terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Centenário da Rebelião de Kronstadt

Rebelião de Kronstadt

Em memória do Centenário da Rebelião de Kronstadt, durante todo este ano de 2021, publicamos textos relacionados com o tema que podem ser encontrados no índice do blog (na lateral direita) através do tópico A Terceira Revolução. Para fechar as homenagens ao movimento insurgente dos marinheiros da Frota do Báltico, esbocei na introdução alguns pormenores históricos, geográficos e linguísticos; em seguida, transcrevi uma discussão entre historiadores, militantes e estudiosos da Revolução Russa; por último, tracei um breve esboço sobre o qual lanço uma interpretação analítica em relação àquilo que me parece o verdadeiro significado do dito socialismo real. Espero com isso contribuir de algum modo para o debate sobre a Rebelião de Kronstadt, que, cem anos depois, ainda provoca controvérsias e discussões acaloradas prós e contras.

Agradeço muito fortemente a tod@s que chegaram até aqui.

JeanFecaloma

I - Introdução: Kronstadt

Kronstadt está localizada na ilha de Kotlin, no Golfo da Finlândia, Mar Báltico.

Os primeiros registros da ilha de Kotlin datam de contratos comerciais entre a Liga Hanseática e a República de Novgorod, no século XIII, e desta cidade com o reino da Suécia, no que concernia a demarcação de fronteiras estabelecidas por um acordo de paz firmado no século XIV. Com a queda de Constantinopla (1453), o Mar Báltico se torna a principal rota da Europa com o Oriente, antes da circum-navegação da África pelos portugueses e a conquista do Atlântico.

A partir do século XVII, a Suécia emerge como a maior potência da Europa setentrional, dando início a uma fase expansionista que transformou o Báltico em um “lago sueco” e se estendeu por toda a região continental do entorno. Diante do avanço do Império da Suécia, a Rússia foi obrigada a ceder extensas áreas territoriais (inclusive Novgorod), perdendo assim sua única via de acesso aos mares da Europa. Em fevereiro de 1617, por meio do Tratado de Stolbovo, a ilha de Kotlin passou oficialmente ao domínio sueco.

No início do século XVII, tem início a Grande Guerra do Norte (1700-21), fruto da aliança da União do Norte, formada por uma coalizão de países liderados pela Rússia envolvendo a Noruega, a Dinamarca, a Saxônia e a Polônia contra o Império Sueco. Visando abrir uma passagem para o mar, a Rússia lança um ataque em direção ao Báltico e, após uma serie de ofensivas e contraofensivas, em 1702, ocupa as margens orientais do Golfo da Finlândia e conquista definitivamente a Livônia, a Ingria, a Estônia e a Carélia. Na foz pantanosa do rio Neva, o czar Pedro I decide edificar a nova capital russa, em maio de 1703, com a fundação de São Petersburgo, planejada para ser a “janela da Rússia para o Ocidente”.

Percebendo a posição estratégica da ilha de Kotlin, localizada a 31 quilômetros a oeste da futura capital, a uns 12 km da costa continental adjacente norte e uns 8 km da costa sul, constituindo uma espécie de escudo natural da única abertura de acesso ao coração do território russo por mar e via fluvial, o czar ordena a construção de um conjunto de fortes no sul da ilha, entre os anos de 1703-1704. Em cerimônia de inauguração a fortaleza recebe o nome de Kronshlot. Construída em tempo recorde, o esquadrão sueco é tomado de surpresa e sai derrotado.

A partir de 1706, o complexo naval é ampliado, tornando-se posteriormente a sede do almirantado russo e base da Frota Russa do Báltico. Em 1710, cerca de 80 casas destinadas à moradia militar são construídas no local. Em janeiro de 1712, o governo baixa um decreto determinando o assentamento de três mil famílias russas na despovoada ilha. Terminada a guerra, a cidadela recebe seu nome definitivo e oficial, em 18 de outubro de 1723: Kronstadt.

Em 1891, a frota francesa é recebida triunfantemente em Kronstadt, sinalizando o primeiro passo para a futura Aliança Franco-Russa. Todavia, os marinheiros sempre foram afeitos à indisciplina e um histórico de motins e insubordinação caracterizou de modo indelével a base naval de Kronstadt, tendo por destaque a conspiração dos irmãos Bestuzhev, durante o movimento Dezembrista, os levantes de 1905 e 1906, a Comuna de Kronstadt de 1917 e a revolta dos marinheiros no ano de 1921.

Do nome Kronstadt

Para o czar Pedro I, conhecido pelos russos como O Reformador, a modernização da Rússia estava estritamente associada a um projeto de ocidentalização do país, até então extremamente atrasado. Obcecado por tornar a Rússia uma grande potência e, para tanto, dispor de uma poderosa esquadra nacional, até então inexistente, o czar organizou a célebre “Grande Embaixada”, e partiu em excursão pelos países mais adiantados da Europa Ocidental. O seu objetivo era verificar o desenvolvimento técnico e cultural das maiores potências mundiais e depois importar o modelo para a Rússia.

A comitiva passou longa estadia nos Países-Baixos, onde o czar, disfarçado de operário nos estaleiros de Amsterdam, espionou os métodos de construção naval que deveriam ser reproduzidos na Rússia. Daí que muitos termos náuticos da marinha russa derivam ainda hoje de nomes de origem holandesa, como, por exemplo, foi o caso de Kronshlot, ou seja, kroon slot (“Castelo da Coroa”). Já Kronstadt vem do alemão krone stadt e significa “Cidade da Coroa” ou “Cidade Real”.

Esta questão linguística não é de menor importância na Rússia se lembrarmos de que durante o século XIX a língua falada pela aristocracia russa era o francês. É bastante conhecido o fato de que na célebre “ida ao campo” os jovens narodniki não eram fluentes em russo e suas maneiras aristocráticas e ocidentalmente afetadas causaram mais desconfiança do que simpatia entre os camponeses. No início da Primeira Guerra Mundial, ao entrar em guerra contra a Alemanha, o governo russo, para atender o sentimento ufanista do clamor popular, trocou o nome germânico da ex-capital, São Petesburgo, pelo eslavo Petrogrado. No regime comunista, a partir de 1924, a cidade seria novamente renomeada, desta vez, Leningrado, em homenagem ao líder bolchevique Vladimir Lênin. Com a queda da URSS, em 1991, um plebiscito devolvia o antigo nome para a cidade.

Curiosamente, uma cidade na Romênia, Brașov, também é denominada Kronstadt, devido à sua fundação por Cavaleiros Teutônicos e colonos alemães no século XII. Em 2021, cem anos depois da rebelião dos marinheiros, o nome Kronstadt não deixa de ser uma infeliz coincidência, já que o radical da palavra remonta ao latim corona e ao grego antigo korone (compare as palavras derivadas: port. coroa; ital. cruna; ingl. crown; franc. couronne; greg. mod. koróna; finl. kruunu; russ. koróna etc.).

Quanto à pronúncia

Кронштадт /ˈkřʌnʃtat/ /ˈkřɑnʃtat/ /ˈkřɐ͂:ʃtat/ ou /ˈkřã:ʃtat/ (tentativas de transcrição fonética). A transliteração pode ser tanto Kronstadt como Kronshtadt. Os russos pronunciam do seguinte modo: [crrrânX-TÁt]. O k tem som de “k”, como em “crânio”; o r tem som de “r forte vibrante”, tal como é pronunciado em algumas regiões do sul do Brasil (ou o rrr do Galvão Bueno); o primeiro a é nasal, átono e alongado (como em “transtorno”); o segundo é aberto, oral, tônico e curto (como em “cantada”); o s tem som de “x” (chá) arrastado, tal como os portugueses e cariocas pronunciam; o primeiro t tem som de “t”, como em constar; o d é mudo, não é pronunciado; e o último t marca o fim da sílaba e quase não se pronúncia, como no inglês that.

II - Autogestão em Kronstadt, em 1917

Konstantin Tarasov, pesquisador associado ao Instituto de História de São Petersburgo.

Apesar de pequena, Kronstadt era uma cidade importante, porque era a base naval do Império Russo e onde aconteceram os eventos mais cruciais de 1917. Habitavam a ilha 50.000 pessoas, dos quais 30.000 eram soldados e marinheiros e 20 mil trabalhadores. Com o advento da Revolução de 1917, os marinheiros vermelhos se rebelaram e executaram cerca de 25 a 50 oficiais, dentre aqueles tidos por eles como os mais autoritários, e prenderam outros 500. No mês de março, trabalhadores e marinheiros organizaram o Soviete de Kronstadt, baseado na autogestão e democracia direta.

