O
CAMPO CIENTÍFICO[1]
Pierre Bourdieu
A sociologia da ciência repousa no
postulado de que a verdade do produto − mesmo em se tratando desse produto
particular que é a verdade científica − reside numa espécie particular de
condições sociais de produção; isto é, mais precisamente, num estado
determinado da estrutura e do funcionamento do campo científico. O universo
"puro" da mais "pura" ciência é um campo social como outro
qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias,
seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas
específicas.
A
luta pelo monopólio da competência científica
O campo científico, enquanto sistema de
relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar,
o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente
nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira
inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o
monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar
e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é
socialmente outorgada a um agente determinado[2].
Dizer que o campo é um lugar de lutas
não é simplesmente romper com a imagem irenista da "comunidade
científica" tal como a hagiografia científica a descreve − e, muitas
vezes, depois dela, a própria sociologia da ciência. Não é simplesmente romper
com a ideia de uma espécie de "reino dos fins" que não conheceria
senão as leis da concorrência pura e perfeita das ideias, infalivelmente
recortada pela força intrínseca da ideia verdadeira. É também recordar que o
próprio funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma específica
de interesse (as práticas científicas não aparecendo como
"desinteressadas" senão quando referidas a interesses diferentes,
produzidos e exigidos por outros campos).
Falando de interesse científico e de
autoridade (ou de competência) científica, pretendemos afastar, desde logo, as
distinções que habitam, implicitamente, as discussões sobre a ciência. Assim,
tentar dissociar o que, na competência científica, seria pura representação
social, poder simbólico, marcado por todo um "aparelho" (no sentido
de Pascal) de emblemas e de signos, e o que seria pura capacidade técnica, é
cair na armadilha constitutiva de toda competência, razão social que se
legitima apresentando-se como razão puramente técnica (conforme vemos, por
exemplo, nos usos tecnocráticos da noção de competência)[3].
Na realidade, o "augusto aparelho" que envolve aqueles a quem
chamávamos de "capacidades" no século passado e de
“competências" hoje − becas rubras e arminho, sotainas e capelos dos
magistrados e doutores em outros tempos, títulos escolares e distinções científicas
dos pesquisadores de hoje − essa "ostentação tão autêntica", como
dizia Pascal, toda essa ficção social que nada tem de socialmente fictício,
modifica a percepção social da capacidade propriamente técnica. Assim, os
julgamentos sobre a capacidade científica de um estudante ou de um pesquisador
estão sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da
posição que ele ocupa nas hierarquias instituídas (as Grandes Escolas, na
França, ou as universidades, por exemplo, nos Estados Unidos).
Pelo fato de que todas as práticas estão
orientadas para a aquisição de autoridade científica (prestígio,
reconhecimento, celebridade etc.), o que chamamos comumente de
"interesse" por uma atividade científica (uma disciplina, um setor
dessa disciplina, um método etc.) tem sempre uma dupla face. O mesmo acontece
com as estratégias que tendem a assegurar a satisfação desse interesse.
Uma análise que tentasse isolar uma
dimensão puramente "política" nos conflitos pela dominação do campo
científico seria tão falsa quanto o parti
pris inverso, mais frequente, de somente considerar as determinações
"puras" e puramente intelectuais dos conflitos científicos. Por
exemplo, a luta pela obtenção de créditos e de instrumentos de pesquisa que
hoje opõe os especialistas não se reduz jamais a uma simples luta pelo poder
propriamente "político". Aqueles que estão à frente das grandes burocracias
científicas só poderão impor sua vitória como sendo uma vitória da ciência se
forem capazes de impor uma definição de ciência que suponha que a boa maneira
de fazer ciência implica a utilização de serviços de uma grande burocracia
científica, provida de créditos, de equipamentos técnicos poderosos, de uma
mão-de-obra abundante. Assim, eles constituem em metodologia universal e eterna
a prática de sondagens com amplas amostragens, as operações de análise
estatística dos dados e formalização dos resultados, instaurando, como medida
de toda prática científica, o padrão mais favorável às suas capacidades
intelectuais e institucionais. Reciprocamente, os conflitos epistemológicos são
sempre, inseparavelmente, conflitos políticos; assim, uma pesquisa sobre o
poder no campo científico poderia perfeitamente só comportar questões
aparentemente epistemológicas.
De uma definição rigorosa do campo
científico enquanto espaço objetivo de um jogo onde compromissos científicos
estão engajados resulta que é inútil distinguir entre as determinações
propriamente científicas e as determinações propriamente sociais das práticas
essencialmente sobredeterminadas. É preciso citar a descrição de Fred Reif que
mostra, quase involuntariamente, o quanto é artificial e mesmo impossível a distinção
entre interesse intrínseco e interesse extrínseco, entre o que é importante
para o pesquisador determinado e o que é importante para os outros
pesquisadores.
"Um cientista procura fazer as
pesquisas que ele considera importantes. Mas a satisfação intrínseca e o
interesse não são suas únicas motivações. Isto transparece quando observamos o
que acontece quando um pesquisador descobre uma publicação com os resultados a
que ele estava quase chegando: fica quase sempre transtornado, ainda que o
interesse intrínseco de seu trabalho não tenha sido afetado. Isto porque seu
trabalho não deve ser interessante somente para ele, mas deve ser também
importante para os outros"[4].
O que é percebido como importante e
interessante é o que tem chances de ser reconhecido como importante e
interessante pelos outros; portanto, aquilo que tem a possibilidade de fazer
aparecer aquele que o produz como importante e interessante aos olhos dos
outros.
Para não correr o risco de voltar à
filosofia idealista, que confere à ciência o poder de se desenvolver segundo
sua lógica imanente[5],
é preciso supor que os investimentos se organizam com referência a uma
antecipação − consciente ou inconsciente − das chances médias de lucro em
função do capital acumulado. Assim, a tendência dos pesquisadores a se
concentrar nos problemas considerados como os mais importantes se explica pelo
fato de que uma contribuição ou descoberta concernente a essas questões traz um
lucro simbólico mais importante. A intensa competição assim desencadeada tem
todas as chances de determinar uma baixa nas taxas médias de lucro material
e/ou simbólico e, consequentemente, uma migração de pesquisadores em direção a
novos objetos menos prestigiados, mas em torno dos quais a competição é menos
forte[6].
A distinção que Merton estabelece (ao
referir-se às ciências sociais) entre conflitos "sociais" e conflitos
"intelectuais" constitui uma estratégia, ao mesmo tempo social e
intelectual, que tende a impor uma delimitação do campo dos objetos legítimos
de discussão[7].
Com efeito, reconhece-se nessa distinção uma das estratégias pela qual a
sociologia americana oficial tende a garantir sua respeitabilidade acadêmica e
a impor uma delimitação do científico e do não-científico que lhe permita
coibir toda pergunta que, considerada como cientificamente inconveniente, ponha
em questão os fundamentos de sua respeitabilidade[8].
Uma autêntica ciência da ciência só pode
constituir-se com a condição de recusar radicalmente a oposição abstrata (que
se encontra também na história da arte, por exemplo) entre uma análise imanente
ou interna, que caberia mais propriamente à epistemologia e que restituiria a
lógica segundo a qual a ciência engendra seus próprios problemas e, uma análise
externa, que relacionaria esses problemas às condições sociais de seu
aparecimento; e o campo científico, enquanto lugar de luta política pela
dominação científica, que designa a cada pesquisador, em função da posição que
ele ocupa, seus problemas, indissociavelmente políticos e científicos, e seus
métodos, estratégias científicas que, pelo fato de se definirem expressa ou
objetivamente pela referência ao sistema de posições políticas e científicas
constitutivas do campo científico, são ao mesmo tempo estratégias políticas.
Não há "escolha" científica − do campo da pesquisa, dos métodos
empregados, do lugar de publicação; ou, ainda, escolha entre uma publicação
imediata de resultados parcialmente verificados e uma publicação tardia de
resultados plenamente controlados[9] −
que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada
para a maximização do lucro propriamente científico, isto é, a obtenção do
reconhecimento dos pares-concorrentes.
A
acumulação do capital científico
A luta pela autoridade científica,
espécie particular de capital social que assegura um poder sobre os mecanismos
constitutivos do campo e que pode ser reconvertido em outras espécies de
capital, deve o essencial de suas características ao fato de que os produtores
tendem, quanto maior for a autonomia do campo, a só ter como possíveis clientes
seus próprios concorrentes. Isto significa que, num campo científico fortemente
autônomo, um produtor particular só pode esperar o reconhecimento do valor de
seus produtos ("reputação", "prestígio",
"autoridade", "competência" etc.) dos outros produtores
que, sendo também seus concorrentes, são os menos inclinados a reconhecê-lo sem
discussão ou exame. De fato, somente os cientistas engajados no mesmo jogo
detêm os meios de se apropriar simbolicamente da obra científica e de avaliar
seus méritos. E também de direito: aquele que faz apelo a uma autoridade
exterior ao campo só pode atrair sobre si o descrédito[10].
Muito semelhante, sob este aspecto, a um campo artístico fortemente autônomo, o
campo científico deve, entre outras coisas, sua especificidade ao fato de que
os concorrentes não podem contentar-se em se distinguir de seus predecessores
já reconhecidos. Eles são obrigados, sob pena de se tornarem ultrapassados e
"desqualificados", a integrar suas aquisições na construção distinta
e distintiva que os supera.
Na luta em que cada um dos agentes deve
engajar-se para impor o valor de seus produtos e de sua própria autoridade de
produtor legítimo, está sempre em jogo o poder de impor uma definição da
ciência (isto é, a de limitação do campo dos problemas, dos métodos e das
teorias que podem ser considerados científicos) que mais esteja de acordo com
seus interesses específicos. A definição mais apropriada será a que lhe permita
ocupar legitimamente a posição dominante e a que assegure, aos talentos
científicos de que ele é detentor a título pessoal ou institucional, a mais
alta posição na hierarquia dos valores científicos (por exemplo, enquanto
detentor de uma espécie determinada de capital cultural, como ex-aluno de uma instituição
de ensino particular ou então como membro de uma instituição científica
determinada etc.). Existe assim, a cada momento, uma hierarquia social dos
campos científicos − as disciplinas − que orienta fortemente as práticas e,
particularmente, as "escolhas" de "vocação". No interior de
cada um deles há uma hierarquia social dos objetos e dos métodos de tratamento[11].
