segunda-feira, 15 de novembro de 2021

A revolta dos marinheiros de Kronstadt, por Maurício Tragtenberg

 A revolta dos marinheiros de Kronstadt

Uma situação semelhante à makhnovitchina é percebida na revolta de Kronstadt. O local era uma fortaleza naval da ilha de Kotlin, no Golfo da Finlândia, cerca de 35 milhas de São Petersburgo. Ainda em 1921, no mês de março, defendendo os soviets livres, Kronstadt explode a última grande revolta revolucionária e contra a ditadura do partido bolchevique, durando16 dias e sendo esmagada pelo Exército Vermelho. O mesmo Exército liderado por Trotsky, que em 1917 afirmaram que os marinheiros da fortaleza naval eram “o orgulho e a glória” da Revolução Russa.

A revolta de Kronstadt está inserida em um contexto mais profundo: a crise do chamado “comunismo de guerra”. Esse modelo de gestão do Estado revolucionário soviético, adotado ao longo da Guerra Civil, foi uma brutal centralização política bolchevique, confiscos e expropriações do Estado sobre os camponeses e operários, sempre priorizando o abastecimento do Exército Vermelho (em nome da Revolução). Porém, uma grave crise se abateu sobre a Rússia e o Comunismo de Guerra parecia não ter mais fim.

No mês de março de 1920, representando o reforço da ditadura leninista, ao longo do IX Congresso do Partido Comunista, na discussão sobre o papel dos sindicatos no comunismo, é deliberado que “os sindicatos devem executar essas tarefas [econômicas e educativas] não mais como força independente organizada à parte, mas no que respeita à máquina principal do mecanismo governamental, guiado pelo Partido Comunista”. Trotsky justifica o fim do sindicalismo não-bolchevique afirmando que “os sindicatos pretendem defender os interesses da classe operária contra o Estado, mas, uma vez que o Estado é ele próprio operário, essa defesa não tem qualquer sentido (1). Tal fala não significa apenas que Trotsky defende abertamente que os trabalhadores não devem possuir mecanismos de defesa na luta de classe. Representa também que os trabalhadores deveriam continuar assistindo ao Estado falir junto com a revolução e o fim da possibilidade de melhorias sobre um novo regime político-econômico que resolveria a crise pela qual passava a Rússia.

Em 1921, a extração mineradora e a produção fabril despencaram para 20% dos níveis de pré-guerra, com muitos itens essenciais tendo um declínio ainda mais drástico, e, no mesmo ano, a extensão das terras cultivadas encolheu para 62% da área anterior à Primeira Guerra Mundial, e a colheita era apenas 37% do normal. Dessa forma, os bolcheviques perdiam o apoio da população, que se tornava mais enfática na demonstração de seu descontentamento com uma ditadura que em nada melhorava a situação do país. O próprio Lenin admitia que “a essência do ‘comunismo de guerra’ consistiu, na realidade, no confisco sobre os camponeses de todos os seus excedentes e às vezes não apenas isso, mas também parte do cereal que este necessitava para sua própria alimentação”. Ele afirma ainda que isso ocorreu para “satisfazer os requerimentos do exército e sustentar os operários” (2). Não sem razão, considerando somente o mês de fevereiro de 1921, pouco antes da sedição de Kronstadt, explodiram 180 revoltas camponesas na Rússia (3).

Dessa forma, inserida nas revoltas de esquerda para acabar com a ditadura bolchevique que estava minando a revolução e (ainda mais sobre a pressão dos exércitos internacionais) a própria Rússia, explode nos navios de guerra Petropavlosk e Sebastopol, em março de 1921, a revolta de Kronstadt, combatendo por soviets livres, nova Assembleia Constituinte, liberdade de expressão para organizações políticas de esquerda e a libertação de seus presos políticos, etc. Basicamente, exigiam mais revolução e menos ditadura.

A resposta dos bolcheviques veio rápida: repressão brutal! Além de temer perder a hegemonia sobre os rumos da revolução, o Partido Comunista visava impedir que Kronstadt servisse de “plataforma” para mais uma ação do Exército Branco. De fato, muitos dos emigrados russos, que articularam a contrarrevolução de outros países, tentavam encontrar na revolta de Kronstadt uma forma de acabar totalmente com o poder bolchevique e, obviamente, de restaurar o poder nas mãos dos capitalistas. E foi esse o argumento leninista contra a revolta na base naval. Atualmente está fartamente documentado e comprovado que tal ideia era falsa e que, enquanto durou a revolta, não houve qualquer tipo de associação entre os marinheiros de Kronstadt, ou seus líderes, e as forças da contrarrevolução. Fora isso, basta ler as exigências dos marinheiros para constatar que se tratava, sim, de uma enorme mobilização de esquerda.

