terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A Terceira Revolução 3: Kronstadt e os emigrados russos

(dezembro de 1920, fim das guerras civis e estrangeiras.)

Tradução: Jean Fecaloma

Fecaloma - Punk Rock

3. Kronstadt e os emigrados russos

Desde o início, as autoridades soviéticas compreenderam o perigo que representava a inquietante agitação em Kronstadt. A revolta dos marinheiros poderia provocar um movimento de massa em todo o país, haja vista o descontentamento popular com a crise que não era pouco. Ademais, a possibilidade sempre presente de uma intervenção estrangeira somou-se a outro fator de grande preocupação: a posição estratégica de Kronstadt na entrada do Neva, que expunha Petrogrado a um sério perigo. Atentos às comparações históricas, os bolcheviques recordavam os episódios de quatro anos atrás quando a atividade subversiva nas forças armadas, greves e protestos tomaram a ex-capital e levaram à queda da autocracia. Agora o próprio regime bolchevique enfrentava uma situação parecida. Se “Kronstadt vermelha” e “Pedro Vermelho” podiam se voltar contra o governo, o que se esperar do resto do país?

Não é de estranhar-se, portanto, os imensos esforços do governo para desacreditar os rebeldes. Mas não seria tarefa fácil. Há muito Kronstadt reputava-se de uma fidelidade revolucionária acima de qualquer suspeita. Em 1917, como vimos, Trotsky saldou os marinheiros como “o orgulho e a glória” da Revolução Russa. Entretanto, quatro anos mais tarde, o mesmo Trotsky esforçava-se por demonstrar como os novos marinheiros não eram os leais revolucionários do passado. Milhares de kronstadtinos heroicos pereceram na guerra civil, argumentava Trotsky, e os sobreviventes dispersaram-se por todo o país. Assim, perdemos os nossos melhores homens e, agora, camponeses sem instrução, recrutados na Ucrânia e nas fronteiras do oeste, indiferentes à nossa causa revolucionária, devido a diferenças de classe e de caráter nacional, mostram-se francamente hostis ao regime soviético. Trotsky observava que muitos desses novos recrutas provinham de regiões de onde as guerrilhas de Makhno, Grigoriev e outros anticomunistas haviam atraído inúmeros simpatizantes inspirados pelo “estado de espírito do anarcobanditismo”; na verdade, em alguns casos, alegava o comandante do Exército Vermelho, muitos chegaram a lutar para esses grupos guerrilheiros ou mesmo para os exércitos brancos de Denikin e Wrangel (1).

Os bolcheviques retratavam os novos marinheiros - de 1921, portanto - como sendo “de uma estrutura social e psicológica diversa”, muito diferente de seus predecessores que lutaram bravamente na revolução e durante toda a guerra civil. Na pior das hipóteses, não passavam de arruaceiros, corruptos, desaforados, indisciplinados, desbocados e viciados no carteado e na bebida. Na melhor, “jovens camponeses uniformizados com roupas de marinheiro”; caipiras simplórios vestidos com pantalonas e penteados com topete engomado para tentar atrair olhares femininos (2). Para denominar esses novatos do interior, notavam os bolcheviques, os velhos “lobos do mar” colecionavam apelidos insultantes: Kleshniki, termo pejorativo derivado de calça boca de sino; Zhorzhiki, quer dizer, dândis comedores de capim; e, o pior de todos, Ivanmory (Jeca Tatu de água salgada), paródia burlesca da palavra Voenmory (guerreiros do mar), título honroso conferido aos veteranos da guerra civil (3).

Em que medida eram justas tais caracterizações, é algo a considerar-se. Não há dúvida de que, durante os anos da guerra civil, grande parte da tripulação da Frota do Báltico foi reformada, e muitos dos homens mais velhos substituídos por recrutas interioranos profundamente ressentidos. Em 1921, de acordo com as cifras oficiais, mais de três quartos do pessoal da frota era de extração camponesa; proporção substancialmente maior que a de 1917, quando a maioria dos marinheiros pertencia à classe operária de Petrogrado (4). O próprio Petrichenko reconheceu mais tarde que muitos de seus camaradas eram camponeses do sul, amargurados com a situação de aldeão que lhes era peculiar. Todavia, a renovação da tripulação não implicava necessariamente uma alteração substantiva das pautas reivindicatórias tradicionais da frota. Pelo contrário, além dos oficiais de nível técnico provenientes em grande parte da classe trabalhadora, sempre houve entre os marinheiros numerosos elementos de origem camponesa pouco afeiçoados à disciplina e muito afeitos ao desacato. Na verdade, entre 1905 e 1917, foram estes jovens camponeses que estigmatizaram Kronstadt como foco do extremismo revolucionário. Aliás, durante toda a guerra civil, os kronstadtinos sempre mantiveram uma postura independente e irredutível, difícil de controlar e inconstante em seu apoio ao governo. Foi por essa razão que muitos deles foram transferidos para postos longínquos dos centros bolcheviques de poder - especialmente os agitadores e inconformados crônicos. Mas os que permaneceram nunca deixaram de sonhar com as liberdades conquistadas no ano de 1917, quando o novo regime mal ensaiava a criação de uma ditadura unipartidária.

Na realidade, não havia muita diferença entre os homens dos velhos tempos e os recrutas recém-chegados. Ambos eram, em grande medida, de origem camponesa. Tanto um como outro testemunharam a miséria em seus distritos de origem - aqueles, enquanto estavam de licença; estes, antes de se apresentarem ao serviço militar. Enfim, de um modo geral, os marinheiros desejavam se libertar da autoridade repressiva encarnada pelo governo central. Ora, diante deste quadro, não é espantoso assistirmos veteranos, com muitos anos de serviço (às vezes, alistados antes da Primeira Guerra Mundial), assumirem a liderança da rebelião. O próprio Petrichenko integrava a frota desde 1912 e, seis anos depois, tomaria parte da tripulação do Petropavlovsk; e o vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório, um velho “lobo do mar”, chamado Yakovenko, foi combatente nas barricadas de 1917. Portanto, foi bastante natural para os marinheiros da frota que veteranos despontassem como figuras de primeiro plano na condução do levante de Kronstadt, não apenas pela maturidade e experiência amplamente reconhecidas, mas também pela profunda desilusão que a revolução lhes havia infundido no espírito. Assim, marinheiros de alta patente e técnicos qualificados (por exemplo, Petrichenko era furriel-chefe de um navio de guerra), acostumados a agir por conta própria, foram criteriosamente eleitos pelos recrutas mais inteligentes e alfabetizados. Ademais, a longa convivência dos velhos marujos com a intensa vida intelectual e política de Petrogrado contribuiu para a formação de uma consciência crítica, o que levou muitos deles a se engajar em atividades revolucionárias a partir do ano de 1917 (5).

Os kronstadtinos sempre foram considerados porta-estandartes da militância revolucionária, reputação que se manteve em grande medida inalterada durante toda a guerra civil, a despeito da conhecida inconstância e indisciplina que os caracterizava. Mesmo no outono de 1920, conforme recorda Emma Goldman, os comunistas ainda os consideravam como um exemplo brilhante de valor e coragem revolucionária. No dia 7 de novembro, nas festividades do aniversário de três anos da tomada de poder pelos bolcheviques, os marinheiros ocupavam as primeiras filas adiante de uma multidão que, em algazarra, ovacionava a encenação do assalto ao Palácio de Inverno em Petrogrado (6). Naquela época, ninguém falava em “degeneração de classe”. Mas a alegação de que mujiques politicamente atrasados contaminavam o caráter revolucionário da frota, ao que parece, foi um expediente muitas vezes requisitado para explicar a existência de movimentos dissidentes entre os marinheiros, como, por exemplo, em outubro de 1918, quando se justificou nesses termos um motim abortado na base naval de Petrogrado. Na época, a composição social da frota conservava-se praticamente a mesma de 17, sem sofrer grandes alterações.

As acusações de que os kronstadtinos eram em sua maioria não russos - recrutas da Ucrânia, Letônia, Estônia e Finlândia - países que possuíam fortes antagonismos nacionais com o regime soviético - merecem também algum exame cuidadoso. Dos trezentos ou quatrocentos nomes que aparecem no jornal do movimento rebelde, em assinaturas de artigos, proclamações, cartas, poemas etc., na medida em que se pode avaliar a partir da base de sobrenomes - procedimento que, admitimos nós, é bastante questionável - ao que tudo indica, eram em sua esmagadora maioria nomes russos. Não havia nenhuma uma relação desproporcional de sobrenomes ucranianos, germânicos, bálticos ou de outra procedência, senão a habitual. Não obstante, a situação muda completamente de figura quando observamos os sobrenomes listados pelo Comitê Revolucionário Provisório, o estado maior da insurreição (7):

1. Petrichenko, furriel-chefe, navio de guerra Petropavlovsk 

2. Yakovenko, telefonista, distrito de Kronstadt

3. Ososov, maquinista, navio de guerra Sebastopol 

4. Arkhipov, maquinista sênior

5. Perepelkin, eletricista, navio de guerra Sebastopol 

6. Patrushev, eletricista sênior, navio de guerra de Petropavlovsk 

7. Kupolov, enfermeiro 

8. Vershinin, marinheiro, navio de guerra Sebastopol 

9. Tukin, operário, fábrica de eletromecânica

10. Romanenko, vigia das docas

11. Oreshin, diretor da Terceira Escola dos Trabalhadores

12. Valk, operário de serraria

13. Pavlov, operário, mineradora

14. Baikov, chefe de transporte do departamento de construção de fortalezas

15. Kilgast, timoneiro de águas profundas

Dos 15 membros do comitê, três deles (Petrichenko, Yakovenko e Romanenko) possuíam nomes evidentemente ucranianos e outros dois (Valk e Kilgast), germânicos. Além disso, Petrichenko, Yakovenko e Kilgast ocupavam posições chave no comitê, pois eram o presidente, o vice-presidente e o secretário, respectivamente. Segundo fontes soviéticas, os sentimentos nacionalistas de Petrichenko eram tão fortes que seus camaradas apelidaram-no de “Petliura”, uma referência a um conhecido líder ucraniano (8). Sabemos pelo próprio Petrichenko que ao menos “três quartos” dos homens da guarnição de Kronstadt eram naturais na Ucrânia e que alguns deles até serviram nas forças antibolcheviques do sul antes de entrar para a marinha soviética (9).

