por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
“A história se repete, a primeira vez
como tragédia, a segunda como farsa”. Inicio este texto com uma das frases mais
notáveis e, ao mesmo tempo, vulgares, tamanha a sua força retórica, da tradição
humanista nas ciências. A frase é inspirada no clássico “O 18 de Brumário de
Luís Napoleão” de Karl Marx e alude de modo irônico a Hegel, para quem os fatos
e os personagens de grande importância histórica ocorrem ao menos duas vezes. O
mote hegeliano enseja, para Marx, uma paródia da qual a figura de Napoleão III
é sua expressão mais burlesca e, ao mesmo tempo, melancólica.
O tema remete aos ecos da Revolução
Francesa (1789), cuja luta de classes alçou a burguesia à condição de classe
politica dominante. Entre capítulos trágicos e sangrentos, as classes populares
prestaram um serviço vital à revolução antes de serem colocadas totalmente de
lado. O golpe de estado de 18 de Brumário, protagonizado por Napoleão
Bonaparte, jovem general que, à frente de um exército nacional e popular, sua
Grande Armée, alastrou as chamas da liberté, égalié, fraternité sobre os
resquícios de uma assombrada Europa feudal, arrematou de uma vez por todas os
pontos ainda em abertos da trama burguesa no contexto da formação dos Estados
modernos.
Ecos que ressonavam nas insurreições de
1848 como uma caricatura contrarrevolucionária da revolução, o bonapartismo.
Representante do campesinato, da classe média e do lumpesinato, composição
social que também sustentaria, quase um século mais tarde, a ascensão do
nazifascismo, o Estado bonapartista foi um instrumento militarizado da
burguesia francesa que, de um lado, se colocava acima de todas as classes e, de
outro, comprava ou oprimia violentamente o operariado nascente.
Afastada inicialmente a ameaça
proletária durante as jornadas de junho, sob o lema “propriedade, família,
religião, ordem”, diante de um vazio de poder suscitado por um intrincado jogo
de interesses manipulados no tabuleiro ilusório da democracia representativa da
Segunda República, onde “cada partido ataca por trás aquele que procura
empurrá-lo para frente e apoia pela frente naquele que o empurra para trás”
(Marx), e do completo divórcio entre o Executivo e a Assembleia Nacional, a
burguesia abdicou de um projeto de poder e apostou todas as fichas, por pura
falta de opção, no então presidente Luis Bonaparte – qualificado ironicamente
por Victor Hugo com o epíteto de “Napoleão, o Pequeno”, tendo-o por contraste o
tio. Este, impossibilitado por determinação constitucional de concorrer à
reeleição em um segundo mandato (ainda não havia sido imaginado o recurso do
mensalão!) mas rodeado por toda a sorte de velhacos, tramou, conspirou e,
enfim, perpetrou um golpe de estado que, a um só tempo, o proclamava Napoleão
III e punha fim à república recém-fundada. Mas, para justificar o Estado forte
do II Império, o sobrinho, à sombra do insigne sobrenome, pôs em marcha uma
política expansionista fadada ao fracasso, como o apoio à fundação de um
império católico no México, que resultaria no fuzilamento do imperador fantoche
Maximiliano da Áustria, até a derrocada final das idées napoléoniennes, na
guerra franco-prussiana.
Deixando o velho mundo para trás e,
subitamente, situando-se no Brasil, em pleno terceiro milênio, anos depois dos
fatídicos 21 anos de ditadura militar e da promulgação da Carta de 1988, o país
viveu uma arrebatadora embriaguez de democracia que logo se desvirtuaria em
delirante esbórnia autoritária, onde abaixo da linha do equador tudo é
permitido. É neste cenário tropical, triste e sombrio, que os acontecimentos
recentes envolvendo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff possibilitam
pela enésima vez tomar de empréstimo a surrada frase de Marx. Mas, desta vez,
em um sentido invertido para, no final, desentortar os termos tortos.
Primeira inversão: a história se repete,
a primeira vez como farsa, a segunda como tragédia.
Ao êxtase da primeira eleição direta, em
89, seguiu-se, imediatamente, em 92, o impedimento, não menos entusiástico, do
presidente Fernando Collor. Enfim, a sociedade civil manifestava livre e
vigorosamente sua vontade soberana ao eleger e destituir um presidente, acusado
de corrupção.