Sabendo do perigo que poderia representar a vitória da sedição, o Exército Vermelho mobilizou mais de 50 mil soldados. Em 17 de março, Kronstadt rendia-se contabilizando milhares de mortos. No dia seguinte, a imprensa bolchevique comemorava o aniversário de 50 anos da Comuna de Paris, 1871, enaltecendo os rebeldes da capital francesa. Ironias à parte, o fato é que o levante dos marinheiros acabou constituindo-se como a última mobilização antiditatorial na Rússia por algumas décadas. Era o fim do processo revolucionário que se iniciara em 1917.

Posteriormente, Lenin substituiria o Comunismo de Guerra pela Nova Política Econômica (NEP), restituindo a iniciativa privada nos setores agrícolas, industrial e comercial para tentar retirar a Rússia da crise na qual se afogava.

Como slogan, a NEP afirmava dar “um passo atrás para dar dois à frente”... E dessa forma, mas à frente, Stalin se consolidaria no poder, sustentando a situação de que a revolução social na Rússia estava restrita aos desejos clandestinos, aos exilados e fugitivos políticos de esquerda e aos campos de concentração da Sibéria. Demonstrando que se o resultado da revolução de 1917 foi que as aldeias revolucionárias teriam de trilhar novamente o caminho do medo e da clandestinidade, era necessário, então, que se repensassem as formas de luta em combate ao capitalismo (pp. 26-29).

(...)

Enquanto essas discussões se davam no interior do partido, os marinheiros da base naval de Kronstadt, inclusive os que prestavam serviço no encouraçado Potemkin – chamados em 1917, por Trotski, de “a glória da revolução” –, revoltam-se contra o governocentral de Moscou.

A insurreição de Kronstadt iniciou-se a 3 de março de 1921 e terminou a 16 de março do mesmo ano.

A irrupção da revolta de Kronstadt está vinculada à situação do proletariado de Petrogrado. O inverno em Petrogrado nos anos 1920-21 foi particularmente severo, embora sua população tenha diminuído em dois terços. O abastecimento apresenta altos níveis de deficiência, devido ao estado catastrófico dos meios de transporte.

A crise de abastecimento, especialmente em víveres, está ligada também à degenerescência burocrática e à corrupção dos órgãos estatais da área.

A Rússia na época pratica a troca dos produtos industriais, produzidos nas cidades, pelos produtos agrícolas. O sal e o petróleo urbanos eram trocados por alguns quilos de  batatas e um pouco de farinha.

Oficialmente os mercados não existiam, mas na prática eram tolerados. Contudo, por ordem de Zinoviev, no verão de 1920, qualquer traço de comércio teria de desaparecer.

Pequenos armazéns e lojas foram lacrados pelo governo, porém o Estado não tinha possibilidade de abastecer a cidade. Em janeiro de 1921 a Petrokommouna (órgão estatal encarregado do abastecimento da cidade) informava que os trabalhadores da indústria pesada tinham direito a 800 gramas de pão preto e os carteiros entre 400 a 200 gramas. O pão preto era nessa época o alimento essencial do trabalhador russo, mas essas rações oficiais eram irregularmente distribuídas e em quantidades menores que as estipuladas nos papéis.

Parte da população que possuía família em zona rural fugia da cidade. Esse dado importante desmente a versão oficial das greves operárias em Petrogrado como consequência da presença de camponeses não temperados pela ideologia proletária!

Os trabalhadores da usina de Troubotchni realizam a primeira greve a 24 de fevereiro de 1921. O governo bolchevique envia contra eles destacamentos de cadetes.

Isso não impede que a greve se estenda à usina Baltiski, à usina Laferme, à fábrica de sapatos Skorokhod, às usinas Ademiralteiski, Bormann e Metalicheski, atingindo no dia 28 a usina Putilov, a maior do país.

Enquanto algumas usinas levantam reivindicações econômicas – como normalização do abastecimento à cidade dos produtos das zonas rurais, restabelecimento do mercado, supressão da fiscalização das milícias que se apropriam de alguns quilos de batatas que os trabalhadores conseguiram em troca de produtos manufaturados –, outras formulam reivindicações políticas, como liberdade de imprensa e liberdade dos prisioneiros políticos. Em certas usinas os grevistas cassam a palavra dos bolcheviques.