Provavelmente, um forte componente nacionalista deve ter, sim, influenciado de alguma maneira a gênese da rebelião. Todavia, não há elementos que comprovem a importância dos sentimentos nacionais entre os motivos reais que levaram os marinheiros a pegar em armas contra o governo. Muito mais flagrante é a origem humilde dos membros do comitê. De ascendência camponesa ou proletária, aparentemente, pesa sobre nove marinheiros de nível mais qualificado da tripulação do Petropavlovsk e do Sebastopol a responsabilidade pela revolta. Somavam-se a eles mais quatro operários e dois empregados de oficina (um diretor de escola e um funcionário dos transportes). Assim, a liderança do movimento era inegavelmente plebeia e, portanto, incompatível com a condição social aristocrática dos brancos. Evidentemente, esta situação era por demais embaraçosa para as autoridades, que, apesar de tudo, não economizavam esforços para atribuir aos chefes da rebelião uma linhagem antiproletária. Um marinheiro do Sebastopol, Vershinin, feito prisioneiro pelos bolcheviques logo no começo da revolta, foi qualificado de “especulador”, dândi sertanejo e Zhorzhik [Alcunha de “Jorginho”, do ucraniano mais o sufixo diminutivo -ik - N.T]. Outros predicativos foram ainda piores: Pavlov foi identificado com um ex-detetive; Baikov, proprietário em Kronstadt; e Tukin, um ex-gendarme que em outros tempos chegara a possuir seis casas e três oficinas em Petrogrado. Kilgast, outro membro do comitê, foi citado como um convicto fraudador de fundos do governo em um departamento de transporte de Kronstadt e que, graças à anistia conferida por ocasião do terceiro aniversário da Revolução Bolchevique, recebeu indulto como benefício (10).

Os esforços para desacreditar o Comitê Revolucionário Provisório não pararam nem mesmo depois de sufocada a rebelião. Além da campanha de difamação, os escritores soviéticos trataram de associar os líderes rebeldes à oposição política. Petrichenko foi descrito como um partidário dos socialistas revolucionários de esquerda (SR); Valk e Romanenko, mencheviques; e Oreshin, um socialista populista. De Lamanov, acusavam-no de principal ideólogo do movimento, diretor do jornal rebelde e um maximalista do partido socialista revolucionário (SR) (11). Lamentavelmente, não nos chegou até o presente momento nenhuma informação confiável sobre a veracidade dessas informações. Todavia, com relação ao presidente do comitê, sabemos atualmente, através de fontes soviéticas, que era um “ex-comunista” inscrito durante a referida campanha de recrutamento partidário, denominada de “semana do partido” (agosto de 1919) quando os pré-requisitos regulamentares para a admissão foram suspensos. Entretanto, Petrichenko logo se desfiliou do partido (12).

A breve passagem de Petrichenko pelo Partido Comunista não era, entretanto, um caso invulgar em Kronstadt. Kilgast, o secretário do Comitê Revolucionário, teve uma trajetória semelhante. Não só os dois. Milhares de marinheiros do Báltico também experimentaram uma curta passagem pelo partido. Tanto que, em março de 1921, o número de filiados em Kronstadt caiu pela metade se comparado com seis meses antes. Como se sabe, alguns desses apóstatas aproveitaram a licença para voltar às suas casas. O próprio Petrichenko retornou à sua aldeia natal em abril de 1920, e permaneceu lá, aparentemente, até setembro ou outubro daquele ano. Durante esse período, pôde constatar em pessoa os métodos truculentos de requisição de alimentos aplicados pelos destacamentos bolcheviques. A curta passagem pelo interior foi decisiva para Petrichenko formar um juízo próprio e hostil a respeito do governo. Conforme relatou mais tarde para um jornalista norte-americano, as autoridades prenderam-no muitas vezes por suspeita de atividade contrarrevolucionária. Ainda segundo o relato, o mesmo teria tentado uma aproximação com os brancos, mas que foi recusada por causa de seu passado bolchevique. Sempre insistiu, no entanto, que o Comitê Revolucionário de Kronstadt não mantinha vínculos com nenhum grupo político. “Nossa revolta - disse - era um simples movimento pelo fim da opressão bolchevique e nada mais. Então o povo poderia manifestar sua vontade livremente (13).

O principal objetivo da propaganda bolchevique consistia em mostrar a revolta não como um movimento inerente a um protesto de massa espontâneo, mas como uma nova conspiração contrarrevolucionária que seguia um padrão recorrente durante toda a guerra civil. De acordo com a imprensa soviética, por influência dos mencheviques e socialistas revolucionários (SR), os marinheiros ataram desgraçadamente sua sorte à dos “guardas brancos”, cuja liderança em Kronstadt estava nas mãos de um certo general de nome Kozlovski. “Por detrás dos socialistas revolucionários (SR) e dos mencheviques - declarava o Pravda – rosnam com dentes afiados os generais czaristas” (14). Acrescentava-se ainda que o movimento de Kronstadt era parte de um plano cuidadosamente tramado em Paris por emigrados russos em conluio com o serviço de espionagem francês. Ademais, denunciava que os conspiradores agiam pelas sombras utilizando-se de fachada uma rede de organizações da Cruz Vermelha - a Cruz Vermelha Internacional, a Cruz Vermelha Norte-Americana e a Cruz Vermelha Russa estabelecida na Finlândia. A 2 de março, o Conselho do Trabalho e da Defesa do governo emitiu uma ordem assinada por Lênin e Trotsky pela qual declarava fora da lei o general Kozlovski e seus associados e incriminava a resolução do Petropavlovsk como sendo um documento das “Centúrias Negras-SR” [Centúrias Negras foi uma organização czarista, nacionalista e antissemita, responsável pelo segundo pogrom, entre o período de 1903-1906. Aqui está sendo associada ao partido dos socialistas revolucionários (SR) - N.T.]. A lei marcial foi estendida a toda a província de Petrogrado e, para enfrentar a crise provocada pela revolta, foi decretado o estado de emergência, investindo-se com poderes de exceção o Comitê de Defesa, de Zinoviev (15).

Como prova de que a insurreição havia sido urdida por grupos antissoviéticos em Paris, os emissários bolcheviques publicizaram notícias veiculadas por jornais franceses que antecipavam em duas semanas uma revolta em Kronstadt. À imprensa inglesa e norte-americana, Trotsky assegurou que tais reportagens evidenciavam categoricamente que a conspiração havia sido tramada por emigrados russos e agentes da Entente. A escolha de Kronstadt, não foi por acaso, prosseguia Trotsky, pois se considerava a sua proximidade geográfica com Petrogrado, de fácil acesso pelo ocidente. Além disso, Trotsky insistia na recente incorporação de elementos não confiáveis à tripulação da Frota do Báltico (16). A 8 de Março, os argumentos de Trotsky foram repetidos por Lênin em um discurso pronunciado ao X Congresso do Partido Comunista. Por detrás da revolta, declarou Lênin, “aparece a face familiar de um general da Guarda Branca”. “Está claro como o sol do meio dia – disse Lênin, citando matérias publicadas nos jornais Le Martin e L'Echo de Paris -, isso é obra dos socialistas revolucionários (SR) e dos emigrados da Guardas Branca” (17).

Considerando-se que as matérias dos jornais de Paris obtiveram valor de verdade na acusação formulada pelos bolcheviques a respeito de uma conspiração branca, seria interessante então examinar o conteúdo e as fontes das matérias jornalísticas em tela. Que diziam exatamente? A notícia publicada pelo diário Le Martin, a 13 de fevereiro, sob o título de “Moscou efetua diligências contra os rebeldes de Kronstadt”, descrevia um levante na base naval de Kronstadt e as ações tomadas pelas autoridades bolcheviques para impedir que a rebelião alcançasse Petrogrado. No dia 14 de fevereiro, o jornal publicou um segundo artigo apontando a causa da revolta à prisão de uma delegação enviada pelos marinheiros a Moscou para exigir melhorias na qualidade das rações. A situação em Kronstadt, noticiava o jornal Le Martin, segue se deteriorando e os rebeldes já “apontam os canhões em direção de Petrogrado”. No mesmo dia, apareceu uma reportagem no L'Echo de Paris informando sobre a detenção do comissário chefe da frota por marinheiros amotinados e uma ofensiva contra Petrogrado na qual foram mobilizados para o ataque muitos navios de guerra (presumivelmente com ajuda de um navio quebra-gelo). Os insurgentes, segundo outro artigo do dia 15 de fevereiro, contavam com o apoio da guarnição de Petrogrado, enquanto as autoridades governamentais realizavam prisões em massa em toda capital. Entre os dias 13 e 15 de fevereiro, notícias similares apareceram em outros jornais vinculados à imprensa ocidental. O New York Times chegou mesmo a reportar a tomada de Petrogrado e uma investida contra as tropas enviadas por Trotsky (18).

Evidentemente, nada disso aconteceu em Kronstadt, nem em nenhuma outra base do Báltico no mês de fevereiro de 1921. Falsos rumores assim - estimulados pelas fantasias de quem desejava que isso acontecesse e respaldados pelos problemas sociais por que passava a Rússia de um modo geral naquela quadra - não são raros em momentos de crise. Todavia, no caso de Kronstadt, prenunciavam o que realmente estava para acontecer duas semanas mais tarde (inclusive, a prisão de um dos principais comissários da frota). Alguns historiadores sugerem que tais rumores surgiram durante a tumultuosa sessão da II Conferência dos Comunistas da Frota do Báltico, circunstância em que os marinheiros protestavam por mais democracia na administração política da frota (19). Tal hipótese não se sustenta e deve ser descartada, já que as notícias falsas sobre a suposta rebelião saíram vários dias antes da conferência (realizada no dia 15 de fevereiro). Na verdade, histórias parecidas haviam sido publicadas muito antes na imprensa dos emigrados russos. Foram elas que serviram de fonte para as notícias veiculadas pelos jornais ocidentais. A 12 de Fevereiro, a Volia Rossii (Liberdade Russa), diário correlacionado aos socialistas revolucionários (SR) de Praga, informou sobre um “importante levante na frota russa do Báltico”. Dois dias antes, o periódico Obshchee Delo (A Causa Comum), de Paris, dirigido pelo veterano populista Vladimir Burtsev, publicara a mesma notícia intitulada “O Levante dos Marinheiros em Kronstadt”. A matéria continha praticamente todos os elementos que apareceriam nos artigos publicados pela imprensa ocidental, sendo, provavelmente, a fonte de todos eles. Surpreendentemente, antecipava fatos que só se dariam uma quinzena depois. Detalhava o levante desde a tomada do porto, a prisão do comissário chefe da frota, o plano para empreender operações militares contra Petrogrado, o estado de sítio e até as prisões em massa (20). Ao que tudo indica, todo o enredo narrativo da suposta rebelião deve-se a um correspondente da agência de notícias “Russunion”, cuja sede situava-se em Helsingfors, centro conhecido pela propaganda antissoviética. Todavia, torna-se necessário esclarecer o que realmente pode ter motivado a onda de boatos que antecipou a rebelião. Salvo a já conhecida insatisfação geral da frota, a prisão dos delegados de Kronstadt em Moscou pode também ter contribuído para alimentar os rumores. Ao que parece, Raskolnikov, comandante do Báltico, exigia a soltura imediata de seus camaradas, do contrário os marinheiros abririam fogo contra Petrogrado. O governo não só se recusou a ceder ao ultimato como ameaçou Kronstadt com represálias (21).