As discussões sobre a prioridade das
descobertas opõem, em mais de um caso, aquele que descobriu o fenômeno
desconhecido sob a forma de uma simples anomalia, de uma falha nas teorias
existentes, e aquele que faz do fato desconhecido um fato científico novo,
inserindo-o numa construção científica irredutível ao simples dado bruto. Essas
discussões políticas sobre o direito e a propriedade científica, que são ao
mesmo tempo debates sobre o sentido do que foi descoberto e debates
epistemológicos sobre a natureza da descoberta científica, opõem na realidade,
mediante protagonistas particulares, dois princípios de hierarquização das
práticas científicas: um que confere primazia à observação e à experimentação
e, portanto, às inclinações e capacidades correspondentes, outro que privilegia
a teoria e os "interesses" científicos correlativos. Debate este que
nunca cessou de ocupar o centro da reflexão epistemológica.
Assim, a definição do que está em jogo
na luta científica faz parte do jogo da luta científica: os dominantes são
aqueles que conseguem impor uma definição da ciência segundo a qual a
realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são
e fazem. Diga-se, de passagem, que a communis
doctorum opinio, como dizia a escolástica, não é mais que uma ficção
oficial que nada tem de fictícia, pois a eficácia simbólica que sua
legitimidade lhe confere permite que ela preencha uma função semelhante ao
papel que a noção de opinião pública preenche para a ideologia liberal. A ciência
oficial não é o que, frequentemente, dela faz a sociologia da ciência: o
sistema de normas e valores que a "comunidade científica", grupo
indiferenciado, imporia e inculcaria a todos os seus membros, a anomia
revolucionária só podendo, assim, ser imputada aos que fracassaram na
socialização científica[12].
Essa visão "durkheimiana" do campo científico poderia não ser mais
que a transfiguração da representação do universo científico que os detentores
da ordem científica têm interesse em impor, sobretudo aos seus concorrentes.
Não acabaríamos nunca de recensear os
exemplos desse "funcionalismo", mesmo num autor que, como Kuhn, dá
lugar ao conflito na sua teoria da evolução científica:
"uma
comunidade de especialistas (das ciências) fará o possível para assegurar a progressão
da acumulação dos dados que ela pode utilizar com precisão e
detalhadamente"[13].
Visto que a "função", no
sentido do "funcionalismo" da escola americana, nada mais é que o
interesse dos dominantes (de um campo determinado, ou a classe dominante no campo
da luta de classes) em perpetuar um sistema que esteja em conformidade com seus
interesses (ou a função que o sistema preenche para essa classe particular de
agentes), basta silenciar sobre os interesses (as funções diferenciais),
fazendo da comunidade científica o sujeito das práticas, para cair no
funcionalismo.
Por que a definição do que está em jogo
na luta faz parte da luta (mesmo nas ciências como a matemática, onde o
consenso aparente sobre o que está em jogo é muito alto), esbarramos, sem cessar,
com as antinomias da legitimidade. O interesse apaixonado que os pesquisadores
em ciências sociais têm pelas ciências da natureza não poderia ser compreendido
de outro modo: é a definição dos princípios de avaliação de sua própria prática
que está em jogo na pretensão de impor, em nome da epistemologia ou da
sociologia da ciência, a definição legítima da forma mais legítima de ciência −
a ciência da natureza. Tanto no campo científico quanto no campo das relações
de classe não existem instâncias que legitimam as instâncias de legitimidade;
as reivindicações de legitimidade tiram sua legitimidade da força relativa dos
grupos cujos interesses elas exprimem: à medida que a própria definição dos
critérios de julgamento e dos princípios de hierarquização estão em jogo na
luta, ninguém é bom juiz porque não há juiz que não seja, ao mesmo tempo, juiz
e parte interessada.
Vemos, assim, a ingenuidade da técnica
dos "juízes" a que recorre comumente a tradição científica para
definir as hierarquias características de um campo determinado: hierarquia dos
agentes ou das instituições − as universidades dos EUA; hierarquia dos
problemas, domínios ou métodos; hierarquia dos próprios campos etc. e, a mesma
filosofia ingênua da objetividade que inspira o recurso a "especialistas
internacionais". Como se a posição de observadores estrangeiros pudesse
colocá-los ao abrigo dos parti pris e
das tomadas de posição num momento em que a economia das trocas ideológicas
conhece tantas sociedades multinacionais. E, ainda, como se suas análises
"científicas” do estado da ciência pudessem ser outra coisa que não a
justificação, cientificamente mascarada, do estado particular da ciência ou das
instituições científicas com o qual compactuam.
Veremos adiante que a sociologia da
ciência raramente escapa dessa estratégia de perícia enquanto imposição de
legitimidade que prepara uma conquista de mercado. Por trás das problemáticas
dos especialistas sobre o valor relativo dos regimes universitários se esconde,
inevitavelmente, a questão das condições ótimas para o desenvolvimento da
ciência e, consequentemente, do melhor regime político − os sociólogos
americanos tendem a fazer da "democracia liberal" de estilo americano
a condição da "democracia científica"[14].
A autoridade científica é, pois, uma
espécie particular de capital que pode ser acumulado, transmitido e até mesmo,
em certas condições, reconvertido em outras espécies. Podemos retomar a
descrição de Fred Reif sobre o processo de acumulação de capital científico e
as formas de sua reconversão. Isto no caso particular do campo da física
contemporânea, onde a posse de capital científico tende a favorecer a aquisição
de capital suplementar e onde a carreira científica "bem-sucedida"
torna-se um processo contínuo de acumulação no qual o capital inicial,
representado pelo título escolar, tem um papel determinante:
"Desde
a high school, o futuro homem da ciência tem consciência do papel da competição
e do prestígio no seu futuro êxito. Deve esforçar-se em obter as melhores notas
para ser admitido no college e, mais
tarde, no graduate school. Percebe
que a passagem por um college
reputado é de uma importância decisiva para ele (...) Enfim, ele deve ganhar a
estima de seus professores para garantir-se cartas de recomendação que o
ajudarão a entrar no college e a
obter as bolsas e os prêmios (...) Quando ele estiver procurando emprego,
estará em melhor posição se vier de uma instituição conhecida e se tiver
trabalhado com algum pesquisador renomado. Em todo caso, para ele é essencial
que, no mundo dos homens de primeira classe, se aceite fazer comentários
favoráveis sobre o seu trabalho (...) O acesso a níveis universitários mais
elevados está submetido aos mesmos critérios. A universidade exige de novo
cartas de recomendação escritas por cientistas do Exterior e pode, algumas
vezes, suscitar a formação de um comitê de exame, antes de tomar a decisão de
promover alguém a um cargo de professor titular".
Esse processo continua com o acesso aos
cargos administrativos, às comissões governamentais etc. O pesquisador depende
também de sua reputação junto aos colegas para obter fundos para pesquisa, para
atrair estudantes de qualidade, para conseguir subvenções e bolsas, convites,
consultas, distinções (como Prêmio Nobel, National Academy of Science etc.).
O reconhecimento, marcado e garantido
socialmente por todo um conjunto de sinais específicos de consagração que os
pares-concorrentes concedem a cada um de seus membros, é função do valor
distintivo de seus produtos e da originalidade (no sentido da teoria da
informação) que se reconhece coletivamente à contribuição que ele traz aos
recursos científicos já acumulados. O fato de que o capital de autoridade
proporcionado pela descoberta seja monopolizado pelo primeiro a fazê-la ou,
pelo menos, por aquele que a torna conhecida e reconhecida, explica a
importância e a frequência das questões de prioridade. Se acontece que vários
nomes estejam ligados à primeira descoberta, o prestígio atribuído a cada um
deles diminui na proporção inversa. Aquele que chega a uma descoberta algumas
semanas ou meses depois do outro despendeu seus esforços em pura perda, seus
trabalhos se reduzindo ao estatuto de duplicação sem interesse de um trabalho
já conhecido. Isto explica a precipitação que certos autores demonstram em
publicar seus trabalhos, a fim de evitar que sejam ultrapassados[15].
O conceito de visibility que os autores americanos empregam frequentemente
(trata-se, como sempre, de uma noção de uso corrente no meio universitário)
exprime bem o valor diferencial, distintivo, dessa espécie particular de
capital social: acumular capital é fazer um "nome", um nome próprio,
um nome conhecido e reconhecido, marca que distingue imediatamente seu
portador, arrancando-o como forma visível do fundo indiferenciado, despercebido,
obscuro, no qual se perde o homem comum. Vem daí, sem dúvida, a importância das
metáforas perceptivas, de que a oposição entre brilhante e obscuro é o
paradigma na maioria das taxionomias escolares[16]. A
lógica da distinção funciona plenamente no caso das assinaturas múltiplas, que
reduzem, enquanto tal, o valor distintivo atribuído a cada um dos signatários.
Podemos compreender, assim, o conjunto de observações de Harriet A. Zuckerman[17]
sobre os "modelos da ordem em que os autores de artigos científicos são nomeados",
como o produto das estratégias que visam minimizar a perda de valor distintivo
imposta pelas necessidades da nova divisão de trabalho científico. Assim, para
explicar que os laureados com o Prêmio Nobel não sejam nomeados em primeiro
lugar com mais frequência do que os outros, como era de se esperar, tendo em
vista que os autores são normalmente citados na ordem do valor relativo de suas
contribuições, não é necessário invocar uma moral aristocrática tipo noblesse oblige; basta, com efeito, supor
que a visibilidade de um nome numa série é função, em primeiro lugar, de sua
visibilidade relativa, definida pelo grau que ele ocupa na série e, em segundo
lugar, de sua visibilidade intrínseca, que resulta do fato de que, já
conhecido, ele é mais facilmente reconhecido e retido (um dos mecanismos que
fazem com que, também aqui, o capital leve ao capital). Por compreender que a
tendência a deixar para os outros o primeiro lugar cresça à medida que cresce o
capital possuído e, portanto, o lucro simbólico automaticamente assegurado,
independentemente do grau em que os autores são nomeados[18].
O mercado dos bens científicos tem suas leis, que nada têm a ver com a moral.
Arriscamo-nos a introduzir na ciência das ciências, sob diversos nomes
"eruditos", o que os agentes chamam às vezes de "valores"
ou "tradições" da "comunidade científica", se não soubermos
reconhecer enquanto tais as estratégias que, nos universos onde se tem
interesse no desinteresse, tendem a dissimular as estratégias. Essas
estratégias de segunda ordem, através das quais nos colocamos dentro das
regras, permitem somar às satisfações do interesse bem-compreendido os lucros
mais ou menos universalmente prometidos às ações que não têm outra determinação
aparente senão a do respeito puro e desinteressado da regra.
Capital
científico e propensão a investir
A estrutura do campo científico se
define, a cada momento, pelo estado das relações de força entre os
protagonistas em luta, agentes ou instituições, isto é, pela estrutura da
distribuição do capital específico, resultado das lutas anteriores que se
encontra objetivado nas instituições e nas disposições e que comanda as
estratégias e as chances objetivas dos diferentes agentes ou instituições.