Em toda a marinha russa, não havia lugar mais rigoroso e degradante para a dignidade humana do que em Kronstadt. Por exemplo: era famosa a frase escrita na porta principal do almirantado: “Cachorros não são permitidos. Proibida a entrada de soldados rasos”. Reconhecida pela disciplina severa, o símbolo da Frota do Báltico era o almirante R. N. Viren, que fazia jus a fama. Os marinheiros o odiavam e ele foi uma das primeiras vítimas do levante de fevereiro. O almirante foi executado na Praça da Âncora, próximo à Catedral Naval, juntamente com os outros oficiais mais abominados. Todavia, não houve muitas baixas nos confrontos de rua que se seguiram pela cidade.

No calor dos acontecimentos, uma assembleia reuniu milhares de pessoas na Praça da Âncora. Todos queriam falar ao mesmo tempo, pois nunca tiveram, como agora, a oportunidade de se manifestar. Oradores desse encontro acabaram se tornando as pessoas mais influentes de Kronstadt e mesmo de toda a Rússia. Destacaram-se S. G. Roshal (bolchevique), que era um orador cauteloso, porque mais ou menos popular; A. M. Brushwit, um socialista revolucionário (SR), que procurava imitar um camponês; E. Z. Yarchuk (anarcossindicalista) e I. S. Bleikhman (anarcocomunista), ambos muito conhecidos e muito radicais. Dos dois, Bleikhman era ainda mais extremista e bastante divertido para explicar seus métodos revolucionários, o que o tornava ainda mais popular.

O levante de fevereiro instituiu um regime de auto-organização em Kronstadt logo nos primeiros dias. Foram criados comitês que elegeram seus representantes, muito embora a maioria deles não tivesse participação direta na revolução. Assim, surgiram as primeiras instituições autogestionárias organizadas através de encontros entre delegados eleitos nas fábricas e pelos militares.

Somente no dia 3 março, o governo provisório decidiu enviar um comissário, V. N. Papelyaev, a Kronstadt. O governo provisório queria pôr fim nos eventos sangrentos de fevereiro e constituir um novo poder na cidade. Porém, Papelyaev perdeu toda a sua autoridade logo nas primeiras semanas.

O comissário tentara organizar um comitê executivo coligado com os dois sovietes de Kronstadt, formado por militares e trabalhadores, respectivamente, e o “grupo da cidade”, que era um órgão representativo dos cidadãos locais. Depois de algumas semanas, Papelyaev retornou a Petrogrado a fim de reportar ao governo provisório e ao Soviete de Petrogrado o que estava acontecendo na cidade de Kronstadt. Então, durante esta semana, os dois sovietes não reconheceram o comando do comissário e reorganizaram um novo Soviete de Kronstadt, que se recusou a associar-se com o “grupo da cidade”, o qual, acreditavam, era constituído por elementos da burguesia. De fato, o “grupo da cidade” possuía conexões estreitas com a Duma recém-eleita em Petrogrado.

As principais lideranças do Soviete de Kronstadt foram os bolcheviques F. Raskolnikov e A. M. Lyubovich e o militante sem partido, A. M. Lamanov, que em breve se uniria ao partido dos maximalistas e que também tomaria parte da rebelião em 1921. Entre os principais partidos do primeiro soviete figuravam os bolcheviques; os socialistas revolucionários (SR), de cariz camponês, como eles próprios se definiam; os mencheviques; os anarquistas; e os maximalistas, sem partido. Estes últimos se constituíam como uma organização importante que só se tornou um partido no outono de 1917, quando fundaram o Partido Socialista Revolucionário Maximalista. Antes disso, organizavam-se como um movimento independente no soviete, muito embora os blocos mais importantes fossem constituídos pelos bolcheviques e o SR de esquerda, que desempenharam um importante papel durante 1917.

Em suma, nas primeiras semanas da revolução, Kronstadt não se associou ao governo provisório e se organizou através da autogestão baseada em eleições de regimentos e comitês de navios, que elegiam seus comandantes. O soviete articulou a formação de milícias responsáveis pela a segurança da cidade durante períodos de pogroms ou saques e de um poder encarregado de instaurar uma investigação sobre o papel dos 500 oficiais presos em fevereiro, apesar dos muitos esforços do governo provisório para soltá-los. Uma comissão de controle também foi eleita para exercer uma das funções mais importantes do soviete, a saber, o controle total das fábricas da cidade. Ademais, um jornal chamado Izvestiia foi fundado por Anatolii Lamanov. Segundo as memórias do comissário do governo provisório, “em maio de 1917, os ideais de Bakunin foram plenamente realizados na cidade de Kronstadt”.

“República de Kronstadt”

Como vimos, havia uma tensão entre o governo e o Soviete de Kronstadt, levando o comissário, Papelyaev, a perder todo o controle logo nas primeiras semanas da revolução. No mês de maio, valendo-se de uma resolução que determinava a nomeação do líder da cidade militar, o comissário queria escolher uma pessoa de sua confiança para a função. Porém, foi impedido pelo soviete, que alegou não ser esta competência sua, pois, segundo a resolução, o soviete era a única autoridade em Kronstadt.

Então, os jornais de Petrogrado fizeram um grande escândalo, sob a alegação de que Kronstadt organizava sua própria República e que se preparava para se separar de toda a Rússia. Claro que isso não era verdade. Mas a notícia se espalhou chamando a atenção de todos. Muitos camponeses, soldados e marinheiros foram até Kronstadt para ver com seus próprios olhos como a suposta república era governada pelo seu próprio soviete.

Em Petrogrado, o governo provisório solicitou a mediação de alguns socialistas na questão de Kronstadt, que chegaram à cidade e deram início às negociações com o soviete. Depois disso, a situação foi se agravando e ficando cada vez mais descontrolada, o que levou o Soviete de Kronstadt a aderir às “Jornadas de Julho”, empunhando a bandeira de “todo o poder aos sovietes”.

Os marinheiros entraram em confrontos nas lutas de ruas durante três dias (3, 4 e 5 de julho), mas Kronstadt terminou o mês derrotada, sem que isso significasse uma derrota moral ou ideológica. Então, os marinheiros se uniram novamente ao antigoverno e, durante uma segunda crise, o soviete elegeu seus comitês e angariou ainda mais poder do que antes. Em setembro, a Duma tentou se aproximar do Soviete de Kronstadt, que se recuou terminantemente a fazer qualquer tipo de concessão. Depois, Kronstadt participou ativamente da Revolução de Outubro, tendo tomado parte, inclusive, da invasão do Palácio de Inverno.

III - Kronstadt, a Terceira Revolução, 1921

Nick Heath, militante do Anarchist Communist Group (ACG).

Quais são as lições que podemos aprender de Kronstadt?

Kronstadt marca o fim de uma série de revoltas camponesas e greves de trabalhadores.

Examinaremos as circunstâncias que levaram à revolta e a ideia de Terceira Revolução, destinada a realizar os verdadeiros objetivos revolucionários das massas laboriosas russas. Veremos as implicações do que realmente aconteceu e como a verdade sobre Kronstadt precisa ser revelada ante os perigos do vanguardismo leninista, que ainda hoje tem um efeito tão prejudicial em nossas lutas.

Os marinheiros da base naval de Kronstadt eram um bastião revolucionário (1905) e estiveram na vanguarda da Revolução Russa de 1917. Formaram um dos primeiros sovietes no verão daquele ano, tiveram participação ativa nos eventos de outubro, tomando parte na invasão do Palácio de Inverno, e colaboraram efetivamente na defesa de Petrogrado contra o avanço branco.

No entanto, em 1921, o povo estava desiludido com o governo bolchevique, com o comunismo de guerra, a falta de liberdade de expressão, as prisões da Tcheka (a polícia política bolchevique) e a requisição brutal de grãos nas regiões camponesas do país. Diante disso, deflagrou-se no ano de 1918 um movimento grevista pelos grandes centros urbanos do país, no qual os trabalhadores reivindicavam por melhores suprimentos de alimentos. Em 1919, estoura a greve geral em Petrogrado e greves similares ocorrem também em Moscou. A greve se espalha pelos Urais. Em fevereiro de 1921, greves eclodem novamente em Petrogrado.

