O berreiro sobre Kronstadt [1]
por Leon
Trotsky
Tradução de Marcelo Coelho - Revista Rosa
Uma
“Frente Popular” de indignados
A
campanha em torno de Kronstadt se desenvolve sem descanso em alguns círculos.
Um desavisado pensaria que a revolta de Kronstadt aconteceu agora mesmo, e não
dezessete anos atrás. Participando dessa campanha, com igual zelo e sob um
único slogan, encontram-se anarquistas, mencheviques russos, sociais-democratas
de esquerda do Burô Londrino, trapalhões individuais, o jornal de Miliukov, e,
conforme a ocasião, a grande imprensa capitalista. Uma “Frente Popular” sui
generis!
Ontem
mesmo me deparei com as seguintes linhas, publicadas num semanário mexicano que
é ao mesmo tempo católico-reacionário e “democrático”: “Trotsky ordenou o fuzilamento
de 1500 (?) dos marinheiros de Kronstadt, os puros entre os puros. Sua
política, quando no poder, em nada diferia da atual política de Stálin”. Como
se sabe, os anarquistas de esquerda chegaram à mesma conclusão. Quando, pela
primeira vez na imprensa, respondi brevemente às questões de Wendelin Thomas,
membro da Comissão de Inquérito de Nova York, o jornal dos mencheviques russos
veio imediatamente em defesa dos marinheiros de Kronstadt e de… Wendelin
Thomas. O jornal de Miliukov perfilou-se no mesmo espírito. Os anarquistas me
atacaram com ainda maior vigor. Todas essas autoridades sustentam que aquela
minha resposta não tinha valor nenhum. Essa unanimidade é tanto mais notável
quanto se sabe que os anarquistas erigem Kronstadt como símbolo do genuíno
comunismo antiestatal; que os mencheviques, no momento do levante de Kronstadt,
apoiavam abertamente a restauração do capitalismo; e que Miliukov continua
apoiando até hoje.
Como
é que o levante de Kronstadt pode causar tamanho deus-nos-acuda entre anarquistas,
mencheviques e contrarrevolucionários “liberais” ao mesmo tempo? A resposta é
simples: todos esses agrupamentos estão interessados em comprometer a única
corrente genuinamente revolucionária, que nunca repudiou suas bandeiras, que
nunca fez concessões a seus inimigos e que é a única a representar o futuro. É
devido a isso que entre os que tardiamente denunciam o meu “crime” de Kronstadt
há tantos ex-revolucionários ou semi-revolucionários, gente que perdeu seus
programas e princípios e que acha necessário distrair as atenções do estado de
degradação em que se encontra a Segunda Internacional ou da perfídia dos
anarquistas espanhóis. Por enquanto, os estalinistas não podem aliar-se
abertamente à campanha em torno de Kronstadt mas até mesmo eles, obviamente,
esfregam as mãos com prazer; pois os ataques se dirigem contra o “trotskismo”,
contra o marxismo revolucionário, contra a Quarta Internacional!
Por que,
em particular, esta variegada fraternidade se ocupou precisamente de Kronstadt?
Durante os anos da Revolução nós entramos em confronto, não poucas vezes, com
os cossacos, com os camponeses, até com certas camadas do operariado (alguns
grupos de operários dos Urais organizaram um regimento de voluntários para
aderir ao exército de Kolchak!). O antagonismo entre os operários enquanto
consumidores e os camponeses enquanto produtores e vendedores de pão está, em
geral, na raiz desses conflitos. Pressionados pela necessidade e pela privação,
os próprios operários se viram ocasionalmente divididos em campos hostis,
conforme a força ou a fraqueza dos seus laços com a aldeia. O Exército
Vermelho também se encontrou sob a influência das áreas rurais. Durante os anos
da guerra civil foi necessário desarmar, mais de uma vez, regimentos
descontentes. A introdução da “Nova Política Econômica” (nep) atenuou essa
fricção, mas nem de longe a eliminou. Ao contrário, abriu caminho para o
renascimento dos kulaks [camponeses ricos] e levou, no começo desta década, ao
ressurgimento da guerra civil nas aldeias. O levante de Kronstadt foi
apenas um episódio na história das relações entre a cidade
proletária e a aldeia pequeno-burguesa. Só é possível entender esse
episódio em conexão com o curso geral do desenvolvimento da luta de classes
durante a Revolução.