Basta perceber, aqui como em qualquer outro lugar, a relação dialética que se
estabelece entre as estruturas e as estratégias − por meio das disposições −
para fazer desaparecer a antinomia entre a sincronia e a diacronia, entre a
estrutura e a História. A estrutura da distribuição do capital científico está
na base das transformações do campo científico e se manifesta por intermédio
das estratégias de conservação ou de subversão da estrutura que ela mesma
produz. Por um lado, a posição que cada agente singular ocupa num dado momento
na estrutura do campo científico é a resultante, objetivada nas instituições e
incorporada nas disposições, do conjunto de estratégias anteriores desse agente
e de seus concorrentes (elas próprias dependentes da estrutura do campo, pois
resultam das propriedades estruturais da posição a partir da qual são
engendradas). Por outro lado, as transformações da estrutura do campo são o
produto de estratégias de conservação ou de subversão que têm seu princípio de
orientação e eficácia nas propriedades da posição que ocupam aqueles que as
produzem no interior da estrutura do campo.
Isso significa que, num determinado
estado do campo, os investimentos dos pesquisadores dependem tanto na sua
importância (medida, por exemplo, em tempo dedicado à pesquisa) quanto na sua
natureza (e, particularmente, no grau do risco assumido) da importância de seu
capital atual e potencial de reconhecimento e de sua posição atual e potencial
no campo. Segundo uma lógica muitas vezes observada, as aspirações − o que
chamamos muitas vezes de "ambições científicas" são tanto mais altas
quanto o capital de reconhecimento é elevado: a posse do capital que o sistema
escolar confere, sob a forma de um título raro, desde o começo da carreira
científica, implica e supõe − através de mediações complexas − a busca de objetivos
elevados, socialmente desejados e garantidos por esse título. Assim, tentar
medir a relação estatística que se estabelece entre o prestígio de um
pesquisador e o prestígio de seus títulos escolares de origem (Grande escola ou
faculdade francesa, universidade que conferiu o doutoramento nos EUA), uma vez controlados os efeitos de sua
produtividade[19],
é assumir implicitamente a hipótese de que a produção e o prestígio atual são
independentes (entre eles) e independentes dos títulos de origem. De fato, à
medida que o título, enquanto capital escolar reconvertível em capital
universitário e científico, encerra uma trajetória provável, ele comanda, por
meio das "aspirações razoáveis" que ele autoriza, toda a relação com
a carreira científica − escolha dos assuntos mais ou menos
"ambiciosos", uma maior ou menor produtividade etc. De maneira que o
efeito do prestígio das instituições não se exerce somente de maneira direta,
"contaminando" o julgamento das capacidades científicas manifestadas
na quantidade e na qualidade dos trabalhos, ou de maneira indireta, por meio de
contatos com os mestres mais prestigiados que a elevada origem escolar garante
(frequentem ente associada a uma elevada origem social), mas ainda pela
mediação da "causalidade do provável", isto é, pela virtude das
aspirações que autorizam e que favorecem as chances objetivas (poderíamos fazer
observações análogas a respeito dos efeitos da origem social para títulos
escolares de origem semelhantes). Assim, a oposição, por exemplo, entre os investimentos
seguros da pesquisa intensiva e especializada e os investimentos arriscados da
pesquisa extensiva que pode conduzir a vastas sínteses teóricas
(revolucionárias ou até ecléticas) tende a produzir a oposição entre
trajetórias elevadas e trajetórias inferiores no campo escolar e científico[20].
Do mesmo modo, para compreender as transformações das práticas científicas que
acompanham o avanço na carreira é preciso relacionar as diferentes estratégias
científicas (por exemplo, os investimentos maciços e extensivos unicamente em
pesquisas ou investimentos moderados e intensivos em pesquisas associados a
investimentos na administração científica), não com os grupos de idade, posto
que cada campo define suas próprias leis de envelhecimento social[21],
mas com a importância do capital possuído, que, definindo a cada momento as
chances objetivas de lucro, define as estratégias "razoáveis" de
investimento ou desinvestlmento. Nada é mais artificial que descrever as
propriedades genéricas das diferentes fases da "carreira científica"[22].
Ainda que se trate da "carreira média" num campo particular[23].
Com efeito, toda carreira se define fundamentalmente pela posição que ela ocupa
na estrutura do sistema de carreiras possíveis[24].
Existem tantos tipos de trajetórias quantas maneiras de entrar, de se manter e
de sair da pesquisa. Toda descrição que se limita às características gerais de
uma carreira qualquer faz desaparecer o essencial, isto é, as diferenças. O
decréscimo da quantidade e da qualidade do trabalho científico com a idade, que
podemos observar no caso das carreiras "médias" e que aparentemente
se compreende se admitimos que o crescimento do capital de consagração tende a
reduzir a urgência da alta produtividade que foi necessária para obtê-lo, só se
torna completamente inteligível se compararmos as carreiras médias com as
carreiras mais elevadas, que são as únicas a conferir até o fim os lucros
simbólicos necessários à reativação contínua da propensão a investir,
retardando, assim, continuamente o desinvestimento.
A
ordem (científica) estabelecida
A forma que reveste a luta
inseparavelmente científica e política pela legitimidade depende da estrutura
do campo, isto é, da estrutura da distribuição do capital específico de
reconhecimento científico entre os participantes na luta. Esta estrutura pode
teoricamente variar entre dois limites teóricos, de fato jamais alcançados: de
um lado, a situação de monopólio de capital específico de autoridade
científica, de outro a situação de concorrência perfeita supondo a distribuição
equitativa desse capital entre todos os concorrentes. O campo científico é
sempre o lugar de uma luta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente
dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se
apropriarem do produto do trabalho científico que o conjunto dos concorrentes
produz pela sua colaboração objetiva ao colocarem em ação o conjunto dos meios
de produção científica disponíveis. Em todo campo se põem, com forças mais ou
menos desiguais segundo a estrutura da distribuição do capital no campo (grau
de homogeneidade), os dominantes, ocupando as posições mais altas na estrutura
de distribuição de capital científico, e os dominados, isto é, os novatos, que
possuem um capital científico tanto mais importante quanto maior a importância
dos recursos científicos acumulados no campo.
Tudo parece indicar que, à medida que
crescem os recursos científicos acumulados, e que, em consequência da elevação
correlativa do direito de entrada, eleva-se o grau de homogeneidade entre os
concorrentes, a concorrência científica tende a distinguir-se em sua forma e
intensidade daquela que se observava em estados anteriores desses mesmos campos
ou em outros campos onde os recursos acumulados são menos importantes e o grau
de heterogeneidade mais elevado. Esquecendo de levar em conta essas
propriedades estruturais e morfológicas dos diferentes campos (o que mais ou
menos eles sempre fazem), os sociólogos da ciência se expõem a universalizar um
caso particular. É assim que a oposição entre as estratégias de conservação e
as estratégias de subversão − que será analisada a seguir − tende a se
enfraquecer na medida em que a homogeneidade do campo cresce e que decresce
correlativamente a probabilidade das grandes revoluções peri6dicas em proveito das
inúmeras pequenas revoluções permanentes.
Na luta que os opõem, os dominantes e os
pretendentes − os novatos, como dizem os economistas − recorrem a estratégias
antagônicas profundamente opostas em sua lógica e no seu princípio. Os
interesses (no duplo sentido da palavra) que os motivam e os meios que eles
podem colocar em ação para satisfazê-Ios dependem estreitamente de sua posição
no campo, isto é, de seu capital científico e do poder que ele lhes confere
sobre o campo da produção e circulação científicas e sobre os lucros que ele
produz. Os dominantes consagram-se às estratégias de conservação, visando 17
assegurar a perpetuação da ordem científica estabelecida com a qual compactuam.
Essa ordem não se reduz, conforme comumente se pensa, à ciência oficial,
conjunto de recursos científicos herdados do passado que existem no estado
objetivado sob forma de instrumentos, obras, instituições etc., e no estado
incorporado sob forma de hábitos científicos, sistemas de esquemas gerados de
percepção, de apreciação e de ação, que são o produto de uma forma específica
de ação pedagógica e que tornam possível a escolha dos objetos, a solução dos
problemas e a avaliação das soluções. Essa ordem engloba também o conjunto das
instituições encarregadas de assegurar a produção e a circulação dos bens
científicos ao mesmo tempo que a reprodução e a circulação dos produtores (ou
reprodutores) e consumidores desses bens, isto é, essencialmente o sistema de
ensino, único capaz de assegurar à ciência oficial a permanência e a
consagração, inculcando sistematicamente habitus
científicos ao conjunto dos destinatários legítimos da ação pedagógica, em
particular a todos os novatos do campo da produção propriamente dito. Além das
instâncias especificamente encarregadas da consagração (academias, prêmios
etc.), ele compreende ainda as revistas científicas que, pela seleção que
operam em função de critérios dominantes, consagram produções conformes aos
princípios da ciência oficial, oferecendo, assim, continuamente, o exemplo do
que merece o nome de ciências, e exercendo uma censura de fato sobre as
produções heréticas, seja rejeitando-as expressamente ou desencorajando
simplesmente a intenção de publicar pela definição do publicável que elas
propõem[25].
É o campo que designa a cada agente suas
estratégias, ainda que se trate da que consiste em derrubar a ordem científica
estabelecida. Segundo a posição que eles ocupam na estrutura do campo (e, sem
dúvida, também segundo as variáveis secundárias tais como a trajetória social,
que comanda a avaliação das oportunidades), os "novatos" podem
orientar-se para as colocações seguras das estratégias de sucessão, próprias
para lhes assegurar, ao término de uma carreira previsível, os lucros
prometidos aos que realizam o ideal oficial da excelência científica pelo preço
de inovações circunscritas aos limites autorizados; ou para as estratégias de
subversão, investimentos infinitamente mais custosos e arriscados que só podem
assegurar os lucros prometidos aos detentores do monopólio da legitimidade
científica em troca de uma redefinição completa dos princípios de legitimação
da dominação. Os novatos que recusam as carreiras traçadas só poderão
"vencer os dominantes em seu próprio jogo" se empenharem um
suplemento de investimentos propriamente científicos sem poder esperar lucros
importantes, pelo menos a curto prazo, posto que eles têm contra si toda a
lógica do sistema.
