Os
desafios essenciais de um debate científico
O termo Antropoceno foi criado para levar em consideração o impacto da
acelerada acumulação de gases de efeito estufa sobre o clima e a biodiversidade
e, da mesma forma, dos danos irreversíveis causados pelo consumo excessivo de
recursos naturais. Contudo, é preciso transformá-lo em uma nova época
geológica. Enquanto o debate continua entre cientistas, ainda precisam ser
encontradas soluções. Nós estamos, de fato, testemunhando uma forma coletiva de
negação, que é o resultado de uma fé ingênua no progresso, de uma ideologia
consumista e de poderosos lobbies econômicos.
por Liz-Rejane
Issberner e Philippe Léna
A palavra Antropoceno
aparece hoje no título de centenas de livros e artigos científicos, em milhares
de citações, e seu uso continua a crescer nos meios de comunicação.
Referindo-se à época em que as ações humanas começaram a provocar alterações
biofísicas em escala planetária, ela foi criada nos anos 1980 pelo biólogo
norte-americano Eugene Stoermer e popularizado na década de 2000 por Paul
Crutzen (link is external), o cientista atmosférico holandês e vencedor do
Prêmio Nobel de Química de 1995. Os especialistas constataram que essas alterações
afastavam o Sistema Terra do relativo equilíbrio observado desde o início do
Holoceno, há 11.700 anos. Para marcar o início dessa nova era, eles propuseram
simbolicamente o ano de 1784, o ano em que o inventor escocês James Watt
aperfeiçoou a máquina a vapor com novas invenções, que também corresponde ao
início da revolução industrial e da utilização dos combustíveis fósseis.
Entre 1987 e 2015, um
programa científico internacional amplo e multidisciplinar, o International
Geosphere-Biosphere Programme (IGBP (link is external)), acumulou numerosos
dados sobre as modificações antropogênicas dos parâmetros do Sistema Terra. Por
outro lado, as pesquisas realizadas desde os anos 1950, tanto em amostras de
gelo antigo da Antártica quanto na composição da atmosfera atual – no
observatório de Mauna Loa, no Havaí, EUA – mostravam uma acumulação acelerada
de gases de efeito estufa (GEE), principalmente de dióxido de carbono (CO2). Em
1987, foi criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC (link is external)) para
avaliar os impactos desses fenômenos sobre o clima.
A grande aceleração
A partir de todos esses
dados, em 2009 e 2015, os cientistas ambientais, o sueco Johan Rockström, o
norte-americano Will Steffen e seus colegas do Centro de Resiliência de
Estocolmo (Stockholm Resilience Centre (link is external)) estabeleceram uma
lista de nove “limites” planetários que seriam perigosos de se atravessar.
Quatro desses limites já foram ultrapassados: mudança climática, cobertura
vegetal, perda de biodiversidade e extinções (a chamada “sexta extinção”) e
fluxos biogeoquímicos (com os ciclos do fósforo e do nitrogênio desempenhando
um papel crucial). Eles também mostraram que todos os indicadores disponíveis
sobre consumo de recursos primários, uso de energia, aumento populacional,
atividade econômica e degradação da biosfera aumentaram de forma considerável
após a Segunda Guerra Mundial. Esse período foi chamado de grande aceleração
Outros observadores chegaram mesmo a dizer que, a partir dos anos 1970, é
possível observar um período de hiperaceleração. Essas tendências foram
caracterizadas como insustentáveis.
O Antropoceno: metáfora ou
era geológica real?
Parece haver um consenso de
que vários parâmetros do Sistema Terra apresentam uma evolução recente além do
espectro da variabilidade natural característica do Holoceno – agora, é mais ou
menos aceito o uso do termo Antropoceno para caracterizar as mudanças que têm
origem humana. Porém, um grupo de cientistas resolveu ir além de usar o termo
como uma simples metáfora ou uma ferramenta prática e interdisciplinar, e
propuseram que o Antropoceno seja considerado formalmente como uma nova época
geológica, como o Holoceno e o Pleistoceno.