Kronstadt
diferiu da longa série de outros movimentos e levantes pequeno-burgueses apenas
devido a seu maior efeito externo. O problema, aqui, envolvia uma
fortaleza marítima submetida à própria Petrogrado. Ao longo do levante,
fizeram-se proclamações e transmissões de rádio. Os social-revolucionários
e os anarquistas, vindo às pressas de Petrogrado, enfeitaram o levante com
frases e gestos “nobres”. Tudo isso deixou rastros impressos. Com ajuda
desse material “documental” (isto é, rótulos mentirosos), não é difícil construir
uma lenda em torno de Kronstadt, ainda mais exaltada na medida em que desde
1917 o nome de Kronstadt estava envolto numa aura revolucionária. Não é à
toa que a revista mexicana citada acima chama ironicamente os marinheiros de
Kronstadt de “puros entre os puros”.
A jogada
empregando a autoridade revolucionária de Kronstadt é um dos traços definidores
dessa campanha de verdadeira charlatanice. Anarquistas, mencheviques, liberais,
reacionários, todos tentam apresentar a questão como se no começo de 1921 os
bolcheviques tivessem voltado suas armas naqueles mesmos marinheiros de
Kronstadt que garantiram a vitória da insurreição de outubro. Este é o ponto de
partida para todas as falsidades posteriores. Quem quiser desmontar essas
mentiras deve, antes de tudo, ler o artigo do camarada J. G. Wright na New
International (fevereiro de 1938). Meu problema aqui é outro:
quero descrever o caráter do levante de Kronstadt a partir de um ponto de vista
mais geral.
Agrupamentos sociais e políticos em Kronstadt
Uma revolução
é “feita” diretamente por uma minoria. O sucesso de uma revolução,
entretanto, só é possível quando essa minoria encontra maior ou menor apoio, ou
pelo menos uma neutralidade amigável, junto à maioria. O trânsito pelas
diversas fases da revolução, assim como a passagem da revolução para a
contrarrevolução, é diretamente determinado pelas mudanças nas relações
políticas entre a minoria e a maioria, entre a vanguarda e a classe.
Entre os
marinheiros de Kronstadt, encontravam-se três camadas políticas diferentes: os
revolucionários do proletariado, alguns treinados e com um passado consequente;
a maioria intermediária, de origem principalmente camponesa; e, finalmente, os
reacionários, filhos de kulaks, pequenos comerciantes e sacerdotes.
Nos tempos do czarismo, só era possível manter a ordem nos navios de
guerra e na fortaleza enquanto os oficiais, agindo através das secções
reacionárias dos suboficiais e dos marinheiros, submetessem a larga camada
intermediária à sua influência ou a seu terror, isolando desse modo os
revolucionários, principalmente maquinistas, atiradores e eletricistas, isto é,
predominantemente os trabalhadores urbanos.
O
desenrolar da insurreição no encouraçado Potemkin, em 1905, baseou-se
inteiramente nas relações entre essas três camadas, isto é, na luta entre os
extremos proletários e reacionários pequeno-burgueses pela influência sobre a
camada média, mais numerosa, dos camponeses. Quem não tiver entendido este
problema, que perpassa todo o movimento revolucionário na marinha, fará melhor
se silenciar sobre os problemas da revolução russa em seu todo. Pois esta
consistiu, e em grande medida ainda consiste, na luta entre o proletariado e a
burguesia pela influência sobre o campesinato. Durante o período soviético, a
burguesia se apresentou principalmente sob as cores dos kulaks (ou seja, o
estrato superior da pequena burguesia), da intelligentsia “socialista”,
e agora na forma da burocracia “comunista”. Este é o mecanismo básico da
revolução em todos os seus estágios. Na marinha ele assumiu uma expressão
mais centralizada e, portanto, mais dramática.
A
composição política do soviete de Kronstadt refletia a composição da guarnição
e da tripulação. A liderança dos sovietes, desde o verão de 1917,
pertencia ao partido bolchevique, que se apoiava nas melhores partes dos
marinheiros e incluía em suas fileiras muitos revolucionários do movimento
clandestino que tinham sido libertados das prisões e campos de trabalho
forçado. Mas, pelo que me lembro, mesmo nos dias da insurreição de outubro, os
bolcheviques compunham menos do que a metade do soviete de Kronstadt.