Em 1º. de março, os marinheiros de Kronstadt, em solidariedade ao movimento grevista, realizam reuniões em massa (15.000 pessoas) e exigem do governo a realização da seguinte pauta: eleições imediatas por voto secreto para o sovietes; liberdade de expressão e de imprensa para todos os partidos, grupos de esquerda e anarquistas; liberdade de reunião para sindicatos e organizações camponesas; abolição das agências políticas no exército e na marinha; retirada imediata de todos os esquadrões de requisição de grãos e dos bloqueios de estrada; e o restabelecimento de um mercado livre para os camponeses (Resolução do Petropavlosk). Paralelamente, os marinheiros começam a publicar o jornal Izvestiia de Kronstradt.

Em resposta, os bolcheviques denunciaram os rebeldes como agentes brancos e de fazerem parte de um complô contrarrevolucionário. Surpresos, os marinheiros transmitem a seguinte mensagem de rádio: “Camaradas operários, marinheiros e soldados vermelhos. Defendemos o poder dos sovietes e não dos partidos. Defendemos a livre representação de todos os trabalhadores. Camaradas, vocês estão sendo enganados. Em Kronstadt, o poder está nas mãos dos marinheiros revolucionários, dos soldados vermelhos e dos trabalhadores. Não está nas mãos dos Guardas Brancos, supostamente chefiados por um general Kozlovsky, como afirma a rádio de Moscou”.

Depois de negociações infrutíferas, Trotsky, o comandante do Exército Vermelho, um exército de base popular e voluntária, foi designado para intervir na situação. Trotsky, que defendia a abolição dos comitês de soldados e das eleições de oficiais, a profissionalização das forças armadas, o retorno das punições e dos castigos corporais e o fuzilamento por deserção, sendo também o responsável pela inclusão de antigos oficiais czaristas nos postos de comando sob a condição de “especialistas militares”, ordenou o ataque à fortaleza.

Seguiu-se então uma luta feroz e a revolta foi brutalmente esmagada. Victor Serge escreveu que: O ataque final foi desencadeado por Tukhachevsky, em 17 de março (...). Alguns dos rebeldes conseguiram escapar e chegar à Finlândia. Outros opuseram uma feroz resistência, palmo a palmo, forte a forte, rua a rua, e, mesmo feridos mortalmente, levantavam-se e, ao caírem, gritavam: “Viva a revolução mundial!” Centenas de prisioneiros foram levados a Petrogrado e entregues às prisões da Tcheka; meses depois, eles ainda estavam sendo fuzilados em pequenas levas, sofrendo uma agonia insana e criminosa. Esses marinheiros derrotados pertenciam de corpo e alma à Revolução; eles expressavam o sofrimento e a vontade do povo russo.

Segundo Ida Mett: Se as greves de Petrogrado exigiam a reabertura do comércio e a abolição das blitz de estradas, os rebeldes proclamavam que Kronstadt não reivindicava o livre comércio mas, sim, o genuíno poder dos soviéticos, pois sabiam que a reabertura do mercado não resolveria seus problemas.

Anton Ciliga afirmou que: A resolução do Petropovlovsk se pronunciou em defesa dos trabalhadores, não somente contra o capitalismo burocrático do Estado, mas também contra a restauração do capitalismo privado. Esta resolução propunha uma aliança entre os operários e camponeses com os setores mais empobrecidos do campo; em suma, trabalhadores proletários reivindicando que a revolução criasse o socialismo de fato. A NEP, por outro lado, era a união dos burocratas com as classes altas das cidades contra o proletariado, a aliança do capitalismo de Estado com o capital privado contra o verdadeiro socialismo.

Nos anos 30, Trotsky escreveu que os marinheiros não eram os mesmos de 1917, isto é, “o orgulho e a glória da revolução”. Argumentava que muitos dos marinheiros revolucionários de 1917 haviam tombado em combate ou sido transferidos para outro lugar e substituídos em grande parte por kulaks ou elementos alienados. Isso teria facilitado o trabalho das organizações contrarrevolucionárias que teriam cooptado Kronstadt.

Israel Getzler (Kronstadt 1917-1921: The Fate of a Soviet Democracy, 2002) investigou a questão a fundo e demonstrou que os marinheiros que serviam na Frota do Báltico em 1º. de janeiro de 1921 eram de ao menos 75,5% do pessoal recrutado antes de 1918. Getzler argumentou que os veteranos vermelhos ainda predominavam no final de 1920 e que houve uma continuidade em todos os sentidos dos movimentos de 17 e 21.

Recentemente, documentos dos arquivos soviéticos mostram que, em 7 de março de 1921, um chefe da Tcheka reportou que a grande maioria dos marinheiros da Frota do Báltico ainda eram composta pelos antigos revolucionários e poderiam, sim, ter formado a base de uma possível Terceira Revolução.

Eis, portanto, o verdadeiro sentido da Rebelião de Kronstadt, definido por eles próprios como a Terceira Revolução: o prosseguimento do processo revolucionário iniciado em 1917, por anarquistas e maximalistas, pela união de camponeses e operários, pelo verdadeiro poder dos sovietes.

IV - A rebelião de Kronstadt, 1921: identidades políticas e circulação de informação

Dmitriy Ivanov é pesquisador na Universidade Europeia de São Petersburgo.

Sem dúvida, os anarquistas também apoiaram os marinheiros na luta contra o comissariado e se fizeram presentes quando distribuíram panfletos nas fábricas de Petrogrado, chamando os operários para apoiar a rebelião de Kronstadt. Ademais, outros grupos, como os socialistas revolucionários (SR), mencheviques e ex-comunistas, desempenharam um papel relevante durante a rebelião e, de certo modo, ajudaram a reviver o espírito apartidário e revolucionário dos sovietes dos anos de 1917.

Um dos slogans de Kronstadt, “todo o poder aos sovietes, não aos partidos”, foi cunhado pela União dos Socialistas Revolucionários Maximalistas em1919, e este grupo estava muito fortemente representado entre os marinheiros da Frota do Báltico. Especificamente, alguns dos mais influentes textos, sobre os eventos de 1921, como A verdade sobre Kronstadt do Volia Rossii (1921) e do StepanPetrichenko (1925), foram publicados pela imprensa dos socialistas revolucionários (SR).

Mas os neopopulistas, isto é, socialistas revolucionários (SR) e maximalistas, que pareciam ter mantidos fortes ligações com os rebeldes refugiados na Finlândia, falharam em canalizar politicamente à rebelião de Kronstadt para si mesmos no movimento internacional revolucionário, em grande parte devido a sua frágil organização.

Já os sociais democratas mencheviques, que também estavam representados entre os líderes rebeldes e quem espalhou panfletos em Petrogrado em apoio aos insurgentes de Kronstadt, não viam no movimento uma afinidade com seus ideais e, por isso, não usaram a rebelião a seu favor na luta política.

Foram os anarquistas, no entanto, que fizeram uso político da experiência de Kronstadt, em 1922 e 1923. No início dos anos 20, a divisão na extrema esquerda do movimento internacional dos trabalhadores, entre apoiadores e oponentes dos comunistas, estava crescendo.

Os anarquistas, que haviam apoiado os bolcheviques no início, perderam toda a esperança no sistema comunista. Em janeiro de 1922, Emma Goldman (Minha desilusão na Rússia, 1923) e Alexander Berkman, um dos mais respeitados expoentes do anarquismo internacional e um dos fundadores do movimento anarquista russo, começaram sua campanha de denúncia do terror comunista contra dissidentes do partido. O Mito Bolchevique (1925), de Berkman, foi traduzido para o alemão, lituano, espanhol, holandês e francês. Outro militante anarquista, muito popular em Kronstadt nos ano de 1917, Yefin Yarchuk, também publicou sua versão da rebelião em Kronstadt na Revolução Russa (1923), traduzido para o francês, espanhol, búlgaro e inglês. Esses livros tiveram um impacto muito significativo na percepção dos eventos na Europa Ocidental e na América do Norte. O Diário de Berkman, no qual descrevia sua desilusão com os bolcheviques, foi publicado, inclusive, pela editora canadense Black Press (Kronstadt Diary: February 26 - march 19, 1921).

Goldman e Berkman utilizaram-se da repressão de Kronstadt como um exemplo da crueldade, hipocrisia e traição aos ideais da Revolução de 1917, e propuseram uma alternativa para emancipação dos trabalhadores evitando os erros do centralismo e autoritarismo. Testemunhas oculares do massacre da rebelião, Berkman e Goldman, e muitos dos seus camaradas, participaram da fundação da International Workingmen's Association (IWA), em 1922. Cem anos depois, o IWA-AIT ainda continua essa luta.

Em contraparida, para se defender da campanha dos libertários, os bolcheviques tentaram usar como propaganda favorável ao regime soviético elementos do anarcossindicalismo e ex-anarquistas que estavam alinhados ao Partido Comunista.