Um Grupo de Trabalho sobre
o Antropoceno (Anthropocene Working Group – AWG (link is external)) se
encarregou de apresentar essa proposta à União Internacional de Ciências
Geológicas (International Union of Geological Sciences – IUGS (link is
external)). Contudo, para uma nova época ser aceita pelos estratigrafistas, é
necessário existir uma ruptura observável e universal entre as camadas
sedimentares de duas épocas. Embora o carbono antropogênico esteja presente em
sedimentos desde os anos 1850, isso não foi considerado suficiente. Com isso, o
AWG propõe mudança de época em 1950, ano a partir do qual vários componentes
químicos e partículas de plástico de origem antrópica começaram a aparecer nos
sedimentos. Nota-se que o ano de 1950 é também o início da grande aceleração.
De qualquer forma, um eventual não reconhecimento do Antropoceno como época
geológica não invalidaria em nada o uso científico do termo, como é o caso
atualmente.
Apesar do seu curto período
de existência, o conceito de Antropoceno gerou várias controvérsias – a própria
denominação foi questionada. Historiadores e antropólogos colocaram em dúvida a
referência a antropos, esse ser humano genérico. Afinal de contas, quem é o
responsável pela transgressão dos limites biogeofísicos, senão o humano
ocidental e um sistema socioeconômico específico? Daí a multiplicação de
propostas alternativas como “Ocidentaloceno”, “Capitaloceno” etc. Outros, em
particular especialistas da história mundial ou ambiental, pensam que não há
uma descontinuidade ontológica, e que o caráter excepcional do crescimento
ocidental (a “grande divergência”), deveria ser reposicionado no longo
prazo.
De acordo com eles, pelo
menos durante os últimos 40 mil anos, o ser humano sempre causou um impacto
crescente em seu ambiente. Ele contribuiu, por exemplo, para o desaparecimento
da megafauna americana e australiana. Assim, alguns cientistas defendem um
longo Antropoceno, dividido em subperíodos tais como a industrialização
capitalista (1850-1950) e a grande aceleração. No entanto, a maioria concorda
com a necessidade de se abandonar uma visão linear e determinista do tempo
histórico.
Desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, vários cientistas têm alertado sobre o caráter não
generalizável e insustentável do sistema econômico ocidental. Na época, nenhum
limite já havia sido ultrapassado, e a humanidade ainda consumia menos de um
planeta. Porém, o processo já estava em curso. No início dos anos 1970, a situação
se agravou bastante, os alertas se multiplicaram e os dados científicos se
acumularam. Nas duas ocasiões, teria sido possível a ocorrência de uma mudança
histórica. Atualmente, ela se tornou mais difícil.
Uma negação coletiva
Por que nós nos recusamos a
ver isso? Podemos listar alguns fatores: a fé cega no progresso e no
desenvolvimento – em outras palavras, em um sistema que aumenta indefinidamente
a quantidade de riqueza disponível; poderosos interesses que se beneficiam
dessa dinâmica e realizam um lobbying intenso; a crença na capacidade da
ciência e da tecnologia para resolver todos os problemas e as externalidades
negativas (como, por exemplo, a poluição); o controle do imaginário dos
consumidores pela mídia, que cria uma ânsia pelo consumo individual, visando
tanto ao conforto, quanto para se distinguir e ser reconhecido.
É surpreendente que as
ciências humanas e sociais tenham permanecido durante muito tempo alheias a
essa problemática, considerando que ela determinará o futuro da humanidade.
Além de serem antropocêntricas por definição, essas disciplinas consideravam
que esse campo de estudos pertencia, por excelência, às ciências da natureza. A
emergência do conceito de Antropoceno confere a essas áreas a responsabilidade
de investigar e explicar como as sociedades humanas foram capazes de provocar
tal magnitude de transformações no modus operandi do planeta, bem como os
diferentes impactos dessas transformações sobre o mapa terrestre. As ciências
sociais e humanas terão de desenvolver e encampar novos objetos e conhecimentos
para responder as questões típicas dessa nova época: desastres naturais,
energias renováveis, esgotamento de recursos naturais, desertificação,
ecocídio, poluição generalizada, migrações, injustiça social e ambiental.