Não era senão mera macaqueação (como
“hablan nuestros hermanos” argentinos). A inveterada mania de grandeza
mimética, ao simular valores copiados do Tio Sam como se fossem nativos, não
poderia deixar de ser diferente quanto à democracia e, num curtíssimo intervalo
de tempo, após a abertura política, o que fora fruto de um longo e doloroso
processo histórico em solo norte-americano, foi resolvido pela Sexta República
Brasileira como um desfile carnavalesco de caras-pintadas em cuja apoteose
redundou no impeachment (não por acaso uma palavra anglo-saxônica) do
presidente que deveria encarnar Franklin Roosevelt e Richard Nixon numa só
pessoa. Realmente, a democracia brasileira estava completa, feita sob medida,
conforme reza a cantilena, para inglês ver:
“Yes, nós temos bananas! Yes, nós também
temos impítimam!”
Passados 24 anos da ressaca, quando pela
primeira vez a Constituição foi verdadeiramente posta à prova, ela se revelou,
no entanto, letra morta. A dita “constituição cidadã” não passava de uma
fraude.
Sob o verniz democrático, a Carta Magna
mostrou o lado obscuro de um autoritarismo adormecido. Assim como no “18 de
Brumário” Marx afirma que a Constituição republicana de 1848 era inviolável mas
tinha um calcanhar de Aquiles, aliás, uma cabeça, ou melhor, duas, a Assembleia
Legislativa e o Presidente, a Constituição brasileira de 1988 também parece
padecer do mesmo mal na lei do impeachment.
De fato, foram precisos apenas quatro
mandatos consecutivos de um governo popular para o samba enredo da democracia
desafinar em samba do crioulo doido. As elites, secularmente predatórias e
corruptas, e a classe média, intrinsecamente fascista, saíram às ruas para
protestar - pasmem! - contra a suposta corrupção do Partido dos Trabalhadores.
Como a bandeira da corrupção é apenas um
pretexto, os setores conservadores tratam de substituir a presidenta Dilma
Rousseff, a quem não pesa nenhum indício de enriquecimento pessoal ilícito, por
elementos do atavismo político notoriamente desonestos e corruptos. Não por
acaso, nos governos do PT, registrou-se um fato inédito em mais de quinhentos
anos de história do Brasil: a prisão de grandes magnatas e bandidos de
colarinho branco. Trata-se, portanto, de derrubar um partido popular para
salvaguardar a arcaica estrutura de desmandos e impunidade na injusta e
desigual sociedade brasileira.
Diante do assédio odioso representado
pelos interesses particularistas da burguesia oligárquica, diga-se de passagem,
racista, preconceituosa e escravocrata, a Constituição Federal deveria garantir
a estabilidade do mandato presidencial e assegurar a soberania popular expressa
no sufrágio universal. A crise política do governo Dilma demonstrou, porém, que
a presidência é completamente vulnerável aos ataques dos mais abjetos esbirros
pau-mandados das elites locais e, também, refém das chantagens de um parlamento
de mentalidade coronelista.
Para pôr fim ao governo e reconduzir
seus representantes ao poder, as classes dominantes, para variar, põem em curso
um golpe de estado. Mas, ao invés de tanques, fuzis e tropas armadas, utilizam
a lei. Para isso, bastava encontrar alguma atividade do governo passível de
criminalização: manobras nas contas públicas, em um contexto de crise
econômica, para pagar programas sociais, como o Bolsa Família e o Minha Casa,
Minha Vida.
Desnecessário deter-se aqui numa
reflexão sobre a legalidade das chamadas “pedaladas fiscais” ou da abertura de
créditos suplementares, pois o assunto foi largamente discutido e demonstrado
prática recorrente da administração pública (inclusive, realizada pelos algozes
da presidenta). Pois bem, se não há base legal para o afastamento da
presidenta, como explicar o processo movido contra ela?
A legislação do impeachment (1950),
embora tenha fundamento jurídico, autoriza a deposição do presidente por meio
de um processo exclusivamente político. De fato, legalmente, o impedimento do
cargo da presidência está condicionado a um atentado à Constituição por parte
de seu titular, em comprovado ato de violação da lei orçamentária,
configurando-se, assim, crime de responsabilidade. Inexplicavelmente, porém,
não é da competência do judiciário a apreciação técnica da matéria, mas da
classe política, cabendo àquele apenas a função de fiscalizador dos ritos e
definir o mérito do processo. Portanto, concernem à câmara dos deputados a
autorização do processo e ao senado o julgamento, por meio de votação! (Ao indeferir medida de liminar cautelar ao
mandado de segurança 34113, por 8 votos a 2, o plenário do STF entendeu que o
exame dos crimes de responsabilidade deve ser uma atribuição do senado).