A maioria era constituída de social-revolucionários e anarquistas.
Não havia menchevique nenhum em Kronstadt. O partido menchevique
detestava Kronstadt. O partido social-revolucionário oficial, diga-se de
passagem, não desfrutava de melhor opinião. Os social-revolucionários de
Kronstadt rapidamente entraram em oposição a Kerensky e formaram uma das
brigadas de choque dos assim chamados “social-revolucionários de esquerda”.
Apoiaram-se no setor camponês da marinha e da guarnição em terra. Quanto aos
anarquistas, eram o grupo mais heterogêneo. Entre eles havia revolucionários de
verdade, como Zhuk e Zheleznianov, mas estes eram os elementos mais
estreitamente ligados aos bolcheviques. A maioria dos “anarquistas” de
Kronstadt era representada pela pequeno-burguesia urbana e se encontrava num
nível revolucionário mais baixo que o dos social-revolucionários.
O presidente do soviete era apartidário, “simpático aos anarquistas”, e
essencialmente um pacato funcionário de baixo escalão que havia sido
subserviente às autoridades czaristas e agora era subserviente… à Revolução.
A total ausência de mencheviques, o caráter “esquerdista” dos
social-revolucionários e a coloração anarquista dos pequeno-burgueses se deviam
à agudeza da luta revolucionária na frota e à predominância dos setores
proletários dos marinheiros.
Mudanças durante os anos da guerra civil
Esta
caracterização social e política de Kronstadt — que, se for preciso, poderia
ser confirmada e ilustrada por muitos fatos e documentos — já é suficiente para
desvendar as rebeliões que ocorreram em Kronstadt durante os anos da guerra
civil, e que tiveram como resultado sua transformação em algo irreconhecível.
Justamente sobre este importante aspecto da questão os acusadores tardios não
dizem uma palavra, em parte por ignorância, em parte por má-fé.
Sim,
Kronstadt escreveu uma página heroica na história da Revolução. Mas a
guerra civil deu início a um sistemático esvaziamento numérico de Kronstadt e
toda a frota do Báltico. Tão logo se desencadeou a insurreição de outubro,
destacamentos de marinheiros de Kronstadt foram enviados para ajudar Moscou.
Outros destacamentos foram mandados para o Don, para a Ucrânia, para requisitar
pão e para organizar o poder local. De início parecia que Kronstadt era
inexaurível. Eu enviei dúzias de telegramas de diversas frentes, tratando
da mobilização de novos regimentos “confiáveis” de operários de Petrogrado e
dos marinheiros do Báltico. Mas, já em 1918, e em todo caso no mais tardar em
1919, as frentes começaram a reclamar que os novos contingentes de
“kronstadtianos” eram insatisfatórios, cheios de exigências, indisciplinados,
inconfiáveis no campo de batalha; mais prejudicavam do que ajudavam. Depois da
liquidação de Yudenich (no inverno de 1919), a frota do Báltico e a guarnição
de Kronstadt estavam destituídas de quaisquer forças revolucionárias. Todos os
elementos de lá que ainda fossem úteis foram destinados à luta contra Denikin
no sul. Se em 1917–18 o marinheiro de Kronstadt se situava
consideravelmente acima do soldado médio do Exército Vermelho e constituía o
arcabouço de seus primeiros destacamentos e do regime soviético em muitos
distritos, aqueles marinheiros que restaram na “pacífica” Kronstadt até o início
de 1921, e que não serviam para nenhuma das frentes da guerra civil,
situavam-se naquele momento num plano consideravelmente mais baixo, em geral,
do que a média do Exército Vermelho e incluíam grande porcentagem de elementos
completamente desmoralizados, ostentando vistosas calças boca-de-sino e cortes
de cabelo estilosos.