Não deixa de surpreender
também a lentidão e a debilidade das reações políticas e das sociedades em
geral à mudança climática. Uma análise matemática das redes de citações mostrou
que, em artigos científicos sobre ao assunto, formou-se um consenso desde o
início da década de 1990 quanto ao fato de que essa mudança existe. Diante do
agravamento da crise, é difícil de entender por que as medidas para reduzir os
GEE sejam tão tímidas. Que obstáculos impedem que as negociações internacionais
sejam mais efetivas? Para além da intencionalidade de tais obstáculos, não há
dúvidas de que a comunicação entre a ciência e a sociedade talvez não está
fluindo a contento, ao menos no que diz respeito à questão climática. Para tratar
do assunto, o IPCC já adotou uma nova abordagem para o seu sexto relatório de
avaliação (Sixth Assessment Report – AR6 (link is external)), que será voltado
para sensibilizar o público em geral, e não apenas os tomadores de decisão.
Superando impasses
Um dos grandes impasses do
Antropoceno é que o seu enfrentamento implica lidar com a delicada questão da
justiça ambiental. A mudança climática ampliará os riscos existentes e criará
outros riscos para os sistemas naturais e humanos, sendo que tais riscos são
distribuídos de forma desigual e geralmente são maiores para pessoas e grupos
desfavorecidos. Porém, uma solução satisfatória para esse problema não é
simples, pois os países apresentam diferentes graus de desenvolvimento,
tamanho, população, recursos naturais etc.
Além disso, a pegada
ecológica humana já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do
planeta, e 80% de sua população vive em países cuja biocapacidade já está
abaixo de sua pegada ecológica. Um país como o Brasil – e outros países das
Américas – ainda apresenta um superávit importante em termos de biocapacidade,
embora já consuma 1,8 planeta. Contudo, 26% das suas emissões de GEE são
devidas ao desmatamento. Uma parte significativa de sua pegada ecológica vem da
exportação de produtos primários, que estão na origem de boa parte desse
desmatamento. O sistema competitivo e globalizado procura se abastecer com o
menor custo, estimulando o extrativismo em muitos países e a apropriação de
terras (landgrabbing) em outros.
Mesmo se fosse possível
parar imediata e completamente as emissões de CO2 dos países de alta renda,
isso não seria o bastante para reduzir a pegada de carbono global de modo a se
manter dentro dos limites impostos para a biosfera até 2050. Ou seja, apesar das
consideráveis diferenças do tamanho de suas economias e de suas reservas de
recursos naturais, todos os países deverão se empenhar no enfrentamento do
problema mais urgente do Antropoceno: a redução drástica das emissões de GEE.
Isso é exatamente o que nos
leva ao impasse que normalmente ressurge em todas as negociações
internacionais: a busca por culpados, o que faz com que os países relutem em
assumir compromissos, pelo receio de comprometer o seu crescimento econômico e
seus empregos, assim como de contrariar interesses poderosos. A solução para o
impasse alcançada no Acordo de Paris, assinado em 22 de abril de 2016, foi
pedir para que cada país apresentasse compromissos voluntários, em vez de impor
critérios estabelecidos em escala planetária. Isso significa que cada país se
compromete a cumprir metas de redução das suas emissões de acordo com o que
considera viável.
Essa abordagem ajudou a
superar os impasses e tornar possíveis as ações. Porém, também criou um
emaranhado de critérios de avaliação que torna difícil uma comparação entre os
esforços nacionais. Além disso, apesar de seu caráter universal, o Acordo de
Paris não prevê sanções aos países que não cumprirem seus compromissos. Isso
reflete a fraca governança da questão climática que, sem uma instituição com
mandato para colocar as ações em prática, não é capaz de suplantar os
interesses econômicos de países e empresas.
Submersos em contradições,
dilemas e ignorância, os gravíssimos problemas ambientais do Antropoceno não
constam nas agendas nacionais e sociais com a prioridade que merecem. É como se
a humanidade, entorpecida, aguardasse o fim do filme, onde os heróis
apareceriam para resolver tudo e, assim, e seríamos todos felizes para sempre.
Liz-Rejane Issberner é
brasileira, economista e pesquisadora sênior do Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), e professora do Programa de
Pós-graduação em Ciência da Informação (IBICT com a Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ).
Philippe Léna é francês,
geógrafo e sociólogo, e também pesquisador emérito do Institut de Recherche
pour le Développement (IRD (link is external)) e do Muséum National d’Histoire
Naturelle (MNHN (link is external)), em Paris.
Fonte: Correio da UNESCO
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