quarta-feira, 15 de junho de 2016

O ESTUPRO COLETIVO PRATICADO PELA FAMÍLIA BRASILEIRA


O estupro coletivo praticado pela família brasileira


por Zarina Monti Airumã

O primeiro semestre de 2016 fechou com um saldo negativo para as conquistas das mulheres. No cômputo geral, as mulheres sofreram dois grandes reveses: um, na política; outro, na sexualidade.


Em ambos os casos, trata-se da costumeira violência contra a mulher. Examinemos um a um:


a) A primeira mulher eleita presidente no Brasil é afastada por um golpe de Estado orquestrado por uma patriarcal máfia de cafajestes corruptos.


Muitos querem negar o teor machista do golpe e alegam os mais diversos motivos para o afastamento, aliás, motivos machistas, como “conjunto da obra”, “justa causa” e “incompetência”. Realmente, não poderiam ser mais originais! Pois, não importa o motivo, é flagrante a tentativa de desqualificar a presidenta através de um preconceito vulgar.


Todas essas acusações, no entanto, são, obviamente, covardes, como não poderiam deixar de ser quando os acusadores são sabidamente machistas covardes. Chamar de incompetente uma mulher por 500 anos de incompetência e mal feitos - praticados por homens - é uma covardia. Chamar de incompetente uma mulher por escancarar as mazelas dos três poderes explicitando toda a podridão das classes política, jurídica e burocrática é covardia.


Não é porque todos os políticos são uma laia de salteadores, gatunos e corruptos que uma mulher deve pagar a conta, justamente, por ser mulher, enquanto os verdadeiros malfeitores ficam impunes.


Sendo assim, teria sido incompetência da presidenta mostrar à sociedade a verdadeira face dos políticos, na sua real essência, que está muito longe da imagem artificialmente construída de candidatos probos das campanhas eleitorais? É justamente o contrário. É mérito da presidenta.


Na verdade, Dilma Rousseff foi muito bem avaliada no 1o. mandato (melhor do que seus dois antecessores) e reeleita para o segundo. Isto basta para calar os críticos. Porém, além da crise econômica internacional que abalou a economia interna do país, a presidenta foi sabotada pelo monopólio de uma mídia conservadora e tradicionalmente golpista, por um bando de velhacos, que se dizem deputados e senadores, em sua maioria homens, por um judiciário parcial e, desde o início, por seu adversário de pleito eleitoral, um coronelzinho mimado agressor de mulher inconformado com a derrota. Quando deposta, as mesquinharias mais machistas assumiram a forma de represália e até o termo “presidenta” - sim, com “a” na última sílaba - foi censurado pelo crápula que assaltou o poder.


Nada mais machista, a destituição de uma mulher honesta por uma escória infame. E, claro, diante de tal barbaridade, a família brasileira se manteve em um silêncio cúmplice.


Tamanha violência contra a mulher não poderia ser mais chocante.


A hipocrisia, entretanto, não tem limites. Pois, enquanto uma mulher é afastada arbitrariamente do cargo, pelo qual foi legitimamente eleita por maioria popular, abundam propagandas na TV dos mais diversos partidos, inclusive dos golpistas, e também do TSE, demandando por maior participação da mulher na política. Culpa ou cinismo. Cinismo. Escárnio.


Para essa gente, política é Clube do Bolinha. E é mesmo. Maquiável já ensinava que em política não existe ética. É poder, força bruta, rapinagem. São apenas os trogloditas querendo mandar na caverna.


É por isso que o feminismo deve lutar pelo fim da política e reivindicar a autonomia de todas as pessoas, organizadas de modo igualitário e por meio da autogestão.


Se política é masculina e o verdadeiro significado de virtude (nota no final do texto) é velhacaria, então pelo fim de toda a política! Pelo empoderamento do espaço público pela mulher sem a mediação abstrata do Estado.


b) O estupro coletivo de uma garota de 16 anos no Rio de Janeiro (e, também, outra, de 14 anos, no Piauí, lamentavelmente).


