto é, espaço enquanto categoria abstrata inerente a todas as coisas e que também contém todas as coisas. Porém, tal definição de espaço é muito genérica e não se restringe somente à geografia. Sendo assim, o ponto de partida da geografia quando se trata de pensar o conceito de espaço é a representação cartográfica.
A representação cartográfica também é uma redução em escala infinitamente menor da dimensão incomensurável e imensa diversidade da superfície do planeta Terra. O mapa, porém, é uma forma antiquíssima de representação e não teve relação alguma com a ciência geográfica. A afirmação contrária não passaria de um anacronismo chulo. A representação cartográfica enquanto prática da geografia surge no contexto da formação dos Estados nacionais. Diante do imperativo econômico, isto é, do capitalismo, o espaço geográfico em sentido moderno reduz a natureza à condição de recurso, portanto, de coisanatureza reificada. A cartografia produz um inventário das reservas naturais destinadas à produção de riqueza. E, desse modo, tanto a paisagem natural como a antrópica (recursos humanos) são potencialmente orientadas para esse fim. O levantamento destes recursos tem por fundo o desenvolvimento econômico de uma determinada nação e suas relações comerciais. Nesse sentido, também é uma abstração, realizada por meio de procedimentos analíticos e técnicos, sob o pano de fundo da economia. Assim, o espaço geográfico só existe como produto cultural e bem situado historicamente.
A paisagem é o conteúdo empírico, concreto, perceptível, da variedade de elementos da superfície da Terra, implicada no espaço geográfico. Entretanto, a paisagem não é espaço. O que significa dizer que o espaço é um pressuposto da paisagem. (Em termos dialéticos, “espaço é paisagem”; tomando-se em consideração um juízo de reflexão nessa sentença, ou melhor, de contradição).
Nas sociedades pré-capitalistas, o espaço geográfico não existe. O espaço geográfico ganha estatuto ontológico somente nas sociedades capitalistas. Pois, com o desenvolvimento das relações capitalistas, as relações sociais passam a ser mediadas pela mercadoria; a propriedade (imóvel), até então justificada diretamente pela força, pela tradição e pelas relações de sangue, passa a ter mobilidade, ou seja, valor de troca. Além disso, as transações comerciais exigem a unificação e universalização dos pesos e medidas, assim como o censo e a jurisdição das fronteiras dos Estados nacionais. Daí se pode concluir que, no capitalismo, o espaço não é paisagem, mas mercadoria. (Novamente, juízo de reflexão, a “paisagem é espaço”). Assim, no modo de produção capitalista, o espaço geográfico se torna uma abstração concreta (“universal-real”), o que vale dizer que é, socialmente, a única realidade efetiva (essencial), enquanto a paisagem passa à condição de sua aparência (fenômeno). Dito em outras palavras: o espaço que era mera forma ideal ganha substância de realidade e se torna fundamental; de atributo passa, de modo metonímico, à condição de ser (ontológico).

Nível 2: Como já foi dito aqui, exaustivamente, espaço é uma categoria engendrada pelo pensamento; não existe como coisa em si, como uma coisa externa ao pensamento. Porém, no modo de produção capitalista, como em nenhum outro, algumas noções abstratas tomam tamanho vulto socialmente que acabam tornando-se centrais e ontológicas: é o caso do Estado e do valor. A propriedade privada tornando-se móvel, pela ação do dinheiro, também encontra grau de realização em uma esfera abstrata, jurídica e contratual. Toda a sociedade se organiza em torno de sua realização. Empiricamente, não há nenhuma relação intrínseca e necessária entre o solo e uma pessoa; mas a atividade social é constituída de tal modo que torna possível a ficção da propriedade privada: o selo inviolável do proprietário da terra. A propriedade privada é o modelo da questão territorial. O vínculo da propriedade privada com a noção de território é incontestável. Basta lembrar que metade do território estadunidense foi comprada como qualquer mercadoria. A lógica é mesma. No entanto, a expropriação – acumulação primitiva – é, frequentemente, o fundamento da formação territorial, assim como o foi da propriedade privada, e aí o que está em jogo, no fundo, são as relações de poder (espaço e política).