O Comitê Revolucionário de Kronstadt negou as acusações de conspiração como sendo parte de uma calúnia totalmente inventada pelas autoridades que expunha tão somente uma baixeza reveladora de toda impostura que caracterizava o regime político bolchevique. Em um pronunciamento dirigido aos operários e camponeses da Rússia, o comitê emitiu uma resposta à altura de sua indignação: “Nossos inimigos estão armando uma mentira contra nós; dizem que a rebelião de Kronstadt foi tramada por mencheviques, socialistas revolucionários (SR), espiões da Entente e generais czaristas. Querem fazer crer que o centro deflagrador da rebelião está situado em Paris. Absurdo! Se nossa rebelião surgiu em Paris, então a lua foi feita em Berlim” (22). A resposta do comitê foi igualmente firme diante da acusação de que oficiais brancos lideravam o movimento: “Em Kronstadt, o poder está nas mãos de marinheiros revolucionários, soldados do Exército Vermelho e operários, não dos guardas brancos, liderados por um certo general Kozlovski, como anuncia caluniosamente a rádio de Moscou”. “Temos só um general aqui - declaravam os rebeldes em tom sarcástico -, e o nosso general é Kuzmin, o comissário da Frota do Báltico. Só que no momento, nós o prendemos” (23). Para demonstrar o caráter popular da revolta, o Comitê Revolucionário publicou uma lista completa dos integrantes que o compunham. Como sabemos, não aparece nenhum oficial de alta patente na lista, muito menos um general! Somente marinheiros e operários comuns. “Estes são os nossos generais: os Bruilov, os Kamenev etc.”, declarava o Izvestiia de Kronstadt, aludindo aos inúmeros ex-oficiais czaristas que serviam ao exército bolchevique (24).

Todavia, um general Kozlovski realmente existiu e, durante o mês de março de 1921, encontrava-se na cidade de Kronstadt. Qual o seu papel na sublevação dos marinheiros, se é que desempenhou algum? Alexander Nikolaievich Kozlovski foi um oficial de carreira do exército com um longo histórico de distinção no serviço militar. Nascido em 1861, na cidade de Krasnoe Selo, cercanias de Petrogrado, Kozlovski graduou-se na Escola de Cadetes da Cavalaria e na Academia Militar Imperial. Durante a Primeira Guerra Mundial, ascendeu à patente de general de artilharia. Após a revolução de outubro, foi um dos muitos ex-oficiais imperiais convocados pelos bolcheviques para o serviço militar na função de “especialista militar” (voenspetsy). Em 1921, Kozlovski foi nomeado chefe de artilharia na fortaleza de Kronstadt. Quando ocorreram os distúrbios no início de março, os bolcheviques acusaram-no de ser o gênio do mal por trás do movimento. Kozlovski foi declarado fora da lei e sua esposa e filhos feitos reféns em Petrogrado. Além do general, foram denunciados como conspiradores outros três ex-oficiais subordinados ao seu comando - Burkser, Kostromitinov e Shirmanovsky. Em resposta, Kozlovski argumentou que estava sendo acusado porque naquele momento era o único ex-general czarista em Kronstadt e, portanto, as autoridades escolheram-no para bode expiatório do papel fictício de comandante da Guarda Branca a conspirar contra a revolução (25).

Sem dúvida, há alguma verdade nisso. Porém, as evidências disponíveis explicitam claramente a participação direta de Kozlovski e seus colegas nos eventos de março de 1921. Quando, nas primeiras horas da revolta, o comandante da fortaleza abandonou seu posto e fugiu para o continente, Kozlovski recusou-se em substituí-lo no comando e permaneceu na sua função de diretor de artilharia. O Comitê Revolucionário Provisório designou outro especialista de artilharia para a vaga, o ex-tenente coronel E. N. Solovianov, com quem, aliás, Kozlovski trabalhava em estreita cooperação. A maioria de seus camaradas voenspetsy - em particular, os do ramo de artilharia - assumiram aparentemente a mesma atitude e colocaram-se à disposição dos insurgentes no fornecimento de assistência e apoio técnico. Evidentemente, estes ex-oficiais não tinham bom apreço pelo regime bolchevique e sua atitude típica podia ser exemplificada pela observação mais acima assinalada na qual se supõe que Kozlovski teria interpelado o comissário bolchevique da fortaleza nos seguintes termos: “O tempo de vocês acabou, agora sou eu quem vai fazer o que tem de ser feito”.

Desde o início, os especialistas dedicaram-se à tarefa de planejar operações militares em apoio à revolta. No dia 2 de Março, como admitiu o próprio Kozlovski, ele e os seus colegas aconselharam o Comitê Revolucionário a uma rápida ofensiva contra os bolcheviques a fim de conquistar a iniciativa no teatro de operações estratégicas (26). Os oficiais elaboraram um plano para um rápido desembarque em Oranienbaum (localizado na costa continental a uns oito km ao sul). Visavam com isso se apoderar do equipamento militar da cidade e estabelecer contato com unidades favoráveis do exército. A partir daí, os rebeldes avançariam sobre Petrogrado sem dar tempo ao governo para reunir uma resistência efetiva na defesa da cidade. Os oficiais propuseram também a ocupação dos moinhos de trigo de Oranienbaum com o intuito de prover de alimentos tão necessários os armazéns de Kronstradt. Para operacionalizar os navios Petropavlovsk e Sebastopol, que estavam encalhados no gelo, dispostos paralelamente um em relação ao outro, de modo a bloquear suas respectivas linhas de fogo, os especialistas ofereceram uma alternativa para compensar a falta momentânea de navios quebra-gelo (a maior embarcação deste tipo, o Ermak, encontrava-se em Petrogrado para carregamento de petróleo). Tratava-se de quebrar a superfície da água congelada ao redor dos navios com tiros de canhões desferidos pela fortaleza e baterias circundantes. O bombardeio também abriria um fosso em torno da ilha, tornando-a intransponível a uma invasão da infantaria inimiga (27).

De fato, os oficiais bem que tentaram conduzir o processo revolucionário mas nunca ultrapassaram o status de meros conselheiros. Não tiveram qualquer participação, até onde se sabe, na gênese ou direção da revolta; muito menos na elaboração do programa político dos marinheiros, totalmente estranho aos seus valores aristocráticos. Nenhum dos oficiais tomou parte na redação da resolução do Petropavlovsk; nenhum se manifestou na assembleia da Praça da Âncora; nenhum assistiu a conferência do dia 2 de março, realizada na Casa da Educação; nenhum ocupou qualquer posição no Comitê Revolucionário Provisório. O envolvimento dos oficiais limitou-se a prestar assessoramento técnico, tal como faziam para os bolcheviques. Alguns rebeldes relataram mais tarde a Feodor Dan, quando estiveram presos no mesmo cárcere em Petrogrado, que o general Kozlovski apenas cumpria suas obrigações e não detinha de nenhuma autoridade sobre o movimento (28). Em todo caso, tendo-se em vista a índole insubmissa dos marinheiros e seu ódio inveterado aos oficiais, é bastante improvável que Kozlovski e seus colegas exercessem alguma influência efetiva sobre eles. Aliás, em nenhum momento, o Comitê Revolucionário Provisório soltou as rédeas da revolta. Seus líderes sempre desconfiaram dos oficiais especialistas e recusaram repetidamente seus conselhos, por mais apropriados que pudessem parecer. Assim sendo, não obstante o parecer técnico, os marinheiros não quebraram o gelo que rodeava a ilha, liberando os navios de guerra, nem tampouco tentaram estabelecer uma cabeça de ponte no continente a fim de surtir um efeito surpresa vantajoso no instante inicial do conflito. Em lugar disso, na noite entre os dias dois e três de março, após notícias de que a Esquadrilha Aérea Naval em Oranienbaum votara a favor da revolta, os rebeldes limitaram seus esforços a organizar uma pequena expedição de confraternização com seus vizinhos no continente. Mas, ao chegarem lá, foram recebidos por uma chuva de balas e forçados a uma rápida retirada (29).

Feitas estas considerações, segue sem resposta a questão fundamental: havia alguma verdade nas acusações bolcheviques, a saber, de que a revolta fora planejada em Paris por emigrados russos? Não há a menor dúvida de que os expatriados sonhavam com um levante antissoviético. Muito se debatia a respeito e artigos sobre o assunto eram publicados, notadamente, por um grupo conhecido como Centro Nacional (ou União Nacional) - uma pequena coalizão de Kadets, Outubristas e moderados que mantinha um quartel general em Paris com ramificações por várias capitais europeias. Tomemos, por exemplo, um artigo escrito por um proeminente líder Kadet, F. 1. Rodichev, publicado no Obshchee Delo - o principal órgão de imprensa do Centro Nacional - apenas dez dias antes do início da rebelião em Kronstadt. “Tomar Petrogrado não seria difícil. A maior dificuldade é abastecer de alimentos a cidade e organizá-la para a luta. Mas, superadas as dificuldades iniciais, não tardaria a hora de atacar. Petrogrado é a cidade mais próxima das fronteiras ao Oeste. É o ponto da Rússia Soviética mais acessível e fácil de conquistar. Petrogrado dará início ao trabalho de regeneração... É chegado o momento” (30).

Naquelas circunstâncias, todavia, ameaças deste tipo não preocupavam os líderes bolcheviques. Muito mais alarmantes eram as conspirações que se suspeitavam tramadas secretamente pelos exilados. Suspeitas que não eram de todo infundadas. Provas que permaneceram desconhecidas até agora revelam planos para a execução de um levante, tais como aqueles traçados pelo Centro Nacional, mas elaborados muitas semanas antes do início da revolta de Kronstadt. Antes de avaliarmos estas provas, convém nos determos a uma breve explicação acerca das atividades pretéritas do Centro Nacional.

O Centro Nacional teve origem em 1918 - portanto, no início da guerra civil - como uma auto-proclamada “organização clandestina russa contra os bolcheviques” (31). Fundado em Moscou por A. V. Kartashev, P. B. Struve e outros antigos líderes do partido Kadet, seu principal objetivo era derrubar o governo de Lênin e instituir um regime constitucional. O Centro Nacional concentrava o grosso de seus recursos em Moscou e em toda a Costa do Báltico. Havia também ramificações em Petrogrado e nas fortalezas de Krasnaya Gorka e Kronstadt. Em 1919, o Centro Nacional esteve envolvido numa tentativa articulada pelo general Yudenich, juntamente com a marinha britânica, para ocupar Petrogrado. Kartashev, um de seus fundadores, ex-professor de história da igreja na Academia Teológica de Petrogrado e ministro de assuntos religiosos no governo provisório de 1917, teve participação no Conselho Político dos cinco homens de Yudenich. Já entre os agentes do Centro Nacional em Kronstadt, conforme informam fontes soviéticas (32), encontrava-se um ex-reitor da Universidade de Petrogrado, o professor D. D. Grimm, que se destacaria como uma figura de proa nos acontecimentos de 1921.