Uma garota foi estuprada por aproximadamente trinta homens que ainda veicularam as imagens da violência na internet. Apesar de sua inquestionável condição de vítima, não foram poucos os que responsabilizaram a jovem por incitar os criminosos a violentá-la, inclusive o próprio delegado do caso que, impertinente, perguntou se a vítima tinha o hábito de fazer sexo em grupo.


Mas estas reações eram esperadas, dos Bolsonaros e pastores Felicianos da vida. Apesar de repugnantes, se há algum mérito de valor neles, é o de não serem hipócritas. São adversários declarados. Não têm meias palavras. Estão do outro lado do campo de batalha.


Porém, a violência continuaria ainda pelo “lado bom” da sociedade.


Pois, pior mesmo foram os homens ponderados, “sérios”, na imprensa ou nos diversos fóruns de debate, que, ao defenderem a vítima, assumiram uma postura de serenidade impoluta. Sem dúvida, de uma hora para outra, certas figuras se tornaram inesperadamente entusiastas dos direitos das mulheres. Como se estes homens nunca tivessem contado aos amigos vantagens que depreciassem uma mulher; nunca tivessem chamado uma mulher de “vaca”, “rameira”, “piranha”; não tivessem amantes; não quisessem que suas filhas casassem “bem”, que tivessem uma “boa” educação, que fossem “moça de família”, “direita”, “para casar”, e que seus filhos homens pegassem todas, etc.


Sem querer generalizar, mas ter constatado certas figuras (símbolos da sociedade desigual) manifestando com a maior cara-de-pau indignação é ainda mais enojante que os Bolsonaros e pastores Felicianos.


No calor dos acontecimentos, até mesmo mulheres acabaram por destilar um veneno machista sutil e perverso quando tentavam defender a liberdade feminina.


Um exemplo, o programa Canal Livre, do dia 5/06/16, da emissora Bandeirante, disponível no You Tube. As declarações de duas jornalistas merecem transcrição:


Primeira jornalista: “Agora, eu queria falar por exemplo da questão do funk... é o funk, muito forte na nossa sociedade, principalmente, no Rio de Janeiro, e:: imediatamente a gente faz críticas... né... veladas... que seja… essas meninas vão sem calcinha… elas estão provocando… elas querem... e depois reclamam… e eu entendo que isso seja uma discussão válida porque você entende que uma mulher que entra no quarto… e vamos levar essa discussão do Mike Tyson de alguma forma... né… é óbvio que ela queria… queria… ela pode dizer não até o último absoluto segundo... porque é uma questão de consenso… fato… enquanto as pessoas não enfiarem isso na cabeça a gente vai ter sérias dificuldades de… de… de avançar nesta discussão… mas entrando nesta questão do funk… como é que a gente entende o momento que acontece aí… é uma questão cultural onde estas meninas são vítimas de uma cultura ou elas realmente estão provocando e ali é seja o que Deus quiser…” (...) “...Elas têm consciência do que elas estão fazendo nesses bailes leva a um ato que não necessariamente elas queriam?…”  


(...)


Segunda jornalista: “Aí volta para a educação… aquilo que a gente falava… uma mãe presente… uma mãe consciente… uma mãe que…”


Em primeiro lugar, esta discussão NÃO é válida. Essa discussão é simplesmente esdrúxula.


Uma garota pode ir a um baile sem calcinha, SIM! Ninguém recrimina um rapaz que porventura vai a uma festa sem cueca; não choca, não chama a atenção! Mas uma mulher! sem calcinha!!! O que ela quer? Por que não se dá o respeito?!


Quanta hipocrisia!!!


Se esta garota, que vai a um baile funk sem calcinha, quer “provocar” ou se ela quer ser sensual, isso é um direito dela! O que não é direito é alguém obrigá-la a fazer sexo porque ela está vestida desta ou daquela maneira, com ou sem calcinha. Nada autoriza a um homem forçar uma mulher a ter uma relação sexual seja sob qualquer pretexto. Tampouco tocar em seu corpo.