Por um lado, a invenção segundo uma arte
de inventar já inventada, que, resolvendo os problemas susceptíveis de serem
colocados nos limites da problemática estabelecida pela aplicação de métodos
garantidos (ou trabalhando para salvaguardar os princípios contra as
contestações heréticas), tende a fazer esquecer que ela só resolve os problemas
que pode colocar ou só coloca os problemas que pode resolver. Por outro lado, a
invenção herética que, colocando em questão os próprios princípios da antiga
ordem científica, instaura uma alternativa nítida, sem compromisso possível,
entre dois sistemas mutuamente exclusivos. Os fundadores de uma ordem
científica herética rompem o contrato de troca que os candidatos à sucessão
aceitam ao menos tacitamente: não reconhecendo senão o princípio da legitimação
que pretendem impor, eles não aceitam entrar no ciclo das trocas de
reconhecimento que assegura a transmissão regularizada da autoridade científica
entre os detentores e os pretendentes (quer dizer, muito frequentemente, entre
membros de gerações diferentes, o que leva muitos observadores a reduzirem os
conflitos de legitimidade a conflitos de geração). Recusando todas as cauções e
garantias que a antiga ordem oferece, recusando a participação (progressiva) ao
capital coletivamente garantido que se realiza segundo procedimentos regulados
de um dos contratos de delegação, eles realizam a acumulação inicial através de
um golpe de força, por uma ruptura desviando em proveito próprio o crédito de
que se beneficiavam os antigos dominantes, sem conceder-lhes a contrapartida do
reconhecimento que lhes oferecem aqueles que aceitam se inserir na continuidade
de uma linhagem[26].
Tudo leva a crer que a propensão às
estratégias de conservação ou às estratégias de subversão é tanto mais
dependente das disposições em relação à ordem estabelecida quanto maior for a
dependência da ordem científica com relação à ordem social dentro da qual ela
está inserida. Tem, portanto, fundamento supor que a relação que Lewis Feuer
estabelece entre as inclinações universitária e politicamente subversivas do
jovem Einstein e seu trabalho cientificamente revolucionário, vale, de certa
maneira, a fortiori para as ciências
como a biologia ou a sociologia que estão longe de terem alcançado o grau de
autonomia da física dos tempos de Einstein. A oposição que esse autor
estabelece entre as disposições revolucionárias de Einstein, membro, em sua
juventude, de um grupo de estudantes judeus revoltados contra a ordem
científica estabelecida e contra a ordem estabelecida, e as disposições
reformistas que demonstra um Poincaré, perfeito representante da
"república dos professores", homem da ordem e pela reforma ordenada,
tanto na ordem política quanto na científica, não pode deixar de evocar a
oposição homóloga entre Marx e Durkheim.
"Em
seu esforço de reflexão original", diz Lewis Feuer, "Einstein foi
apoiado por um estranho pequeno círculo de jovens intelectuais, cheios de
sentimentos de revolta social e científica própria de sua geração e que
formavam uma contracomunidade científica fora da instituição oficial, um grupo
de boêmios cosmopolitas levados, nesses tempos revolucionários, a considerar o
mundo de uma maneira nova"[27].
Superando a oposição ingênua entre habitus individuais e condições sociais
de sua realização, Lewis Feuer sugere a hipótese, corroborada pelos recentes
trabalhos sobre o sistema de ensino científico[28],
de que o fácil e rápido acesso às responsabilidades administrativas que se
ofereciam na França aos alunos das Grandes Escolas científicas tendia a
desencorajar a revolta contra a ordem (científica) estabelecida. Nos grupos de
intelectuais marginais, ao contrário, a revolta encontrava um terreno
favorável, posto que estes se achavam em situação de precário equilíbrio entre
o sistema de ensino e a boêmia revolucionária:
"Podemos,
na verdade, arriscar a hipótese de que, precisamente porque a França era uma
'república de professores' e porque os mais brilhantes alunos da escola
politécnica eram rapidamente absorvidos para a alta função militar e a
engenharia civil, não seria verossímil que uma ruptura radical com os
princípios recebidos pudesse ter lugar. Uma revolução científica encontra seu
terreno mais fértil numa contracomunidade. Quando o jovem cientista encontra
muito rapidamente responsabilidades administrativas, sua energia está menos
disponível para a sublimação no radicalismo de uma pesquisa pura. Tratando-se
da criatividade revolucionária, a própria abertura da administração francesa
aos talentos científicos constitui, talvez, um fator explicativo do
conservadorismo científico, mais importante que todos os outros fatores
habitualmente adiantados."
Da
revolução inaugural à revolução permanente
Quais são as condições sociais que devem
ser preenchidas para que se instaure um jogo social onde prevaleça a ideia
verdadeira, porque os que dele participam têm interesse na verdade, em vez de
ter, como em outros jogos, a verdade de seus interesses? É evidente que não se
trata de fazer desse universo social de exceção uma exceção das leis
fundamentais de todo campo, e, em particular, da lei do interesse que pode
conferir uma violência impiedosa às lutas científicas mais "desinteressadas"
(o "desinteresse" não sendo senão, como vimos, um sistema de
interesses específicos: tanto artísticos e religiosos quanto científicos, que a
relativa indiferença para com os objetos ordinários do interesse, dinheiro,
honras etc., implica). O fato de que o campo científico comporte sempre uma
parte de arbitrário social na medida em que ele se serve dos interesses
daqueles que, no campo e/ou fora dele, são capazes de receber os proveitos, não
exclui que, sob certas condições, a própria lógica do campo (em particular, a
luta entre dominantes e recém-chegados e a censura mútua que daí resulta)
exerça um desvio sistemático dos fins que transforma continuamente a busca dos
interesses científicos privados (no duplo sentido da palavra) em algo de proveitoso
para o progresso da ciência[29].
As teorias da ciência e de suas
transformações predispõem-se a preencher funções ideológicas nas lutas dentro
do campo científico (ou nos campos que pretendem a cientificidade, como o das
ciências sociais) porque elas universalizam as propriedades ligadas a estados
particulares desses campos: é o caso da teoria positivista que confere à
ciência o poder de resolver todas as questões que ela coloca (desde que
cientificamente colocadas) e de impor, pela aplicação de critérios objetivos, o
consenso sobre suas soluções; inscreve, assim, o progresso na rotina da
"ciência normal" e age como se pudesse passar de um sistema para
outro − de Newton a Einstein, por exemplo − pela simples acumulação de
conhecimentos, pelo refinamento das medidas e pela retificação dos princípios.
O mesmo pode ser dito da teoria de Kuhn que, válida para as revoluções
inaugurais da ciência debutante (de que a revolução copernicana nos dá o
paradigma no verdadeiro sentido da palavra) retoma simplesmente o modelo
positivista invertido[30].30
Na verdade, o campo da astronomia onde se dá a revolução copernicana se opõe ao
campo da física do mesmo modo que o mercado "submerso nas relações
sociais" (embedded in social
relationships) das sociedades arcaicas se opõe, segundo Polanyi, ao
"mercado auto-regulado" (self-regulating
market) das sociedades capitalistas. Não é por acaso que a revolução
copernicana implica a reivindicação expressa de autonomia por um campo
científico ainda "imerso" no campo religioso e no campo da filosofia
e, por seu intermédio, no campo da política. Esta reivindicação implica a
afirmação do direito dos cientistas a decidir as questões científicas ("a
matemática aos matemáticos") em nome da legitimidade específica que lhes
confere sua competência.
Enquanto o método científico e a censura
e/ou a assistência que ele impõe ou propõe não estejam objetivados em
mecanismos e em disposições, as rupturas científicas tomam necessariamente a
forma de revoluções contra a instituição, e as revoluções contra a ordem
científica estabelecida permanecem inseparáveis das revoluções contra a ordem
estabelecida. Quando, ao contrário, graças a essas revoluções originárias, se
encontra excluído qualquer recurso a armas ou poderes, ainda que puramente
simbólicos, diferentes dos que são comuns ao campo, o próprio funcionamento
deste passa a definir cada vez mais completamente não apenas a ordem ordinária
da "ciência normal", mas também as rupturas extraordinárias, essas
"revoluções ordenadas", como diz Bachelard, que estão inscritas na
lógica da história da ciência, isto é, da polêmica científica[31].
Quando o método está inscrito nos mecanismos do campo, a revolução contra a
ciência instituída se opera com a assistência de uma instituição que fornece as
condições institucionais da ruptura; o campo torna-se o lugar de uma revolução
permanente, mas cada vez mais desprovida de efeitos políticos. É por isto que
esse universo da revolução permanente pode ser também, sem contradição, o do
"dogmatismo legítimo"[32]:
o equipamento científico necessário à revolução científica só pode ser
adquirido na e pela cidadela científica. Na medida em que aumentam os recursos
científicos acumulados, torna-se cada vez mais importante o capital científico
incorporado necessário para apropriá-los e ter, assim, acesso aos problemas e
instrumentos científicos, isto é, à luta científica (direito de entrada)[33].
Segue-se daí que a revolução científica não interessa aos mais desprovidos, mas
aos que são, ao contrário, entre os novatos, os mais ricos cientificamente[34].
A antinomia entre ruptura e continuidade se enfraquece num campo que, ignorando
a distinção entre as fases revolucionárias e a "ciência normal",
encontra na ruptura contínua o verdadeiro princípio de sua continuidade;
correlativamente, a oposição entre as estratégias de sucessão e as estratégias
de subversão tendem cada vez mais a perder seu sentido posto que a acumulação
do capital necessário à realização das revoluções e do capital que as
revoluções permitem obter tende sempre, cada vez mais, a se realizar segundo os
padrões regulamentados de uma carreira[35].
A transmutação do antagonismo anárquico
dos interesses particulares em dialética científica torna-se cada vez mais
total à medida que o interesse que todo produtor de bens simbólicos tem em
produzir produtos "que não sejam somente interessantes para ele
mesmo," como afirma Pred Reif, "mas também importantes para os
outros" (produtos próprios a obter dos outros que reconheçam a sua
importância e a de seu autor) se choca com concorrentes mais capazes de colocar
os mesmos meios a serviço das mesmas intenções − o que leva, cada vez mais
frequentemente, com as descobertas simultâneas, ao sacrifício dos interesses de
um dos produtores ou dos dois[36];
ou, dito de outro modo, na medida em que o interesse privado que cada agente
singular tem em combater e dominar seus concorrentes para obter deles o
reconhecimento está munido de todo um conjunto de instrumentos que conferem
plena eficácia à sua intenção polêmica dando-lhe todo o alcance universal de
uma censura metódica. E, de fato, à medida que aumentam os recursos acumulados
e o capital necessário à sua apropriação, o mercado onde o produto científico
pode ser colocado se restringe, sem cessar, a concorrentes cada vez mais
fortemente armados de instrumentos para criticá-lo racionalmente e desacreditar
seu autor: o antagonismo, que é o princípio da estrutura e da transformação de
todo campo social, tende a tomar-se cada vez mais radical e fecundo porque o
acordo forçado onde se engendra a razão deixa cada vez menos lugar ao impensado
e a doxa. A ordem coletiva da ciência
se elabora na e pela anarquia concorrencial das ações interessadas, cada agente
encontrando-se dominado − e, com ele, todo o grupo − pelo entrecruzamento
aparentemente incoerente das estratégias individuais. Assim, a oposição entre
os aspectos "funcionais" e "disfuncionais" do funcionamento
de um campo científico dotado de uma grande autonomia não tem sentido: as
tendências mais "disfuncionais" (por exemplo, a propensão ao segredo
e a recusa de cooperação) estão inscritas nos próprios mecanismos que engendram
as disposições mais "funcionais". Na medida em que o "método
científico se inscreve nos mecanismos sociais que regulam o funcionamento do
campo e que se encontra, assim, dotado da objetividade superior de uma lei
social imanente, pode realmente objetivar-se em instrumentos capazes de
controlar e algumas vezes dominar aqueles que o utilizam e nas disposições
duravelmente constituídas que a instituição escolar produz. Essas disposições
encontram um reforço contínuo nos mecanismos sociais que, achando suporte no
materialismo racional. da ciência objetivada e incorporada, produzem controle e
censura, mas também invenção e ruptura[37].
