quarta-feira, 1 de maio de 2019

ANTROPOCENO: A ERA BIOGEOLÓGICA


Os desafios essenciais de um debate científico

O termo Antropoceno foi criado para levar em consideração o impacto da acelerada acumulação de gases de efeito estufa sobre o clima e a biodiversidade e, da mesma forma, dos danos irreversíveis causados pelo consumo excessivo de recursos naturais. Contudo, é preciso transformá-lo em uma nova época geológica. Enquanto o debate continua entre cientistas, ainda precisam ser encontradas soluções. Nós estamos, de fato, testemunhando uma forma coletiva de negação, que é o resultado de uma fé ingênua no progresso, de uma ideologia consumista e de poderosos lobbies econômicos.

por Liz-Rejane Issberner e Philippe Léna

A palavra Antropoceno aparece hoje no título de centenas de livros e artigos científicos, em milhares de citações, e seu uso continua a crescer nos meios de comunicação. Referindo-se à época em que as ações humanas começaram a provocar alterações biofísicas em escala planetária, ela foi criada nos anos 1980 pelo biólogo norte-americano Eugene Stoermer e popularizado na década de 2000 por Paul Crutzen (link is external), o cientista atmosférico holandês e vencedor do Prêmio Nobel de Química de 1995. Os especialistas constataram que essas alterações afastavam o Sistema Terra do relativo equilíbrio observado desde o início do Holoceno, há 11.700 anos. Para marcar o início dessa nova era, eles propuseram simbolicamente o ano de 1784, o ano em que o inventor escocês James Watt aperfeiçoou a máquina a vapor com novas invenções, que também corresponde ao início da revolução industrial e da utilização dos combustíveis fósseis.

Entre 1987 e 2015, um programa científico internacional amplo e multidisciplinar, o International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP (link is external)), acumulou numerosos dados sobre as modificações antropogênicas dos parâmetros do Sistema Terra. Por outro lado, as pesquisas realizadas desde os anos 1950, tanto em amostras de gelo antigo da Antártica quanto na composição da atmosfera atual – no observatório de Mauna Loa, no Havaí, EUA – mostravam uma acumulação acelerada de gases de efeito estufa (GEE), principalmente de dióxido de carbono (CO2). Em 1987, foi criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC (link is external)) para avaliar os impactos desses fenômenos sobre o clima.

A grande aceleração

A partir de todos esses dados, em 2009 e 2015, os cientistas ambientais, o sueco Johan Rockström, o norte-americano Will Steffen e seus colegas do Centro de Resiliência de Estocolmo (Stockholm Resilience Centre (link is external)) estabeleceram uma lista de nove “limites” planetários que seriam perigosos de se atravessar. Quatro desses limites já foram ultrapassados: mudança climática, cobertura vegetal, perda de biodiversidade e extinções (a chamada “sexta extinção”) e fluxos biogeoquímicos (com os ciclos do fósforo e do nitrogênio desempenhando um papel crucial). Eles também mostraram que todos os indicadores disponíveis sobre consumo de recursos primários, uso de energia, aumento populacional, atividade econômica e degradação da biosfera aumentaram de forma considerável após a Segunda Guerra Mundial. Esse período foi chamado de grande aceleração Outros observadores chegaram mesmo a dizer que, a partir dos anos 1970, é possível observar um período de hiperaceleração. Essas tendências foram caracterizadas como insustentáveis.

O Antropoceno: metáfora ou era geológica real?

Parece haver um consenso de que vários parâmetros do Sistema Terra apresentam uma evolução recente além do espectro da variabilidade natural característica do Holoceno – agora, é mais ou menos aceito o uso do termo Antropoceno para caracterizar as mudanças que têm origem humana. Porém, um grupo de cientistas resolveu ir além de usar o termo como uma simples metáfora ou uma ferramenta prática e interdisciplinar, e propuseram que o Antropoceno seja considerado formalmente como uma nova época geológica, como o Holoceno e o Pleistoceno.

