por Daniel Afonso da Silva
Paris, França. Outono de 1976. O
conflito leste-oeste seguia intenso. O mundo soviético e o mundo livre
conduziam a atenção e o destino dos povos. O choque do petróleo dos anos
anteriores punha fim aos tempos gloriosos. O racionamento econômico impunha
contingências. A geração nascida após as guerras totais começava a viver em
hesitação permanente. Os espetáculos de maio de 1968 ainda se faziam sentir.
Seus efeitos positivos e nefastos iam revirando as entranhas da sociedade. O
general de Gaulle (1890-1970) e seu sucessor, Georges Pompidou (1911-1974),
passavam à História.
O presidente Valery Giscard d'Estaing,
por seu turno, fazia o que podia para guardar algum protagonismo francês
naquele mundo de brutos. A morte de Franco na Espanha e de Mao na China, como o
desaparecimento do regime de Salazar em Portugal, conduziam indícios de
mudanças de importância. Da África, às Américas, ao Oriente médio tudo ganhava
novos respiros, novos contornos, novos sentidos mesclados em intensa e
complicada aceleração. Os pretensos sistemas de compreensão desses eventos
seguiam, como de costume, frágeis, nefandos e anacrônicos. O cultivo da memória
travestida em História lançava o presente ao cultivo do imperativo
jornalístico. Atividades científicas concernentes à ação humana grassavam em
demérito progressivo quanto mais se distanciassem do passado.
O passado como acesso à longue durée
admitia pouca ou nenhuma transgressão. A Geografia, por essa e outras razões,
vivia momentos de agonia e crise enquanto a História, embalada pelo sucesso de
nouveaux problèmes, nouvelles approches e nouveaux objets da Escola dos Annales
renovada da geração de Jacques Le Goff e Pierre Nora, conhecia imenso regozijo.
A resposta das mais contundentes e permanentes a esse afã de memento mori do
saber geográfico e da Geografia veio com a aparição do controverso La
Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre de Yves Lacoste.
Polêmico, contestado e sacralizado na
França, esse pequeno livro, desse já bastante conhecido geógrafo à época,
ganhou o mundo e encantou os mais diversos públicos em todas as direções cardeais.
No Brasil, sua absorção foi, seguro, imediata e ainda segue referência aos
amantes de mundos e destinos, espaços e fronteiras, cartas e territórios.
Entretanto, por dispersa e insondável
motivação, La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre, de
responsabilidade das engajadas Éditions Maspero, de François Maspero – o mesmo
que publicara anos antes “Pau de arara”, La violence militaire au Brésil,
instrumento de denúncia da brutalidade da ditadura brasileira – jamais possuiu
reedição. Sua travessia do deserto, mesmo que menções e edições ao estrangeiro
tenham seguido constantes desde sua aparição, durou quase dois quartos de
século. Trinta e seis anos depois, em 2012, Yves Lacoste, agora detentor do
Vautrin Lud – o mesmo que esse brasileiro, baiano, de Brotas, saudoso Milton de
Almeida Santos (1926-2001), recebera em 1994 no Festival Internacional de
Geografia de Saint-Dié-des-Vosges – volta ao texto. Desse empenho resulta essa
nova edição, aumentada e comentada, de La Géographie, ça sert, d'bord, à faire
la guerre, que em muito merece ser relido, sobretudo por não-geógrafos.
Saída por La découverte de François
Gèze, essa nova edição ganha um imenso prefácio de Yves Lacoste e elucidativos
comentários críticos e autocríticos sobre possíveis atualidades dos argumentos
expressos em cada um dos seus dezessete curtos e longos capítulos.
A gestação original do livro se
confunde, por evidência, com a biografia do autor que, por sua vez, está ligada
à renovação do saber geográfico e da Geografia, na França e algures, nestes
últimos quase cinquenta anos. Nascido em 1929, no hospital militar de Fès, no
Marrocos, Yves Lacoste – que segue vivo e atuante nesses nossos idos do século
21 – teve como primeira e permanente paixão a Geologia, ofício de seu pai, Jean
Lacoste, geólogo da confraria francesa de estudos e exploração de petróleo no
protetorado marroquino.
Em 1938, a família Lacoste se obriga a
retornar à metrópole. Jean Lacoste, enfermo, necessita de acompanhamento
sanatorial. A partir de 1941, Yves Lacoste, com seus outros dois irmãos,
conhece a orfandade paterna. A morte de seu pai coincide com seu ingresso no
liceu francês. Nesses primeiros estudos, seu desempenho fora, por assim dizer,
razoável. Nada de apreço por Matemática. Algum pouco interesse por História.