É estarrecedor a mulher ter que se policiar para garantir um direito elementar: o de não ter sua integridade invadida, violada.


Falam em consentimento. Sim. É óbvio que uma relação sexual com duas ou mais pessoas tem de ser consentida. Isto nem devia entrar em tela de juízo. Porém, ninguém se questiona se um homem deve consentir para ter uma relação com uma mulher ou não. Na verdade, isso nem é cogitado. O homem deve pegar todas, ou então sua masculinidade é posta em dúvida. Agora, a mulher, sexo frágil, tem de se rebaixar ao homem e lhe conceder permissão. Como se ela não tivesse direito a iniciativa e tivesse que aprovar, dizer sim ou não como uma criança, o desejo de outrem. Algumas questões por si só são humilhantes. Essa é uma delas. Define papéis distintos de comportamento. Pressupõe uma suposta menoridade da mulher quando uma relação sexual implica uma relação entre pessoas maduras, em situação de igualdade.


Se a garota não quer, não quer e pronto! Não precisa implorar, pedir, suplicar, ou se justificar.


Portanto, o que não é válido é desqualificar uma mulher por ela ter uma postura afirmativa sobre a sua própria vida, seja no âmbito da sexualidade ou qualquer outro, e usar desta condição para humilhá-la e depreciá-la. Aliás, é esse juízo de valor que fomenta o estupro, em todos os seus sentidos.


Quando ex-namorados publicam na internet suas ex-parceiras em momentos íntimos para difamá-las, por que a sociedade é cúmplice, condena e execra essas garotas? O que se esperava delas, que fizessem sexo com um lençol com um furo no meio por cima de seu corpo? Por acaso a nudez masculina é menos impudica do que a nudez da mulher? Por acaso é menos vergonhoso a um homem fazer sexo diante de uma câmera? Será que ele não tem rosto? Ou será que ele faz sexo de terno e gravata, de toga ou de batina?!


O fato de a mulher ter total liberdade sexual não dá ensejo ao estupro, seja físico, seja verbal.


O fato de ela “não ser de ninguém”, como diz o aviltante ditado, não dá ensejo a que seu corpo seja violentado.


A propósito, ela realmente não é de ninguém. De um outro. De alguém. Ela é dela mesma e, sendo assim, tem autonomia sobre si mesma.


Taxar a mulher por sua condição feminina é uma forma de segregação e é a porta aberta para a violência contra a mulher.


Ser mulher não é uma sina. Não é uma “costela”. Não é pecado. O feminino é uma qualidade humana, pois, antes de ser mulher, existe um ser humano, e feminilidade não é um predicado de demérito, mas uma contingência natural que não diminui em nada seu status de igualdade em relação a outra contingência natural: a masculinidade.


O valor da mulher não está sujeito ao juízo de um homem ou da sociedade machista.


Em segundo lugar, não há o menor problema se uma garota quer manter relações sexuais com um parceiro, dois, cinco ou mais, com homem ou mulher etc. Isso é uma decisão que diz respeito única e exclusivamente a ela, deve partir dela, fruto de sua vontade. O fato de ela ser ou não promíscua sexualmente não faz dela pior do que ninguém nem autoriza alguém a decidir por ela sobre algo que diz respeito somente a ela.


Homens, perante a sociedade, podem e devem ser promíscuos. Por que as mulheres não podem e não devem ser promíscuas? Por que as mulheres não podem ter muitos parceiros sem serem estigmatizadas por isso ou violentadas moral ou fisicamente? Assim como homens não são julgados pela sua conduta sexual, a mulher também não deve ser.


O que significa que uma mulher - que se veste assim ou assado, que fez sexo com este ou aquele ou é celibatária - não tem que ser taxada nem ferida em sua reputação por suas escolhas. O fato de ela ser promíscua não dá o direito à sociedade de lhe ofender, duvidar de seu caráter, de cercear sua liberdade, sobre si mesma, sobre seu próprio corpo. A sociedade não tem condições morais para estabelecer o que é certo ou errado, tampouco negligenciar o direito de qualquer um a não sofrer abusos e violências só porque este não corresponde às suas expectativas.