A
ciência e os doxósofos
A ciência jamais teve outro fundamento
senão o da crença coletiva em seus fundamentos, que o próprio funcionamento do
campo científico produz e supõe. A própria orquestração objetiva dos esquemas
práticos inculcados pelo ensinamento explícito e pela familiarização −
fundamento do consenso do que está em jogo no campo, isto é, dos problemas, dos
métodos e das soluções imediatamente percebidos como científicos − encontra seu
fundamento no conjunto dos mecanismos institucionais que asseguram a seleção
social e escolar dos pesquisadores (em função, por exemplo, da hierarquia
estabelecida das disciplinas), a formação dos agentes selecionados, o controle
do acesso aos instrumentos de pesquisa e de publicação etc[38].
O campo de discussão que a ortodoxia e a heterodoxia desenham, através de suas
lutas, se recorta sobre o fundo do campo da doxa,
conjunto de pressupostos que os antagonistas admitem como sendo evidentes,
aquém de qualquer discussão, porque constituem a condição tácita da discussão[39]:
a censura que a ortodoxia exerce − e que a heterodoxia denuncia − esconde uma
censura ao mesmo tempo mais radical e invisível porque constitutiva do próprio
funcionamento do campo, que se refere ao conjunto do que é admitido pelo
simples fato de pertencer ao campo, o conjunto do que é colocado fora da discussão
pelo fato de aceitar o que está em jogo na discussão, isto é, o consenso sobre
os objetos da dissensão, os interesses comuns que estão na base dos conflitos
de interesse, todo o nãodiscutido, o não-pensado, tacitamente mantidos fora dos
limites da luta[40].
Dependendo do grau de autonomia do campo
com relação às determinações externas, é maior a parte de arbitrário social
englobada ao sistema de pressupostos constitutivos do campo considerado. Isto
significa que, no espaço abstrato da teoria, qualquer campo científico − o das
ciências sociais ou da matemática, hoje, ou o da alquimia ou da astronomia
matemática do tempo de Copérnico − pode estar situado em algum ponto entre os
dois limites representados, de um lado, pelo campo religioso (ou o campo da
produção literária), no qual a verdade oficial nada mais é do que a imposição
legítima (isto é, arbitrária, e não reconhecida enquanto tal) de um arbitrário
cultural exprimindo o interesse específico dos dominantes − dentro do campo e
fora dele − e, de outro lado, por um campo científico que baniria qualquer
elemento de arbitrário (ou de não-pensado) social e onde os mecanismos sociais
realizariam a imposição necessária das normas universais da razão.
A questão que assim se coloca é a do
grau de arbitrário social da crença que o funcionamento do campo produz e que é
a condição de seu funcionamento ou, o que dá no mesmo, a questão do grau de
autonomia do campo (em relação, primeiro, à demanda social da classe dominante)
e das condições sociais, internas e externas, dessa autonomia. O princípio de
todas as diferenças entre campos
científicos − capazes de produzir e de satisfazer um interesse propriamente
científico e de manter, assim, um processo dialético interminável − e campos de produção de discurso eruditos
− onde o trabalho coletivo só tem por efeito e função perpetuar o campo
idêntico a ele mesmo, produzindo, tanto dentro quanto fora, a crença no valor
autônomo dos objetivos e dos objetos que ele produz − reside na relação de dependência pela aparência de independência em
relação às demandas externas: os doxósofos, cientistas aparentes e cientistas
da aparência, só podem legitimar o despojamento que eles operam pela
constituição arbitrária de um saber esotérico inacessível ao profano e a
delegação que eles exigem ao se arrogarem o monopólio de certas práticas ou a
reflexão sobre elas, com a condição de imporem a crença de que sua falsa
ciência é perfeitamente independente das demandas sociais e que ela só satisfaz
tão bem porque afirma sua grande recusa de servi-las.
De Heidegger falando das
"massas" e das "elites" na linguagem altamente eufemística
do "autêntico" e do "inautêntico" aos politicólogos
americanos, reproduzindo a visão oficial do mundo social nas semi-abstrações de
um discurso descritivo-normativo, é sempre a mesma estratégia da falsa ruptura que define o jargão erudito por oposição à linguagem
científica. Onde a linguagem científica coloca aspas, como observa Bachelard,
para assinalar que as palavras da linguagem ordinária ou da linguagem
científica anterior que ela conserva estão completamente redefinidas e retiram
seu sentido do novo sistema teórico[41], a
linguagem erudita usa aspas ou neologismos somente para manifestar
simbolicamente uma distância e uma ruptura fictícias em relação ao senso comum:
não dispondo de nenhuma autonomia real, ela só pode, com efeito, produzir
completamente seu efeito ideológico conservando-se suficientemente transparente
para continuar evocando a experiência e a expressão ordinária que ela define e
denega.
As estratégias da falsa ruptura exprimem
a verdade objetiva de campos que só dispõem de uma falsa autonomia: com efeito,
enquanto a classe dominante concede às ciências da natureza uma autonomia que
se mede pelo seu grau de interesse nas aplicações das técnicas científicas na
economia, ela nada tem a esperar das ciências sociais, a não ser, no melhor dos
casos, uma contribuição particularmente preciosa para a legitimação da ordem
estabelecida e um reforço do arsenal dos instrumentos simbólicos de dominação.
O desenvolvimento tardio e sempre ameaçado das ciências sociais aí está para
testemunhar que o progresso em direção à autonomia real − que condiciona e
supõe, ao mesmo tempo, a instauração de mecanismos constitutivos de um campo
científico auto-regulado e autárquico − se choca, necessariamente, com
obstáculos desconhecidos alhures: e não pode ser de outro modo, porque o que
está em jogo na luta interna pela autoridade científica no campo das ciências
sociais, isto é, o poder de produzir, impor e inculcar a representação legítima
do mundo social, é o que está em jogo entre as classes no campo da política[42].
Segue-se daí que as posições na luta interna não podem jamais atingir o grau de
independência com relação às posições nas lutas externas que se observa no
campo das ciências da natureza. A ideia de uma ciência neutra é uma ficção, e
uma ficção interessada, que permite fazer passar por científico uma forma
neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque
particularmente irreconhecível, da representação dominante do mundo social[43].
Desvendando os mecanismos sociais que asseguram a manutenção da ordem
estabelecida, cuja eficácia propriamente simbólica repousa no desconhecimento
de sua lógica e de seus efeitos, fundamento de um reconhecimento sutilmente
extorquido, a ciência social toma necessariamente partido na luta política.
Portanto, quando ela consegue instaurar-se (o que supõe certas condições
preenchidas, correlativas a um estado determinado da relação de forças entre as
classes), a luta entre a ciência e a falsa ciência dos doxósofos (que podem
reclamar para si as mais revolucionárias tradições teóricas) traz,
necessariamente, uma contribuição para a luta entre as classes, que, pelo menos
neste caso, não tem igualmente o mesmo interesse em relação à verdade
científica.
A questão fundamental da sociologia da
ciência toma, no caso das ciências sociais, uma forma particularmente
paradoxal: Quais são as condições sociais de possibilidade do desenvolvimento
de uma ciência liberta das pressões e das demandas sociais, sabendo que, neste
caso, os progressos no sentido da racionalidade científica não são progressos
no sentido da neutralidade política? Não se pode negar a questão a o que fazem,
por exemplo, aqueles que imputam as particularidades das ciências sociais ao
fato de sua recentidade, em nome de uma filosofia ingenuamente evolucionista
que coloca a ciência oficial no termo da evolução. Na verdade, a teoria do
atraso só é verdadeira, paradoxalmente, no caso da sociologia oficial e, mais
precisamente, da sociologia oficial da sociologia. Basta, com efeito, ter em
mente as célebres análises de Alexander Gerschenkron sobre o "atraso
econômico", para compreender os traços mais característicos dessas formas
particulares de discurso erudito que são as falsas ciências. Gerschenkron nota,
com efeito, que, quando o processo de industrialização começa com atraso, ele
apresenta diferenças sistemáticas em relação àqueles que se deram em países
mais desenvolvidos, não somente no que concerne às "estruturas produtivas
e organizacionais", isto porque ele coloca em ação "instrumentos
institucionais" originais e porque se desenvolve num clima ideológico
diferente[44].
É a existência de ciências mais avançadas − grandes fornecedoras não somente de
métodos e de técnicas geralmente empregadas fora das condições técnicas e
sociais de validade, mas também de exemplos − que permite à sociologia oficial
atribuir-se aparências de cientificidade: a ostentação de autonomia pode tomar,
aqui, uma forma sem precedentes, de que o esoterismo, sabiamente fomentado das
velhas tradições letradas, representa uma pobre antecipação. A sociologia
oficial visa não a se realizar enquanto ciência, mas a realizar a imagem
oficial da ciência que a sociologia oficial da ciência, espécie de instância
jurídica que a comunidade (a palavra se aplica perfeitamente neste caso) dos
sociólogos oficiais se atribui, tem por função fornecer-lhe, ao preço de uma
reinterpretação positivista da prática científica das ciências da natureza.
Para ficarmos completamente convencidos
da função ideológica justificadora que a história social das ciências sociais
preenche, tal como é praticada no establishment
americano[45],
bastaria recensear o conjunto dos trabalhos direta ou indiretamente consagrados
à competição, palavra-chave de toda sociologia da ciência americana que, na sua
obscuridade de conceito nativo promovido à dignidade científica, condensa todo
o não-pensado (a doxa) dessa
sociologia. A tese segundo a qual produtividade e competição estão diretamente
ligadas[46]
inspira-se numa teoria funcionalista da competição, variante sociológica da
crença nas virtudes do "mercado livre". A palavra inglesa competition designa também o que
chamamos de concorrência: reduzindo toda competição a competição entre
universidades ou fazendo da competição entre universidades a condição da
competição entre pesquisadores, nunca nos questionamos sobre os obstáculos à
competição científica, imputáveis à competição ao mesmo tempo econômica e
científica que tem lugar no academic
market place.