Ao longo de toda ofensiva de Yudenich, Kronstadt manteve-se leal aos bolcheviques, resistindo aos ataques aéreos e disparos de torpedos efetuados pelos ingleses, que afundaram ou avariaram vários navios de guerra. Krasnaya Gorka, pelo contrário, aliou-se aos brancos e, diante da recusa dos kronstadtinos em seguir o seu exemplo, abriu fogo contra a fortaleza. Como já assinalado, há evidências do envolvimento do Centro Nacional neste ataque, talvez com o assentimento do serviço de inteligência britânico (33). Porém, a invasão foi subjugada após um devastador bombardeio do Petropavlovsk, o qual abriu caminho para um destacamento de soldados vermelhos e marinheiros de Kronstadt tomarem o forte de assalto.

Na esteira da derrota de Yudenich, muitos integrantes do Centro Nacional foram presos pela Tcheka e condenados à morte ou a prisão perpétua. Mas muitos líderes, entre eles o professor Kartashev, conseguiram escapar do país e estabelecer um quartel-general em Paris, onde a organização foi rearticulada. No final de 1920, o Centro Nacional podia se gabar de ter filiados em Londres, Berlim, Helsingfors (de onde o professor Grimm era o chefe) e outros centros de emigração branca. Além de Kartashev, Struve e Rodichev, a liderança do movimento incluía eminentes Kadets e Outubristas, como V. D. Navokov e A. I. Gushkov, além de vários populistas da ala de direita, entre os quais se destacava V. D. Burtsev, diretor do Obshchee Delo. Todavia, alguns dos mais distintos liberais recusaram-se a aderir ao grupo, tais como Pavel Miliukov e M. M. Vinaver, pois haviam perdido toda a esperança de que a Rússia pudesse ser libertada por meio de uma invasão armada apoiada ou não por forças estrangeiras (34).

O Centro Nacional recompôs-se a tal ponto que em fins de 1920 havia base militante suficiente para viabilizar o Congresso Europeu da União Nacional, aberto em Paris em junho de 1921. No congresso, foi eleito um comitê Nacional Russo, presidido pelo professor Kartashev, cuja meta estabelecida definia “a libertação da Rússia da escravidão comunista” (35). Obviamente, este havia sido o objetivo do Centro Nacional desde sua formação, em 1918, apesar das sucessivas derrotas impostas a todos os comandantes brancos desde então - Yudenich, Kolchak, Denikin, Wrangel. No caso deste último, o general até conseguiu evadir da Rússia grande parte do seu Exército Russo (como Wrangel chamava seus soldados) e salvaguardar intacto todo o armamento disponível. Uns 70 ou 80 mil homens foram baseados em Constantinopla, Galipoli e Lemnos e outros mil deles, na Sérvia e Bulgária; ao mesmo tempo em que se preservaram a disciplina e as patentes hierárquicas. Protegido pela França, único país que em agosto de 1920 reconhecia de fato e de direito o Governo Sul-Russo, o general Wrangel submetia suas forças ao poderio militar francês. A esquadra em que havia fugido, que incluía um encouraçado, vários contratorpedeiros e dezenas de outros navios provenientes da frota do Mar Negro, somando uma tripulação de cerca de 5.000 homens, foi destinada para o porto de Bizerta, ao norte da Tunísia. Mas, em novembro de 1920, Paris finalmente retirou seu apoio oficial ao governo de Wrangel e procurou dissuadi-lo de seu projeto para derrubar o governo bolchevique, embora continuasse a abastecer suas tropas sob o pretexto de “razões humanitárias” (36). Mas tais esforços foram em vão. “O general Wrangel - como bem observou um enviado inglês em Constantinopla, em março de 1921; quando estourava a rebelião de Kronstadt - recusará, como é de se esperar, qualquer proposta para dissolver o seu exército, pois considera particularmente oportuno que a única força antibolchevique fora da Rússia esteja preparada para obter vantagens dos atuais acontecimentos naquele país” (37).

De volta às movimentações do Centro Nacional, encontra-se nos arquivos dessa organização um manuscrito apócrifo, sem assinatura, com um rótulo subscrito “ultrassecreto” e intitulado “Memorando sobre a questão da organização de uma sublevação em Kronstadt" (38). O Memorando está datado do ano de “1921” e apresenta um plano detalhado para ser aplicado a uma eventual rebelião em Kronstadt. A julgar pelas evidências contidas no documento, está claro que o plano foi traçado por um agente do Centro Nacional de Viborg ou Helsingfors, ainda no mês de janeiro ou início de fevereiro de 1921. O autor do memorando prevê um levante dos marinheiros ainda “na primavera”. De acordo com o documento, “existem sinais abundantes e inequívocos” de descontentamento da frota em relação aos bolcheviques; se um “pequeno grupo agir rápida e decididamente, tomará o poder em Kronstadt”, enquanto os demais o seguirão com ardor e entusiasmo. “Entre os marinheiros – acrescenta o documento - tal grupo já existe e está disposto a executar imediatamente as ações mais enérgicas que a operação requer”. Se houver garantia de apoio externo, conclui, “poderemos contar com um êxito total”.

O provável autor do Memorando está obviamente muito familiarizado com a situação de Kronstadt. Há uma extensa e bem informada análise sobre as fortificações da base, na qual o perigo de um bombardeio de artilharia a partir de Krasnaya Gorka é cuidadosamente avaliado, sem, contudo, ser considerado uma ameaça séria para a rebelião. O documento acentua, ademais, a necessidade de abastecer os rebeldes de alimentos com bastante antecedência. Neste ponto o autor é muito enfático. Com ajuda da França, embarcações poderão transportar mantimentos através do Báltico até Kronstadt. Uma força tarefa militar, prossegue o autor, deve mobilizar o Exército Russo do general Wrangel, que receberá auxilio de uma esquadra francesa e das unidades da frota do Mar Negro, em Bizerta. (Pressuposto básico do Memorando é que a revolta não poderia ocorrer antes do degelo da primavera, momento em que Kronstadt ficaria intransponível a uma invasão militar pelo continente, os depósitos de alimentos estariam completamente abastecidos e as forças do general Wrangel preparadas para entrar em cena).

À chegada do Exército Russo, continua o Memorando, todo o controle de Kronstadt passaria imediatamente às mãos de um comandante em chefe. A fortaleza se transformaria numa “base invulnerável” para o desembarque de tropas no continente “com o objetivo de derrubar a autoridade soviética na Rússia". No entanto, o êxito da operação dependerá da disposição dos franceses em proporcionar dinheiro, víveres e apoio naval. De outra maneira, uma revolta será inevitável, sim, mas sem a menor chance de alcançar a vitória. Se o governo francês concordar, conclui o Memorando, tornar-se-á necessário nomear “uma pessoa com a qual poderemos entrar em acordo a respeito da organização e das lideranças da rebelião a fim de comunicar-lhes os detalhes do plano de sublevação e ações posteriores, bem como facilitar o acesso de informações precisas sobre os fundos que se requerem para a organização e demais aspectos financeiros do levante”.

Muito embora não se conheça a identidade do autor do Memorando, há evidências que apontam para o professor G. F. Tseidler, um dos expatriados russos em Viborg. Tseidler havia sido diretor da Cruz Vermelha Russa em Petrogrado antes da revolução alçar os bolcheviques ao poder. Fugiu então para a Finlândia, onde se tornou chefe da filial da Cruz Vermelha Russa no país. Mantinha laços estreitos com David Grimm, seu ex-colega na Universidade de Petrogrado, que atuava como o principal agente do Centro Nacional em Helsingfors (com o qual Tseidler estava também conectado) e de onde representava oficialmente do general Wrangel. Como funcionário da Cruz Vermelha, Tseidler ficaria responsável, conforme definia o Memorando Secreto, por uma função-chave na logística da rebelião: o abastecimento de alimentos a Kronstadt. É bastante sintomático o fato de que, em outubro de 1920, Tseidler tenha enviado um informe ao quartel general da Cruz Vermelha Norte-Americana relatando a crise de alimentos em Petrogrado (39). Ainda mais significativo foi o telegrama que remeteu ao Centro Nacional em Paris alguns meses depois: “A situação requer uma resposta imediata sobre as questões relativas a meu memorando acerca do abastecimento de alimentos. A rebelião pode estourar a qualquer momento” (40). O telegrama é datado de “28/ /1921”. Lamentavelmente, não há uma indicação expressa do mês na data em questão, mas parece muito provável sugerir o mês de fevereiro, pois no dia 28 de fevereiro as greves de Petrogrado alcançaram seu ponto alto, coincidindo, por consequência, com a aprovação da resolução do Petropavlovsk. Ao pé do telegrama, estava escrito à mão a palavra “correto!”, seguida pela assinatura de G. L. Vladimirov, um general czarista que desempenhava a função de expert militar para o Centro Nacional. A menção à passagem “meu memorando acerca do abastecimento de alimentos” pode muito bem ser uma referência expressa ao Memorando Secreto. Uma prova a mais da autoria do Memorando coincidir com a pessoa de Tseidler, é que, no dia cinco de abril de 1921, pouco depois dos bolcheviques reocuparem Kronstadt, o professor publicou um panfleto lamentando o intento fracassado dos emigrados que não conseguiram guarnecer os insurgentes nem oferecer um plano alternativo de abastecimento a Petrogrado, em caso de uma nova insurreição (41). Durante o levante de março, como veremos, ninguém se esforçou tanto quanto Tseidler para aprovisionar os rebeldes a tempo de evitar-se um desastre fragoroso.

Afora a existência do Memorando Secreto, há outros indícios de que o Centro Nacional monitorava Kronstadt já nas primeiras semanas de 1921. Vale a pena ressaltar, por exemplo, as reportagens falsas, difundidas amplamente por jornais estrangeiros, sobre um levante de marinheiros ocorrido no mês de fevereiro, que provinham da agência de notícias Russunion - grupo de jornalistas estreitamente conectados com Centro Nacional. Vladimir Burtsev, figura líder no Centro Nacional e diretor do órgão Obshchee Delo, diário no qual apareceram pela primeira vez esses relatos, era ao mesmo tempo um dos chefes da Russunion. Por isso, os escritórios do Obshchee Delo acabaram por servir de quartel general da agência em Paris (42). Pode ser que os boatos noticiados refletiam tão somente os desejos ardorosos dos expatriados para que surgisse uma rebelião que colocasse em cheque o governo bolchevique. Todavia, não era esta a opinião do londrino Daily Herald, um jornal trabalhista de esquerda, muito bem informado, mas pouco crítico quando se tratava de ir além de sua simpatia pró-bolchevique. Um dos seus correspondentes internacionais argumentava que os relatos que apareceram no jornal Le Martin e outros diários eram uma confissão de que a “convicção de que ocorreria” uma revolta em Kronstadt nada mais era que a prova do complô contrarrevolucionário orquestrado por exilados brancos com o apoio Aliado (43). Por mais duvidosa que possa parecer tal afirmação, é bastante razoável supor, à luz do Memorando Secreto, que o Centro Nacional tenha informado ao menos os franceses sobre seus planos no Báltico e, assim, solicitado ajuda para levar o projeto a contento (44).