A
desmoralização causada pela fome e pela especulação tinha, de modo geral,
crescido muito no final da guerra civil. Os chamados “carregadores de
sacas” (pequenos especuladores) tinham-se tornado uma praga social, ameaçando
sufocar a Revolução. Precisamente em Kronstadt, onde a guarnição não fazia nada
e tinha tudo que precisasse, a desmoralização assumiu dimensões particularmente
grandes. Quando as condições se tornaram muito críticas com a fome em
Petrogrado, o burô político discutiu mais de uma vez a possibilidade de
conseguir um “empréstimo interno” junto a Kronstadt, onde ainda havia uma
quantidade de antigos mantimentos. Mas os delegados dos operários de
Petrogrado responderam: “vocês nunca conseguirão nada deles na base da
gentileza. Eles especulam com roupas, carvão e pão. No momento, todo tipo
de escória levanta a cabeça em Kronstadt.” Essa era a situação real. Nada tinha
das idealizações açucaradas que se construíram depois dos fatos.
Deve-se
acrescentar ainda que os antigos marinheiros da Letônia e da Estônia, que
temiam ser mandados para o front e se preparavam para cruzar as fronteiras no
rumo de suas pátrias burguesas, tinham-se juntado à frota do Báltico como
“voluntários”. Esses elementos eram em sua essência hostis à autoridade
soviética e exibiam abertamente sua hostilidade nos dias do levante de
Kronstadt… Além disso, havia muitos milhares de trabalhadores letões,
principalmente antigos lavradores, que exibiram um heroísmo sem paralelos em
todas as frentes da guerra civil. Não devemos, portanto, tratar do mesmo
modo os trabalhadores letões e os “kronstadtianos”. É necessário
reconhecer as diferenças políticas e sociais.
As raízes sociais do
levante
O problema, para um estudioso sério, consiste em definir, com
base nas circunstâncias objetivas, qual o caráter social e político do motim de
Kronstadt e qual seu lugar no desenvolvimento da revolução. Sem isto, a
“crítica” se reduz a uma lamúria sentimental de tipo pacifista, no estilo de
Alexander Berkman, Emma Goldmann e seus imitadores mais recentes. Esses gentis
comentadores não têm a menor noção dos critérios e métodos da pesquisa
científica. Citam as proclamações dos insurgentes como pregadores religiosos
citam a Sagrada Escritura. Queixam-se também de que eu não levo em consideração
os “documentos”, a saber, o evangelho de Makhno e dos outros apóstolos. Marx
disse que é impossível julgar pessoas ou partidos pelo que dizem de si mesmos.
As características de um partido são determinadas muito mais por sua
composição social, seu passado, sua relação com as diferentes classes e setores
sociais, do que por suas declarações verbais e escritas, especialmente num
período de guerra civil. Se, por exemplo, tomarmos como ouro puro as
declarações de Negrin, Companys, Garcia Oliver e companhia, consideraríamos
esses cavalheiros como ardorosos amigos do socialismo. Mas na realidade
são seus pérfidos inimigos.
Em 1917–18 os operários revolucionários lideraram as massas
camponesas, não apenas na Marinha mas no país inteiro. Os camponeses
tomaram e dividiram as terras, na maior parte das vezes, sob a liderança dos
soldados e marinheiros que voltavam às suas regiões de origem. Requisições de
pão tinham mal começado e se dirigiam principalmente aos donos de terra e aos
kulaks. Os camponeses aceitaram as requisições como um mal temporário.
Mas a guerra civil arrastou-se por três anos. A cidade não dava
praticamente nada para o campo e dele tomava quase tudo, fundamentalmente
devido às necessidades da guerra. Os camponeses apoiavam os
“bolcheviques”, mas se tornaram gradualmente hostis aos “comunistas”. Se,
anteriormente, os operários haviam conduzido os camponeses para a frente, agora
os camponeses puxavam os operários para trás. Foi apenas em função dessa
mudança de atitude que os Brancos atraíram parte dos camponeses, e mesmo dos
que eram meio camponeses, meio operários, na região dos Urais. Essa atitude
hostil à cidade alimentou o movimento de Makhno, que tomou e loteou os trens
destinados às fábricas, às instalações e ao Exército Vermelho; além de destruir
os trilhos, fuzilar comunistas etc. Evidentemente, Makhno chamou isso de luta
anarquista contra “o Estado”. Na realidade, tratava-se da luta furiosa do
proprietário pequeno-burguês contra a ditadura do proletariado.