Consolidadas as relações capitalistas, no âmbito territorial, algumas unidades de medidas expressam a forma do valor na questão da terra, como o hectare, alqueire, o are, etc. A mais importante é o metro quadrado (m2), que é a unidade mínima, servindo de base a todas as outras, tanto no campo quanto na cidade. No capitalismo, ela é essencial (o terreno construído, baldio, etc., são contingenciais, meros fenômenos, dos negócios imobiliários). No intercâmbio de mercadorias envolvendo paisagem, não é o conteúdo concreto mas o metro quadrado o parâmetro da troca e do valor. Por exemplo, o preço médio do metro quadrado do bairro de Botafogo em 2012 era de R$ 13.520,00. Aqui não são as características físicas que entram no cálculo final dos especuladores. Outro exemplo: a oferta de um imóvel por uma corretora imobiliária será anunciada do seguinte modo: “vendo imóvel na Lapa de 92 m2 por 675 mil”; etc. Ou seja, não é o imóvel em si que entra na circulação de mercadorias, e, sim, uma abstração, o espaço. É o espaço que vai ao mercado enquanto expressão do valor, e não as aparências concretas, a paisagem, o bairro, a arquitetura etc., que só entram na relação de troca enquanto valor de uso.
Na lógica da troca, poder-se-ia estabelecer o metro quadrado em Botafogo sendo equivalente a dez computadores ou a cinquenta relógios e assim por diante até chegar a sua expressão em dinheiro (à época, em 2012, de R$ 13.520,00). O que torna possível esta equivalência é o tempo de trabalho socialmente necessário; isto é, trabalho abstrato (substância do valor), como ensina Marx, em O capital. O metro quadrado de um apartamento no bairro do Morumbi, idêntico a um apartamento no bairro do Ipiranga, vale mais por causa do maior quantum de trabalho agregado na mercadoria “Morumbi”, incluído aí o capital simbólico. Portanto, a paisagem concreta, empírica, aparece como simples aparência, fenômeno, uma modalidade da mercadoria (valor de uso). O espaço aqui é reificado; é uma coisa abstrata e concreta. Essa coisa diáfana se realiza, alcançando status ontológico, apenas socialmente, mas fundamentalmente. A atividade social lhe confere existência. São ideias, símbolos, signos, coisas, substâncias que existem efetivamente, como numa metafísica real. Um empirismo vulgar (ou um materialismo burro) poderia se perguntar: onde está o espaço? Não está diante das sensações da visão, não se pode vê-lo, do mesmo modo que Mach negava o átomo. O fato é que o materialismo vulgar ignora que a sociedade produz coisas imateriais que, por sua vez, cumprem funções essenciais no interior das relações humanas e, de fato, alteram a matéria (objetividade). Ao nível das relações sociais, as noções ideais são determinantes, ultrapassando em muito sua condição ideal. Mesmo na relação de troca de mercadoria (dinheiro), condicionada por um componente quantitativo e que poderia, em última instância, ser comprovada pela contabilidade, há um elemento moral, que veio primeiro e que é a confiança entre os agentes no ato da troca. Se não houvesse esse pressuposto ético na gênese do comércio, o capitalismo seria impossível, mesmo na sua última forma totalmente objetiva, o cartão de crédito e débito (dinheiro digital). O crédito (acreditar, crer), ao contrário do que muitos afirmam, não é uma forma moderna, mas um dos modos mais arcaicos nas relações de troca. A promessa move montanhas! Portanto, a paisagem convertida em categoria econômica perde sua materialidade e se metamorfoseia em sua negação, o espaço, que adquire estatuto de realidade social última.  