Em todo caso, não se põe em questão aqui se realmente o Centro Nacional preparava um plano de apoio a um possível levante em Kronstadt - e, a julgar pelo Memorando Secreto, os agentes do Centro Nacional no Báltico não tinham a menor intenção de restringir sua atuação à condição de mero espectador. Seu objetivo, ao contrário, concentrava-se numa colaboração assídua com os rebeldes o quanto antes; a depender, é claro, das garantias de cooperação oferecidas pelo alto comando francês “para a preparação e condução do levante”. Em última análise, era evidente que o Centro Nacional buscava explorar a revolta em benefício de seus próprios interesses.

Mas teria realmente existido um vínculo anterior unindo os marinheiros de Kronstadt ao Centro Nacional? No Memorando Secreto, escrito durante as primeiras semanas de 1921, o autor menciona a “presença de um grupo solidamente unido por uma enérgica liderança disposta a tudo pela rebelião”. Esta informação, segundo consta no documento, “provinha de Kronstadt”, e foi presumivelmente obtida por fontes amigas do Centro Nacional. Que um grupo organizado por supostos insurgentes tenha surgido não é de forma alguma impossível ou improvável, haja vista o descontentamento entre os marinheiros que, durante vários meses, só fazia crescer. Tampouco seria falsa a ideia de que em uma organização rebelde, se é que existia uma, não participasse elementos que se tornassem futuros membros do Comitê Revolucionário Provisório. O papel de destaque que desempenhou Petrichenko desde as primeiras horas da sublevação - a sua assinatura subscrita na resolução de Petropavlovsk, o discurso na Praça da Âncora, o cargo de presidente na conferência do dia dois de março e, depois, no comitê revolucionário etc. - pode levantar a especulação de que seu envolvido na conspiração data de muito antes do início da revolta. Cabe ainda mencionar a declaração de um outro membro do comitê nos seguintes termos: “Nós revogamos a prisão de Kalinin no primeiro de março” - ou seja, uma decisão tomada aparentemente por um grupo de pessoas um dia antes do comitê estar formado (45).

É bastante razoável supor que Petrichenko e seus confederados eram o tal “grupo solidamente unido”, ao qual o Memorando Secreto apostava todas as suas esperanças. Talvez, Petrichenko e seu grupo teriam sido contatados pelos agentes do Centro Nacional já nos meses de janeiro ou fevereiro de 1921. Há inegável evidência - que examinaremos mais adiante - de que o Comitê Revolucionário chegou a um acordo com o Centro Nacional depois de sufocada a rebelião, tendo, inclusive, alguns de seus membros encontrado refúgio na Finlândia. Portanto, não se pode descartar há possibilidade de um antigo conchavo entre os líderes da revolta e os emigrados. Todavia, apesar de todas as investigações cuidadosas nesse sentido, não se encontrou nenhuma prova que confirmasse a tese de um pacto. Nada indica até o presente momento que o Memorando Secreto foi executado de fato ou que existiu qualquer conexão entre os emigrados e os marinheiros em um período anterior à revolta. Pelo contrário, sinais inequívocos de espontaneísmo parecem ter caracterizado o levante de Kronstadt do começo ao fim. Sem dúvida, o fato de um grupo de líderes determinados ter surgido rapidamente à frente do movimento não fornece evidência do contrário. Com efeito, toda rebelião, mesmo a mais elementar, tem os seus “chefes” e “agitadores”, que incitam, organizam e dirigem os descontentes para alguma causa comum. Eis o caso de Kronstadt. O total improviso nos procedimentos operados pelos rebeldes sugere de modo convincente que não houve um planejamento antecipado. Se houvesse um plano, os marinheiros seguramente teriam aguardado as poucas semanas que faltavam para o degelo, não apenas evitando com isso a ameaça de um assalto de infantaria, mas também possibilitando o desprendimento dos dois navios de guerra e a abertura de uma rota alternativa para o oeste. Os rebeldes também não teriam permitido o regresso de Kalinin a Petrogrado, já que este poderia ter sido usado como um valioso refém. Além disso, não esboçaram sequer uma única ação ofensiva, limitando-se ao envio de uma força expedicionária de caráter simbólico até Oranienbaum. Aliás, é também bastante significativo o grande número de comunistas que tomaram parte no movimento. Pelo menos nas primeiras etapas, os kronstadtinos não se percebiam como conspiradores revolucionários, senão como um movimento por reformas social e política. Da mesma forma pensavam as autoridades de Petrogrado, como observou George Katkov, pois, de outra maneira, não teriam enviado Kalinin e Kuzmin a Kronstadt para negociar com os rebeldes no primeiro dia de março. Nem tampouco Vasiliev, o presidente bolchevique do soviete de Kronstadt, teria presidido a assembleia na Praça da Âncora quando da votação da resolução do Petropavlovsk (46).

Os marinheiros não necessitavam de agentes externos para erguer o estandarte da insurreição. Durante meses, foram acumulando queixas e mais queixas: alimentação inadequada, desabastecimento de combustível, redução da concessão de licenças, burocratização dos encargos da frota, denúncia sobre a opressão bolchevique nas suas aldeias etc. Em janeiro de 1921, como vimos, não menos de 5.000 marinheiros do Báltico desligaram-se do Partido Comunista, desgostosos com a política do regime. Deserção e faltas no serviço tornaram-se frequentes. Quando recebiam licença, os marinheiros presenciavam os métodos de requisições de alimentos e eram submetidos à revista nos bloqueios de inspeção de estradas. Em fevereiro de 1921, portanto, as potencialidades de uma possível rebelião em Kronstadt estavam completamente amadurecidas. Não foram as maquinações de emigrados e agentes estrangeiros de inteligência que idealizaram a revolta. A onda de sublevações camponesas em todo o país e as greves operárias na vizinha Petrogrado configuram-se como os reais fatores que levaram a irrupção do movimento de Kronstadt. E, quando a revolta dos marinheiros tornou-se um fato concreto, esta seguiu o mesmíssimo padrão das primeiras explosões sociais de 1905 e que se repetiu por toda a guerra civil, atravessando, portanto, o regime czarista e o bolchevique, indistintamente. O motim na base naval de Petrogrado de outubro de 1918, por exemplo, foi um precedente particularmente notável ao de Kronstadt, em março de 1921. Naquela época, os marinheiros também protestaram contra o confisco de cereais e a nomeação arbitrária de comissários políticos, e anteciparam os rebeldes de Kronstadt com seus lemas de “sovietes livres” e “abaixo a comissariocracia”. Também é de destacar-se a influência que exerceram sobre a rebelião de 1918 os socialistas revolucionários de esquerda (SR), os maximalistas, os anarquistas e os rebeldes ultrarradicais independentes.

Neste sentido, os kronstadtinos sempre negaram as acusações de colaboracionismo com grupos contrarrevolucionários, fossem estes endógenos, fossem exógenos. Negaram, sobretudo, as afirmações de que pretendiam restaurar a velha ordem. “Somos defensores do poder dos trabalhadores - declarava o diário rebelde Izvesia -; somos contra a autoridade tirânica de qualquer partido” (47). Os rebeldes insistiam que a revolta era um movimento genuinamente popular e espontâneo. Indagavam aos seus detratores: nenhum agitador contrarrevolucionário fez a cabeça dos rebeldes antes dos conflitos; nenhum tipo de literatura antibolchevique circulou entre os marinheiros; nunca se recebeu dinheiro ou qualquer ajuda do exterior. Tal é o testemunho dos sobreviventes que fugiram para a Finlândia quando do assalto final a Kronstadt (48).

De particular interesse são as afirmações de Petrichenko no exílio. Nós, os marinheiros de Kronstadt, relatou em um artigo escrito em 1925, longe de sermos contrarrevolucionários, somos os guardiões da revolução. Durante a guerra civil, lutamos com inaudita valentia para defender Petrogrado e a Rússia dos brancos; e, em março de 1921, nossa sincera devoção à causa permaneceu intacta. Isolados do mundo exterior, não podíamos receber nenhuma ajuda de fontes estrangeiras, ainda que desejássemos. Não somos agentes de nenhum grupo do exterior: nem dos capitalistas, muito menos dos mencheviques e dos socialistas revolucionários (SR). Nossa revolta surgiu espontaneamente contra a opressão bolchevique. Nunca tivemos um plano preconcebido; tateávamos o caminho à medida que as circunstâncias impunham-se diante de nós. É possível que outros grupos tenham feito planos para fomentar uma insurreição - na verdade, isso é bem comum nessas ocasiões. Mas isso não teve nada que ver com o Comitê Revolucionário Provisório. Durante todo o levante, a iniciativa nunca escapou de nossas mãos. E quando ouvimos falar sobre elementos da direita que tentavam explorar a rebelião em proveito próprio, imediatamente colocamos de sobreaviso nossos apoiadores por meio de um artigo intitulado “Cavalheiros ou Camaradas” (49).

Trata-se aqui do editorial de 6 de março do jornal rebelde Izvestiia:

“Camaradas, estamos comemorando agora uma grande vitória contra a ditadura comunista; mas os nossos inimigos comemoram igualmente conosco. Os motivos de nossa alegria são completamente diferentes dos deles. Enquanto que o que nos inspira é o ardente desejo de restaurar o poder real dos sovietes e, por conseguinte, realizar a insigne esperança do trabalhador livre e do camponês em desfrutar livremente do direito sobre os produtos do seu trabalho ou da sua terra. Já nossos inimigos guiam-se pela esperança de restabelecer o jugo czarista e os privilégios dos generais sobre a sociedade. Nossos interesses são distintos e, portanto, não são nossos camaradas. Vocês desejam o fim do domínio comunista para reconstruir suas vidas pacificamente e usufruir o livre trabalho criador. Nossos inimigos desejam a escravidão dos operários e camponeses. Vocês buscam a liberdade; eles, colocar-lhes grilhões. Vigiem atentamente, não deixem os lobos em pele de cordeiro assumir o comando de nossa esperança” (50).