Resposta do governo: medidas militares para enfrentar essas reivindicações através da constituição de um Comitê de Defesa, que proclama estado de sítio na cidade de Petrogrado. A circulação de pessoas fica proibida após as 23 horas, assim como reuniões, comícios e agrupamentos, em locais abertos ou fechados, sem autorização do comitê.

Infração a essas ordens implica julgamento, com aplicação de leis previstas em tempo de guerra. São mobilizados os membros do partido e os grevistas mais ativos são encarcerados. Os marinheiros de Kronstadt enviam a 26 de fevereiro seus delegados a Petrogrado, para informar-se a respeito das greves. Visitam inúmeras usinas, voltando a Kronstadt no dia 28 do mesmo mês.

Quais foram as reivindicações dos marinheiros de Kronstadt que levaram a base naval a levantar-se contra os bolcheviques?

KRONSTADT: A REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO

Kronstadt, considerando que os sovietes atuais não exprimiam mais a vontade dos operários e camponeses, reivindicava: imediata eleição com voto secreto, com liberdade de desenvolver campanha eleitoral; liberdade de imprensa e palavra para operários e camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda; liberdade de reunião para todos os sindicatos operários e organizações camponesas; liberdade para todos os socialistas prisioneiros políticos, assim como marinheiros e soldados do Exército Vermelho presos durante os movimentos populares; eleição de uma comissão encarregada de examinar os casos dos prisioneiros e dos internados em campos de concentração; supressão de todos os departamentos políticos (em cada unidade fabril, militar e de bairro, o partido possuía um departamento político); nenhum partido deve ter o privilégio da propaganda política e ideológica nem receber nenhuma subvenção governamental; no lugar dos departamentos políticos, formar Comissões de Educação e Cultura financiadas pelo Estado; supressão imediata de todas as barreiras militares; supressão dos destacamentos comunistas de choque em todas as seções militares e da Guarda Comunista nas minas e usinas; se houver necessidade de destacamentos, que sejam nomeados pelos soldados das seções militares; se houver necessidade de guardas, que sejam escolhidos pelos próprios trabalhadores; o camponês deve usufruir sua terra, sem empregar trabalho assalariado.

Os marinheiros de Kronstadt criticavam a formação de uma nova burocracia, a quem chamavam de comissiocracia, e também a estatização dos sindicatos. Inúmeros membros do Partido Bolchevique que residiam em Kronstadt pedem publicamente demissão do partido, aceitando a crítica dos marinheiros ao governo soviético.

Kronstadt mesmo se autodenomina a “Terceira Revolução Russa”. Qual a posição das várias facções políticas russas da época a respeito da rebelião?

Anarquistas – Embora houvesse entre os membros do Comitê Revolucionário marinheiros que se definiam como anarquistas, não se verificou intervenção direta dos anarquistas enquanto grupo ou corrente organizada. A imprensa anarquista não se manifesta a respeito da insurreição e Iarchouk, antigo anarcossindicalista, nada diz a respeito no seu livro sobre a insurreição de 1921.

Em caráter pessoal, anarquistas como Emma Goldman e Ale-xandre Berkman se propuseram a ser os mediadores entre os marinheiros e os bolcheviques; só a proposta de mediação já mostra a escassa participação anarquista na rebelião.

Quanto aos sovietes, na revolução ucraniana Makhno já lutava por sovietes livres.

A posição de Kronstadt de confiar aos sindicatos tarefas importantes não é idéia exclusivamente anarquista, pois os socialistas revolucionários de esquerda e os membros da Oposição Operária também a defendiam. Ela traduzia o consenso daqueles que pretendiam salvar a Revolução pela democracia operária, opondo-se à ditadura do partido único.

Mencheviques – Sempre tiveram escassa influência sobre os marinheiros. Embora tivessem número razoável de deputados no soviete de Kronstadt, seu nível de popularidade era baixo, enquanto os anarquistas, com três deputados somente, gozavam de muito maior aceitação entre os marinheiros (em 1917, numerosos anarquistas não distinguiam claramente suas diferenças com o bolchevismo, vendo em Lenin um marxista-bakuninista).