A competição
que essa ciência institucional reconhece é a competição que se dá dentro dos
limites da conveniência social que faz tanto mais fortemente obstáculo à
verdadeira competição científica capaz de colocar em questão a ortodoxia −
quanto mais carregado de arbitrário social for o universo em que estivemos
situados. Pode-se compreender, portanto, que a exaltação da unanimidade do
"paradigma" possa coincidir com a exaltação da competição − ou,
ainda, que se possa, segundo os autores, censurar a sociologia européia por
pecar pelo excesso ou pela falta de competição.
Além das ferramentas e das técnicas −
computadores e programas de reprocessamento automático
dos dados, por exemplo − a sociologia oficial toma emprestado da imaginação
positivista um modelo de prática científica representada com todos os atributos
simbólicos da respeitabilidade científica: máscaras e artifícios tais como os gadgets tecnológicos e o kitsh retórico, e um modelo da
organização do que ela chama de "comunidade científica", concebido
pela sua pobre ciência das organizações. Mas a sociologia oficial não tem o
monopólio das leituras interessadas da história da ciência: a dificuldade
particular que a sociologia tem em pensar cientificamente
a ciência relaciona-se com o fato de que ela está situada na parte mais baixa
da hierarquia social das ciências. Seja elevando-se para pensar as ciências
mais científicas, melhor do que elas próprias o fazem, seja abaixando-se para
registrar a imagem triunfante que a hagiografia científica produz e propaga, a
sociologia tem sempre a mesma dificuldade de se pensar enquanto ciência, isto
é, pensar sua posição na hierarquia social das ciências.
Isso pode ser visto, com toda clareza,
nas reações que o livro de Thomas Kuhn[47]
suscitou e que dariam um material experimental de grande qualidade para uma
análise empírica das ideologias da ciência e de suas relações com a posição de
seus autores no campo científico. É verdade que esse livro, que nunca se sabe
se está descrevendo ou prescrevendo a lógica, da mudança científica[48],
convida os leitores a nele procurarem respostas à questão da boa ou má ciência[49].
Por parte daquele que a linguagem nativa chama de "radicais", leu-se
no livro de Thomas Kuhn um convite à "revolução" contra o
"paradigma"[50],
ou uma justificação do pluralismo liberal das world-views[51];51
duas tomadas de posição correspondendo, sem dúvida, a diferentes posições no
campo. Por parte dos mantenedores da ordem científica estabelecida, nele um
convite para tirar a sociologia de uma fase "pré-paradigmática" impondolhe uma constelação unificada de
crenças, de valores e de técnicas que simboliza a tríade capitolina de Parsons
e de Lazarsfeld reconciliados com Merton. A exaltação da quantificação, da
formalização e da neutralidade ética, o desdém pela "filosofia" e a
rejeição da ambição sistemática em proveito da minúcia da verificação empírica
e da tímida conceptualização dita operacional das "teorias de médio
alcance", são os traços obtidos por uma transmutação desesperadamente
transparente do ser em dever-ser, que encontram sua justificação na necessidade
de contribuir para o reforço dos "valores comunitários" tidos como
condição de "ascensão".
Falsa ciência destinada a produzir e a
manter a falsa consciência, a sociologia oficial (de quem a politicologia é,
hoje, o mais belo ornamento) deve ostentar objetividade e "neutralidade
ética" (isto é, neutralidade na luta entre as classes cuja existência, por
outro lado, ela nega) manter as aparências de uma ruptura categórica com a
classe dominante e suas demandas ideológicas, multiplicando os sinais
exteriores de cientificidade: temos, assim, do lado do "empírico", a ostentação tecnológica e, do lado da
"teoria", a retórica do "neo" (florescente também no campo
artístico) que imita a acumulação científica aplicando a uma obra ou a um
conjunto de obras do passado[52] o
procedimento tipicamente erudito da "releitura" − operação
paradigmaticamente escolar de simples reprodução (ou de reprodução simples) feita
para produzir, nos limites do campo e de suas crenças, as aparências da
"revolução". É preciso analisar sistematicamente essa retórica de cientificidade através da
qual a "comunidade" dominante produz a crença no valor científico de
seus produtos e na autoridade científica de seus membros: seja por exemplo, o
conjunto das estratégias destinadas a dar aparência de acumulação, tais como a
referência às fontes canônicas, geralmente reduzidas, como se diz, à "sua
mais simples expressão" (pensemos, por exemplo, no destino póstumo do Suicídio), isto é, protocolos insípidos
imitando o frio rigor do discurso científico, e aos artigos recentes, na medida
do possível, sobre o mesmo assunto (é conhecida a oposição entre as ciências
"duras" − hard − e as
ciências "brandas" − soft);
ou ainda as estratégias de fechamento,
que entendem marcar uma separação categórica entre a problemática científica e
os debates profanos e mundanos (sempre presentes mas a título de
"fantasmas na máquina"), isto muitas vezes pelo preço de simples
retraduções linguísticas; ou as estratégias de denegação, que florescem nos
politicólogos, hábeis em realizar o ideal dominante da "objetividade"
num discurso apolítico sobre a política onde a política recai cada só aparece
sob aparências irreconhecíveis e, portanto, irrepreensíveis, da denegação
politicológica[53].
Mas essas estratégias preenchem, além disso, uma função essencial: a circulação
circular dos objetos das ideias, dos métodos e, sobretudo, do reconhecimento no
interior de uma comunidade produz[54],
como todo círculo de legitimidade, um universo de crenças que encontram seu
equivalente tanto no campo religioso quanto no campo da literatura ou da alta
costura[55].
Mas é preciso ainda evitar, aqui, dar à
falsa ciência oficial a significação que lhe confere a crítica
"radical". Apesar de sua discordância sobre o valor que eles conferem
ao "paradigma", princípio de unificação necessário ao desenvolvimento
de ciência num caso, força de repressão arbitrária no outro − ou alternadamente
um e outro, para Kuhn − conservadores e "radicais", adversários e
cúmplices, concordam de fato no essencial: pelo ponto de vista necessariamente
unilateral que eles têm do campo científico ao escolher, pelo menos
inconscientemente, um ou outro dos campos antagonistas, eles não podem perceber
que o controle ou a censura não são exercidos por tal ou tal instância mas pela
relação objetiva entre adversários cúmplices, que, pelo seu próprio antagonismo,
delimitam o campo da discussão legítima, excluindo como sendo absurda, ou
simplesmente impensável, qualquer tentativa de tomada de posição não prevista
(neste caso particular, de colocar, por exemplo, a serviço de uma outra
axiomática científica as ferramentas elaboradas pela ciência oficial)[56].
Expressão levemente eufêmica dos
interesses dos dominados do campo científico, a ideologia "radical"
tende a tratar toda revolução contra a ordem científica estabelecida como
revolução científica. Assim ela faz, como se bastasse que uma
"inovação" fosse excluída da ciência oficial para que ela pudesse ser
considerada cientificamente revolucionária. A ideologia "radical" se
omite, assim, de colocar a questão das condições sociais através das quais uma
revolução contra a ordem científica estabelecida é também uma revolução
científica e não uma simples heresia que visa derrubar a correlação de forças
estabelecida no campo sem transformar os princípios sobre os quais repousa seu
funcionamento[57].
Quanto aos dominantes, inclinados a admitir que a ordem científica na qual
estão colocados todos os seus investimentos (no sentido da economia e da
psicanálise) e de cujos lucros se apropriam é o dever-ser realizado, são
logicamente levados a aderir à filosofia espontânea da ciência que se expressa
na tradição positivista, forma de otimismo liberal que deseja que a ciência
progrida pela força intrínseca da ideia verdadeira e que os mais
"poderosos" sejam também os mais "competentes". Basta
pensar nos antigos estados do campo das ciências da natureza ou no estado atual
das ciências sociais para perceber a função ideológica de sociodicéia dessa
filosofia da ciência que, dando o ideal por realizado, exclui a questão das
condições sociais de realização desse ideal.
Ao se colocar que a própria sociologia
da ciência funciona segundo as leis de funcionamento de todo campo científico,
a sociologia da ciência não se condena de modo algum ao relativismo. Com
efeito, uma sociologia científica da ciência (e a sociologia científica que ela
contribui para tomar possível) só pode constituir-se com a condição de perceber
claramente que às diferentes posições no campo científico associam-se
representações da ciência, estratégias ideológicas disfarçadas em tomadas de
posição epistemológicas através das quais os ocupantes de uma posição
determinada visam justificar sua própria posição e as estratégias que eles
colocam em ação para mantê-la ou melhorá-la e para desacreditar, ao mesmo
tempo, os detentores da posição oposta e suas estratégias. Cada sociólogo é bom
sociólogo de seus concorrentes, a sociologia do conhecimento ou da ciência nada
mais sendo do que a forma mais irrepreensível das estratégias de
desqualificação do adversário enquanto ela tomar por objeto os adversários e
suas estratégias e não o sistema completo
de estratégias, isto é, o campo das
posições a partir do qual elas se engendram[58].
A sociologia da ciência só é tão difícil porque o sociólogo está em jogo no
jogo que ele pretende descrever (seja, primeiramente, a cientificidade da
sociologia e, em segundo lugar, a cientificidade da forma de sociologia que ele
pratica); ele só poderá objetivar o que está em jogo e as estratégias
correspondentes se tomar por objeto não somente as estratégias de seus
adversários científicos, mas o jogo enquanto tal, que comanda também suas
próprias estratégias, ameaçando governar subterraneamente sua sociologia, e sua
sociologia da sociologia.
Extraído de: ORTIZ, Renato (org.). 1983.
Bourdieu – Sociologia. São Paulo:
Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39. p. 122-155.
[1]
Reproduzido de BOURDIEU, P.
Le champ scientifique. Actes de Ia
Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p. 88-104. Tradução de
Paula Montero.
[2]
Duas observações rápidas
para evitar possíveis mal-entendidos. Primeiramente, não se pode reduzir as
relações objetivas que são constitutivas do campo ao conjunto das interações,
no sentido do interacionismo, isto é, ao conjunto das estratégias que, na realidade,
ele determina. Por outro lado, é necessário precisar o que significa ser
socialmente reconhecido. Veremos que o grupo que confere esse reconhecimento
tende, cada vez mais, a reduzir-se ao conjunto dos cientistas (ou concorrentes)
à medida que crescem os recursos científicos acumulados e, correlativamente, a
autonomia do campo.