No contexto da Guerra Civil da Espanha o debate sobre Kronstadt ganhou novo fôlego. Trotsky escreveu um artigo de propaganda intitulado Hue and Cry Over Kronstadt ("O Clamor por Kronstadt", 1938), que acabou levando a um rompimento dramático com Victor Serge, um ex-anarquista que se aliou aos bolcheviques durante a revolução. No mesmo ano, Goldman publicou seu panfleto Trotsky Protests Too Much ("Trotsky reclama demais",1938), confessando que, durante a guerra civil na Rússia, quase todos os anarquistas apoiaram os bolcheviques, ainda que conscientes da implosão iminente da revolução, mas nem por isso o ex-chefe do Exército Vermelho estava isento do totalitarismo stalinista, pois o processo de exclusão das massas trabalhadoras havia começado quase imediatamente a tomado do poder por Lênin e seu partido. Na guerra das narrativas, John G. Wright publicou seu texto A verdade sobre Kronstadt (The Truth about Kronstadt – fevereiro de 1938), em defesa de Trotsky.

A Comuna de Kronstadt (The Kronstadt Commune - 1938) de Ida Mett também estava inserido na discussão de 38, embora tenha sido publicado tardiamente, em 1948. Mett fez um bom uso dos jornais publicados pelos emigrados russos, mas muito do material que ela utilizou no livro proveio da série de artigos intitulados O motim de Kronstadt de 1921 (Kronshtadtskü miatezh v 1921, 1931), de autoria de um stalinista, Alexey Pukhov, que era intelectualmente mais honesto que os líderes bolcheviques de 1921. Já A Revolta de Kronstadt (1942), de Anton Ciliga, é um excelente relato das questões mais fundamentais do levante de Kronstadt.

Mais tarde, historiadores simpáticos ao anarquismo causaram constrangimento, por trazerem para o debate algumas questões inconvenientes para os libertários. No prefácio do livro de Ida Mett da edição francesa de 1967, Maurice Brinton teceu considerações que certamente desagradariam a autora. Segundo Brinton: Nas Memórias de um Revolucionário, de Victor Serge, há um capítulo dedicado a Kronstadt. O texto de Serge é particularmente interessante porque o autor estava em Leningrado em 1921 e apoiava os bolcheviques na questão de Kronstadt, embora com certa relutância. No entanto, Serge não se utiliza de calúnias e distorções, como fizeram importantes membros do partido. O livro lança luz sobre o estado de espírito quase esquizofrênico das bases do partido durante aquela época. Por diferentes razões, nem trotskistas nem anarquistas o perdoariam, pois Serge buscava conciliar o que havia de melhor nas respectivas doutrinas: a preocupação com a realidade, dos primeiros, e a preocupação com os princípios, dos segundos. Já em Kronstadt, 1921 (1ª. edição, 1970), Paul Avrich traz à tona o Memorando Secreto e revela evidências da tentativa de cooptação da rebelião por parte dos contrarrevolucionários e da ligação tardia de Petrichenko com os emigrados russos.

Para encerrar, seria importante esclarecer que, apesar de todas as controvérsias, o conceito de democracia em 1917 e 1921 não era evidentemente o conceito liberal; para os rebeldes, portanto, democracia era o governo dos trabalhadores.

V - Kronstadt e o movimento de trabalhadores em Moscou e Petrogrado, 1921

Simon Pirani é professor honorário da Universidade de Durham.

Para começar, gostaria de dizer um pouco sobre o que me levou a pesquisar este assunto. Primeiro, visitei a Rússia em 1990, antes do colapso da URSS. Na ocasião, queria saber mais sobre os maiores protestos da classe trabalhadora desde os anos de 1920. Eu era trotskista e militava no movimento dos trabalhadores do Reino Unido. A luta dos trabalhadores do leste europeu e da URSS sempre nos inspirou muito, mas o contato com eles sempre tinha sido difícil, por vezes impossível. No final dos anos 80, um encontro que tive com socialistas russos e ucranianos forçou-me a repensar o que sabíamos sobre a Revolução Russa. Logo percebi que a versão dos trotskistas que as coisas estavam indo na direção certa até Stalin tomar o poder em meados dos anos 20 era simplista e errada. Nos anos 2000, trabalhei nos arquivos soviéticos lendo minutas de relatórios secretos relativos aos encontros de trabalhadores nas fábricas e outros documentos oficiais, material este que forneceu a base do meu livro The Russian Revolution in Retreat, 1920–24: Soviet Workers and the New Communist Elite (London: Routledge, 2008 - não há edição em português).

Após a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, iniciou-se o período da guerra civil. Em 1920, os brancos foram amplamente derrotados e o povo estava ansioso por saber que tipo de sociedade surgiria em tempos de paz.  Mas havia uma forte opinião entre os bolcheviques de que os métodos militares e compulsórios de confisco de alimentos, para atender as necessidades de alimentação das populações urbanas e do exército no front, e que venceram a guerra civil, podiam continuar. Esta ideia estava por trás da tentativa fracassada em maio de 1920 de expandir a revolução para o Ocidente, inicialmente, por meio de um ataque à Polônia, sustentado pela continuidade das medidas de requisição de grãos dos camponeses. Tal política, no entanto, havia levado a um grande número de violentas revoltas camponesas. No inverno de 1920 para 1921, a política de confisco de alimentos, combinada às blitz de estradas, suscitou a fome entre a população e, por seu turno, exacerbou o descontentamento entre os trabalhadores urbanos que deveriam ser a principal base de apoio do governo. Tal insatisfação ocasionou uma onda de greves em fevereiro de 1921 - que acabou por criar uma ponte entre grevistas e camponeses. Embora o povo da cidade formava uma pequena minoria, menos de um quinto do total da população russa, muitos dos trabalhadores urbanos pertenciam a primeira ou a segunda geração de migrantes oriundos do campo. Portanto, mantinham laços fortes com o campo e, frequentemente, retornavam aos seus vilarejos de origem quando escasseava a comida durante a guerra civil.

Diante disso, os bolcheviques, por outro lado, passaram a denunciar os trabalhadores que não estavam de acordo com suas políticas, acusando-os de camponeses de mentalidade pequena burguesa. Na realidade, a maioria dos trabalhadores, pró ou antibolchevique, era solidária aos camponeses, até mesmo pela proximidade que tinham com a vida rural. Então, os protestos contra o governo realizados pelos movimentos de trabalhadores das maiores cidades industriais, Moscou e Petrogrado, ganharam impulso durante janeiro e fevereiro de 1921, com reuniões massivas e greves. Em Moscou, grande parte da força de trabalho, no caso, quase toda formada por mulheres, parou de trabalhar e marchou através dos distritos industriais chamando outros operários para se juntarem ao movimento, que se transformou numa escalada de greves durante muitos dias. A paralisação atingiu toda a indústria têxtil ao redor de Moscou. Em Petrogrado, os trabalhadores também se manifestaram e pararam por uma semana. Durante a rebelião de Kronstadt, iniciada no 1º. de março, ocorreu, por exemplo, uma greve geral em Saratov, no dia 4 de março, na qual os trabalhadores demonstraram simpatia para com os marinheiros e protestaram contra a repressão. Entretanto, não existia uma coordenação entre os rebeldes de Kronstadt e os movimentos grevistas, que apareciam um após o outro e sem qualquer articulação.

As demandas do movimento de trabalhadores abrangiam tanto o aspecto econômico quanto o político. As demandas econômicas reivindicavam fundamentalmente o fim do sistema compulsório do comunismo de guerra, posto em prática durante a guerra civil. Havia uma grande queixa por liberdade de locomoção por parte dos trabalhadores de Petrogrado que, em tempos de desespero, adotavam estratégias individuais de sobrevivência, como retornar para suas as cidades de origem ou mesmo roubar produtos do local de trabalho para vendê-los ou trocá-los por comida. Por isso, no grande complexo fabril de Moscou, as massas aprovaram uma resolução contra a rígida disciplina que condenava os trabalhadores a um estado de carência total. Assembleias de operários também pediam o fim das requisições compulsórias de grãos e a liberdade para comprar dos camponeses o trigo que seria confiscado. Em fevereiro, em um grande encontro de delegados da metalurgia de Moscou, as demandas não somente exigiam o fim das requisições mas também a sua substituição por um tipo de taxa. Um mês depois, o governo adotou exatamente essa mesma política, marcando o fim do então chamado comunismo de guerra e o início da Nova Política Econômica (NEP).

