Kronstadt, mais uma vez [1]
(julho
de 1938)
por
Dwight MacDonald
Tradução de Marcelo Coelho – Revista Rosa
O
artigo de Trotsky na edição de abril da New International foi, para mim, motivo
de desapontamento e embaraço. Desapontamento, porque eu esperava uma explicação
franca e razoavelmente objetiva do caso Kronstadt. Embaraço, porque admiro
Trotsky e aceito muitas de suas teorias. Um artigo como aquele — essencialmente
uma peça de autodefesa casuística, apesar de brilhante — torna mais difícil
defender Trotsky da frequente acusação de que seu pensamento é sectário e
inflexível.
Para
os que, como eu, acreditam que a revolução proletária é o único caminho para o
socialismo, a questão que se coloca hoje é: podemos evitar o tipo de
degeneração que se deu na Rússia? Especificamente, em que medida a teoria
bolchevique carrega a responsabilidade pela ascensão do stalinismo? Em A
Revolução traída, Trotsky demonstra que o stalinismo é fundamentalmente um
reflexo do baixo nível de produtividade e de desenvolvimento econômico da
Rússia. Mas, mesmo se aceitarmos essa análise, como é o meu caso, uma
importante causa auxiliar pode ser identificada em algumas debilidades da
teoria política bolchevique. Não será dever dos marxistas hoje em dia procurar
sem descanso essas debilidades, para reconsiderar toda a linha bolchevique com
distanciamento científico? Minha impressão é de que Trotsky mostrou pouco
interesse por essa reconsideração básica. Ele parece mais interessado em
defender o leninismo do que em aprender com seus equívocos.
O
artigo sobre Kronstadt é um bom exemplo do que quero dizer. É apaixonado,
eloquente, e não convence. Trotsky pode estar certo em todas as suas
afirmações. Mas ele aborda o assunto de uma maneira que impossibilita o
observador distanciado de formar uma opinião inteligente. Não tenho nem o tempo
nem o conhecimento — e a New International não tem o espaço — para discutir a
questão de Kronstadt aqui. Mas eu gostaria de indicar algumas apreensões quanto
ao tom do artigo. Em geral, parece-me que Trotsky adota uma posição polêmica
numa questão que deveria ser considerada desapaixonadamente, com algum respeito
pelo lado contrário. O próprio título é desdenhoso: “A gritaria em torno de
Kronstadt”. A oposição é caracterizada com uma fraseologia de promotor numa
corte criminal — “essa variegada fraternidade”, “essa campanha de verdadeiro
charlatanismo”. Para justificar esse tom abusivo, Trotsky precisaria trazer à
tona provas muito mais fortes para desmontar as afirmações de Serge, Thomas,
Berkman e Souvarine do que ele (ou Wright) dispõem no momento.
Trotsky
começa seu artigo com um amálgama digno de Vishinsky: “participam da campanha…
anarquistas, mencheviques russos, social-democratas de esquerda… trapalhões
individuais, o jornal de Miliukov, e, por vezes, a grande imprensa capitalista.
Uma ‘frente popular’ sui generis!” (A única categoria que se aplica a mim é a
de ‘trapalhão individual’. Trotsky parece incapaz de imaginar qualquer pessoa
criticando Kronstadt, a não ser que esteja a serviço de algum interesse escuso
ou seja um iludido, enquanto os stalinistas caracterizam todos os críticos dos
processos de Moscou como trotskistas, fascistas, assassinos, e — meu rótulo
pessoal — fantoches de Trotsky). Não consigo ver tanta diferença quanto
gostaria entre, de um lado, a insistência de Trotsky na tese de que, uma vez
que os inimigos da Revolução usaram Kronstadt para desacreditar o bolchevismo,
então todos os que expressam dúvidas sobre Kronstadt são (considerados
‘objetivamente’) aliados da contrarrevolução, e, de outro, a insistência de
Vishinsky na tese de que a Quarta Internacional e a Gestapo são camaradas em
armas porque ambas se opõem ao regime stalinista. Essa exclusão dos motivos
individuais como irrelevantes, essa recusa a considerar objetivos, programas,
teorias, qualquer coisa exceto o fato objetivo de estar em oposição — essa
forma de pensar me parece perigosa e irrealista. Insisto que tenho dúvidas
sobre Kronstadt sem ser um canalha ou um estúpido.
