Henri Lefebvre: pensando a práxis (Parte 1)
por Jean Pires de A. Gonçalves
Como já se afirmou, o cenário atual é
bastante conservador. Diante desta perspectiva, e de nossa recusa em tomar uma
posição pessimista ou niilista diante das coisas, encontramos um alento na obra
de Henri Lefebvre.
O pensador francês, diante das
tendências político-sociais que se esboçavam em meados do século XX e que
tendiam a um sistema fechado em torno do Estado, propôs-se a compreender a
sociedade de seu tempo e a apontar novas contradições, além das existentes, e,
com isso, formular um projeto de emancipação sobre novos pressupostos. Sua
biografia, no entanto, foi um tanto obscurecida por alguns preconceitos.
Filiado ao Partido Comunista Francês (PCF), em 1930, Lefebvre foi tido como um
expoente do stalinismo[1],
embora tenha sempre manifestado em seus trabalhos um certo “revisionismo” das
teses de Marx[2],
diametralmente oposto à ortodoxia do partido comunista. Revisionismo este que o
levou à expulsão do PCF, em 1958. Foi tido, inversamente, nos anos decorrentes,
por libertário e se tornou uma figura importante nos acontecimentos de maio de
68, em Paris. Este itinerário, aliás, pouco ortodoxo, talvez, contribuiu para
jogá-lo num ostracismo político e intelectual. Fato bastante injusto, pois,
nesse contexto histórico, um riquíssimo debate se desdobrava em torno de temas
como autenticidade da vida, indústria cultural, Eros e civilização, sociedade
da abundância e de consumo, espaço,
densidade demográfica, urbanismo moderno, cotidiano etc., da qual Lefebvre deu valiosa contribuição.
Acreditamos, por isso, que o estudo de sua obra abra outras possibilidades
ainda inexploradas na interpretação da sociedade de hoje. Assim, feita estas
pequenas considerações, pergunta-se: qual é a “matriz” do pensamento
lefebvriano?
Para Lefebvre, três pensadores
definem a modernidade: Hegel, Marx e Nietzsche. Vejamos como Lefebvre anota seu
encontro permeado de acasos com a obra destes três pensadores:
O autor (Ego) leu Nietzsche, pelo mais fortuito dos acasos, no decurso de
uma educação cristã, por volta dos quinze anos de idade – tudo o que se achava
então traduzido, mas alguns textos em alemão. (...) “Ego”, então, aos vinte e
cinco anos de idade, apesar da fascinação nietzschiana: uma sombra das sombras,
mais, a própria sombra encarnada; daí o encontro (a descoberta) de Hegel (pelo
maior dos acasos: sobre a mesa de trabalho de André Breton), em primeiro lugar,
e depois de Marx. Daí, também, o mal-entendido: a adesão ao marxismo, em razão
de uma teoria capital – a do fim do Estado. Daí a filiação no PCB, movimento
que se iria anquilosar no stalinismo e no fetichismo do Estado. Daí algumas
peripécias. (LEFEBVRE, 1976, p. 258).
Através dessas três colunas do
pensamento ocidental, Lefebvre define a modernidade de modo negativo. Como assim? Segundo o autor, a
historicidade, isto é, a razão na História definida por uma teleologia lógica,
elemento central nas obras de Hegel e Marx, não se cumpriu como efetivamente
indicava a teoria. O Estado Moderno hegeliano não fez senão suscitar
contradições concretas insolúveis, no sentido da crítica de Marx; e, por outro
lado, o Estado marxista (ditadura do proletariado, fadada a desaparecer) não se
realizou senão como hegelianismo, na figura perene do totalitarismo stalinista
(ou do lassalismo). Por isso, para Lefebvre, o “muro” caíra já em meados do
século XX. Daí a percepção de que a missão histórica do operariado não se
cumprira, colocando em questão os próprios trabalhadores como sujeitos do
processo da transformação social. Ora, por isso, a concepção de história em
Nietzsche aparecia mais fecunda, pois, para este filósofo, não há um fim da história porque a própria
história carece de sentido. Ou
melhor, a história não tem um escopo ou
objetivo secreto supostamente racional; algo que não passaria de uma ficção.