Nenhum grande entusiasmo pela Geografia. Mesmo assim, sua ligação à Geologia
lhe aproxima de Pierre George, seu professor no secundário.
Passada essa fase, Lacoste acessa o
Instituto de Geografia da rue Saint-Jacques. Aí conhece e adere ao Partido
Comunista Francês, do qual Pierre George e muitos de seus professores faziam
parte. Aí também conhece e se apaixona por Camille Dujardin, com quem se
casaria anos depois, e continua seu amor da vida toda.
Licenciado em Geografia, segue ao
Marrocos para completar seus estudos. De volta à Paris e portador de um diploma
de estudos superiores, consegue nomeação ao cargo de professor secundário na
Argélia. As experiências em Argel o marcariam profundamente. Primeiro por tomar
contato com a convulsão dos movimentos de independência norte-africanos.
Segundo por adentrar a obra de Ibn Khaldoun – exímio historiador maghrebino do
século 14 – que resultaria em seu Ibn Khaldoun, naissance de l'Histoire, passé
du tiers monde de 1965.
A tensão política em Argel lhe impõe
voltar à França. Em Paris vira assistente de Pierre George no Instituto de
Geografia. Mesmo assim, mantém relações fraternais e políticas intensas com o
Maghreb. Desse envolvimento ganharia luz sua Histoire du Maghreb de 1957. Por
esse período, Pierre George lhe propõe participar da coleção “Que sais-je?”. De
seu esforço e engenho, veio a público em 1959 seu Les pays sous-développés.
Esse pequeno livro, quase fascículo, se transformou em sucesso mundial com
tradução, muitas sem autorização, em dezenas de línguas. Alguns anos depois, em
1965, no mesmo diapasão, sairia seu Géographie du sous-développement.
O sucesso dessas duas obras fez com que
Michel Arnaud, diretor da Secretaria de Missões de Urbanismo e Habitação, lhe
propusesse um tour por Haute-Volta, atual Burkina Faso, sob alegação que
Lacoste precisava conhecer melhor a África Negra. Essa viagem, em 1966, ajudou
a sofisticar ainda mais as suas impressões sobre a diversidade do mundo em vias
de desenvolvimento.
Maio de 1968 marcou profundamente a
sociedade francesa. A reação juvenil e sindical compreendia negação ao general
de Gaulle, à educação tradicional e tradicionalista e aos valores do mundo
burguês. O reflexo imediato foi a reforma educacional. Nessa reforma o ministro
da educação Edgar Faure baixa portaria permitindo que professores, mesmo sem
ter defendido tese doutoral, acedessem à docência universitária. Nesse
contexto, Yves Lacoste vai nomeado professor de Geografia na Universidade de
Vincennes. Na mesma leva, seguem para essa nova aventura universitária francesa
Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Hélène Cixous, François
Châtelet dentre outros.
Nessa experiência de Vincennes, Lacoste
foi diretamente confrontado à impressão generalizada, sobretudo dos
universitários pretensamente mais politizados vindos da História e da
Filosofia, de que a Geografia era uma disciplina, de pretensão científica,
amplamente reacionária. Reacionária, sobretudo por silenciar diante dos
movimentos políticos daquele mundo contemporâneo.
Nessa lide, Lacoste reabilitou Élisée
Reclus (1830-1905), autor do monumento Géographie universelle em 19 volumes.
Dos mais importantes geógrafos franceses, Reclus fora relegado ao ostracismo
pelas ondas de cientificização da Geografia dos séculos 19 e 20 que passaram a
pretender certa objetividade desse saber geográfico. Além do mais, Reclus,
embora amigo de Bakunin e Kropotkin, fizera críticas severas ao sacrossanto
Karl Marx (1818-1883).
Essa performance de Lacoste produziu
diversos resultados. Alguns positivos; outros nem tanto. O primeiro fator
favorável foi convencer muitos jovens da importância política e social do saber
geográfico. Muitos alunos de disciplinas irmãs abdicaram de seus cursos
originais para se dedicar à Geografia. O elemento claramente desagradável foi o
esfriamento de sua relação com Pierre George, seu mestre da vida inteira.
Geógrafo de imenso prestígio dentro e
fora das fronteiras francesas, Pierre George não viveu o maio de 1968 em Paris.
Estava em missão no México. Ao retomar suas funções na Sciences Po em outubro
daquele ano, foi alvo de contestação por parte dos estudantes que o consideravam
expressão do passado e, portanto, de tudo aquilo que as ruas denunciaram meses
antes. Lacoste em Vincennes virou o oposto de Pierre George em Paris.