Eis aqui um ponto central que parece negar tudo o que foi dito: a atividade social se realiza não só por relações objetivas, a exploração do trabalho ou as coerções ligadas ao poder, mas também por relações subjetivas. Foi esse o teor da crítica de Marx ao materialismo vulgar em suas Teses contra Feuerbach e é esse a ponto central da formulação weberiana. Entretanto, não há um primado nem da objetividade nem da subjetividade, mas uma relação mutua e dialética entre sujeito e objeto. O espaço, enquanto extensão, medida, é um epifenômeno da paisagem, mas, enquanto valor, sua própria essência. A partir daí, a paisagem, tanto natural como antrópica, será produzida a partir do espaço. (O subjetivo torna-se objetivo e vice-versa).

Nível 3: As sociedades humanas além de produzirem bens materiais também são produtoras de bens imateriais, às vezes, chamados de moral (ethos). Esses bens imateriais são ideias, símbolos, signos, imagens, mensagens, valores, condutas, hábitos, regras, normas etc. Os grandes poemas épicos e os textos do Velho Testamento, por exemplo, foram transmitidos oralmente até que, tardiamente, foram registrados sob a forma da escrita. Tanto um como outro, instigavam o sentimento de unidade patriótica e a identificação a um repertório cultural atribuído a um povo supostamente ligado por sólidos laços de ancestralidade. Por meio de referenciais significativos, constituía-se assim a organização social. Nesse sentido, o imaginário é, ao mesmo tempo, estruturante e estrutura e, do mesmo modo, como já foi apontado pelo estudo linguístico, a linguagem é uma estrutura-estruturante, assim como o mito, em sociedades tribais. Muitas outras representações, cosmogonias, visões de mundo e também o pensamento lógico foram, entretanto, engendrados a partir da base hierárquica em uma dada comunidade. Relações de poder que são, a um só tempo, política e econômica, superestrutura e estrutura. Não cabe aqui estabelecer a primazia do sujeito ou do objeto, do ovo ou da galinha. O mais cauteloso, talvez, seria tomar uma posição semelhante à de Bourdieu. Porém, como poderia afirmar David Hume, o que está por trás de todas essas condicionantes, materiais e imateriais, subjetivas ou objetivas, é a violência pura e simples. Ou dito de outro modo, todo o edifício da civilização, com suas obras artísticas e alta cultura, tem em seus alicerces a força bruta: o poderoso tacape nas mãos sanguinárias do primata humano que subjuga a mulher e os mais fracos. Toda a lei, sem exceção, é a lei do mais forte. Por isso, toda a civilização tem em sua característica essencial aquilo que poderíamos chamar hipocrisia. A hipocrisia é cimento das relações humanas no âmbito das instituições sociais. Assim é a justiça: determinação universal para pôr em prática regimes de exceção. Assim também é o Estado democrático de direito, as instituições, a religião, etc. Nesse sentido, não há fator de coesão social mais poderoso do que a hipocrisia, isto é, a mentira. Esta hipocrisia tem uma função de assepsia ao transubstanciar todas as impurezas da conflituosa realidade social em aparência translúcida, racional, lógica, burocrática. É por meio da razão que a violência atinge seu mais alto grau devastador.
            Esta digressão abre terreno para pensar o espaço propriamente geográfico. Fato primordial, esse espaço é uma mentira, uma grande hipocrisia. Fato primordial, o espaço geográfico é produto da violência. Ele tem início no renascimento comercial e urbano na baixa Idade Média; portanto, quando do surgimento da burguesia. Nasce do incremento das rotas comerciais que atravessaram todo o continente europeu e além. Nasce da necessidade de estabelecer padrões de pesos e medidas, moedas, legislação e unidade e homogeneidade territorial. Nasce da contabilidade, do cálculo e, acima de tudo, do lucro, da riqueza móvel, da moeda. Em suma, tem por pressuposto o mercado, um sistema de transporte, uma centralização política vertical, um exército permanente e regular, tribunais, política fiscal e de arrecadação subordinadas a uma burocracia central, um direito nacional e internacional, um território uniforme e instituições nacionais estáveis.