Embora hostis aos bolcheviques, os mencheviques nunca pregaram a revolução violenta contra o governo. Tentam agir como oposição legal nos sovietes e no movimento sindical. Esperavam eles que o término da guerra civil levasse o regime soviético a rumos democráticos.

Socialistas revolucionários de direita – Através de seu líder Viktor Tchernov, apoiava Kronstadt e fazia crítica à ditadura bolchevique, receitando como remédio aos males dos trabalhadores a convocação de uma Assembleia Constituinte. Criticavam acremente os bolcheviques de sobreporem os sovietes à Constituinte e até mesmo de fechá-la.

Socialistas revolucionários de esquerda – Apoiavam inteiramente as reivindicações de Kronstadt, enunciadas anteriormente. No seu jornal oficial, negavam terminantemente qualquer participação na insurreição.

Lenin – Liga a insurreição de Kronstadt ao elemento camponês, pressionando o governo soviético. Denuncia a presença em Kronstadt de mencheviques, socialistas revolucionários e outros antibolcheviques. Atribui a direção da rebelião a um general czarista, Koslovski. Acusa Kronstadt de receber recursos do capital financeiro internacional, como tentativa de deslocamento do poder em proveito dos empresários urbanos e agrários. A argumentação de Trotski caminha no mesmo sentido que a de Lenin.

Porém, após Trotski ter sido exilado por Stalin, no México escreve seu último livro – foi assassinado no meio de sua redação por um agente da polícia secreta de Stalin –, intitulado Stalin, onde confessa que a repressão bolchevique a Kronstadt fora uma necessidade trágica; o mesmo vale para Makhno e outros revolucionários, que, segundo ele, tinham boas intenções mas agiram erradamente.

No real, o proletariado russo perdera o controle das fábricas, dirigidas por delegados do Estado, a insurreição camponesa autogestionária da Ucrânia, que derrotara os generais Denikin e Wrangel, foi contida pelo Exército Vermelho, e a insurreição de Kronstadt, que definia um programa de objetivos socialistas e libertários, foi selvagemente reprimida pelo bolchevismo. A repressão fora dirigida pelo general Tukatchevski, posteriormente fuzilado como “traidor” da Revolução por Stalin, nos célebres processos de Moscou (1936-38). Diga-se de passagem, nesses processos Stalin fuzilara todo o Comitê Central de Lenin (pp. 122-127).

(1) AVRON, Henry. A Revolta de Kronstadt. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 4.

(2) AVRICH, Paul. Kronstadt, 1921. Buenos Aires: Utopia Libertaria, 2006, 15.

(3) Ibidem, p. 19.

TRAGTENBERG, Maurício. A revolução Russa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2007.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Kronstadt e os Anarquistas Espanhóis (CNT), por José Peirats

Kronstadt e os anarquistas espanhóis (CNT)
José Peirats

Socialismo ou ditadura

Em Berlim, [Ángel] Pestaña, que havia saído de Barcelona em março de 1920, teve notícias do II Congresso da Terceira Internacional, convocado para julho daquele mesmo ano. Logo após ter obtido a designação de delegado da CNT, pôde entrar na Rússia em 26 de julho. Em Moscou, foi convidado para as reuniões preliminares do congresso, celebradas pelo Comitê Executivo da Internacional Comunista. Nelas seriam planejadas uma nova Internacional sindical revolucionária. Porém, nas declarações inicialmente esboçadas, havia um exaltado panegírico da ditadura do proletariado. As organizações sindicais de caráter apolítico eram atacadas desapiedadamente. Pestaña se negou a assinar todo o documento a este respeito, não abrindo mão da seguinte ressalva: “Tudo o que se refere à conquista do poder político, à ditadura do proletariado (...) será decidido em acordos posteriores definidos pela CNT, tão logo eu regresse à Espanha e o Comitê Confederal tome conhecimento do que aqui foi acordado”.

Pestaña afirmou que os comunistas se dispuseram, inclusive, a emendar a redação do documento, no que se referia à ditadura do proletariado. Entretanto, nem mal se ausentou o delegado espanhol, para que se dessem publicidade ao texto original com a assinatura de Pestaña.