Um movimento semelhante surgiu em diversas outras regiões, especialmente
em Tambovsky, sob a bandeira dos “social-revolucionários”. Finalmente, em
outras partes do país ativaram-se os chamados destacamentos “verdes” dos
camponeses. Não reconheciam nem os vermelhos nem os brancos, e evitavam
contato com os partidos da cidade. Em algumas ocasiões, os “verdes” se
defrontaram com os brancos e receberam severos golpes, mas não encontraram,
obviamente, nenhuma compaixão por parte dos vermelhos. Assim como a pequena
burguesia fica espremida entre as rodas de moinho do capital e do proletariado,
também os destacamentos de milícias camponesas foram pulverizados entre o
Exército Vermelho e os brancos.
Só mesmo uma pessoa totalmente superficial poderia ver nos
bandos de Makhno ou na revolta de Kronstadt uma revolta entre os princípios
abstratos do anarquismo e do “socialismo de Estado”. Na verdade, esses
movimentos foram convulsões da pequena burguesia que desejava, obviamente,
liberar-se do capital, mas não consentia em subordinar-se à ditadura do
proletariado. A pequena burguesia não sabe concretamente o que quer, e, em
virtude de sua posição, não consegue saber. Esta é a razão por que revestia tão
rapidamente a confusão de suas demandas e esperanças, ora com a capa do
anarquismo, ora com a do populismo, e ora simplesmente com a dos “verdes”.
Contrapondo-se ao proletariado, tentou, com todos esses revestimentos, mover
para trás a roda da revolução.
O caráter
contrarrevolucionário do motim de Kronstadt
Não existiam, claro, divisões estanques entre as diferentes
camadas sociais e políticas de Kronstadt. Ainda existia em Kronstadt um certo
número de trabalhadores qualificados e de técnicos cuidando da maquinaria.
Mas até mesmo eles foram identificados, por um método de seleção negativa,
como politicamente inconfiáveis e pouco úteis para a guerra civil. Alguns
“líderes” do levante tinham essa origem. Essa circunstância, completamente
natural e inevitável, é ressaltada em triunfo pelos acusadores, mas não muda
uma vírgula do caráter antiproletário da revolta. A menos que nos deixemos
enganar por slogans pretensiosos, falsos rótulos etc., o que se vê é que o
levante de Kronstadt nada mais foi do que uma reação armada da pequena burguesia
contra as asperezas da revolução social e a severidade da ditadura do
proletariado.
Este era exatamente o significado do slogan de Kronstadt,
“sovietes sem comunistas”, de que imediatamente se apropriaram, não apenas
os srs, mas também os burgueses liberais. Como um representante do capital
razoavelmente perceptivo, o professor Miliukov entendeu que liberar os sovietes
da liderança bolchevique significaria, em pouco tempo, desmontar os próprios
sovietes. A experiência dos sovietes russos no período do domínio
menchevique e sr, e, de forma ainda mais clara, a experiência dos sovietes
alemães e austríacos sob os social-democratas, provou isso. Sovietes
social-revolucionários e anarquistas só poderiam servir como pontes levando da
ditadura do proletariado à restauração capitalista. Não poderiam ter
nenhum outro papel, fossem quais fossem as “ideias” de seus membros.
O levante de Kronstadt teve, portanto, um caráter contrarrevolucionário.
Do ponto de vista de classe, que permanece — sem ofensa aos
respeitáveis ecléticos — o critério básico não apenas da política, mas também
da história, é extremamente importante contrastar o comportamento de Kronstadt
com o de Petrogrado naqueles dias. Toda a liderança operária tinha também sido
removida de Petrogrado. Fome e frio reinavam na capital deserta, talvez mais
ferozmente do que em Moscou. Um período trágico e heroico! Todos estavam
famintos e irritáveis. Todos estavam insatisfeitos. Nas fábricas havia um
descontentamento surdo. Militantes clandestinos enviados pelos srs e pelos
oficiais brancos tentavam associar o levante militar com o movimento dos
operários descontentes.
O jornal de Kronstadt descrevia barricadas em Petrogrado, com
milhares de pessoas sendo mortas. A imprensa do mundo inteiro anunciava o
mesmo. Na verdade, ocorria exatamente o contrário. O levante de
Kronstadt não atraiu os operários de Petrogrado. Afastou-os.