No início da Era Moderna, o feudalismo faz inúmeras concessões, através do poder feudal e absoluto dos reis, aos interesses da burguesia cada vez mais poderosa. Mais tarde, com as Revoluções Burguesas – a ascensão da burguesia à classe dominante, de fato e de direito –, constituem-se os Estados modernos e o sentido propriamente político de soberania nacional. No bojo desse desenvolvimento, a nacionalidade é forjada pelas artes, cultura e ciências, de onde surgem concepções de unidade étnica, biológica, linguística, cultural, de laços estreitos de um grupo humano ao solo dito materno, de caráter e de raça, de forte componente racista e xenofóbico, de ícones, símbolos e representações nacionalistas etc. De fato, na natureza não existem fronteiras, tratados, território, soberania, recursos naturais, acidentes geográficos etc.; ou, para usar uma expressão filosófica, a natureza em estado bruto é natura naturans. Todo o resto é, por outro lado, natureza transformada e singular, que se concretiza histórica e socialmente, enquanto idiossincrasias humanas, por assim dizer, natura naturata (em sentido laico e humanizado) – mundo criado[4]. Eis a natureza do espaço!
Talvez, entre a Revolução de Avis e à descolonização da África, o mundo todo passou a ser traçado sob o paradigma do Estado nacional e de seu condicional inexorável: o genocídio. Sem dúvida, o conceito eurocêntrico de Estado nacional foi imposto ao resto do mundo à base das baionetas, canhões, napalm e mísseis nucleares. Povos, para os quais o conceito de nação era totalmente estranho, hoje, no mundo globalizado, ou geograficizado, introjetaram e projetam elementos identificadores alienígenas à sua cultura, reproduzindo-os frequentemente de modo bastante particular.
             
Nível 4: Entre os antigos não existiam limites territoriais precisos. Os povos de origem greco-latina demarcavam a propriedade por meio de pedras e troncos, representados pelo deus Termo, conforme os preceitos da religião doméstica (Fustel de Coulanges). Para os germanos, apenas a colheita era considerada propriedade; o solo, não (idem). As fronteiras dos impérios também nunca foram bem definidas, sendo o território protegido localmente por exércitos, fortes, governos provinciais, etc. Na Idade Média, o poder político estava descentralizado e disperso nos senhorios feudais e a propriedade apenas de direito pertencia ao Rei (ele próprio um senhor feudal, frequentemente, menos poderoso que seus vassalos). A noção abstrata de território, através de fronteiras precisas e consagradas por tratados internacionais, aparece apenas com a invenção do Estado nacional na Modernidade. Evidentemente, nenhum Estado é separado por acidentes naturais. Estas demarcações são artificiais, oriundas da prática simbólica, política e econômica. É, como vimos, o espaço geográfico por excelência.
            O espaço, nessa perspectiva, tem um componente político que ordena e administra um dado território delimitado por convenção, pressupondo recursos naturais e humanos como fonte de riqueza. Em última instância, sua força motriz é a pilhagem. Essa unidade potítica-nacional-territorial é denominada “país”. Ainda que artificial, há fatores históricos e culturais pelos quais a nacionalidade é justificada e que dão suposta consistência à ocupação do solo na esfera do direito. Esses fatores, porém, não são homogêneos como apregoa a ideologia nacional. Na maioria das vezes, as discrepâncias, política-social-econômicas e regionais, que recobrem uma área territorial, são gritantes. A identidade nacional é, assim, forjada a ferro e fogo, inculcada na mentalidade desde a mais tenra idade, doutrinada nas escolas e nos quartéis, mas principalmente nas torturantes aulas de geografia. Como toda identidade, afirma-se em detrimento do “diferente”.