Esses movimentos “modernosos” de Lacoste
em Vincennes levaram Pierre George a excluí-lo – ou melhor, não convidá-lo – ao
projeto que resultaria no Dictionnaire de la géographie, primeira edição de
1970, que reuniu praticamente todos os seus discípulos. Esse resfriamento de
relação causou muito ressentimento e aborrecimento entre os dois. Tamanha tensão
levou Pierre George a se recusar a participar, dez anos depois, do júri de
defesa da tese de Yves Lacoste, seu orientando.
Para além desse doloroso mal-entendido,
relativamente resolvido no fim da vida de Pierre George quando ele e Lacoste
voltaram a ter relações relativamente urbanas e cordiais, o geógrafo de
Vincennes, com pouco mais de quarenta anos, um passado comunista somando a
intensa convicção política antiimperialista, avança em sua (re)politização da
Geografia. Aos poucos, vai (re)trazendo à discussão a expressão geopolítica.
Demonizada no após 1945 por ser
entendida como manifestação nazista, a geopolítica passou a ser indexada como
prática de intenções reacionárias. Parte importante de La Géographie, ça sert,
d'bord, à faire la guerre objetiva desfazer esse julgamento malfazejo. Mas
antes de La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre, muitos ventos
fariam girar os moinhos da vida e da obra de Yves Lacoste.
Na primavera de 1972, a guerra do Vietnã
ganha em hostilidade. Enquanto o presidente Richard Nixon (1913-1994) e o
secretário Henri Kissinger avançaram em negociações com Mao Tsé-Tung na China,
a US Air Force bombardeava sem pudor o norte do Vietnã. Muitos desses
bombardeios visavam os diques do rio Vermelho. Consultado em Paris, Lacoste foi
convocado a Hanoï e em seguida às regiões em sinistro. De retorno à França, fez
publicar no Le Monde de 16 de agosto de 1972 uma grande reportagem com
explicações geográficas e cartográficas sobre os bombardeios e suas
consequências. Sua análise girou mundo. Jornalistas e diplomatas de todas as
partes passaram a requisitar suas impressões. Nutrido dessa reputação, avançou
na desdemonização da geopolítica. Nesse empenho, empreendeu o início da
aventura Hérodote que ganhou vida em 1976 e segue ativa, contemplando mais de
150 em 2014, como uma das revistas mais longevas e consistentes da área.
O primeiro número de Hérodote –
Géographie de la crise, crise de la Géographie – aborda justamente os
desassossegos da disciplina. Na apresentação da revista e do empreendimento que
ela visava preencher, Yves Lacoste emprega, então, pela primeira vez a frase –
La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre – que daria título ao seu
livro dos mais célebres.
Cioso de História, Lacoste sabia
perfeitamente que a fórmula era depositária de Louis XIV, que ainda no século
XVII, pelos idos de 1671, fez informar ao mundo que partia faire la guerre
contra os holandeses. Não convencido do impacto do sentido da expressão
imiscuída em sua grande apresentação do primeiro número de Hérodote, Lacoste
decide alongar o ensaio e impor como título uma frase. Frase que seu editor,
François Maspero, retorquiu de imediato “Ce n’est pas un titre!”.
Pouco a pouco, seja pelo sucesso da
revista seja pelo sucesso do livro, a expressão geopolítica foi voltando a
figurar no vocabulário francês e mundial jornalístico, acadêmico e diplomático.
Quando tem lugar o conflito entre o Vietnã e o Camboja em 1978 – na sequência
seria a vez do exército vermelho invadir o Afeganistão em 1979 –, André Fontaine,
grande conhecedor e analista do mundo do após 1945 e diretor do Le Monde, não
teve dúvidas em asseverar: “c’est de la géopolitique!”. Isso representou um
avanço imenso, em muito resultado do esforço pedagógico de Lacoste.
Geopolítica, estratagema de origem
alemã, definiu o desejo de potência e reconhecimento dessa nação que, após
Bismarck, passou a querer impor seu lugar ao sol e contar em definitivo hors
fronteiras.
Contar para além fronteiras envolve,
como ensina Carl von Clausewitz (1780-1831), conhecer o mistério escondido
depois colina. Jamais foi tão urgente saber desvelar esse mistério. Jamais foi
tão importante conhecer o que existe além fronteiras. Jamais foi tão necessária
a releitura desse clássico, La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre,
de Yves Lacoste.
Fonte: Jornal GGN
Fonte: Jornal GGN
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