A estratificação se deu conforme tendências de classe. Os operários
perceberam imediatamente que os amotinados de Kronstadt estavam no lado oposto
das barricadas — e apoiaram o poder soviético. O isolamento político de
Kronstadt foi a causa de suas hesitações internas e de sua derrota militar.
A nep e
o levante de Kronstadt
Victor Serge — que, pelo que consta, está tentando fabricar
uma espécie de síntese entre anarquismo, poumismo e marxismo, fez uma
intervenção muito infeliz na polêmica sobre Kronstadt. Na sua opinião, se
a nep fosse introduzida um ano antes a insurreição poderia ter sido
evitada. Mas conselhos desse tipo são fáceis de dar depois que tudo
aconteceu. É verdade, como lembra Victor Serge, que eu havia proposto a
transição para a nep já em 1920. Mas eu não estava de modo
nenhum seguro de seu sucesso com antecedência. Não era nenhum segredo para
mim que o remédio poderia se tornar mais perigoso do que a própria doença.
Quando encontrei opositores entre os líderes do partido, não apelei para as
fileiras, pois não queria mobilizar a pequena burguesia contra os
trabalhadores. A experiência dos doze meses seguintes foi necessária para
convencer o partido da necessidade de um novo rumo. Mas o notável é que
precisamente os anarquistas do mundo inteiro encararam a nep como…
uma traição ao comunismo. E agora os defensores dos anarquistas nos acusam
por não ter introduzido a nep um ano mais cedo.
Em 1921, Lênin reconheceu, mais de uma vez, que a defesa
obstinada dos métodos do comunismo de guerra pelo partido havia se tornado um
grande equívoco. Mas o que isso muda? Quaisquer que tenham sido as causas
imediatas ou remotas da insurreição de Kronstadt, aquilo consistia, pela sua
própria essência, num perigo mortal para a ditadura do proletariado. Deveria a
revolução proletária cometer suicídio, para punir-se de um equívoco político?
Ou será que teria sido suficiente apenas informar os
marinheiros de Kronstadt a respeito dos decretos da nep, achando que isso
iria apaziguá-los? Ilusão! Os insurgentes não tinham um programa claro e não
podiam tê-lo, dada a própria natureza da pequena burguesia. Eles mesmos não
entendiam claramente que seus pais e irmãos precisavam, acima de tudo, do livre
comércio. Estavam descontentes e confusos, mas não sabiam para onde ir.
Os mais conscientes, ou seja, os setores direitistas, atuavam nos
bastidores em favor da restauração do regime burguês. Mas não diziam isso
às claras. A ala “esquerda” queria o fim da disciplina, “sovietes livres”
e rações melhores. Só gradualmente o sistema da nep poderia
apaziguar os camponeses e, depois deles, os setores descontentes do exército e
da marinha. Mas, para isso, era preciso mais tempo e experiência.
O argumento mais infantil de todos é o de que nunca houve
insurreição, que os marinheiros não tinham feito nenhuma ameaça, e tinham
“apenas” ocupado a fortaleza e os navios de guerra. É como se os
bolcheviques simplesmente tivessem marchado sem hesitação através do gelo
devido à maldade de seu caráter, de sua tendência para provocar conflitos
artificialmente, de seu ódio aos marinheiros de Kronstadt, ou de seu ódio às
doutrinas anarquistas (com as quais ninguém, diga-se de passagem, se preocupava
minimamente naqueles dias). Como não ver que isso é tagarelice de crianças?
Flutuando fora do tempo e do espaço, os críticos amadores tentam sugerir
(dezessete anos depois!) que tudo teria terminado em contentamento geral se a
Revolução simplesmente tivesse deixado quietos os marinheiros insurgentes.
Infelizmente, a contrarrevolução mundial não os teria deixado quietos.
A lógica do conflito teria conferido predomínio aos extremistas da fortaleza,
isto é, aos elementos mais contrarrevolucionários. A necessidade de
suprimentos teria colocado a fortaleza em dependência direta da burguesia
estrangeira e de seus agentes, os emigrados brancos. Já tinham sido feitos
todos os preparativos para isso. Em tais circunstâncias somente pessoas
como os anarquistas espanhóis e os poumistas teriam esperado passivamente,
esperando um final feliz. Os bolcheviques, felizmente, pertenciam a outra
escola. Consideraram seu dever extinguir o incêndio assim que ele começou,
reduzindo a um mínimo, assim, o número de vítimas.