Além disso, esta identidade nacional se afirma por suposto consenso que, em última instância, encontra respaldo legal em termos contratuais celebrados pelas partes (classes sociais) envolvidas e em pé de igualdade; isto é, por meio de um pacto abstrato e exterior firmados pelos sócios (capital-trabalho), que, pressupõe-se, reconhecem todas as clausulas estabelecidas, ainda que as desconheçam todas de fato, e aceitam como mediador a figura aparentemente neutra do Estado. Assim, a cidadania moderna confunde individualidade, coletividade e pessoa pública com pessoa jurídica, que, no Estado moderno, é anterior ao nascimento dos indivíduos reais. Não é, todavia, a solidariedade afetiva e de intimidade que diz respeito aos laços concretos que no Estado de direito foram relegados à esfera da privacidade. (O sociólogo Ferdinand Tönnies estabeleceu a diferença entre comunidade e sociedade; aquela correspondente aos grupos unidos pelo parentesco, vizinhança e costume; esta, à vontade individual e exterior aos interesses do grupo). No entanto, a sociabilidade formal que se dá no âmbito político e jurídico é performática, ritualística e aparente, expressão ideológica do conteúdo econômico e desigual da sociedade de classes. Sendo assim, a maior parte da “sociedade”, a imensa maioria dos indivíduos, fica de fora das grandes tomadas de decisão coletiva e da apropriação da riqueza gerada pelo coletivo. O conceito de nação encobre a exploração social e a segregação, conferindo a sensação ilusória de pertencimento e fraternidade. Portanto, o processo de lavagem cerebral, ou de introjeção-projeção de valores formadores da identidade referente à nacionalidade, é, no fundo, uma sabotagem da própria individualidade, da solidariedade, da coletividade e da unidade de classe, e não é senão é alienação política, econômica e social. O soldado (proletário), por exemplo, mata e morre por uma bandeira, por um desenho que está num mapa, por uma causa abstrata e alheia aos seus verdadeiros interesses, mas incutida como sua e, ao mesmo tempo, maior de que a própria vida: questões de Estado. Sim, de fato, os senhores da guerra (o capital, governos e empresários), muito distantes do front, do campo de batalha, sem correr riscos, brindam os resultados sangrentos da guerra como numa partida de xadrez. A cada lance, a cada peça perdida, terreno conquistado são os recursos naturais e humanos que estão em xeque. Em suma, é sempre o capital que inventa as regras do jogo.
O espaço geográfico tem, nesse contexto, caráter estratégico. As classes dominantes, cujo Estado de fato representa, determinam o destino da sociedade, tendo em vista seus próprios interesses de classe, forjados universalmente como interesses da nação. Aqui o Estado é a encarnação moderna do Leviatã.
            Teoricamente, do outro lado do espaço está a paisagem. Essa é constituída pelo trabalho – espaço construído – e tem seus alicerces assentados na economia liberal. O trabalho molda a superfície da terra e, nessa inter-relação, produz riqueza. Grandes extensões da superfície da Terra podem ser completamente transformadas e apropriadas. O trabalho confere, assim, o direito de propriedade privada. Tanto o liberalismo clássico quanto o marxismo partem desse axioma. Proudhon, apesar de todos os seus defeitos, não se furtou em responder o dilema, proposto por ele mesmo, pelo qual questionava se a instituição da propriedade privada tinha por germe a política ou a economia; após submeter esta antinomia a rigoroso escrutínio, chegou à conclusão de que a propriedade é impossível, pois sua origem é um produto social e não natural. (O liberalismo naturaliza a economia). Sendo impossível, toda teoria política ou econômica era vã, porque partia de um pressuposto histórico e social, corolário da força, ou melhor, do roubo. Mas, o liberalismo – bem como suas teorias afiliadas (que, inclusive, o contestam) – concebeu o corpo como propriedade privada do indivíduo e tudo aquilo que aparece modificado pela ação corporal, a matéria exterior moldada, também é, em teoria, extensão do próprio corpo – propriedade (aquilo de que é próprio) inorgânica e descontínua. Dentro dessa lógica, o trabalho (atividade corporal ou mental) é alienado quando se torna mercadoria, passível de ser vendido a terceiros. É nesse sentido que a paisagem se torna fruto do trabalho alienado e que, por isso, também pode ser um objeto sujeito à venalidade, entrando no circuito da troca de mercadorias.