Realmente, os bolcheviques fizeram algumas concessões, mas algumas exigências econômicas expressavam, no fundo, demandas políticas. Uma reivindicação muito popular, também em Kronstadt, era a equalização das rações de primeira necessidade, que eram racionadas e divididas de modo desigual. Algumas pessoas de posição oficial no governo ou no partido bolchevique e que supervisionavam as fábricas se utilizavam da corrupção para obter mais rações. Obviamente, a demanda por igualdade na divisão de rações fazia alvo certeiro o estado burocrático que se consolidava. Era uma forma de atingir politicamente a embrionária burocracia. Contra o Estado ditatorial, os operários clamavam por liberdade de expressão e, se os ativistas eram presos, seus colegas muito frequentemente cruzavam os braços e paravam a produção. Outra demanda política muito comum era o clamor por novas eleições nos sovietes. Os sovietes que, foram fóruns ativos em 1917, muito frequentemente pararam de funcionar durante a guerra civil.

Essas demandas foram elaboradas mais detalhadamente em Kronstadt no intercurso da rebelião e havia provocado uma inquietação crescente na burocracia e nas fileiras do partido bolchevique, que não era homogêneo. Havia uma variedade de facções de oposição, dentre as mais conhecidas a Oposição Operária e o Centralismo Democrático, que também manifestavam descontentamento com as políticas implantadas pelo governo. No X Congresso do Partido, celebrado durante a rebelião de Kronstadt, estas facções foram banidas.

Enquanto a rebelião dos marinheiros era finalmente suprimida com execuções e prisões, o governo conscientemente tentou impor um limite na repressão ao movimento dos trabalhadores, para evitar uma intensificação da muito disseminada dissensão no país. Esta aproximação envolvia, no entanto, a destruição do que ainda restava de uma perspectiva democrática nos sovietes. Em maio de 1921, as demandas por novas eleições nos sovietes foram parcialmente atendidas. Mesmo assim, muitos grupos de oposição de esquerda, inclusive ex-bolcheviques e não-bolcheviques, tais como socialistas revolucionários de esquerda, anarquistas e muitos trabalhadores não partidários, estavam sujeitos a mais severa repressão do Estado. Mas os apartidários se posicionaram contra os bolcheviques em todas as grandes fábricas de Moscou e venceram em quase todos os casos. Isso levou vários anos até que estas ilhas de independência da classe trabalhadora foram, enfim, sufocadas.

Conclusões: 1º.) A revolta de Kronstadt foi um evento isolado, apesar das reivindicações dos marinheiros, no que concernia à democracia nos sovietes, coincidirem com as demandas dos trabalhadores das fábricas. 2º.) Os bolcheviques acreditavam que seu governo estava em risco, assim como seus inimigos contrarrevolucionários brancos; mas nós podemos observar, como historiadores, que aquele risco não era tão grande assim e que não havia coordenação entre as greves e os protestos dos trabalhadores com a revolta dos marinheiros. O que muitos destes trabalhadores estavam buscando era essencialmente a reforma do sistema soviético ao invés de objetivarem uma revolução. Eu sou cético quanto à viabilidade da Terceira Revolução, penso que seria necessário refletir mais sobre o que ela significa nesse contexto. 3º.) As condições para construção de algum tipo de sociedade socialista na Rússia, em 1921, eram realmente muito ruins, a economia tinha colapsado depois da guerra e, apesar de toda esperança, a revolução não tinha se espalhado para a Alemanha e outros países industrializados. No entanto, a despeito de que, naquelas terríveis condições, trabalhadores e marinheiros lutassem pela restauração e desenvolvimento da democracia nos sovietes, depois da guerra civil, isso poderia ter um alcance mais restrito e fortalecido o enfrentamento a hierarquia e exploração na sociedade soviética, que estava gestando a ditadura burocrática bolchevique. Mas aquelas forças bolcheviques optaram por reprimir os marinheiros para, em seguida, oprimir cinicamente os trabalhadores que protestavam contra os desmandos arbitrários do governo, e isto era profundamente, talvez, fatalmente perigoso para o projeto verdadeiramente revolucionário e o legado ideológico para as esquerdas na posteridade. A ideia de que o autoritarismo e a repressão eram de algum modo inevitável ou justificável nas revoluções maculou o legado do socialismo durante o século XX e, nesse sentido, Kronstadt foi realmente trágico.

VI - O Levante de Kronstadt (1921) como uma fase da Grande Revolução Russa

Alexei Gusev é professor de história e vice-diretor do Departamento de Historia dos Movimentos Sociais e Partidos Políticos da Faculdade de História na Universidade Estadual de Moscou (Lomonosov). Ele também é presidente do Centro de Pesquisa da Práxis e Educação de Moscou.

No início dos anos 90, o ex-presidente Boris Yeltsin prometeu erguer um monumento em homenagem aos rebeldes de Kronstadt. Porém, nunca nada foi feito realmente e, em pleno ano de 2021, cem anos depois da revolta, não existe sequer uma placa em memória aos marinheiros da Frota do Bático. Na Rússia, nós temos os mais diversos monumentos, nós temos monumentos para tudo, desde Alexander Nevsky ao crítico literário Belinsky, do compositor Rachmaninoff ao escritor Dostoevsky, passando pelos líderes bolcheviques, Lênin, Trotsky e Stálin, até Karl Marx, Engels etc. Mas a narrativa oficial reduz a Revolução de 1917 e a Guerra Civil a um conflito entre vermelhos e brancos, entre Lênin e Denikin. O Levante de Kronstadt não existe nessa narrativa e mesmo alguns sites especializados em história classificam os rebeldes de Kronstadt como brancos. Esta narrativa oficial não considera nenhuma terceira força e é tarefa dos historiadores demonstrar que havia outros elementos no tabuleiro, não apenas em Kronstadt, mas também os Verdes [1], o movimento anarquista etc. Essa tarefa está ainda por ser feita na historiografia russa e mesmo na opinião pública em geral.

A natureza do levante de Kronstadt de 1921 pode ser definida como o começo da Terceira Revolução na Rússia. A primeira revolução de fevereiro de 1917 pôs fim ao governo do czar, dos proprietários de terra e dos oficiais imperiais. A segunda revolução, em outubro do mesmo ano, desbaratou o governo da burguesia. A terceira revolução, lançada pelos kronstadtinos, visava a comissiocracia bolchevique, a burocracia comunista e, portanto, a farsa do suposto governo dos trabalhadores. O que o movimento de 8 de março de 1921 significava era o despertar de todos os trabalhadores do Ocidente e do Oriente para o autêntico socialismo. Um primeiro olhar na resolução dos revoltosos da base naval pode parecer que ela transmite um tom de ingenuidade se levássemos em conta que o movimento pretendia iniciar uma revolução. Mas, ao analisar o conteúdo histórico do levante, o seu significado real merece algumas considerações a respeito.

Se nós entendermos uma revolução como um processo de transformação radical, fomentado pela influência das massas populares e envolvendo mudanças do regime político, então os eventos na Rússia de fevereiro de 1917 a 1922 se ajustam ao nosso entendimento e, além disso, encontram similaridade com a Grande Revolução Francesa do século XVIII, a qual também durou vários anos. Tal qual sua congênere francesa, a Grande Revolução Russa consistiu-se de várias fases e estava orientada para a resolução de um grande número de problemas chave e contraditórios da modernização social na Rússia, notadamente, a questão da terra – a distribuição de terras para os camponeses – e a questão política – a concessão de direitos à população. Em suma, terra e liberdade.

A revolução russa envolveu a confrontação de várias forças sociais e políticas que culminaram na guerra civil até a estabilização do novo regime político bolchevique. Assim, com base na solução parcial da distribuição da terra e na secessão das estruturas sociais no seio da Grande Revolução Russa é que podemos definir as várias fases principais do processo revolucionário em tela. A primeira fase, fevereiro-março, de 1917, não resolveu a questão da terra, tampouco a questão política. A segunda, outubro de 1917, formalmente deu terra aos camponeses, mas muito cedo os bolcheviques ou comunistas instituíram o comunismo de guerra: política pela qual, de um lado, determinava a requisição obrigatória da produção agrícola e, do outro, submetia camponeses e operários a um estrito controle burocrático. No lugar do proclamado poder dos sovietes sobreveio o autoritarismo e a ditadura do Partido Comunista. Portanto, a questão chave da Grande Revolução Russa permaneceu irresoluta também na terceira fase. Esta fase é marcada por um confronto em grande escala, configurado pela guerra civil, cujos efeitos conduziram a revolução para a sua quarta fase, caracterizada por um novo período de insurgência revolucionária no fim de 1920 ao verão de 1921.