A sociedade, ao invés de se preocupar com o comportamento de Fulana ou Ciclana, devia exigir respeito nas relações amorosas. Porque é, de modo hipócrita, condescendente ao fato dos homem terem amantes, saírem com prostitutas no horário do almoço, e ostentarem respeitosamente uma aliança no dedo!


Ao invés de a sociedade se preocupar com a vida sexual de uma mulher, devia valorizá-la pelos seus méritos, seus talentos, que podem ser muitos ou mesmo nenhum. Não importa, ela é uma pessoa e não pode ser menosprezada pela sua condição feminina.


A sociedade coloca para as mulheres o dilema “mulher honesta” ou “mulher da vida”. Esse dilema degrada a priori a condição feminina e busca determinar e classificar o papel social da mulher nessa sociedade.


Mas se honestidade para mulher significa ser submissa ao marido, suportar a violência doméstica e a infidelidade, a dupla, tripla jornada de trabalho, a sujeitar-se ao arbítrio do pai ou do esposo, de como se deve vestir, cortar o cabelo, de ser fiel, bela, recatada, do lar  etc., então eu prefiro ser, com muito orgulho, mulher da vida!


Não vou ceder um milímetro e renunciar a minha vida em prol de outro, de valores pelos quais eu não acredito.


Se os falsos moralistas apontarem o dedo para mim e disserem “se dê ao respeito”, eu aponto o dedo em riste diante de seus rostos e retruco: “Sim, eu realmente me dou ao respeito e, por isso, o que você pensa ou deixa de pensar sobre mim eu não dou a mínima! Eu saio com quem eu quero, namoro com quem eu bem entender, dou o fora em quem eu quiser, visto a roupa que me agradar, faço da minha vida aquilo que bem me aprouver... e, seja como for, você não tem o direito de pôr as suas mãos sobre mim!”


De fato, é um estupro coletivo praticado todos os dias pela família brasileira contra a mulher. Sua omissão. Sua cumplicidade e tolerância com o agressor.


Mas minha liberdade eu não troco por um fiapo de aprovação dessa sociedade hipócrita e machista.  


Para concluir, em nossa sociedade, a dita cultura do estupro não é uma anomalia, um ponto fora da reta, uma contingência. Ela é central, necessária!


Assim como o tabu do incesto, a cultura do estupro é a pedra angular da civilização, de todas as suas instituições, da família, da escola e de toda esta farsa da modernidade que se chama judiciário, legislativo e executivo.


O afastamento da presidenta Dilma e o estupro coletivo e toda a hipocrisia envolta nesses casos é apenas a ponta do iceberg. A todo momento, somos preteridas e abusadas pela condição de ser mulher.


A luta do feminismo é árdua e sua jornada ainda é muito longa, mas um dia as mulheres vencerão!


Viva a Anarquia!

Nota: A palavra latina “uir”, que deu origem a “virtude”, “viril”, “virago”, significa “homem”. Como se a masculinidade fosse sinônimo de ética, moral, correto, bem. Realmente, os exemplos pululam... Quanta ironia!

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sábado, 4 de junho de 2016

KURZ CIRCUITO 6


Pérolas proferidas por kurzianos:

- "Universidade popular é reacionário, porque não chega ao fundamento".

- "O movimento sem-teto lutar por moradia é reacionário porque reafirma a propriedade privada".

- "O capitalismo acabou com a propriedade. Você não leu no livro (O colapso da modernização)?"

- "A igualdade é um princípio burguês".

- "A revolução é um princípio burguês".

- "O real é ficcional; o ficcional é real".

(Pausa para rir)

- "Defina o conceito de classe social".

- "Será que ainda existe fome no Brasil?!"

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