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Mas como já se disse repetidas vezes aqui, a sociedade se organiza por valores objetivos e subjetivos. Todos sabem que o tempo do relógio é uma invenção, uma convenção cultural instituída ao longo dos séculos. Esse tempo é estranho a muitas culturas que têm outras percepções temporais: o nascer do sol, as fases da lua, as estações do ano, as migrações da fauna, o ciclo da agricultura, o deslocamento da sombra etc., que são infinitas manifestações do tempo empírico, qualitativo. A contagem do tempo através de símbolos numéricos tem a mesma função das medidas espaciais, como a régua, isto é: estabelecer referenciais homogêneos e universais. Uma hora poderia ter cem minutos; um minuto, 50 segundo; um dia, 20 horas etc. Contudo, não é uma invenção sem lastro real. Como a linguagem, em última análise, o tempo abstrato tem uma função dêitica e indica a passagem das inúmeras manifestações temporais em uma única unidade de medida. O tempo abstrato reduz o tempo concreto a uma noção ideal; sua identidade é conferida pela negação determinada (A é não-A). Dito com outras palavras, o tempo do relógio é uma mediação (artificial) que, no entanto, se torna socialmente imediata, natural, ou melhor, segunda natureza. A sociedade humana, ela própria natureza, reinventa a natureza a partir da própria natureza, transformando-a (em produto humano, cultural), e não se reconhece mais enquanto natureza, pelo distanciamento e pela identificação com sua própria produção (espelho) – podemos chamar o ser humano de natureza negativa. Por isso, o tempo do relógio tem funções pragmáticas, importantíssimas para a administração e o funcionamento das instituições sociais. No capitalismo o tempo abstrato é essencial. As estações do ano, as fases da lua, o nascer do sol etc., nesse modo de produção, são contingências, os quais quase passam despercebidas e estão em função do tempo abstrato. No mundo rural, o tempo qualitativo ainda mobiliza a organização social. Nas sociedades urbanas, segunda natureza por excelência, é o tempo do relógio que regula todas as atividades humanas. A história humana é uma constante superação da natureza. Mitigadas as necessidades primárias, como a alimentação, o abrigo, etc., outras necessidades mais refinadas e complexas aparecem como prementes e são, do mesmo modo, superadas. A paisagem é talhada na superfície da terra assim como uma pedra de mármore é esculpida. “Vênus de Milos” ou o “Pensador”, de Rodin, não perderam as suas qualidades físicas minerais ao receberem a forma humana, mas se tornaram produto cultural, transformaram-se em obra-prima.
Para a geografia, a paisagem é reduzida a espaço geográfico, ou seja, um manancial de matéria-prima inventariado e disponível às demandas política e econômica dos Estados nacionais.