O ponto alto desse período foi o Levante de Kronstadt, em março de 1921, que estava estritamente relacionado com a guerra camponesa na Rússia, iniciada no inverno de 1920-21 e provocada pela política de confisco de toda a produção de grãos. Na primavera de 1921, 165 grupos, com mais de 100 000 combatentes atuando em todo o território do país, insurgiram-se contra o controle do governo de Moscou. Além disso, havia distúrbios e protestos dos movimentos de trabalhadores em todos os principais centros industriais da Rússia. Os operários entraram em greve e parte substancial dos protestos implicavam demandas políticas necessárias. Em fevereiro de 1921, uma onda de greves assolou Moscou e Petrogrado, causando diretamente o levante de Kronstadt. Ademais, toda uma série de protestos, incluindo motins, tomou lugar no Exército Vermelho.

Assim sendo, conforme o ponto de vista da teoria política, a situação do início de 1921 poderia ser categoricamente descrita como uma conjuntura revolucionária. A noção de conjuntura revolucionária é bastante conhecida na interpretação de Vladimir Lênin, que, aparentemente, tomou emprestada do escritor e historiador liberal francês, do século XIX, Alex de Tocqueville. Lênin definiu a conjuntura revolucionária como uma crise geral em que o sofrimento das massas populares cresce mais do que o usual e as classes baixas insatisfeitas não querem mais viver como no antigo regime. Realmente, estas características estavam definitivamente presente em 1921! Modernas teorias concernentes à conjuntura revolucionária desenvolvida por autores como Charles Tilly, Olivia Stiles, Michel Dobry seguem, grosso modo, a mesma dinâmica lógica. Primeiro, uma onda de protestos envolve uma porcentagem significante da população e resulta em grandes coalizões entre classes sociais que desencadeiam um movimento crescente e generalizado. No caso de Kronstadt, houve uma aliança objetiva entre camponeses, operários e parte das forças armadas, que universalizou as demandas básicas das massas revoltosas em três espécies de liberdade: a) liberdade de trabalho, b) liberdade de comércio e c) liberdade política. A questão política, na maioria das vezes, pleiteava por eleições livres para os sovietes, mas também, em alguns casos, a restauração de toda democracia e até uma nova assembleia constituinte.

A segunda característica da conjuntura revolucionária se configura como uma crise no interior da elite governante, que é incapaz de governar no modo antigo. Também isto ocorreu em 1921. O governo do partido bolchevique naquele tempo experimentou uma profunda crise entre as tendências que tinham consciência de que a política do comunismo de guerra levara o país a um desastre social. As tentativas para encontrar um jeito de sair da crise suscitaram uma amarga discussão nos sindicatos que dividiu o Partido Comunista em facções rivais internas e lutas intestinas que respingaram também nos filiados do partido na Frota do Báltico. Em Kronstadt, a agremiação foi perdendo credibilidade entre os marinheiros comunistas a tal pondo de criarem uma corrente dissidente no partido: a Oposição da Frota. Ao mesmo tempo, outros marinheiros começaram a deixar em massa o partido bolchevique e, antes do início do levante, cerca de 40% dos filiados de Kronstadt abandonaram o Partido Comunista. No curso da revolta, somente um terço permaneceu ainda afiliado. Ademais, muitos dos líderes do Comitê Revolucionário de Kronstadt foram membros do partido, inclusive Petritchenko, e por isso justificavam a rebelião como uma luta para ressuscitar os lemas do início, nunca realizados após a conquista do poder político que se encaminhava para uma ditadura.

Aqui eu penso que nós podemos traçar um paralelo com o motim naval de Kiel no contexto da Revolução Alemã de novembro de 1918 e do Encouraçado Potemkin no Mar Negro, em junho de 1905. Kronstadt também foi um reflexo da conjuntura que poderia ter gerado uma radicalização ainda maior no processo revolucionário. O levante tinha potencial para uma mudança radical da situação política. Nesse sentido, Kronstadt foi o culminar de uma vasta resistência operária-camponesa que se posicionou tanto contra os reacionários brancos (liderados pelos generais Kolchak, Denikin, Wrangel) como contra os bolcheviques (Lênin, Trotsky, Kalinin, Zinoviev).

Se Kronstadt resistisse como um território da Terceira Revolução, poderia se constituir de fato como um centro de coalizão de várias forças políticas. Por exemplo, só o exército camponês mais importante daquele tempo reunia, somente na região do Tambov, sob liderança de Alexander Antonov, 50 000 combatentes, e no oeste da Sibéria 100 000. Mas alguém poderia objetar que havia o problema de falta de abastecimento nos armazéns de Kronstadt. Quanto a isso, os rebeldes poderiam ter sido providos pela Finlândia, apesar de, no início, recusarem a mediação dos emigrados russos, notadamente, os socialistas revolucionários. Ademais, caso o gelo derretesse, Kronstadt seria inexpugnável e impossível de ser tomada, o que poderia mudar radicalmente a situação.

O próprio Exército Vermelho não estava imune à influência de Kronstadt. Nós sabemos que houve dois assaltos à fortaleza, o primeiro ocorreu no dia de abertura do X Congresso do Partido Comunista, no dia 8 de março de 1921. Como sabemos também, o assalto falhou por causa dos soldados do Exército Vermelho que não queriam lutar contra os marinheiros. Na ocasião, foi reportado que alguns dos soldados pararam quando viram a bandeira vermelha tremulando sobre Kronstadt. Surpresos, indagaram: O que é isso? Disseram-nos que Kronstadt estava nas mãos dos generais e colaboradores brancos, mas vejam a bandeira vermelha, fomos enganados por nosso comissário! Diante da deserção de muitos soldados, as troikas extraordinárias, isto é, cortes instruídas por três pessoas investidas de poderes extraordinários, condenaram ao fuzilamento 100 soldados do Exército Vermelho em apenas dois dias, fato que atemorizou os demais e os empurrou para o ataque a Kronstadt. Então era muito séria a crise no próprio aparato de segurança bolchevique e se a rebelião de Kronstadt prosseguisse a instabilidade social poderia ter sido agravada mais e mais.

Sobre a questão da continuidade da Comuna de Kronstadt de 1917 e do levante de 1921, é muito interessante porque no final dos anos de 1930 houve uma discussão entre anarquistas e comunistas sobre a rebelião. Trotsky argumentou em um artigo que a frota de 21 era completamente diferente da de 17, que os novos marinheiros foram recrutados nos vilarejos rurais, que eram kulaks etc. Quanto ao “Orgulho e Glória da Revolução”, em grande parte foram mortos no front de batalha durante a guerra civil. Isso, claro, não é verdade. A rebelião teve início e foi idealizada nos encouraçados Sebastopol e Petropavlovsk, cuja tripulação não havia mudado muito desde 1917. Os mesmos velhos marinheiros que participaram dos eventos de 1917 eram a vanguarda da rebelião de Kronstadt, sendo que a maioria deles participou de outubro e apoiou os bolcheviques. Claro que uma parte minoritária era realmente formada por novos recrutas, principalmente, do sul da Rússia e da Ucrânia. Mas a rebelião produziu uma síntese das duas partes, os antigos marinheiros da revolução e os novos de maioria camponesa que relatavam para os mais velhos o descontentamento e as agruras sofridas no campo.

Sob tais pressupostos, seria então muito difícil impedir a difusão do levante para fora da ilha de Kotlin quando o degelo da primavera impossibilitasse a tomada de assalto de Kronstadt. E isso era iminente. As condições para uma união entre o movimento dos marinheiros da Frota do Báltico, as greves dos trabalhadores e as insurreições no campo estavam formadas, constituindo um elemento potencialmente transformador do regime político na Rússia. A Terceira Revolução poderia ter mudado o regime político, resolvido a questão agrária e permitido uma transição plena para o controle operário através da democracia direta nos sovietes, ou seja, as duas questões mais fundamentais da Grande Revolução Russa.

Quanto à derrota dos marinheiros de Kronstadt, esta se deve a vários fatores, dentre os quais a espontaneidade da rebelião, forjada sem nenhuma organização ou preparação; as táticas defensivas dos rebeldes, que por tão longo tempo acreditaram na boa-fé dos líderes do Partido Comunista; e as prisões efetuadas pela Tcheca, que neutralizaram as forças políticas que teriam apoiado a rebelião em Petrogrado. Apesar da derrota, no entanto, o levante de Kronstadt - juntamente com outros movimentos populares - forçou os bolchevique a pôr termo no odiado comunismo de guerra e a Nova Política Econômica (NEP) fez muitas concessões aos camponeses, principalmente, a partir do novo Código Agrário de 1922. Isso melhorou a situação e levou ao declínio dos protestos de massa após Kronstadt. Assim, a Grande Revolução Russa entrou em sua fase final, os movimentos insurgentes no campo foram suprimidos em grande escala e a luta dos trabalhadores enfraqueceu.