Estranhamente, aquilo que é da alçada do judiciário é delegado às partes julgar
e, obviamente, a depender da correlação de forças nas câmaras legislativas e da
omissão do STF, chafurdado na hermenêutica jurídica de conveniência, a
jurisprudência permite a deposição, mesmo que injusta, de qualquer presidente
sufragado pelo voto popular. Em tese, haveria ainda o argumento em defesa da
legalidade, de que a qualquer tempo uma ação poderia ser interposta no Supremo
Tribunal questionando a legitimidade do impeachment; porém, ela não teria
efeito, mesmo que se acolhida pelos ministros, haja vista o princípio da
separação dos poderes.
À semelhança de um tribunal medieval,
presidido por inquisidores misóginos, que suspeitavam ser prática de bruxaria
uma tempestade de granizo que arruinava plantações e por isso sentenciavam
mulheres à fogueira, a sociedade brasileira, patriarcal, machista, chauvinista,
antes mesmo de qualquer julgamento, já condenou a presidenta Dilma Rousseff;
entres seus crimes, ser mulher, sem ser do lar, ser “minoria”.
O que é estarrecedor, no entanto, é que
a destituição ilegítima da presidenta não é um caso de excepcionalidade.
Acontece, antes, em toda sociedade brasileira, desde universidades aos becos e
periferias das grandes cidades. As relações de poder, o clientelismo, a
violência, o uso da força, em prejuízo da lei, estão encrustados em todos os
níveis sociais. O Estado democrático de direito não passa aqui de mais um entre
tantos eufemismos; maquiagem na face brutal da plutocracia despótica de um país
que já mereceu a denominação de “Rússia dos Trópicos”, na feliz expressão de
Gilberto Freyre, tal a sua similaridade não apenas à extensão continental do
território, com sua Sibéria verde, mas também ao sistema político absolutista,
à gigantesca máquina burocrática e à opressora estrutura feudal da época dos
czares. Por isso, a questão não se resume se impeachment é constitucional ou se
é golpe - é obvio que é constitucional - mas, sim, eufemismos (anglo-saxônicos)
à parte, que o golpe é constitucional!
Antes de terminar, a respeito do título,
o vice-presidente decorativo Michel Temer, do alto da sua insignificância, não
merece mais do que intitular este texto e essa mísera mas generosa observação,
quase como uma nota de rodapé. E só.
E, para realmente concluir, conforme
anunciado acima, trata-se de desentortar a frase que iniciou estas reflexões,
com um tempero bem brasileiro:
O golpe se repete, em 1964, como
tragédia; em 2016, como tragicomédia de uma farsa democrática.
Yes, nós temos bananas!
NOTAS:
1 - Tendo em vista o que foi exposto,
uma das áreas sociais mais afetadas é a educação. Hoje, toda a orientação
pedagógica é pautada numa legislação excessivamente burocrática, um verdadeiro
elefante branco, que abdica de instruir para, com base na Constituição Federal,
apregoar a ideologia falaciosa da valorização da cidadania. Tal hipocrisia
tenta esconder a total falência do ensino público e a farsa que é a democracia.
Afinal, pergunta-se: cidadão para quê? Legitimar formalmente, através do voto,
o poder dos tiranos? A verdadeira educação é o fim da escola.
2 - A gestão do PT foi mais um capítulo na
história recente da impossibilidade do Estado como agente revolucionário. Em
nome da governabilidade, o PT teceu acordos com os setores mais corruptos da
sociedade, aceitou todo tipo de chantagem e promoveu um pacto improvável entre
o capital e o trabalho. Quando a economia crescia e os banqueiros auferiam
lucros recordes, era viável a distribuição das migalhas que sobravam aos mais
pobres. Porém, quando da recessão
econômica, a classe capitalista não aceitou dividir os prejuízos, e, diante
disso, alijou o PT do poder. Sem dúvida, o Estado é um instrumento da classe
dominante. Mas não se trata mais de repetir o adágio simplista “o poder
corrompe”. Em outro texto, tentarei problematizar esta questão.
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