 
Nível 5: O espaço é definido no seu sentido mais trivial, de uso corrente, e irredutível à rigidez do conceito. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista rigoroso, seu uso um tanto irresponsável é bastante temerário, principalmente quando não se tem clareza de sua natureza banal, por outro lado, seu alcance é extremamente poderoso. Aliás, uma possível tentativa de defini-lo limitaria em muito sua potência, ao ponto de inutilizá-lo por completo e sabotar o seu alcance. Seu uso, no entanto, é muito flexível e se aplica a muitas situações. Pode ser referido ao céu, à noite, às estrelas e à escuridão do infinito, o universo. Pode se referir ao chão, à rua, às casas, aos prédios, a uma floresta, rios, montanhas etc. Pode se referir a distância entre uma mesa e uma cadeira, ou entre uma casa e uma escola etc. Enfim, nesse sentido, espaço é bastante versátil. Seu significado emerge do senso comum, da definição do dicionário, da acepção consagrada já evocada acima, de extensão, área, sítio, lugar, intervalo, duração etc. Aqui a utilização do vocábulo carece da necessidade de se encontrar uma essência pura e dispensa definições prévias do conceito para dar início a um argumento. Tampouco é restrito à especialização de uma ciência ou a códigos corporativistas. É o espaço compreensível a todas as pessoas, sejam elas leigas ou não. Nesse caso, poderíamos dizer com o Wittgenstein, “permita Deus ao filósofo ver o que está adiante de todo mundo”. Nessa proposição, o que está em jogo é a pragmática. Se, por exemplo, enuncio a expressão “valorização do espaço” para me referir ao valor agregado ao terreno construído e arredor ou à especulação imobiliária e tal expressão cumpre sua função comunicativa, sendo perfeitamente entendida pelo meu interlocutor, então, o termo espaço é perfeitamente legítimo. O que seria um equívoco é conceder ao termo uma áurea conceitual, hermética e exclusiva, e usá-lo como um tapa buraco retórico em textos “científicos”. Tal procedimento, ao invés de esclarecer, gera mais mistificações e distanciamento entre o trabalho do especialista e a sociedade e é infrutífero. É o que costumeiramente ocorre na geografia; daí esta ciência perder todo diálogo com a sociedade e se tornar totalmente dispensável.
            Do que foi dito sobre o espaço em sentido trivial, poder-se-ia dizer a mesma coisa com relação à paisagem, salientando, inclusive, um valor estético, relacionado à beleza, entre suas múltiplas acepções.


Apontamentos do espaço em Henri Lefebvre

A minha leitura do espaço nos textos de Henri Lefebvre incorre em algumas questões que considero pertinentes à geografia. Primeiramente, o pensador francês não define o espaço como exterioridade abstrata pura e simplesmente nem destaca a paisagem como elemento material epistemológico, pois, para Lefebvre, o espaço é extremamente fluído e irredutível a sistematizações. Portanto, não é uma categoria elaborada e acessível ao conhecimento por meio de uma teoria metodológica formalista, baseada no raciocínio dedutivo (de gabinete), mas pelo envolvimento concreto do conteúdo sob uma perspectiva materialista da lógica dialética. Parte-se da forma pura (princípio da identidade), que se implode, em sua autoafirmação positiva (tautológica), como negação. A superação/supressão (aufheben) da contradição gerada pela identidade é o conteúdo concreto. Por isso, a dinâmica da realidade espacial só pode ser entendida no movimento que jamais abstém do pensamento o mundo empírico em devir.
          Neste sentido, tomando-se provisoriamente o mencionado axioma cartesiano “todo corpo é extenso”, Lefebvre dessacraliza a consciência do “res cogitans”, diluindo o dualismo corpo e mente na “res extensa”. Assim, o espaço revela sua natureza mundana e é corpo (a consciência é mera contingência) em atividade; ou, dito de outro modo, é forma que reveste a potência contida em todas as coisas existentes no universo. Por isso, toda existência implica na produção de espaço por entes espaciais. Os seres viventes, assim como os seres ditos “inanimados”, são e produzem espaço. A vida é uma das modalidades do existir.
            As sociedades humanas, movidas pelo querer viver, produziram e produzem espaço desde o seu surgimento. Embora elemento natural, estas sociedades dominaram as forças da natureza e criaram um ambiente “artificial”, que nada mais é que a transformação da natureza em forma natural humana. Essa humanização do mundo poderia ser equiparada a qualquer outro elemento natural que deixa marcas na superfície terrestre, como o vulcanismo. Mas dada a versatilidade de manipulação da matéria pelas sociedade humanas, isto é, a liberdade, que supera em muito as limitações anatômicas da espécie, a humanidade definiu, aos seus próprios olhos, a sua criação de cultura ou civilização. A prática espacial, subjacente à atividade humana, moldou o mundo em âmbitos materiais e imateriais. A geografia denomina estas transformações da natureza como paisagem antrópica. Porém, esta ciência, ateve-se ao nível mais concreto, hipostasiando as representações, para a esfera da teoria pura. A prática espacial, de fato, envolve uma complexidade de representações que tem origem no vivido.