Portanto, a Grande Revolução Russa chegou ao fim sem resolver totalmente suas grandes questões essenciais; a maior parte da população camponesa russa não teve garantias políticas, concomitantemente com a liberalização da economia, e a ditadura do regime político do Partido Comunista foi ainda mais endurecida. Os líderes do governo passaram a temer o que chamavam de “o espírito de Kronstadt” e, por conseguinte, novos levantes. E, assim, foram proibidas as tendências de oposição dentro o Partido Comunista, resultando em novas contradições e crises que poriam em cheque o regime no futuro.

[Nota 1: Exército Verde ou Terceira Força eram organizações de autodefesa muito poderosa formada por camponesas e desertores do Exército Vermelho e Branco - N. do blog].

VII – Teses sobre 1917: comunismo de guerra ou acumulação primitiva?

Jean Fecaloma

1) É equivocado interpretar a rebelião de Kronstadt como um conflito entre anarquistas e comunistas (socialdemocracia alemã). A verdade é que estas correntes eram ocidentalistas e pouco representativas da realidade russa. A história da Rússia pode ser descrita como um movimento pendular de abertura e fechamento para o Ocidente. Daí que, no século XIX, os russos conceberam e adaptaram sua própria ideia de socialismo à realidade agrária e culturalmente singular do país. Conhecido como narodnik ou, literalmente, “populismo”, o movimento socialista russo era bastante amplo e pouco sistemático e comportava tendências tão avançadas como o fourierismo de Tchernichevsky (O que fazer?) até o conservadorismo cristão ortodoxo de Tolstoi. (Em que medida o anarquismo de Bakunin ou Kropotkin influenciou o movimento narodnik – e certamente houve alguma influência – é algo a ser discutido). No início do século XX, os sociais revolucionários (SR) e maximalistas apareceram como descendentes diretos dos populistas e, por isso, gozavam de maior afinidade e simpatia popular, tanto que, nas eleições para a Assembleia Constituinte de novembro de 1917, alcançaram 58% das cadeiras, enquanto os bolcheviques 25%, os mencheviques 4% e os liberais 13%. Por ser um movimento autóctone e, obviamente, não dispor de interlocutores no estrangeiro, o movimento desapareceu sob o governo do partido único. A Rebelião de Kronstadt foi, por uma parte, exportada simbolicamente para o oeste, onde foi objeto da disputa entre anarquistas e comunistas, enquanto, por outra parte, foi tratada internamente pelos soviéticos como um conflito entre vermelhos e brancos.

2) Em dezembro de 1920, a guerra civil chegava ao fim e não havia mais nenhum interesse das nações aliadas, com exceção da França, de intervir na política interna da Rússia. Mesmo o governo francês, como vimos em Paul Avrich, demonstrou pouco empenho em ajudar os emigrados russos que tentavam manipular a rebelião de Kronstadt em benefício próprio. Por outro lado, as medidas do comunismo de guerra conduziram a Rússia Soviética a uma situação pré-revolucionária que ameaçava a existência do próprio governo, não de cima, pelos agentes das nações imperialistas, mas de baixo, pela mobilização das massas operárias e camponesas. A partir de então, o Kremlin deflagrou uma guerra implacável contra os grupos refratários, ao ponto de, na região do Tambov, o exército efetuar um ataque inaudito de gás tóxico, apenas ensaiado em Kronstadt, contra uma população natural da própria Rússia. Portanto, para consolidar o poder político, após vencer a ameaça externa, os bolcheviques passaram a eliminar as contradições internas, encarnadas justamente pela classe trabalhadora, por meio de um despótico movimento centrípeto que se assemelhou em muito a formação do absolutismo czarista: “Os grandes acontecimentos do século XVII, que pontuaram a decadência da Zemsky Sobor e da Duma boiarda, não foram revoltas separatistas dos nobres, mas as guerras camponesas de Bolotnikov e Razin, os motins urbanos dos artesões de Moscou, os surtos de turbulência cossaca ao longo do Dnieper e do Don” (ANDERSON, Perry. “Linhagens do Estado Absolutista”, São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 230).

3) É provável que o aniquilamento da rebelião de Kronstadt tenha sido uma ação deliberada e premeditada pelos líderes bolcheviques. No X Congresso do Partido, que se sucedeu no curso da rebelião, todas as correntes dissidentes do partido foram proibidas, sinalizando uma centralização do poder que não admitia o contraditório. Neste sentido, os líderes do partido podem ter usado o motim dos marinheiros como pretexto para suprimi-los, tendo em vista o histórico de independência e indisciplina da Frota do Báltico, que sempre seria visto como fator de instabilidade. A NEP, que poderia ter sido colocada na mesa de negociação com os rebeldes e pacificado o conflito, foi aprovada somente no decorrer do motim; porém, um programa dessa envergadura não seria preparado do dia para a noite, mesmo porque, desde o fim da guerra civil, o governo já havia criado, em 22 de fevereiro, o Comitê Estatal de Planejamento (Gosplan), a fim de coordenar o desenvolvimento econômico planificado no país. Vimos, em Paul Avrich, que, depois da repressão, Lênin tencionou extinguir a frota mas foi convencido por Trotsky a mantê-la em rédeas curtas, com o aparelhamento da base naval por elementos comunistas fiéis ao partido. Certamente, uma questão tão delicada como exterminar combatentes que foram glorificados pela revolução e estiveram desde o início lado a lado com os bolcheviques não poderia deixar digitais, pistas, despachos ou assinaturas. Deveria ser feito secretamente a portas fechadas por um pequeno grupo de dirigentes seletos e referendado por um auditório facilmente manipulável. Isso não seria algo inédito, a execução da família real foi atribuída a uma decisão unilateral do Soviete dos Urais, como se uma resolução de tamanha monta coubesse à autonomia decisória de um pequeno grupo periférico subordinado ao centro do poder e sem passar pela direção do partido.

4) “Pão! É preciso pão para a Revolução! Que outros se ocupem em lançar circulares com frases bombásticas! Que outros declamem sobre liberdades políticas!...” (Kropotkin).

Logo após o fim da revolta de Kronstadt grassou por todo o território russo um longo período de fome em massa, conhecido como a “fome de Povoljie”, que durou até 1922, e atingiu 90 milhões de pessoas, ceifando a vida de mais de 5 milhões de vítimas. A Rússia, que outrora ocupava a posição de maior produtor de cereal do mundo e a primeira em termos de volume total de produtos agrícolas, passou a enfrentar uma terrível crise de abastecimento devido à guerra civil, às condições climáticas desfavoráveis em algumas regiões e, principalmente, às requisições compulsórias em larga escala do excedente rural, muito embora não cessassem as exportações de grãos para o mercado internacional durante todo o período. A escassez de alimentos levou a uma calamidade social. Desesperadas as pessoas andavam a esmo, errantes, a procura de comida, e, para matar a fome, roíam casca de árvores, devoravam carniça e não foram raros os episódios de canibalismo (de onde surgiu a expressão “comunista come criancinha”). Dez anos depois, o processo de coletivização forçada de Stálin e a perseguição aos kulaks, na então URSS, produziu um novo período de fome, desta vez, vitimando um número ainda maior: 8 milhões de pessoas.

5) Karl Marx, ao investigar as origens do modo de produção capitalista, em sua obra máxima O Capital, postulou que não há capitalismo sem o seu pecado original: a acumulação primitiva. Grosso modo, a acumulação primitiva pode ser definida como a acumulação de riqueza (ou capital) sem passar pela produção – ou, sem meias palavras: roubo, simplesmente. Dentre todos os elementos históricos elencados pelo conceito, o mais importante é o da liberação do trabalho de seus meios de produção e, por corolário, da formação do proletariado urbano. Trata-se de um fenômeno iniciado na Idade Média, mas que atinge seu ápice na Inglaterra do século XVI, quando os senhores feudais começam a expulsar violentamente as famílias camponesas de suas casas e apoderar-se de suas terras, para transformá-las em pastos de ovelha, no processo histórico conhecido como “cercamentos” (enclosures). Sem ter como sobreviver, grandes levas de trabalhadores expropriados marcham para as cidades onde serão incorporados como assalariados na industrialização nascente.