Sobre o desenvolvimento do congresso propriamente dito, Pestaña relata que lhe chamou sobremaneira à atenção a disputa que se produziu pela ocupação da presidência. Mas logo se daria conta de que a presidência era o próprio Congresso, e esse sua caricatura. A presidência elaborava o regulamento, presidia o congresso, modificada à sua maneira as proposições, alterava a ordem do dia e apresentava proposições de iniciativa própria. A forma com que manejava a guilhotina era um primor. Por exemplo: Zinoviev pronunciou um discurso de uma hora e meia, apesar do tempo reservado para as intervenções estivesse estipulado em 10 minutos. Pestaña se propôs a rebater este discurso, mas foi interrompido pela presidência, relógio na mão. O próprio Pestaña foi rebatido por Trotski, que discursou por longos 45 minutos. Quando Pestaña tentou refutar os ataques que Trotski lhe havia dirigido, a presidência declarou o debate encerrado. Pestaña também protestou contra a forma de seleção dos palestrantes. Teoricamente, cada delegado podia fazer uma proposição, mas cabia à presidência escolher os “mais capacitados”. Outro de seus assombros foi o fato de não se registrarem atas. Tampouco se votava por delegações, senão por delegados. Era previsto o voto proporcional, mas não se aplicava. O Partido Comunista Russo se assegurava assim de uma maioria confortável. Para o cúmulo dos cúmulos, certos acordos não se davam no salão das sessões, mas nos bastidores. Desta maneira, foi aprovado o seguinte: “Nos próximos congressos mundiais da Terceira Internacional, as organizações sindicais nacionais aderentes estarão representadas pelos Delegados do Partido Comunista de seu país respectivo”. Qualquer manifestação de protesto por esse acordo foi simplesmente ignorado.

Pestaña abandonou a Rússia no dia 6 de setembro de 1920, depois de uma breve troca de impressões com Amando Borghi (delegado da União Sindical Italiana), que também regressaria à Itália decepcionado com aquela infortunada experiência. Mas antes de saírem de Moscou, ambos tiveram conhecimento de uma circular referente à organização da Internacional Sindical Vermelha. Se o futuro congresso da Terceira Internacional objetivava assegurar o predomínio dos partidos comunistas acima das organizações sindicais, era de se supor que em uma Internacional Sindical daria rédeas soltas às centrais obreiras submissas. Todo o contrário demonstrava aquele infeliz projeto da Internacional Sindical Vermelha o qual dispunha:

“1) Um comitê especial deverá ser organizado em cada país pelo Partido Comunista. 2) O comitê se encarregará de receber e distribuir a todas as organizações sindicais as circulares e as publicações da Internacional Sindical Vermelha. 3) O Comitê nomeará os redatores dos periódicos profissionais e revolucionários inculcado-lhes os pontos de vista da Internacional contra a Internacional adversária. 4) O Comitê intervirá com artigos próprios de orientação e polêmica. 5) O Comitê trabalhará em estreita relação com o Partido Comunista, ainda que este se constitua em um órgão diferente. 6) O Comitê deverá contribuir para a convocação de conferências em que se discutam questões de organização internacional e deverá escolher os oradores para a propaganda. 7) O Comitê será composto de camaradas preferencialmente comunistas. As eleições serão supervisionadas pelo Partido Comunista. 8) Nos países onde este método não pode ser adotado serão enviados emissários do Partido Comunista a fim de criar uma organização parecida”.

Há quem não consiga compreender que uma organização libertária como a CNT, tão rica em experiências políticas e sociais, pudesse ser seduzida, sequer por um momento, pela ditadura proletária e a Terceira Internacional. Muitos fatos explicam este fenômeno. A Espanha atravessava um período revolucionário. A CNT estava em pleno auge de crescimento e a chegada de militantes novatos suscitava uma ebulição de correntes diversas. O clima de repressão constante fazia com que se cedesse com certa facilidade ao oportunismo, em detrimento do rigor doutrinário. Um fato transcendental dominava tudo: a grande chamada da Revolução Russa e seu terrível impacto no espírito revolucionário espanhol. Todos os partidos e organizações esquerdistas do mundo haviam sofrido influência desse impacto. O Partido Socialista espanhol sofreria sob a forma de duas cisões. Quanto maior era o bloqueio das potências ocidentais sobre a Rússia, tanto maior era o hipnotismo da revolução. Por outra parte, em 1919, ainda não fora produzido a avalanche crítica anticomunista. O livro de Luigi Fabbri, Ditadura e revolução, muito embora escrito em 1919-20, não apareceu em italiano senão em 1921. A edição espanhola desse mesmo livro foi publicada na Argentina em 1923. Um dos primeiros folhetos anticomunista, Soviete ou ditadura?, de Rudolf Rocker, não apareceu em castelhano senão em 1920 (Argonauta, Argentina). Bolchevismo e anarquismo, do mesmo Rocker, foi escrito em 1921 e foi publicado na Argentina no ano seguinte. Até 1923, não havia sido publicado em alemão a obra de Piotr Archinov: História do movimento makhnovista. No mesmo ano, lia-se nos Estados Unidos Minha desilusão na Rússia, de Emma Goldman. O mito bolchevique, de Alexandre Berkman, não se ofereceu ao público senão em 1925.