Tendo
criado esse amálgama, Trotsky define seu menor denominador comum — e é dos
menores, com efeito. “Como é que o levante de Kronstadt pode causar tanto
desconforto em anarquistas, mencheviques, e contrarrevolucionários ‘liberais’
ao mesmo tempo?”, ele pergunta. “A resposta é simples: todos esses grupos estão
interessados em comprometer a única corrente genuinamente revolucionária, que
nunca repudiou suas bandeiras…”. A resposta é algo simples demais — outro
aspecto que me incomoda, aliás, nas respostas de Trotsky. Até onde eu próprio
saiba, não estou interessado em “comprometer” o bolchevismo; ao contrário,
gostaria de poder aceitá-lo cem por cento. Mas, infelizmente, tenho algumas
dúvidas, objeções, críticas. Será que é impossível expressá-las sem ser acusado
de contrarrevolucionário e incluído na salada de anarquistas, mencheviques e
jornalistas capitalistas?
A
maior parte do artigo de Trotsky tenta mostrar que a base social do levante de
Kronstadt era pequeno-burguesa. Ele aponta um fato importante: os marinheiros
de Kronstadt, em 1921, eram um grupo bem diferente daqueles heróis
revolucionários de 1917. Mas o resto de sua longa argumentação se resume a
identificar todos os elementos que se opunham aos bolcheviques como sendo
“pequeno-burgueses”. Ele apresenta poucas provas para justificar essa
rotulação, além do fato de que eram todos antibolcheviques. Seu raciocínio
parece ser o seguinte: somente a política bolchevique podia salvar a Revolução;
os grupos de Makhno, os verdes, os social-revolucionários, os kronstadtianos
etc., eram contra os bolcheviques; portanto, eram objetivamente
contrarrevolucionários; portanto, estavam objetivamente trabalhando para a
burguesia. O raciocínio dá por resolvida a própria questão que queria resolver.
Mas ainda que aceitássemos seu postulado inicial, estaríamos diante de um
processo perigoso do ponto de vista político. Ele racionaliza uma desagradável
necessidade administrativa — a supressão de opositores políticos que também
estão agindo em favor do que consideram os melhores interesses das massas —
transformando-a numa luta entre o Bem e o Mal. Uma medida de governo se torna
uma cruzada política, simplesmente recusando-se a distinguir entre categorias
objetivas e subjetivas — como se um assaltante de banco devesse ser acusado de
querer derrubar o capitalismo! Stalin aprendeu o truque até bem demais.
Trotsky
tem pouco a dizer sobre o modo com que os bolcheviques lidaram com o caso de
Kronstadt em si mesmo. Não apresenta nenhuma defesa para as execuções em massa,
que, de acordo com Victor Serge, ocorreram meses depois de os rebeldes terem
sido esmagados. Com efeito, não menciona absolutamente esse aspecto. Tampouco
ele dá muita atenção ao problema crucial: com que seriedade os bolcheviques
tentaram um acordo pacífico antes de colocarem as armas em campo? Ele
desconsidera esse ponto: “Ou será que teria sido suficiente apenas informar os
marinheiros de Kronstadt a respeito dos decretos da nep, achando que isso iria
apaziguá-los? Ilusão! Os insurgentes não tinham um programa consciente, e não
podiam tê-lo, dada a própria natureza da pequena burguesia.”