Um Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno (Anthropocene Working Group – AWG (link is external)) se encarregou de apresentar essa proposta à União Internacional de Ciências Geológicas (International Union of Geological Sciences – IUGS (link is external)). Contudo, para uma nova época ser aceita pelos estratigrafistas, é necessário existir uma ruptura observável e universal entre as camadas sedimentares de duas épocas. Embora o carbono antropogênico esteja presente em sedimentos desde os anos 1850, isso não foi considerado suficiente. Com isso, o AWG propõe mudança de época em 1950, ano a partir do qual vários componentes químicos e partículas de plástico de origem antrópica começaram a aparecer nos sedimentos. Nota-se que o ano de 1950 é também o início da grande aceleração. De qualquer forma, um eventual não reconhecimento do Antropoceno como época geológica não invalidaria em nada o uso científico do termo, como é o caso atualmente.

Apesar do seu curto período de existência, o conceito de Antropoceno gerou várias controvérsias – a própria denominação foi questionada. Historiadores e antropólogos colocaram em dúvida a referência a antropos, esse ser humano genérico. Afinal de contas, quem é o responsável pela transgressão dos limites biogeofísicos, senão o humano ocidental e um sistema socioeconômico específico? Daí a multiplicação de propostas alternativas como “Ocidentaloceno”, “Capitaloceno” etc. Outros, em particular especialistas da história mundial ou ambiental, pensam que não há uma descontinuidade ontológica, e que o caráter excepcional do crescimento ocidental (a “grande divergência”), deveria ser reposicionado no longo prazo. 

De acordo com eles, pelo menos durante os últimos 40 mil anos, o ser humano sempre causou um impacto crescente em seu ambiente. Ele contribuiu, por exemplo, para o desaparecimento da megafauna americana e australiana. Assim, alguns cientistas defendem um longo Antropoceno, dividido em subperíodos tais como a industrialização capitalista (1850-1950) e a grande aceleração. No entanto, a maioria concorda com a necessidade de se abandonar uma visão linear e determinista do tempo histórico.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vários cientistas têm alertado sobre o caráter não generalizável e insustentável do sistema econômico ocidental. Na época, nenhum limite já havia sido ultrapassado, e a humanidade ainda consumia menos de um planeta. Porém, o processo já estava em curso. No início dos anos 1970, a situação se agravou bastante, os alertas se multiplicaram e os dados científicos se acumularam. Nas duas ocasiões, teria sido possível a ocorrência de uma mudança histórica. Atualmente, ela se tornou mais difícil.

Uma negação coletiva

Por que nós nos recusamos a ver isso? Podemos listar alguns fatores: a fé cega no progresso e no desenvolvimento – em outras palavras, em um sistema que aumenta indefinidamente a quantidade de riqueza disponível; poderosos interesses que se beneficiam dessa dinâmica e realizam um lobbying intenso; a crença na capacidade da ciência e da tecnologia para resolver todos os problemas e as externalidades negativas (como, por exemplo, a poluição); o controle do imaginário dos consumidores pela mídia, que cria uma ânsia pelo consumo individual, visando tanto ao conforto, quanto para se distinguir e ser reconhecido.

É surpreendente que as ciências humanas e sociais tenham permanecido durante muito tempo alheias a essa problemática, considerando que ela determinará o futuro da humanidade. Além de serem antropocêntricas por definição, essas disciplinas consideravam que esse campo de estudos pertencia, por excelência, às ciências da natureza. A emergência do conceito de Antropoceno confere a essas áreas a responsabilidade de investigar e explicar como as sociedades humanas foram capazes de provocar tal magnitude de transformações no modus operandi do planeta, bem como os diferentes impactos dessas transformações sobre o mapa terrestre. As ciências sociais e humanas terão de desenvolver e encampar novos objetos e conhecimentos para responder as questões típicas dessa nova época: desastres naturais, energias renováveis, esgotamento de recursos naturais, desertificação, ecocídio, poluição generalizada, migrações, injustiça social e ambiental.