É, pois, evidente que no congresso de 1919 não se pôde esclarecer aos delegados tão preciosas informações. De todas as maneiras, bem analisado o acordo do congresso de 1919, descobre-se que nunca se optou por uma adesão incondicional. A moção reitera a fidelidade da CNT aos princípios da Primeira Internacional “defendidos por Bakunin”. Em seguida, ressalta o caráter provisório ao acordo de adesão. E, em último lugar, subordina o acordo aos resultados de um congresso a realizar-se na Espanha, que deverá, portanto, assentar as bases da “verdadeira” Internacional dos trabalhadores. Assim, pois, o caráter condicional do acordo não poderia ser mais rigoroso. Entretanto, havia mais: a CNT se restringia ao terreno da realidade revolucionária.

Os mais privilegiados em ordem de informações verídicas foram os anarquistas do círculo de Berlim, que, situados no corredor de ida e volta da Rússia, puderam ir absorvendo os primeiros sinais desesperadores da realidade. O descrédito do mito comunista não começou a produzir-se senão até 1921. Foram motivados pelos escandalosos acontecimentos de Kronstadt (a destruição, pelas tropas de Trotski, daquele reduto anarquista). Alguns anarquistas, que haviam ido à Rússia para contribuir com a reconstrução revolucionária daquele país, já estavam de volta decepcionados, pois haviam sido expulsos pelo novo despotismo. Entre eles, figuravam Alexander Berkman, Emma goldman e Alexander Schapiro. Estes proscritos do paraíso proletário levavam consigo manuscritos de livros e preciosos materiais de informação. Sem hipérbole, seria possível afirmar que, entre os precursores que puseram a nu o mito vermelho, estavam os anarquistas. Esta conduta nunca lhes foi perdoada pelos seus “freres ennemis”. Outros setores ou mesmo personalidades tocados pelo mito não tardaram senão muitos anos em sacudir tão pegajosa influência. Entre os mais vulneráveis, destacavam-se os intelectuais vanguardistas. No que diz respeito ao movimento sindical, Ángel Pestaña e Armando Borghi foram os primeiros arautos no Ocidente daquele dramática chantagem. A mensagem de Pestaña tardou, todavia, a chegar aos sindicatos. Pestaña não retornou a Barcelona senão em 17 de dezembro de 1920, sendo imediatamente detido e encarcerado. Até quase um ano depois, em novembro de 1921, não remeteu seu relatório ao Comitê Nacional da CNT. Em sua passagem pela Itália, também lá fora detido. A polícia desse país havia apreendido de quantos documentos era portador. Ángel Pestaña escreveu depois dois livros sobre a Rússia. O primeiro, Setenta dias na Rússia, publicado em 1924. O que significa dizer que não seria lido pelos trabalhadores confederais senão no início da ditadura de Primo Rivera.

(...)

O Congresso Nacional da CNT de 1919

O congresso a que se refere transcorreu nos seguintes termos:

O congresso Nacional da CNT foi realizado em Madri entre 10 e 18 de dezembro de 1919. Pela extensão e variedade da agenda, pela quantidade e qualidade dos delegados e o número de aderentes representados, foi um dos comícios obreiros mais importantes de todos os tempos celebrados na Espanha. Três problemas capitais foram tratados: a fusão do proletário espanhol (rechaçada por 323.955 votos contra 169.125 e 10.192 abstenções); a nova estrutura orgânica constituída à base de Federações Nacionais de Indústria (rechaçada por 651.472 votos contra 14.008); declaração de princípios do comunismo libertário (adotada unanimemente por aclamação).

No entanto, o debate mais importante girou em torno de qual atitude tomar com relação à Revolução Russa. Várias propostas foram sugeridas: “Quais meios poderemos pôr em prática para prestar apoio à Revolução Russa e evitar o bloqueio (...) por parte dos Estados capitalistas? É necessário o ingresso (...) na terceira Internacional Socialista? Deve a Confederação aderir à Internacional imediatamente? Em qual Internacional deve fazê-lo? Seria conveniente a realização de um Congresso Internacional na Espanha?