Aqui
Trotsky admite, implicitamente, o que afirma Souvarine: Lênin estava dando os
últimos retoques na nep durante o décimo congresso do partido, que foi
interrompido para permitir aos delegados que tomassem parte no ataque a
Kronstadt. A decisão tomada por Lênin e Trotsky foi séria: suspender o anúncio
da nep até que a rebelião, que reivindicava algumas das concessões que a
própria nep iria garantir, fosse afogada em sangue. Como eles poderiam estar
tão seguros de que teria sido impossível chegar a um acordo com os
kronstadtianos com base na nep? Algumas frases antes, Trotsky admite que “a
introdução da nep um ano antes teria evitado o levante de Kronstadt”. Mas os
kronstadtianos, escreve Trotsky, sendo pequeno-burgueses, não tinham “programa
consciente” e, portanto, não poderiam ser sensíveis ao apelo de concessões
programáticas. Pequeno-burgueses ou não, os kronstadtianos tinham um programa.
Souvarine, por exemplo, resume-o em sua vida de Stalin como: “eleições livres
para os sovietes; liberdade de expressão e uma imprensa livre para os
operários, camponeses, socialistas de esquerda, anarquistas e sindicalistas; a
libertação dos operários e camponeses detidos como prisioneiros políticos; a
abolição dos privilégios para o partido comunista; rações iguais para todos os
trabalhadores; o direito dos camponeses e artesãos autônomos de dispor do
produto de seu trabalho”. Talvez Trotsky use o termo “programa consciente” com
algum sentido especial.
Para
mim, a afirmação mais interessante do artigo é: “É verdade… que eu já tinha
proposto a transição para a nep em 1920… Quando me defrontei com a oposição dos
líderes do partido, não apelei para as fileiras, pois não queria mobilizar a
pequeno burguesia contra os trabalhadores.”
Como aponta Trotsky, Lênin admitia
que a política do “comunismo de guerra” tinha se prolongado mais do que
deveria. Tratava-se apenas de um erro de julgamento, como sugere implicitamente
Trotsky, ou foi um erro nascido da própria natureza da organização política
bolchevique, que concentra o poder nas mãos de um pequeno grupo tão
perfeitamente isolado (por um aparato partidário burocrático e hierarquizado)
da pressão política das massas que termina sem responder às necessidades das
massas — exceto quando é tarde demais? Mesmo quando um dos líderes tem
condições de avaliar corretamente as necessidades das massas, ele não pode
fazer mais do que tentar convencer seus colegas acerca do acerto de sua visão.
Se eles não se convencem, ele se vê inibido por sua própria filosofia
política de buscar apoio nas bases. É verdade, como escreve Trotsky, que a
burguesia teria procurado se aproveitar de qualquer divisão nas fileiras
bolcheviques. Mas não são ainda maiores os perigos de uma ditadura férrea,
isolada da pressão das massas? Não são episódios como o de Kronstadt
inevitáveis nessas condições? E teria sido possível a uma camarilha stalinista
usurpar o controle do partido se houvesse maior participação das massas e maior
liberdade para a oposição de esquerda, tanto dentro quanto fora do partido
dominante?
Estas são as questões que Kronstadt
levanta. Trotsky não as responde quando resume: “Em essência, os veneráveis
críticos se opõem à ditadura do proletariado e, com isso, são adversários da
revolução. Nisso está a chave do segredo.”
O segredo é mais complicado do que
essa formulação. Rosa Luxemburgo se opôs durante toda a vida à concepção de
Lênin da ditadura do proletariado. Mas os oficiais da guarda que a
assassinaram em 1919 sabiam muito bem qual era a sua atitude com respeito à
Revolução de 1917.
Nova York,
26 de abril de 1938.
Nota
Publicado
originalmente em New International, vol. 4, nº 7, julho de 1938, pp. 212–213.
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Publicadono 3º número do volume 4 da Revista Rosa em 20/12/2021.
Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.com, issn 2764-1333.