[3]
O conflito relatado por
Sapolsky entre os partidários da fluorização, isto é, os detentores da
autoridade oficial (health officials), que se estimam os únicos competentes em
matéria de saúde pública, e os adversários dessa inovação, entre os quais
contam-se inúmeros cientistas que, aos olhos oficiais, ultrapassam os
"limites de seu próprio campo de competência", permite perceber
claramente a verdade social da' competência como palavra autorizada e de
autoridade que está em jogo na luta entre os grupos (cf. SAPOLSKY, H. M. Science, voters and the fluoridation
controversy. Science, v. 162, 2S out. 1968, p. 427-33). Nunca o problema da
competência se colocou com tanta acuidade e clareza como nas relações com os
"profanos". (Ver BARNES, S. B. On
the reception of scientific beliefs. In: ____., org. Sociology of science.
Londres, Penguin, 1972. p. 269-91; BOLTANSKI, L. e MALDIDIER, P. Carriere scientifique morale scientifique et vulgarisation.
Information sur les Sciences Sociales,
3 (9), 1970, p. 99- 118.)
[4]
REIF, F. The competitive world of the pure scientist.
Science, 15 dez. 1961, 134 (3494), p. 1957-62.
[5]
Como faz Kuhn, quando
sugere que as "revoluções científicas" só aparecem após o esgotamento
dos paradigmas.
[6]
Deve-se compreender, a
partir da mesma lógica, as transferências de capital de um campo determinado
para um campo socialmente inferior, onde uma competição menos intensa promete
lucro maior ao detentor de um determinado capital científico.
[7]
[Conflito social:
distribuição de recursos intelectuais entre os diferentes tipos de trabalho
sociológico. Conflito intelectual: oposição de ideias sociológicas
rigorosamente formuladas. (N. do T.)] Ver MERTON, R. K. The sociology of science. Chicago e Londres, The University of
Chicago Press, 1973. p. 55.
[8]
Entre as inúmeras
expressões desse credo neutralista, esta é particularmente típica:
"Enquanto profissionais − universitários ou técnicos − os sociólogos se
consideram essencialmente capazes de separar, em nome do sentido de
responsabilidade social, sua ideologia pessoal de seu papel profissional nas
suas relações com seus pares e clientes. Está claro que este é o resultado mais
acabado da aplicação do conceito de profissionalização à sociologia,
particularmente no período do ativismo universitário que começa em 1965. A
partir da organização da sociologia como disciplina, muitos sociólogos tiveram
ideologias pessoais muito intensas que os levavam a tentar colocar seus
conhecimentos a serviço da transformação social, quando, enquanto
universitários, eles deveriam afrontar o problema das normas que se impõem ao
professor e ao pesquisador". (JANOWITZ, M. The American Journal of Sociology, 78, (1), jul. 1972, p. 105-35.)
[9]
HAGSTROM, W. D. The scientific community. Nova York,
Basic Books, 1965. p. 100.
[10]
Fred Reif lembra que
aqueles que, preocupados em ver seus trabalhos publicados o mais rapidamente
possível, recorrem à imprensa cotidiana, atraem a reprovação de seus pares-concorrentes,
em nome da distinção entre publicação e publicidade. Importantes descobertas em
física, por exemplo, foram, assim, anunciadas no New York Times. A mesma
distinção orienta as atitudes com relação a certas formas de vulgarização,
sempre suspeitas de não serem mais do que formas eufemísticas de
autodivulgação. Basta citar os comentários do editor do jornal oficial dos
físicos americanos: "Por cortesia para com os colegas, os autores têm o
hábito de impedir toda divulgação pública de seus artigos, antes de terem
aparecido na revista científica. As descobertas científicas não são matérias de
sensação para os jornais e todos os meios de comunicação de massa devem ter
simultaneamente acesso à informação. De agora em diante, rejeitaremos todos os
artigos cujo conteúdo já tenha sido publicado na imprensa cotidiana"
(REIF, F. Op. cit.).
[11]
A respeito desse ponto, ver
BOURDIEU, P. Méthode scientifique et
hierarchie sociale des objets. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales:
1, 1975, p. 4-6.
[12]
Como a filosofia social de
inspiração durkheimiana, que descreve o conflito social na linguagem da
marginalidade, do desvio ou da anomia, essa filosofia da ciência tende a
reduzir as relações de competição entre dominantes e dominados às relações
entre "centro" e "periferia", reencontrando a metáfora
imanentista cara a Halbwachs da distância aos "núcleos" dos valores
centrais. (Ver, por exemplo, BUN-DAVID, J. The
scientist's role in society. Englewood Cliffs (N. J.), Prentice Hall Inc.,
1971 e SHILS, E. Center and periphery. In: The
logic of personal Knowlegde, essays presented to Michael Polanyi on his
seventieth birthday. Londres, Koutledge and Kegan Paul, 1961. p.117-30.).
[13] KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions. Chicago, The University Of
Chicago Press, 1962. p. 168.
[14]
Ver, por exemplo, MERTON,
R. K. Science and technology in a
democratic order. Journal of Legal and Political Sociology, v. I, 1942.
Reeditado em MERTON, R. K. Social theory and social structure (ed. rev.) Nova
York, Free Press, 1967. p.550-1, sob o título "Science and democratic
social structure”. Ver também BARBER, B. Scienee
and the social order. Glencoe, The Free Press of Glencoe, 1952. p.73 e 83.
[15]
Assim se explicam as
diferentes estratégias que os pesquisadores utilizam na difusão dos preprints e reprints. Seria fácil demonstrar que todas as diferenças observadas
segundo a disciplina, a idade dos pesquisadores ou a instituição à qual eles
pertencem podem ser compreendidas a partir das diferentes funções que essas
duas formas de comunicação científica preenchem. A primeira consiste em
divulgar os produtos rapidamente, escapando aos prazos das publicações
científicas (vantagem importante nos setores altamente competitivos), junto a
um número restrito de leitores que são, muitas vezes, também os concorrentes mais
competentes. A segunda consiste em divulgar mais amplamente, junto ao conjunto
dos colegas ou da demanda, produtos marcados e socialmente imputados a um nome
próprio. (Ver HAGSTROM, W. D. Factors
related to the use of different modes of publishing research in four scientific
fields. In: NELSON, C. E. e POLLOCK,
D. K., orgs. Communication among
scientists and engineers. Lexington (Mass.), Health Lemington Books, D. C.
Heath and Co., 1970.)
[16]
Daí as dificuldades que
encontramos nas pesquisas sobre intelectuais, cientistas ou artistas, tanto nas
entrevistas quanto na publicação dos resultados: propor o anonimato a pessoas
que estão ocupadas em fazer um nome é suprimir a motivação principal da
participação numa entrevista; não lhe propor é proibir-se de fazer perguntas
"indiscretas", isto é, objetivantes e redutoras. A publicação dos
resultados coloca problemas equivalentes, nem que seja pelo fato de que o
anonimato tem, como efeito, tornar o discurso ininteligível ou transparente
segundo o grau de informação dos leitores (e isto mais ainda nesses casos,
visto que muitas posições só contam com um elemento: um nome próprio)
[17] ZUCKERMAN, H. A. Patterns of name
ordering among authors of scientific papers: a study of social symbolism and
its ambiguity. American Journal of
Sociology, 74 (3), novo 1968, p. 276- 91.
[18]
O modelo aqui proposto
explica perfeitamente − sem apelar para nenhuma determinante moral − o fato de
que os laureados cedem o lugar de destaque mais frequentemente depois da obtenção do prêmio e de que
sua contribuição para a pesquisa coroada de êxito é mais visivelmente marcante
que a contribuição que eles tiveram em outras pesquisas coletivas.
[19]
Ver, por exemplo, HAROBNS,
L. L. e HAOSTROM, W. D. Sponsored and contest mobility of american academic
scientists. Sociology of Education,
40 (1), inverno 1967, p. 24-38.
[20] Ver BOURDIEU, P., BOLTANSKI, L. e
MALDIDIER, P. La défense du corps. Information
sur les Sciences Sociales, 10 (4), p. 45-86.
[21]
A análise estatística
mostra, por exemplo, que, para o conjunto das gerações passadas, a idade de
produtividade científica máxima se situa entre 26 e 30 anos para os químicos,
entre 30 e 34 para os físicos e os matemáticos, entre 35 e 39 para os
bacteriologistas, os geólogos e os fisiologistas (LEHMAN, H. C. Age and achievement. Princeton,
Princeton University Press, 1953).
[22]
Ver REIF, F. e STRAUSS, A.
The impact of rapid discovery upon the scientist's career. Social Problems, inverno, 1965, p. 297-311. A comparação sistemática
deste artigo − para o qual o físico colaborou com o sociólogo − com o que
escrevia o físico alguns anos antes, forneceria ensinamentos excepcionais sobre
o funcionamento do pensamento sociológico americano. Basta indicar que a
"conceituação" (isto é, a tradução de conceitos para o jargão da
disciplina) tem, como contrapartida, o desaparecimento total da referência ao
campo no seu conjunto e, em, particular, ao sistema de trajetórias (ou de
carreiras) que confere, a cada carreira singular, suas propriedades mais
importantes.
[23]
Ver GLASER, B. G.
Variations in the importance of recognition in scientist's career. Social Problems, 10 (3), inverno 1963,
p. 268-76.
[24]
Para evitar refazer, aqui,
toda a demonstração, contento-me em remeter a BOURDIEU, P. Les catégories de
l'entendement professoral. Actes de Ia
Recherche en Sciences Sociales, 3, maio 1975, p. 68-93.
[25]
Sobre a ação de
"filtragem" dos comitês de redação das revistas científicas (em
ciências sociais), ver CRANE, D. The gate-keepers of science: some factors
affecting the selection of articles for scientific joumals. American Sociologist, 11, 1967, p.
195-201. Tudo permite pensar que, em matéria de produção científica como em
matéria de produção literária, os autores selecionam, consciente ou inconscientemente,
os lugares de publicação em função da ideia que eles têm de suas
"normas". Tudo nos leva a pensar que a auto-eliminação, evidentemente
menos perceptível, é ao menos tão importante quanto a eliminação expressa (sem
falar do efeito que produz a imposição de uma norma do publicável).
[26] Veremos, adiante, a forma
original que essa transmissão regulada do capital científico reveste, nos
campos onde, como na física de hoje, a conservação e a subversão são quase
indiscerníveis.
[27]
FEUER, L. S. The social
roots of Einstein's theory of relativity. Anals
of Science, v. 27, n. 3, set. 1971, p. 278-98 e n. 4, dez. 1971, p. 313-44.
[28]
Ver SAINT-MARTIN, M. de. Les fonctions sociales de l'enseignement
scientifique. Paris-La Haye, Mouton, col. Cahiers du Centre de Sociologie
Europeenne, n. 8, 1971 e BOURDIEU, P. e SAINT-MARTIN, M. de. Le systeme des grandes écoles et la
reproduction de ia classe dominante, no prelo
[29]
É tal mecanismo que tende a
assegurar o controle das relações com o universo exterior, com os leigos. (Ver
BoLTANSKI, L. e MALDIDIBR, P. Op. cit.).