A despeito da existência do Memorando Secreto, o fato é que os emigrados russos não conseguiram organizar nem inspirar a rebelião. Porém, não permaneceram de braços cruzados quando os rebeldes iniciaram o motim. Assim sendo, a revolta armada movia interesses diametralmente opostos. Os marinheiros lutavam por um sistema de sovietes representado apenas por operários e camponeses sem qualquer mediação ou representação de uma assembleia constituinte, que julgavam desnecessária. Também não aceitavam outorgar direitos políticos de nenhuma espécie aos latifundiários e às classes médias, que seguiriam sendo uma minoria despossuída e proscrita. Não era esta, porém, a perspectiva dos expatriados, esperançosos em se apoderar do levante para fazer valer os seus propósitos. Para Alexander Kerensky, o primeiro-ministro do desventuroso governo provisório, o colapso iminente do bolchevismo eram favas contadas (51). De forma similar, o líder Kadet Miliukov, que havia abandonado toda fé numa intervenção armada, deu as boas vindas à revolta, considerando-a como o começo de um movimento invencível das massas russas de libertação. Em uma entrevista a um correspondente em Paris do New York Times, Miliukov expressou seu otimismo com os derradeiros dias do regime de Lênin e solicitou ao governo norte-americano somente donativos de alimento, crendo desnecessário o envio de tropas e armas. Seu colega Vinaver, no entanto, adotou uma postura um pouco mais cautelosa ao declarar o seguinte: “É impossível dizer ainda quais as probabilidades de êxito deste movimento em particular. Os bolcheviques podem até abatê-lo por algum tempo, mas não serão capazes de destruí-lo a longo-prazo (52).

Por sua parte, os membros do Centro Nacional não cabiam de contentamento. A rebelião em Kronstadt realizava precisamente as previsões do autor do Memorando Secreto, apenas umas semanas antes do esperado. Urgia, então, a problemática de como captar recurssos aos rebeldes. “A sublevação de Kronstadt - conforme é revelado em uma circular confidencial dos arquivos do centro - palpita o coração auspicioso de todos os exilados russos”. Continua a circular: devemos enviar imediatamente alimentos e remédios em nome da Cruz Vermelha; em seguida, devemos proporcionar aos insurgentes aviões, lanchas, combustível e roupas, de tal modo a difundir a revolta para todo o continente antes mesmo que os bolcheviques consigam reunir forças para detê-la (53). No dia 6 de março, o jornal Obshchee Delo, de Burtsev, órgão semioficial do Centro Nacional, publicou um apelo apaixonado a todos os emigrados russos para se unirem em torno da última chance para salvar a Rússia: a rebelião dos marinheiros de Kronstadt:

“Estamos vivenciando um momento que não mais se repetirá. Não podemos mais nos contentar com uma postura de espectadores passivos ante a atual conjuntura. Conclamamos a todos a colaborar com efetivo apoio material em auxílio dos revolucionários de Kronstadt. É preciso armar os insurgentes e ofertar alimento a Petrogrado. A luta contra os bolcheviques é a luta de todos nós! Tagarelar em meio aos terríveis dias de hoje, atolados num lamaçal de debates e resoluções sem fim... Ai de nós, ai da Rússia! Se a Europa, que já perdeu tantas oportunidades, perder essa também, então... Ai da Europa, ai do mundo inteiro!” (54).

Por mais que os emigrados estivessem demasiadamente divididos para que pudessem realizar um amplo e contundente esforço mútuo em prol dos rebeldes, não fizeram ouvidos moucos ao apelo de Burtsev. No dia seguinte, a sete de março, a União Russa de Comércio e Indústria de Paris comunicou a seus representantes em Helsingfors a intenção de enviar alimentos e outros abastecimentos a Kronstadt. Ao mesmo tempo, para garantir pleno apoio aos rebeldes, ofereceram um sistema de radio comunicador ao Comitê Revolucionário de Kronstadt (o rádio operador de Petropavlovsk era capaz de captar mensagens através do Reval). A rádio anunciava um considerável aporte inicial de dois milhões de marcos finlandeses mobilizados para custear as operações rebeldes na “sagrada causa de libertação da Rússia”, além da promessa de ajuda por meio de provisão de alimentos feita pelo ministro francês de relações exteriores ao embaixador do governo provisório em Paris, o senhor V. A. Maklakov. No dia 9 de março, a União de Comércio e Indústria constituiu um comitê especial para organizar uma rede efetiva de abastecimento às cidades de Kronstadt e Petrogrado. Aderiram rapidamente à iniciativa outros grupos antibolcheviques e, no dia seguinte, uma reunião conjunta foi estabelecida para traçar um plano de ação (55).

Paralelamente, um comitê foi organizado pela filial do Centro Nacional em Helsingfors com a finalidade de criar um canal de abastecimento que atendesse os insurgentes. O professor Grimm, principal representante de Wrangel na Finlândia, foi eleito presidente da organização, enquanto o professor Tseidler encarregou-se, em Paris, centro financeiro da imigração russa, da onerosa incumbência de angariar fundos para o empreendimento. O presidente da União Comércio e Indústria, N. Kh. Denisov, arrecadou de imediato a soma de 100.000 francos. Após regressar à Finlândia, Tseidler recebeu 5.000 libras inglesas do então presidente do Banco Internacional de Paris, o conde V. N. Kokovtsov, que outrora ocupara os cargos de ministro das finanças e primeiro-ministro no reinado do czar Nicolau II. O Banco Russo-Asiático contribuiu com mais 225.000 francos. Fundos adicionais foram acrescentados por outros bancos russos, companhias de seguro e órgãos financeiros de toda a Europa e pela Cruz Vermelha Russa, que repassou todas as contribuições para Tseidler, seu representante na Finlândia. A 16 de Março, Kokovtsov informou ao Comitê Russo Branco de Paris que os depósitos prometidos aos rebeldes pela União de Comércio e Indústria ultrapassavam os 775 mil francos ou os dois milhões de marcos finlandeses (56).

Além da campanha de arrecadação de fundos, os emigrados também buscaram ajuda das potências da Entente. Representantes do Centro Nacional telegrafaram em caráter de urgência ao presidente Harding e a Herbert Hoover, então secretário do Comércio dos Estados Unidos, pleiteando uma remessa imediata de alimentos para os marinheiros de Kronstadt. Petições similares foram encaminhadas pelo Comitê Parlamentar Russo estabelecido em Paris e pelo general Wrangel de Constantinopla, que, oportunamente, enviou também uma mensagem a Kokovtsov, oferecendo apoio militar a Kronstadt tão logo pudesse mobilizar os seus homens do Exército Russo (57). A partir de uma conferência realizada em Paris pelos deputados remanescentes da assembleia constituinte, foi decidido enviar uma mensagem por telégrafo a Boris Bakhmetiev, embaixador do governo provisório em Washington, para que este persuadisse o governo norte-americano a intervir diretamente na situação. O governo dos Estados Unidos, pouco disposto a reiniciar as políticas intervencionistas adotadas durante a guerra civil, ignorou tais apelos. Uma colaboração britânica era ainda mais incerta, não obstante os poucos esforços dos emigrados para obter apoio de Londres. Na verdade, naquele exato momento, um acordo comercial entre a Grã-Bretanha e a Rússia Soviética estava prestes a ser fechado, reflexo do modus vivendi que vigorava desde a conclusão das hostilidades no ano anterior.

A esperança de um apoio estrangeiro vinha da França, que era o país das nações aliadas que mais fazia oposição ao regime bolchevique. Sabemos por meio de documentos de arquivo que o Centro Nacional manteve constantemente contato com o ministro francês de relações exteriores durante todo o levante de Kronstadt (58). O jornal de Kerensky, em Berlim, noticiava, sem qualquer fundamento real, operações da esquadra francesa no porto de Reval, em missão de ajuda aos rebeldes (59). Ademais, segundo o periódico trabalhista Daily Herald, os insurgentes realmente receberam ajuda financeira dos franceses. “Posso afirmar categoricamente - escreveu um correspondente internacional do Herald - que o governo francês está interessado nos desdobramentos da rebelião da fortaleza de Kronstadt e, em vista disso, enviou uma grande soma de dinheiro para os amotinados através de um professor [evidentemente, Tseidler], residente em Viborg. Abastecimentos também foram enviados com a cumplicidade da Cruz Vermelha” (60).

É possível, supostamente, que uma parte das vultosas somas em dinheiro reunidas tão rapidamente pelos emigrados de Paris e remetidas a Tseidler, em Viborg, fossem oriundas do governo francês. (Deve se fazer a ressalta de que os franceses continuavam abastecendo as forças de Wrangel na Turquia durante todo o período em questão). Mas, apesar do apoio, a França avançava lentamente (bem mais devagar, é verdade, que a Grã-Bretanha) para um entendimento com o regime soviético e, por isso, é muito improvável que tenha proporcionado alguma ajuda apreciável aos sublevados de Kronstadt. Segundo o bem informado jornal de Pavel Miliukov, os franceses recusaram-se a interferir política ou militarmente na crise, limitando-se a requisitar da Finlândia a permissão para transportar alimentos para a faminta população de Kronstadt. Isto coincide com uma informação detalhada e extremamente valiosa do cônsul norte-americano em Viborg, Harold Quarton, que teria comunicado ao secretário de estado em Washington sobre as operações do governo francês. O cônsul chegou a admitir que de todas as potências estrangeiras a França era a que mais estava empenhada na questão da rebelião, embora sua ajuda de fato tenha sido pouca ou mesmo nula (61).