Vários ditames foram aprovados, porém cabe assinalar o seguinte:

“A Confederação Nacional do Trabalho se declara firme defensora dos princípios, defendidos por Bakunin, que conceberam a Primeira Internacional. Declara que adere, provisoriamente, à Terceira Internacional, pelo seu caráter revolucionário, até organizar e realizar o Congresso Internacional na Espanha, que irá assentar as bases que hão de reger a verdadeira Internacional dos Trabalhadores".

Este acordo havia coroado um debate de alto nível no qual tomaram parte os delegados mais proeminentes. A discussão envolveu o significado da ditadura do proletariado. Eis aqui um resumo do que foram as intervenções:

Manuel Buenacasa: “...Nós, que somos inimigos do Estado, como o temos demonstrado em algumas moções aprovadas por esse congresso, entendemos que a revolução russa, pelo fato de ser uma revolução que tem transformado todos os valores econômicos ou, melhor dizendo, pelo fato de ser uma revolução que tem dado ao proletariado o poder, os instrumentos de produção e a terra, deve nos interessar nesse aspecto, portanto devemos impedir que essa revolução, que esse governo dos sovietes, fique estrangulado pelos Estados capitalistas...”.

Hilário Arlandis: “...Começamos pela ditadura do proletariado. Muitos companheiros (...) não aceitam a ditadura do proletariado como não aceitam nenhuma classe de ditadura... naturalmente, em princípio, não devemos aceitar nenhuma violência, porque toda violência é ditadura. Mas nós não somos somente idealistas (...) temos de aceitar a violência porque é uma necessidade mesmo da sociedade e das condições em que vivemos... Justifica-se a teoria da ditadura do proletariado, não já como ideal último (...), senão como uma solução intermediária, inevitável, necessária, fatal, em suma, uma medida contraditória para derrocar de uma vez por todas e por completo os poderes dos privilegiados, e, por outra parte, capacitar (...) as massas obreiras, que tem sido durante séculos espoliadas e reduzidas a mais cruel ignorância...”.

Eleuterio Quintanilla: “...Faz-se constituído um governo forte de acordo com o conceito clássico da revolução. Todo movimento, geralmente, deve se coroar de um governo revolucionário que se encarregue do poder e represente os interesses da nova revolução, organize a sociedade, estabeleça a nova ordem de coisas, constitua um novo direito. Esse é o conceito de revolução clássica; esse é o conceito da revolução marxista. Os federalistas bakuninianos internacionalistas dos primeiros tempos, homens que estamos de acordo com o critério e o espírito libertários, sempre combateram, e nós também, no terreno da própria ação de classe, esse conceito, que é considerado por nós autoritário, centralista, castrador... portanto, a ditadura russa responde ao nosso conceito libertário...? Não. A ditadura russa, tal como tem sido exercida, constitui para nós um sério perigo que, se não está ao nosso alcance combater, está, e deve estar, em não aplaudir...”.

Salvador Segui: “...Somos partidários (...) por necessidade da realidade (...) não em teoria, de ingressar na Terceira Internacional (...) porque isto vai endossar nossa conduta no chamamento que a CNT vai fazer às organizações sindicais do mundo, para construir a verdadeira, a única, a genuína Internacional dos trabalhadores... sustentamos que há necessidade de incorporarmos na Terceira Internacional circunstancialmente, e que logo a Confederação espanhola deverá convocar todas as organizações sindicais do mundo para organizar definitivamente a verdadeira Internacional dos Trabalhadores...”.

(...)