Cabe-se perguntar até que ponto a expropriação camponesa na forma do comunismo de guerra e das fazendas estatais (kolkhozes e sovkhozes) constituíram um processo de acumulação primitiva em grande escada promovido pela ação do Estado. As antigas tradições do campesinato russo foram destruídas, os trabalhadores passaram a receber um salário (em espécie) e muitos camponeses migraram para as cidades onde foram compor a força motriz do desenvolvimento industrial do país.

6) O paradoxo do socialismo. De todas as teorias filosóficas o socialismo é a doutrina mais humanista. Privar ou dispor do destino da vida de alguém em nome de uma razão de Estado ou impor o aparato “impessoal” e monstruoso do Estado contra qualquer pessoa, como foi procedido pelo governo bolchevique, não é apenas igualar em hipocrisia às democracias liberais eurocêntricas, mas também negar a essência do socialismo e afirmar sua total impossibilidade. Bakunin soube colocar o problema de fundo ético melhor do que ninguém quando afirmou que, enquanto ainda existir um só escravo no mundo, nunca haverá de fato liberdade. Kronstadt poderia ter caído nas mãos dos brancos, mas nada indica que isso colocaria o governo em cheque ou que, ainda assim, os protestos de massa por todo país fossem mais inofensivos. Ao oprimir os marinheiros de Kronstadt, fuzilar soldados que não queriam lutar contra seus camaradas, condenar dissidentes a campos de concentração, os bolcheviques cruzaram a linha do humanismo e aniquilaram o sonho de um mundo melhor, justo e igualitário, que o socialismo ousou conceber para toda humanidade.

7) Excetuando as comunidades primitivas, nunca houve na história da humanidade uma civilização socialista. A Revolução Russa de 1917 - e a Chinesa também - seria muito melhor caracterizada como uma revolução burguesa, tal como ocorreu muito antes na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. Longe de instituir o comunismo, a ditadura do proletariado foi o principal agente do desenvolvimento capitalista e da formação do Estado moderno na Rússia.

A única experiência social que mais se aproximou do ideal socialista foram as coletividades libertárias - muitas vezes, coorganizadas pela CNT-FAI - durante a Revolução Espanhola de 1936. Mais importante do que a Comuna de Paris, o processo de coletivização espontâneas na Espanha não tem merecido a atenção devida por parte dos estudiosos e mesmo dos anarquistas, apesar de todo o seu potencial transformador único e sem precedente na história contemporânea. As coletividades agrárias foram um fenômeno de grandes proporções que surgiu espontaneamente em todas as províncias da Espanha livre, abrangendo cerca de 400 comunidades em Aragão, 900 no Levante e 300 em Castela, onde o povo participava ativa e massivamente nas assembleias regulares (semanais, quinzenais ou mensais) para decidir sobre tudo o que se referia à vida produtiva e cotidiana. Embora não tão bem sucedida, também a indústria vivenciou um processo de coletivização realizada pelo controle de trabalhadores sindicalizados.

8)  Como já escrevi em outro lugar, lamentavelmente, o site Wikipédia vem propagando informações falsas ao atribuir ao líder da Rebelião de Kronstadt, Stepan Petrichenko, uma filiação ideológica ligada ao anarcossindicalismo. A fonte de tal informação é o artigo polonês “Naissaar: the Estonian “Island of Women” Once an Independent Socialist Republic” (Sowiecka Republika Wyspy Naissaar), de autoria de um certo Kazimierz Popławski. Não carecendo de qualquer referência bibliográfica, o artigo não merece qualquer credibilidade. Provavelmente, o autor confunde Petritchenko com Elfim Yarchuk, a ilha de Kotlin (Kronstadt) com a ilha de Naissar, a suposta “República de Naissar” com as notícias inverídicas de jornal sobre a “República de Kronstadt” e a Comuna de Kronstadt de 1917 com a Rebelião de Kronstadt de 1921.

Planeta Terra, 21 de dezembro de 2021

Jean Fecaloma

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Socialistas e Anarquistas, por Malatesta

Malatesta e Kronstadt 1921

Socialistas e Anarquistas: a Diferença Essencial

Umanità Nova, 1921

Alguns buscam explicar a cisão entre socialistas e anarquistas por uma única dissensão. Os socialistas seriam acusados de querer de querer avançar demasiado lento, enquanto os anarquistas, sofrendo da loucura da revolução imediata, prometiam e prometem ir muito mais rápido.

É fato que, entre socialistas e anarquistas, sempre houve divergência profunda quanto à maneira de conceber a evolução histórica e as crises revolucionárias que a própria evolução engendra, de tal forma que eles quase nunca estiveram de acordo em relação aos meios a empregar e às oportunidades que se apresentaram de vez em quando de poder acelerar a marcha rumo à emancipação humana.

Todavia, essa é uma dissensão contingente e secundária. Sempre houve e ainda há socialistas apressados, do mesmo modo que houve e há anarquistas que querem avançar a passos lentos e, inclusive, os que não creem absolutamente na revolução. A dissensão essencial fundamental é outra bem diferente: os socialistas são autoritários, os anarquistas são libertários.

Os socialistas querem ir ao poder, pouco importa se de modo Pacífico ou violento, e, tornados governo, querem impor às massas, sob forma ditatorial ou democrática, seu programa. Os anarquistas creem que, ao contrário, todo governo é mau e, por sua própria natureza, destinado a defender uma classe privilegiada já existente ou criar uma nova . Em vez de sonhar em assumir o lugar dos governantes atuais, eles querem abater todo organismo que permita a alguns impor aos outros suas próprias ideias e interesses, e dar a cada um plena liberdade e, evidentemente, os meios econômicos para tornar a liberdade possível e efetiva. Eles também querem escancarar a via da evolução para suas melhores formas de vida social que surgirão da experiência.

Parece impossível que, ainda hoje, após o que se passou e se passa na Rússia, haja quem creia que a diferença entre socialistas e anarquistas é unicamente há de querer a revolução mais cedo ou mais tarde.

Lenin é, sem dúvida, um revolucionário e um revolucionário apressado, mas um autoritário, um fanático que a história situará ao lado dos Torquemada e dos Robespierre, e, malgrado suas divergências atuais com uma parte dos socialistas oficiais, ele é certamente um socialista fazendo o que os anarquistas, há cinquenta anos, vêm prevendo o que fariam os socialistas se eles conseguissem tomar o poder.

Escutar o que diz Maria Spiridonova, a mártir do regime czarista, em sua carta aberta Aos operários do Ocidente. Ela demonstra o quanto a revolução foi poderosa na Rússia antes que o bolchevismo a traísse. A revolução estendia-se a todo o território Russo porque era apoiada unanimemente pelos proletários dos campos e das cidades. Lenin, flanqueado por seus devotos e com um autêntico dogmatismo marxista, serviu-se dos proletários da cidade, que formam de 3 a 5% da população, contra as massas rurais não organizadas, e, para submetê-las, recorreu também à antiga burocracia, à velha casta militar, à polícia secreta do regime derrubado! Tendo cometido o erro, diz Spiridonova, de empregar os métodos e os instrumentos czaristas, o Partido Comunista (que é indubitavelmente socialista) erigiu a tirania em sistema para lograr esse resultado - ainda segundo Spiridonova - pelo qual hoje os 95% dos trabalhadores estão em revolta aberta ou secreta contra o governo. E ela acrescenta: a classe fundamental do país, os trabalhadores da terra, sem a qual nenhuma obra econômica criadora é possível entre nós, encontrou-se brutalmente rejeitada de toda participação na revolução. Os trabalhadores camponeses tornaram-se simplesmente um objeto de exploração por parte do Estado, fornecedores de matérias-primas, gêneros alimentícios, gado e homens, sem ter a mínima possibilidade de exercer qualquer influência política sobre o governo do país. A principal função do Exército Vermelho é aterrorizar a massa camponesa. E o mesmo Exército Vermelho aterrorizado e sustentado pelo fato bem conhecido segundo o qual, para toda deserção, a família do desertor é ferozmente punida.

Esta é uma questão completamente diferente daquela de fazer a revolução um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde!

A principal razão que fez nascer e durar o movimento anarquista é precisamente a previsão do que seria necessariamente um governo socialista, previsão que encontrou sua confirmação tão trágica na Rússia.

Isso não impediu que à dissensão fundamental viesse somar-se aquela relativa à maneira de julgar as diversas posições históricas e à necessidade de tentar ou não, em certas ocasiões, um movimento revolucionário. Tornaremos a falar disso.

MALATESTA, Errico. Escritos revolucionários. Organização e tradução: Plínio Augusto Coêlho. Editora Hedra: São Paulo, 2008.