[30]
Não há dúvida, com efeito,
que a filosofia da história da ciência proposta por Kuhn, com a alternância de concentração
monopolística (paradigma) e de revolução, deve muito ao caso particular da
revolução "copernicana" tal qual ele a analisa e que considera
"típica de qualquer revolução maior da ciência" (KUHN, T. S. La révolution copernicienne. Paris,
Fayard, 1973. p.153 e 162): sendo ainda muito fraca, a autonomia relativa da
ciência em relação ao poder e, em particular, em relação à Igreja, a revolução
científica (na astronomia matemática) passa pela revolução política e supõe uma
revolução de todas as disciplinas científicas que pode ter efeitos políticos.
[31]
Além de Bachelard e Reif,
D. Bloor percebeu que as transformações na organização social da ciência
determinaram uma transformação na natureza das revoluções científicas (ver
BLOOR, D. Essay Review: two paradigms for scientific knowledge? Science Studies, 1, 1971, p.101-15).
[32]
BACHELARD, G. Le matérialisme rationnel. Paris, P. U.
F., 1953. p.41.
[33]
A principal censura é
constituída por esse direito de entrada, isto é, pelas condições de acesso ao
campo científico e ao sistema de ensino que a ele dá acesso. É o caso de se
interrogar sobre as propriedades que as ciências da natureza (sem falar das
ciências do homem, onde, pela fragilidade dos métodos, a maior liberdade é
deixada aos habitus) devem seu recrutamento social, grosso modo, às condições
de acesso ao ensino superior (ver SAINTMARTIN, M. de. Op. cit.).
[34]
Sabe-se que as próprias revoluções inaugurais que dão nascimento
a um novo campo, constituindo, pela ruptura, um novo domínio de objetividade,
se devem quase sempre aos detentores de um grande capital científico que, em
virtude de variáveis secundárias (tais como o fato de pertencer a uma classe
social ou a uma etnia improvável nesse universo) se encontram numa posição de
desequilíbrio própria a favorecer uma inclinação revolucionária: é o caso, por
exemplo, dos novatos que importam para um campo o capital acumulado num campo
socialmente superior (ver BBN-DAVID, J. Roles and innovation in medicine.
American Journal of Sociology. 65, 1960, p.557-68 e BEN-DAVID, J. e COLLINS, R.
Social factors in origins of a new science: the case of psychology. American
Sociological Review, 31, 1966, p.451-65).
[35]
Vimos, acima, a descrição
que Reif nos dá sobre a forma mais frequente que a acumulação de capital toma
em tal estado do campo.
[36]
Existe um consenso, com
efeito, de que a luta científica se torna cada vez mais intensa (apesar das
consequências da especialização que tende a reduzir, sem cessar, o universo dos
concorrentes pela divisão em subcampos cada vez mais estreitamente
especificados) na medida em que a ciência avança ou, mais precisamente, na
medida em que os recursos científicos acumulados aumentam e que o capital
necessário para realizar a invenção se torna mais larga e uniformemente
distribuído entre os concorrentes pela ampliação do direito de entrada no campo.
[37]
O conjunto dos processos
que acompanham a autonomização do campo científico mantém relações dialéticas:
assim, a ampliação contínua do direito de entrada que a acumulação de recursos
específicos implica contribui em troca para a autonomização do campo científico
instaurando, indiretamente, um corte social como o mundo profano dos leigos.
[38]
O habitus primeiro produzido pela educação de classe e o habitus
secundário inculcado pela educação escolar contribuem, com pesos diferentes no
caso das ciências sociais e das ciências da natureza, para determinar uma
adesão pré-reflexiva aos pressupostos tácitos do campo (sobre o papel da
socialização, ver HAGSTROM, W. D. Sponsored and contest mobility..., cit., p. 9
e KUHN, T. S. The function of dogma in scientific research. In: CROMBIE, A. C.,
org. Scientific change. Londres,
Heineman, 1963. p. 347-69).
[39]
Vemos o que poderia
tornar-se a etnometodologia (mas seria ela ainda uma etnometodologia?) se ela
soubesse que aquilo que ela toma como objeto, o taken for granted de Schutz, é
a adesão pré-reflexiva à ordem estabelecida.
[40]
No campo da produção
ideológica (do qual participam ainda os diferentes campos da produção de
discursos científicos ou letrados), o fundamento do consenso na dissensão que define a doxa reside, como veremos, na relação censurada do campo de
produção do poder (isto é, na função oculta do campo da luta de classes).
[41]
BACHELARD, G. Op. cit.,
p.216-17.
[42]
Assim, os sistemas de
classificação (taxionomias), que são uma das questões essenciais da luta
ideológica entre as classes (ver BOURDIEU, P. e BOLTANSKI, L. Le titre et le
poste: rapports entre le systeme de production et le systeme de reproduction. Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
2, 1975, p. 95-107), constituem, através das tomadas de posição a respeito da
existência ou da não-existência das classes sociais − um dos grandes princípios
de divisão do campo sociológico (ver BOURDIEU, P. Classes et classement.
Minuit, 5, 1973, p.22- 4 e COXON, A. P. A. e JONES, C. L. Occupational categorization and images of society. Working Paper,
n. 4, Project on Ocupational Cognition, Edinburgh, Edinburgh University Press,
1974).
[43]
Segue-se daí que a
sociologia da ciência (e, em particular, da relação que a ciência social mantém
com a classe dominante) não é uma especialidade entre outras, mas faz parte das
condições de uma sociologia científica.
[44]
GERSCHENKRON, A. Economic backwardness in historical
perspective. Cambridge, Harvard University Press, 1962. p.7.
[45]
A filosofia da história que
persegue a história social da ciência social encontra uma expressão
paradigmática na obra de Terry Clark que Paul Vogt caracteriza
sociologicamente, numa resenha, com dois adjetivos: ''Terry N. Clark's
long-awaited, much circulated in manuscript Prophets and Patrons". (Ver
CLARK, T. N. Prophets and patrons, the
french university and the emergency of the social science. Cambridge,
Harvard University Press, 1973 e CHAMBOREDON, J. C. Sociologie de Ia sociologie
et intérêts sociaux des sociologues. Actes de Ia Recherche en Sciences
Sociales, 2, 1975, p.2-17.).
[46]
Joseph Ben-David tem o
mérito de dar a essa tese sua forma mais direta: o alto grau de competição que
caracteriza a universidade americana explica sua maior produtividade científica
e sua maior flexibilidade (BEN-DAVID, J. Scientific productivity and academic
organization in nineteenth century medicine. American Sociological Review, 25, 1960, p. 828-43); Fundamental research and the universities.
Paris, O. C. D. E., 1968; BEN-DAVlD, J. e ZLOCZOWER, Avraham, Universities and
academic systems in modern societies. European Journal of Sociology, 3, 1962,
p.45-84).
[47]
KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions,
op. cit.
[48]
Exemplo de prescrição
larvar: a: existência de um paradigma é um sinal de maturidade científica.
[49]
Mais ainda do que nesse
livro − cujas teses fundamentais não têm nada de radicalmente novo, ao menos
para os leitores de Bachelard, objeto, ele próprio, pouco mais ou menos no mesmo momento e
numa outra tradição, de uma captação semelhante − a intenção normativa pode ser
notada em dois artigos de T. S. Kuhn onde ele descreve as funções positivas
para o desenvolvimento científico de um pensamento "convergente" e
sustenta que a adesão dogmática a uma tradição é favorável à pesquisa (KUHN, T.
S. The function of dogma in scientific
research, cit., p.347-69 e The essential tension: tradition and innovation
in scientific research. In: HUDSON, L., org. The ecology of human intelligence. Londres, Penguin, 1970. p. 342-59).
[50]
Ver, por exemplo, GOULDNER,
A. W. The coming crisis of western
sociology, Nova YorkLondres, Basic Books, 1970 e FRlEDRICHS, R. W. A sociology of sociology, Nova York,
Free Press, 1970.
[51]
GELLNER, E. Myth, ideology
and revolution. In: CRICK, B. e ROBSON, W. A., orgs. Protest and discontent.
Londres, Penguin, 1970. p.204-20.
[53]
Ver BOURDIEU, P. Les
doxosophes. Minuit, I, 1973, p. 26-45
(em particular a análise do efeito Lipset).
[54]
A sociologia oficial da
ciência oferece uma justificação para cada um desses traços. Assim, por
exemplo, o evitar problemas teóricos fundamentais encontra uma justificação na
idéia de que, nas ciências da natureza, os pesquisadores não se preocupam com a
filosofia da ciência (ver HAGSTROM, W. D. Sponsored and contest mobility...,
cit., p. 277-79). Pode-se ver sem dificuldade o que a tal da sociologia da
ciência deve à necessidade de legitimar um estado de fato e de transformar os
limites a que está submetida em exclusões eletivas.
[55]
Sobre a produção da crença
e do fetichismo no campo da alta costura, ver BOURDIBU, P. e DBLSAUT, Y, Le
couturier et sa griffe. Contribution à une théorie de Ia magie, Actes de Ia
Recherche en Sciences Sociales, 1 (1), jan. 1975, p.7-36.
[56]
Tais pares epistemológicos,
que são ao mesmo tempo pares sociológicos, funcionam. em qualquer campo (ver,
por exemplo, o Positivismusstreit, que opõe Habermas e Popper no caso da
Alemanha − mecanismo de derivação que, tendo sido testado na Europa, começa a
fazer estragos nos EUA com a importação da Escola de Frankfurt).
[57]
É preciso analisar todos os
usos estratégicos que os dominados de um campo podem fazer da transfiguração
ideológica de sua posição objetiva: por exemplo, a exibição da exclusão que
permite aos excluídos tirar ainda partido da instituição (que eles reconhecem
bastante ao criticá-la por não reconhecê-los), fazendo da exclusão uma garantia
de cientificidade; ou, ainda, a contestação da "competência" dos
dominantes, que está no centro de todo movimento herético (ver a contestação do
monopólio da sagração) e que deve tanto menos armar-se de argumentos
científicos quanto mais fraco for o capital científico acumulado etc.
[58] Sobre
a necessidade de construir, enquanto tal, o campo intelectual para tornar
possível uma sociologia dos intelectuais que seja algo além de uma troca de
injúrias e de anátemas entre "intelectuais de direita" e
"intelectuais de esquerda", ver BOURDIEU, P. Les fractions de Ia
classe dominante et les modes d'appropriation de l'oeuvre d'art. lnformation sur les Sciences Sociales,
13 (3), 1974, p. 7-32.
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