Sobre as acusações de cumplicidade entre a Cruz Vermelha e os conspiradores, os bolcheviques (e o Daily Herald) pisavam efetivamente em terreno firme, pois não há menor sombra dúvida de que a Cruz Vermelha Russa foi usada como uma fachada para as tentativas do Centro Nacional em organizar uma rede de abastecimento para Kronstadt. Isto é confirmado na correspondência privada dos agentes do Centro Nacional no Báltico (62). Mas carecem de todo fundamento as denúncias dos soviéticos a respeito do envolvimento da Cruz Vermelha Internacional e da Cruz Vermelha Norte-Americana nas operações de assistência aos rebeldes. De fato, o professor Tseidler esperava utilizar as reservas de alimentos em Stettin e Narva; para tanto, a Cruz Vermelha Russa, estabelecida em Paris, telegrafou para Genebra solicitando a permissão para liberar a carga que, todavia, nunca foi enviada. Além disso, Tseidler pediu ao encarregado da Cruz Vermelha Norte-Americana no Báltico, o coronel Ryan, a distribuição dos alimentos armazenados pela instituição em Viborg. (O Centro Nacional creditava-se a um direito especial sobre esses produtos alimentícios, já que foram adquiridos originalmente pelo general Yudenich em 1919, para alimentar a população de Petrogrado, uma vez derrotados os bolcheviques; entretanto, os alimentos foram entregues à Cruz Vermelha Norte-Americana para socorrer os refugiados russos na região do Báltico) (63). Também foram infrutíferas as conversações que se deram a 11 de março quando Ryan se dirigiu ansiosamente a Paris para propugnar apoio aos emigrados perante seus superiores do quartel-general europeu da Cruz Vermelha Norte-Americana. Como Ryan relatou a um jornalista do Obshchee Delo, ao menos dois obstáculos interpuseram-se sobre o seu caminho: primeiro, o regimento interno da organização impedia qualquer tipo de cooperação com grupos políticos ou militares; e, segundo, mesmo que isso pudesse ser contornado, o governo finlandês não permitiria o transporte de carregamentos de alimento por seu território (64). Durante a revolta de Kronstadt, segundo as palavras de Harold Quarton, os finlandeses foram “zelosos em respeitar o tratado de paz recentemente firmado” com o governo soviético (14 de outubro de 1920), o que desmonta a tese bolchevique sobre uma suposta cumplicidade entre a Finlândia e os brancos. O estado-maior finlandês considerava a sublevação prematura e condenada ao fracasso e não desejava ceder sequer um único pretexto para que se justificassem represálias militares por parte dos bolcheviques. Em suma, como posteriormente observou Tseidler, os finlandeses comprometeram-se apenas em fornecer provisões de remédio como parte de ações humanitárias (65), que, entretanto, jamais foram cumpridas.

Em Paris, o Centro Nacional e seus simpatizantes ficaram exasperados com o bloqueio das rotas por onde deveriam ser transportados os suprimentos. O príncipe C. E. Lvov, predecessor de Kerensky no cargo de primeiro-ministro do governo provisório, suplicou ao embaixador finlandês para que reconsiderasse a sua decisão política e, em seguida, procurou novamente os franceses para obter apoio para uma intervenção na Rússia. Também compareceu ao quartel general da Cruz Vermelha Norte-Americana onde requisitou a abertura dos armazéns em Viborg. Porém, seus esforços resultaram em nada (66). Enquanto isso, o tempo estava se esgotando. A situação das reservas de alimentos em Kronstadt era desesperadora – tão desesperada que, no dia 13 de março, Petrichenko telegrafou ao professor Grimm autorizando-o a pedir socorro à Finlândia e demais países simpáticos à causa. Segundo Quarton, de um lado, o estado-maior finlandês opinava (e com razão, como provariam os eventos subsequentes) que os estoques de alimentos ficariam escassos antes mesmo dos últimos dias do mês de março. Mas, por outro lado, Quarton aconselhou Washington a não realizar nenhum envio de provisões pelo triênio, pois temia que pudessem ser interceptadas (67). O comissário dos Estados Unidos em Berlim era da mesma opinião, uma vez que fora convencido por alguns emigrados de que uma intervenção na Rússia só contribuiria para tirar Lênin das dificuldades causadas pela instabilidade da conjuntura interna ao unir a nação contra a ameaça de uma nova invasão estrangeira. Assim sendo, o comissionado norte-americano classificava de “prematura e sujeita à má interpretação” a rogatória dos exilados de Paris para que se abastecessem os rebeldes, ainda que sob alegações de filantropia (68). A resposta do comissionado, diga-se de passagem, foi comunicada pelo Secretário de Estado ao quartel-general nacional da Cruz Vermelha Norte-Americana em Washington e, talvez, influenciou na decisão de não intervenção. “A Cruz Vermelha - escreveu um secretário nacional poucas semanas depois da revolta - nunca prestou qualquer tipo de socorro aos rebeldes de Kronstadt (69).

A Cruz Vermelha Russa, por outro lado, trabalhou intensamente para ajudar os insurgentes até não haver mais esperança. Na condição de chefe da filial da Cruz Vermelha na Finlândia, Tseidler continuou reunindo fundos de simpatizantes em todo o continente. Mas sua maior preocupação consistia ainda em encontrar alguma maneira de abastecer os marinheiros sitiados. A 16 de Março, quando a rebelião aproximava-se de seu ato final, o barão P. V. Vilken, companheiro de Tseidler e Grimm, marchou através do gelo até Kronstadt e apresentou-se aos rebeldes como representante da Cruz Vermelha Russa. Ex-capitão da Armada Imperial, Vilken servira na marinha como comandante do Sebastopol e chefe da divisão de barcos lança-minas da Frota do Báltico. Os bolcheviques chamavam-lhe, com razão, de agente branco. No entanto, diferentemente do que sustentavam os comunistas, Vilken nunca se utilizou da Cruz Vermelha internacional ou Norte-Americana como disfarce. A “missão secreta” do ex-capitão, como denominou Quarton, redundava em ofertar alimentos e remédios para o Comitê Revolucionário Provisório até que uma rota de abastecimento fosse viabilizada (70). No passado, a missão teria se deparado com uma negativa categórica. Mas, neste momento, os marinheiros estavam desesperadamente carentes de alimentos e seus estoques de remédios completamente esgotados. Renunciaram a toda desconfiança acerca das motivações de Vilken (os líderes rebeldes conheciam bem os antecedentes do ex-capitão), e o Comitê Revolucionário aceitou a doação. A Cruz Vermelha, explicou Petrichenko, era uma “organização filantrópica e não política” (71).

Mas, como assinalou Petrichenko - e os comunistas assim o reconheceram -, nunca chegou aos insurgentes qualquer ajuda vinda do exterior (72). Umas poucas toneladas de farinha e toucinho foram transportadas em trenós por contrabandista finlandeses. Mesmo este carregamento chegou demasiadamente tarde e foi parar nas mãos dos bolcheviques (73). Assim, os enormes esforços realizados pelos emigrados Kadets para abastecer Kronstadt resultarão em um fracasso total. Os carregamentos de alimentos da Cruz Vermelha nunca foram liberados; o acesso através da Finlândia permaneceu bloqueado; as tentativas para obter navios quebra-gelos e balsas de transporte mostraram-se inúteis. A 16 de março, veio o golpe final, com a assinatura do acordo comercial anglo-soviético: uma “apunhalada pelas costas”, para citar a reação amargurada do Obshchee Delo (74). O tratado definitivamente desencorajou países como a Finlândia a revisar suas políticas de neutralidade. Em suma, não se moveu uma palha para pôr em prática o plano arquitetado pelo Memorando Secreto, confirmando plenamente as advertências de seu autor. Talvez, o socorro teria sido enviado se a revolta não irrompesse antes do previsto, o que fragilizou a posição dos emigrados. Aliás, os rebeldes só receberam algum auxílio nos campos de refugiados na Finlândia, depois de reprimida a revolta.

A despeito das alegações de Burtsev pela união em nome da “causa comum” para destituir os bolcheviques do poder, os expatriados russos mantiveram-se irremediavelmente divididos. Durante toda a rebelião, os mencheviques, os socialistas revolucionários (SR) e os liberais do Centro Nacional trilharam caminhos distintos e nunca houve cooperação entre eles, seja de concentração de energias, seja de mobilização de recursos. Por fim, os socialistas revolucionários (SR) elaboraram seus próprios planos para guarnecer os rebeldes - infrutíferos, afinal.

A rebelião de Kronstadt revigorou os ânimos dos socialistas revolucionárias (SR) no exílio. Em Paris, Berlim e Praga, os mais renomados líderes partidários - entre eles, Alexander Kerensky, chefe do governo provisório, e Victor Chernov, presidente da assembleia constituinte - dedicaram-se a tarefa de arrecadar fundos para serem invertidos na compra de alimentos e outras provisões necessárias e, com isso, manter acesa a chama da insurreição. Através do exame de publicações relativas à correspondência privada interceptada por agentes da inteligência bolcheviques, sabemos que Kerensky e Chernov conseguiram juntar importantes somas em dinheiro. Duas cartas de V. M. Zenzinov, escritas em Praga e endereçadas a um membro do Centro Administrativo do SR, em Paris – datadas de 8 e 13 de março -, mencionam quantias que ultrapassavam a casa dos 100 mil francos franceses, mais o montante de $25.000 dólares enviado por Boris Bakhmetiev, o embaixador de Kerensky em Nova York. As cartas também revelam um estoque de 50.000 poods de farinha em Amsterdã destinados a Kronstadt (75).

Toda ajuda deveria ficar sob a responsabilidade de Victor Chernov, que estava na cidade báltica de Reval. Chernov desempenhava para os socialistas revolucionários (SR) um papel análogo ao de Tseidler e Grimm para o Centro Nacional Kadet. Na primeira semana da rebelião de Kronstadt, Chernov transmitiu a seguinte mensagem de rádio ao Comitê Revolucionário Provisório:

“Eu, Victor Chernov, presidente da assembleia constituinte, dirijo minhas saudações fraternas aos heroicos camaradas marinheiros, soldados do Exército Vermelho e operários, que, pela terceira vez, desde 1905, levantam-se para extirpar o jugo da tirania que ora recai sobre seus ombros. Venho oferecer meus préstimos a Kronstadt, dispondo de homens e provisões provenientes das cooperativas russas no exterior. Peço que me informem do que precisam e em que quantidade. Estou preparado para lhes assistir em pessoa, dedicando toda minha energia e autoridade a serviço da revolução do povo. Tenho fé na vitória final das massas trabalhadoras. Glória a quem levantar a bandeira da libertação do povo! Abaixo o despotismo de direita e de esquerda!” (76)

O Comitê Revolucionário realizou uma reunião extraordinária para deliberar a respeito da oferta de Chernov. Apenas Valk votou a favor; enquanto Perepelkin, contra. Os demais acompanharam Petrichenko e Kilgast, que recomendavam suspender a questão por tempo indeterminado (77). Chernov recebeu a seguinte resposta: “O Comitê Revolucionário Provisório de Kronstadt manifesta a sua profunda gratidão a todos os nossos irmãos do exterior pela simpatia que nos devotam. O Comitê Revolucionário Provisório reitera seus sinceros agradecimentos a Chernov. Contudo, pelo presente momento, vê-se obrigado a recusar a proposta até que fique mais esclarecida a situação atual. Mas tudo será levado em consideração” (78). Apesar da recusa, o tom da resposta não era hostil, pois, muito embora os marinheiros dispensassem toda ajuda do exterior pela profunda convicção de que a revolta de Kronstadt desencadearia um movimento de massa toda por toda a Rússia continental, não desejavam fechar o leque de possibilidades em caso de necessidade posterior. O fato é que, ao fim e ao cabo, os rebeldes nunca pediram socorro aos socialistas revolucionárias (SR).