            Do paleolítico ao ciberespaço; do espaço empírico ao espaço mental... enfim, do ponto de vista histórico, o desenvolvimento das sociedades humanas sempre foi marcado pela escassez, primeiro, de suas necessidades fisiológicas, mais elementares, em oposição a um mundo hostil de inacessíveis recursos naturais infinitos. O conflito entre grupos humanos foi assim inevitável. No limite, lutava-se por pão. A fome, o frio, a aridez, enfim, as intempéries naturais dispunham os seres humanos em uma guerra hobbesiana de todos contra todos, vivenciada por tribos nômades e sedentárias, no campo e na cidade. Nas comunidades que alcançavam relativa estabilidade, seguiam-se as lutas pelo poder por parte dos segmentos sociais mais agressivos que, a partir disso, buscavam subjugar a “plebe” e os estrangeiros à situação de escravidão. Tal condição belicosa não impediu a criação de obras, expressas nos monumentos, na arquitetura grandiosa de templos, cidades, castelos etc. Somente na modernidade, principalmente com o advento da Revolução Industrial, a lógica da escassez começou a se inverter. O capitalismo conciliou ciência e técnica e tornou possível uma produção potencialmente infinita. A produção industrial representou uma superação quase absoluta da primeira natureza, expressa no desenvolvimento urbano mundial. Porém, a produção capitalista, fundada no lucro pelo lucro e na mais-valia, concentrou a riqueza produzida nas mão de uma minoria, enquanto a maior parte da população no planeta ainda subsiste sob as agruras da escassez ordinária. Deste modo, a guerra não foi extinta em mundo em que a paz é virtualmente real. Pode se dizer também que a produção em série, estandardizada e para o consumo descartável significou o fim da criação da obra. Em vez de liberdade (humanismo), os indivíduos se converteram em autômatos, a serviço do mercado. 

            Lefebvre acabou por lançar as bases da geografia no século XXI, pois identificou o paradoxo contido na sociedade da abundância, que gera uma inédita escassez de espaço. No limite, o colapso ambiental está diretamente associada com o crescimento econômico, seja ele sustentável ou não. Ao dilema de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, poder-se-ia acrescentar o abismo da destruição irreversível dos recursos naturais em escala planetária.

Conclusão

            Não é possível, no âmbito das ciências humanas, estabelecer a primazia entre o político e o econômico; no nível do vivido, estas atividades não são distintas, sendo possível separá-las apenas pela análise. A importância de cada uma é determinada conjunturalmente. O mesmo se poderia dizer em relação ao espaço e à paisagem. Embora espaço, na modernidade, tenha um viés político e paisagem, econômico, nem sempre é possível decantá-las em substâncias puras e distintas. Espaço pode estar carregado de implicações econômicas, assim como a paisagem de implicações políticas. Tudo pode depender de uma questão de perspectiva em uma dada situação e um contexto.




[1] A geografia não tinha – e não tem! – como rivalizar com as ciências especializadas em vista de seu caráter de síntese e formação fragmentária. No terreno dos estudos naturais, suas pesquisas sempre ficam muito aquém da produção das demais ciências como a geologia, meteorologia, agronomia etc.
[2] Aqui poderia ser interessante estudar a estrutura da sociedade de língua francesa no período do Antigo Regime e anterior. Instituições antigas como pays d’état, pays d’élection e pays d’imposition devem certamente estar na base do seu atual sentido de centralidade política e administrativa.
[3] Embora mencione aqui Nobert Elias, penso que sua recusa em utilizar o termo abstração e preferir síntese de alto grau de complexidade é etimologicamente equivocada. O sentido de síntese é justamente aquilo que é concreto; enquanto o de abstrato, o que é separado.
[4] Os termos natura naturans e natura naturata da seiva platônica e célebres em Spinosa são apropriados por mim de um modo ligeiramente distinto. Escreverei um texto sobre esse tema.

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