Não deixa de surpreender também a lentidão e a debilidade das reações políticas e das sociedades em geral à mudança climática. Uma análise matemática das redes de citações mostrou que, em artigos científicos sobre ao assunto, formou-se um consenso desde o início da década de 1990 quanto ao fato de que essa mudança existe. Diante do agravamento da crise, é difícil de entender por que as medidas para reduzir os GEE sejam tão tímidas. Que obstáculos impedem que as negociações internacionais sejam mais efetivas? Para além da intencionalidade de tais obstáculos, não há dúvidas de que a comunicação entre a ciência e a sociedade talvez não está fluindo a contento, ao menos no que diz respeito à questão climática. Para tratar do assunto, o IPCC já adotou uma nova abordagem para o seu sexto relatório de avaliação (Sixth Assessment Report – AR6 (link is external)), que será voltado para sensibilizar o público em geral, e não apenas os tomadores de decisão.

Superando impasses

Um dos grandes impasses do Antropoceno é que o seu enfrentamento implica lidar com a delicada questão da justiça ambiental. A mudança climática ampliará os riscos existentes e criará outros riscos para os sistemas naturais e humanos, sendo que tais riscos são distribuídos de forma desigual e geralmente são maiores para pessoas e grupos desfavorecidos. Porém, uma solução satisfatória para esse problema não é simples, pois os países apresentam diferentes graus de desenvolvimento, tamanho, população, recursos naturais etc.

Além disso, a pegada ecológica humana já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do planeta, e 80% de sua população vive em países cuja biocapacidade já está abaixo de sua pegada ecológica. Um país como o Brasil – e outros países das Américas – ainda apresenta um superávit importante em termos de biocapacidade, embora já consuma 1,8 planeta. Contudo, 26% das suas emissões de GEE são devidas ao desmatamento. Uma parte significativa de sua pegada ecológica vem da exportação de produtos primários, que estão na origem de boa parte desse desmatamento. O sistema competitivo e globalizado procura se abastecer com o menor custo, estimulando o extrativismo em muitos países e a apropriação de terras (landgrabbing) em outros.

Mesmo se fosse possível parar imediata e completamente as emissões de CO2 dos países de alta renda, isso não seria o bastante para reduzir a pegada de carbono global de modo a se manter dentro dos limites impostos para a biosfera até 2050. Ou seja, apesar das consideráveis diferenças do tamanho de suas economias e de suas reservas de recursos naturais, todos os países deverão se empenhar no enfrentamento do problema mais urgente do Antropoceno: a redução drástica das emissões de GEE.

Isso é exatamente o que nos leva ao impasse que normalmente ressurge em todas as negociações internacionais: a busca por culpados, o que faz com que os países relutem em assumir compromissos, pelo receio de comprometer o seu crescimento econômico e seus empregos, assim como de contrariar interesses poderosos. A solução para o impasse alcançada no Acordo de Paris, assinado em 22 de abril de 2016, foi pedir para que cada país apresentasse compromissos voluntários, em vez de impor critérios estabelecidos em escala planetária. Isso significa que cada país se compromete a cumprir metas de redução das suas emissões de acordo com o que considera viável. 

Essa abordagem ajudou a superar os impasses e tornar possíveis as ações. Porém, também criou um emaranhado de critérios de avaliação que torna difícil uma comparação entre os esforços nacionais. Além disso, apesar de seu caráter universal, o Acordo de Paris não prevê sanções aos países que não cumprirem seus compromissos. Isso reflete a fraca governança da questão climática que, sem uma instituição com mandato para colocar as ações em prática, não é capaz de suplantar os interesses econômicos de países e empresas.

Submersos em contradições, dilemas e ignorância, os gravíssimos problemas ambientais do Antropoceno não constam nas agendas nacionais e sociais com a prioridade que merecem. É como se a humanidade, entorpecida, aguardasse o fim do filme, onde os heróis apareceriam para resolver tudo e, assim, e seríamos todos felizes para sempre.

Liz-Rejane Issberner é brasileira, economista e pesquisadora sênior do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), e professora do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (IBICT com a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ).

Philippe Léna é francês, geógrafo e sociólogo, e também pesquisador emérito do Institut de Recherche pour le Développement (IRD (link is external)) e do Muséum National d’Histoire Naturelle (MNHN (link is external)), em Paris.

Fonte: Correio da UNESCO