Diferentemente dos Kadets e socialistas revolucionários (SR), os mencheviques abstiveram-se de qualquer participação em uma conspiração antibolchevique, e permaneceram indiferentes à rebelião de Kronstadt. A partir do momento em que Lênin e seus partidários tomaram o poder, os mencheviques passaram a atuar como um partido de oposição, buscando auferir representatividade política mediante eleições livres e justas para os sovietes. Durante a guerra civil, consideravam os brancos um mal maior que os bolcheviques e, por isso, opuseram-se a qualquer manifestação a favor de uma insurreição armada contra o regime, sob pena de expulsão partidária por associação à contrarrevolução. (Ivan Maisky, o futuro diplomata soviético, fui expulso do partido depois de tomar parte do governo antibolchevique SR de Samara). Até 1921, a despeito de todas as denúncias de despotismo e terror bolchevique, os mencheviques permaneceram fiéis à sua convicção de que a luta armada contra o governo de Lênin só podia beneficiar os contrarrevolucionários. O jornal Sotsialisticheski Vestnik (“O correio socialista”), que era o principal órgão de imprensa menchevique no exterior, embora simpatizasse com a postura dos marinheiros de Kronstadt em sua luta contra a ditadura unipartidária e as políticas do comunismo de guerra, tomava todo o cuidado para não se envolver nas ações intervencionistas dos Kadets e dos socialistas revolucionários (SR). Nosso propósito, anunciava o periódico, é combater o bolchevismo, não com canhões, mas, sim, com o poder irresistível das massas trabalhadoras (79).

Em suma, os russos no exílio (com a exceção parcial dos mencheviques) felicitarão a rebelião e providenciarão todos os meios possíveis para amparar os insurgentes. Por este ângulo, as denúncias dos soviéticos contra os rebeldes são bastante justificadas. Mas não é certo que os emigrados tenham planejado a rebelião. Pelo contrário, apesar das intrigas tramadas em Paris e em Helsingfors, a sublevação de Kronstadt foi um movimento espontâneo e independente do começo ao fim. Todas as evidências demonstram que a revolta não foi resultado de uma conspiração adventícia. A existência de um incipiente complô nos círculos russos do estrangeiro que compartilhavam da mesma hostilidade dos marinheiros contra o regime bolchevique sequer desempenhou um fator irrelevante para os desdobramentos da revolta. Os membros do Centro Nacional formularam um prognóstico sobre uma iminente rebelião em Kronstadt e, com base nessas projeções, traçaram planos para viabilizá-la. Com a ajuda dos franceses, os emigrados tentaram prover os rebeldes com alimentos, remédios, tropas e equipe militar. Objetivo derradeiro do Centro Nacional era assumir todo o controle da rebelião e fazer de Kronstadt um trampolim para uma nova intervenção, que deveria levar à derrocada o regime bolchevique. Todavia, não houve tempo para levar a termo o programa prenunciado pelo Memorando. A rebelião precipitou-se demasiadamente rápido, várias semanas antes do esperado, impossibilitando as condições mínimas para o êxito da revolta - o derretimento do gelo, a criação de uma rede de abastecimentos, a obtenção do apoio francês e o translado do exército de Wrangel para uma região próxima ao teatro da guerra.

O fato dos Kadets e dos socialistas revolucionários (SR) tentarem se aproveitar da revolta em causa própria não é, por óbvio, surpreendente. Mas, ao fim e ao cabo, foram os marinheiros e o Comitê Revolucionário que deram a tônica aos acontecimentos de Kronstadt. Enquanto a situação não chegava às raias do desespero, os rebeldes mantinham-se confiantes e esperançosos de que o seu exemplo provocaria uma revolução de massas na Rússia Continental; por isso, não solicitaram nenhum apoio do exterior. Sequer chegaram a receber algum auxílio dos emigrados, e, salvo a visita do barão Vilken, a 16 de março, quase não houve nenhum contato com quem quer que fosse que se supunha estar por trás do motim. Diremos, de passagem, que todas as evidências disponíveis não revelam a presença de nenhum vínculo entre os exilados e os ex-oficiais czaristas de Kronstadt, que, supostamente, representariam o elo natural no caso de uma eventual colaboração branca.

Todavia, o que é factível de demonstração é que realmente algum tipo de acordo entre os rebeldes e os emigrados foi acertado após o desfecho trágico do levante, o que envolveu a fuga dos líderes rebeldes para a Finlândia. Em março de 1921, Petrichenko e vários de seus companheiros que estavam refugiados no acampamento do Forte Ino ofereceram voluntariamente seus serviços ao General Wrangel. No final do mês, escreveu o professor Grimm, representante de Wrangel, em Helsingfors: os líderes rebeldes apresentaram-se como voluntários para uma renovada campanha militar contra o governo bolchevique e, assim, restaurar “as conquistas da revolução de março de 1917”. Os marinheiros expuseram um programa de seis pontos fundamentais para qualquer empresa em comum: 1) toda terra aos camponeses; 2) sindicatos livres para os operários; 3) plena independência dos estados limítrofes; 4) liberdade total para os fugitivos de Kronstadt; 5) remoção das dragonas (ombreiras franjadas) de todo uniforme militar; e 6) preservação do lema “todo o poder aos sovietes, não aos partidos”. É surpreendente, todavia, o argumento de que lema só deveria ser preservado como uma “conveniente manobra política”, até que os comunistas fossem depostos do poder. Uma vez vitoriosa a intervenção, o lema seria engavetado e se instalaria uma ditadura militar provisória para impedir que o país se enveredasse na anarquia. Este último ponto foi incluído, sem dúvida, como um obséquio a Wrangel. Os marinheiros insistiram, em todo caso, que, com seu devido tempo, o povo russo deveria viver “em liberdade para decidir por si mesmo que tipo de governo desejava” (80).

Grimm manifestou imediatamente seu assentimento aos termos do acordo e também Wrangel enviou uma resposta favorável semanas mais tarde. Ademais, ao que tudo indica, o pacto foi cumprido. Com efeito, durante o verão de 1921, a julgar pelas informações da polícia secreta soviética, Petrichenko, em colaboração com Grimm e o barão Vilken, recrutou um grupo de marinheiros refugiados que foram introduzidos clandestinamente em Petrogrado. A ideia era assegurar uma cabeça de ponte na cidade para, no momento oportuno, tomar de assalto o poder dos comunistas. Dentro da cidade, os marinheiros atuaram sob a direção da Organização de Luta de Petrogrado, grupo clandestino afiliado ao Centro Nacional e liderado por V. N. Tagantsev, antigo professor de geografia na universidade de Petrogrado. Ao que parece, as forças do general Wrangel seriam eventualmente acionadas, mas, antes que isso ocorresse, a organização foi descoberta e aniquilada (81).

Todavia, os refugiados não desanimaram. Em junho de 1921, o congresso da União Nacional, convocado pelo Centro Nacional para unir os emigrados em uma cruzada antibolchevique, recebeu uma mensagem de um grupo de ex-amotinados de Kronstadt, àquela altura, residentes na Finlândia, em que demonstrava apoio incondicional às resoluções do programa (82). Ademais, nos arquivos do Centro Nacional, encontra-se um documento confidencial, datado de 30 de outubro de 1921, e assinado por Petrichenko e Yakovenko (presidente e vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório), no qual autorizam um certo Vsevolod Nikolaievich Skosyrev a se juntar ao Comitê Nacional Russo de Paris na qualidade de representante dos refugiados, para “coordenar as atividades da organização com outros grupos que compartilham de uma única plataforma de luta armada contra os comunistas (83).

Nada prova, no entanto, a existência de uma conexão entre o Centro Nacional e o Comitê Revolucionário, seja antes, seja durante a revolta. Muito mais provável teria sido a experiência amarga que a derrota provocou unindo personagens tão distintos após o fim da rebelião. Por seu turno, os bolcheviques insistiam em negar a natureza espontânea da rebelião, acusando vários grupos do espectro político da oposição - de monarquistas, à direita, a anarquistas, à esquerda – de envolvimento com o serviço de espionagem Aliado. Mas até o momento não se apresentou nenhuma prova convincente que confirme tais ilações. O próprio Lênin admitia a total inconsistência das alegações acerca do envolvimento dos emigrados com os rebeldes de Kronstadt. A 15 de março, em pronunciamento ao X Congresso do Partido, Lênin afirmou o seguinte: “Kronstadt abomina tanto os guardas brancos como os bolcheviques” (84). Embora insistisse no importante papel dos emigrados nos desdobramentos da insurreição, Lênin reconhecia o motim de Kronstadt não como uma mera repetição das incursões brancas na guerra civil. Considerava a rebelião como um sintoma do profundo abismo que separou o partido bolchevique do povo russo. Se, por um lado, houve alguma interferência da guarda branca, afirmou o líder bolchevique, “por outro, o movimento expressava uma tendência contrarrevolucionária pequeno-burguesa; uma manifestação espontânea de tipo anarquista, pequeno-burguesa”. Queria dizer com isso que, no fundo, a revolta refletia o descontentamento de pequenos proprietários pertencentes a uma fração do campesinato russo que não tinham em boa conta o Estado e seus órgãos de controle, senão o desejo de que se os deixassem em paz para trabalhar a sua terra como bem lhes aprouvessem. “Sem dúvida - acrescentava Lênin -, Kronstadt representa um perigo maior que Denikin, Yudenich e Kolchak juntos; pois estamos lidando com uma situação cujas implicações pressupõem não só a ruína da propriedade camponesa, mas a liberação de numerosos elementos potencialmente revoltosos com a desmobilização do exército” (85).

Bukarin adotou um ponto de vista semelhante. Muito mais sério do que Kronstadt, declarou ao congresso, é a “mentalidade pequeno-burguesa inerente ao campesinato que ameaçava contaminar toda a classe operária”. O que significava um risco extremo se comparado à tentativa circunstancial de algum general iniciar, porventura, um motim em Kronstadt. Poucos meses depois, Bukarin retomou o assunto. “Os documentos que têm sido revelados até hoje - afirmou ao III Congresso do Komintern, em Julho de 1921 - mostram claramente que as razões da revolta não se explicam somente pela participação dos guardas brancos, senão por elementos de caráter pequeno-burguês que se manifestaram contra o sistema socialista de emergência econômica” (86).

Mesmo com toda a campanha mentirosa disseminada pela máquina de propaganda oficial, as observações de Lênin e Bukarin evidenciavam, por vias tortuosas, a verdadeira essência da rebelião de Kronstadt, a saber: longe de ser uma conspiração branca, o motim dos marinheiros era uma revolta espontânea camponesa que encontrara eco numa grande insatisfação da classe operária e que se generalizava por todo o país. Movimentos de tipo espontâneo, na Rússia soviética, eram revoltas do povo contra o governo, ou seja, um protesto de massa contra a ditadura bolchevique e as políticas do comunismo de guerra. O levante de Kronstadt, portanto, constituiu a expressão mais eloquente e dramática desse fenômeno social.