A formação do Partido Comunista Espanhol e a recusa da CNT

O comitê nacional da CNT estava nas mãos de elementos inexperientes ou atacados pela epidemia comunista. Andrés Nin, um jovem oriundo do Partido Socialista, recém-chegado à CNT, fazia as funções de secretário-geral. Ainda não se conhecia, todavia, as informações de Pestaña sobre a Rússia. Tais informações, repetimos, não seriam escritas senão em novembro daquele mesmo ano. A plenária foi celebrada na segunda quinzena de abril. Havia de se decidir sobre a convocatória de um novo congresso na Rússia (o da Internacional Sindical Vermelha), marcado para junho. Foi nomeada uma delegação, composta por quatro comunistas: o mesmo Andrés Nin, Hilário Arlandis, Joaquim Maurín e Jesus Ibáñez, este último militante do Norte. Os grupos anarquistas de Barcelona, talvez alertados pelo que ocorria na Rússia, usaram do direito de agregar à comissão um delegado próprio. Assim sendo, foi designado Gaston Leval. A delegação se dividiu abertamente ao chegar a Moscou. Gaston Leval se manteve separado dos quatro incondicionais comunistas. Um dos méritos desta delegação foi ter intervido, à iniciativa de Alexander Berkman e Emma Goldman, na greve de fome declarada pelos anarquistas e socialistas revolucionários presos no cárcere de Moscou. O documento que estabelece a negociação entre os grevistas e a toda poderosa Tcheca, leva a assinatura de Hilário Arlandis e Gaston Leval.

Quase na mesma ocasião que a CNT, o Partido Socialista havia celebrado seu XII Congresso no dia 9 de setembro de 1919. Este congresso extraordinário havia sido motivado por uma crise da comissão executiva. Nesse congresso, a tendência chamada “terceiristas” (partidária pelo ingresso na Terceira Internacional) havia sido batida por escasso número de votos. No ano seguinte, houve uma cisão das juventudes Socialistas. Ángel Pestaña escreveria a seguinte anotação: “Antes de minha saída da Espanha (março de 1920), não existia o Partido Comunista. Estando eu em Paris, soube que a Juventude Socialista havia se separado do Partido Socialista e constituído o Comunista. Imprensa partidária: começaram a publicar O Comunista”.

Em junho de 1920, reuniu-se um novo congresso do Partido Socialista. Desta vez, os “terceiristas” bateram seus adversários, também por ligeira diferença de votos. A adesão à Terceira Internacional também estava condicionada a uma viagem de reconhecimento que fariam à Rússia os delegados representantes das diversas tendências. Os delegados foram Daniel Arguiano e Fernando de los Rios. O primeiro regressou como havia partido: firme de suas convicções comunistas. Fernando de los Rios pesaria muito na retificação do acordo. Segundo Andrés Saborit, “as conversações de Fernando de los Rios com o patriarca do anarquismo, Piotr Kropotkin, foram determinantes para convencê-lo de que, se bem havia sido destronado o odioso czarismo, estava surgindo na Rússia uma nova tirania de tipo pessoal, o que fez com que suas decisões foram absolutamente contrárias ao ingresso na Terceira Internacional".

Um novo congresso do Partido Socialista (9 de Abril) derrotou definitivamente os “terceiristas” por uma margem confortável de votos. Mais terminada a votação, a minoria derrotada se apressou a fazer público um manifesto (13 de Abril) encabeçado por quem se tornaria o primeiro secretário do Partido Comunista espanhol: Oscar Pérez Solís. Era um sinal da cisão do Partido Socialista que daria nascimento ao Partido Comunista.

Segundo Pierre Brué e Émile Términe: “Três correntes haviam se encontrado para fundar o movimento comunista na Espanha: as Juventudes Socialistas no princípio, com Andrade e Portela; depois a minoria socialista, com Pérez Solís, García Quejido, Anguiano e Lamoneda, e o grupo de dirigentes da CNT que animavam Andrés Nin e Joaquín Maurín".

A CNT necessitava a todo transe realizar um congresso para revisar seus acordos à luz dos últimos acontecimentos. Somente mediante um estratagema, e também à força do proletariado saragociano, foi reunida uma modesta conferência. Este comício teve lugar em Saragoça no mês de julho de 1922. Uma das principais tarefas foi confrontar as medidas tomadas pelos delegados enviados para a Rússia. Os relatórios eram três: o de Ángel Pestaña; um outro escrito por Gastón Leval e o que fez pessoalmente Hilário Arlandis. Este foi demitido e a Conferência voltou uma moção de censura contra o despotismo bolchevique.

Também foi adotada uma proposição pela qual ficava retirada a adesão da CNT à Terceira Internacional em favor do ingresso na Associação Internacional dos Trabalhadores, reorganizada recentemente em Berlim.

PEIRATS, José. Repressión y Martirologio, in: Los anarquistas: en la crisis política española (1869-1939). Libros de Anarres (Utopia Libertaria): Buenos Aires, 2006, pp. 33-45. Os subtítulos não constam no original, as notas também foram suprimidas e a ordem do texto foi alterada para atender os fins desta postagem – N.T.