Os
“kronstadtianos” sem fortaleza
Essencialmente, os veneráveis críticos se opõem à ditadura do
proletariado e, com isso, são adversários da Revolução. Nisto está a chave do
segredo. É verdade que alguns deles reconhecem a revolução e a ditadura —
verbalmente. Mas isto não ajuda as coisas. Querem uma revolução que não
leve a uma ditadura ou uma ditadura que se mantenha sem o uso da força.
Por certo, seria uma revolução muito agradável. Seriam necessárias,
entretanto, algumas coisinhas: um desenvolvimento igual, e, além disso,
extremamente alto, das classes trabalhadoras. Mas nessas condições uma
ditadura seria em geral desnecessária. Alguns anarquistas, que na verdade são
pedagogos liberais, esperam que em cem ou mil anos os trabalhadores terão
atingido tal nível de desenvolvimento que não se verificará necessidade de
coerção. Naturalmente, se o sistema capitalista pudesse conduzir a tal
desenvolvimento, não haveria razão para derrubá-lo. Não seria preciso nem
uma revolução violenta nem uma ditadura, como consequência inevitável da
vitória revolucionária. Entretanto, o capitalismo declinante de nossos dias dá
pouca margem para ilusões humanitário-pacifistas.
A classe operária, para não mencionar as massas
semiproletárias, não é homogênea nem social nem politicamente. A luta de
classes produz uma vanguarda que absorve os melhores elementos da classe.
Mas isto não significa que desapareçam todas as contradições internas
entre os trabalhadores. Quando a revolução está no seu auge, essas contradições
obviamente se atenuam, mas apenas para reaparecer mais tarde em toda sua
agudeza. Este é o trajeto da revolução como um todo. Este foi o trajeto de
Kronstadt. Quando simpatizantes de salão tentam traçar um caminho diferente
para a Revolução de Outubro, depois de tudo já ter acontecido, só podemos
respeitosamente pedir que nos mostrem exatamente onde e como seus grandes
princípios se confirmaram na prática, ao menos parcialmente, ao menos como uma
tendência… Onde estão os sinais que nos levam a esperar um triunfo desses
princípios no futuro? Evidentemente, nunca obtemos resposta.
Uma revolução segue suas próprias leis. Há bastante
tempo formulamos essas “lições de outubro”, que não têm apenas um significado
para a Rússia, mas para todo o âmbito internacional. Nunca alguém tentou
sugerir outras “lições” além daquelas. A revolução espanhola é a
confirmação negativa das “lições de outubro”. E nossos severos críticos
silenciam ou se mostram ambíguos. O governo da “frente popular” espanhola
sufoca a revolução socialista e fuzila revolucionários. Os anarquistas
participam desse governo, ou, quando são expulsos dele, continuam apoiando os
fuziladores. E seus aliados e defensores estrangeiros se ocupam, enquanto
isso, com uma defesa… do motim de Kronstadt contra os duros bolcheviques.
Uma mascarada vergonhosa!
As atuais discussões em torno de Kronstadt giram em torno do
mesmo eixo de classe que foi o da própria insurreição, na qual os setores
reacionários dos marinheiros tentaram derrubar a ditadura do proletariado.
Cônscios de sua impotência na arena da política revolucionária dos dias atuais,
os trapalhões pequeno-burgueses e ecléticos tentam usar o velho episódio de
Kronstadt na luta contra a Quarta Internacional, ou seja, contra o partido da
revolução proletária. Esses “kronstadtianos” de última hora serão também
esmagados — verdade que sem o uso das armas, já que, para sorte deles, não
possuem nenhuma fortaleza.
— 15 de janeiro de 1938
Nota
Publicado originalmente
em New International, vol. 4, nº 4, abril de 1938, pp. 103–106.
Publicado no 3º númerodo volume 4 da Revista Rosa em 20/12/2021.
Revista Rosa,S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.com, issn 2764-1333.
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