Para Nietzsche, a historiografia é uma representação forjada para que os seres
humanos possam suportar a ausência de sentido da vida, o caos universal. Assim,
a perspectiva de um fim da história é uma autodestruição (o suicídio da
história). Por outro lado, pelos mesmos motivos da criação de representações
com vista a um sentido, a era da razão
(Logos socrático) inaugurou uma
desconfiança em torno do mundo sensível real (trágico) em favor do suprassensível (metafísico). Sua expressão
mais bem acabada teria sido o ideal ascético do cristianismo, em sua renúncia
da vida por meio de um ideal além-mundo. Resultando daí uma ética maniqueísta,
onde a vontade de criar foi substituída por uma moral de escravos, movida por
um instinto de rebanho. O projeto de Nietzsche propunha, ao contrário, a
transmutação de todos os valores, além do bem e do mal, na realização prática
de uma “civilização superior”, calcada nos valores de afirmação da vida. O que está em jogo é, novamente, a produção do (novo) ser humano: do super-homem
(sobre-humano ou além-homem; como queiram). Entretanto, o projeto nietzschiano
de uma nova civilização também foi fadado ao fracasso, não ultrapassando o
niilismo (amoral) do mundo moderno. O resultado não poderia ser mais sombrio: o
fim da história se caracteriza por
reino das sombras, isto é, por um lado de penumbra na própria teoria destes
três pensadores: Hegel, Marx e Nietzsche. A modernidade emerge sobre aquilo
que havia de negativo nestes três projetos: Estado unilateral, exploração do
ser humano e decadência moral (niilismo). É a partir deles que Lefebvre elabora
o seu projeto de superação: a sociedade urbana. A produção do espaço? Terá sido fadada
também a um reino das sombras?
Em nossa pesquisa, faremos uma
leitura inusitada da obra lefebvriana, dando um enfoque especial a Nietzsche;
“esta sombra da sombra, mais, a própria sombra encarnada” na obra lefebvriana.
Esta leitura bastante improvável tem por objetivo testar hipóteses; perscrutar
outras perspectivas que, longe de sobreporem-se às outras, busca compor um
debate teórico em torno das contribuições importantes de outros estudos.
Deixamos assim Marx e a crítica da economia política, para encontrar Nietzsche,
sem abandonar totalmente este ou aquele (a dialética de Hegel). Para nós, somente
assim poderemos vislumbrar um projeto libertário – de autogestão –, sugerido
acima. Pois, o bigode desferia uma crítica ainda mais feroz ao Estado que Marx,
talvez, por um elo que o identificava inconscientemente ao “instinto rebelde”
de Bakunin; reflexo oblíquo de seus laços pessoais com compositor Richard
Wagner, amigo do revolucionário russo, e, também, é verdade, da leitura que fez
da obra de Max Stirner. Mas, para nós, é possível imaginar um cenário, talvez
um jardim, em que Nietzsche e o compositor conversavam, e que este narrava suas
peripécias ao lado do anarquista, nas barricadas de Dresden, em 1849.
Nesta perspectiva nietzschiana,
Lefebvre esboça uma defesa veemente do filósofo alemão contra seus detratores,
que o acusavam de colaborar na construção do ideal nazista (ideia difundida
pelo celebre episódio envolvendo a irmã de Nietzsche e o nacional-socialismo),
que transcrevemos abaixo:
Nietzsche nem por isso deixa de conservar a reputação dum “crítico de
direita” da metafísica, da sociedade existente, do Estado, e por consequência
da história. Será justo? Não, porque poder-se-ia nele mostrar um extremismo
anarquizante, um “esquerdismo”. O seus ataques contra o Estado, “o mais frio
dos monstros frios”, não se assemelham aos ataques das pessoas que quereriam
voltar aquém do Estado, para a comunidade, a tribalidade, a sociabilidade da
pequena paróquia; ele transporta-se pelo pensamento, como Bakunin, para além da
história, para além do Estado. (...) Será preciso acrescentar que Dionísio era
o amigo e o deus dos escravos e das mulheres, não só dos rurais ou dos
provinciais semibárbaros da Trácia? Que a dança e o transe de que a tragédia
não foi senão um episódio – repetível, é certo, isto é, suscetível de ser
apresentado e re-presentado –, que, numa palavra, a festa teve durante muito
tempo e talvez guarde ainda um caráter subversivo? Que Apolo era o deus dos
senhores, possuidores do saber tanto como da riqueza? Que o Ocidente, e a
cultura dos Senhores, foram apolínios, rejeitando Dionísio, até aos derrubamentos:
as vinganças dos escravizados, as suas revoltas, os seus apelos a Dionísio, ao
canto, à dança, ao transe, ao êxtase, à violência, ao arcaico, ao
“primitivismo”, ao selvagem... (LEFEBVRE, Fim da história, pp. 120 e 121).
*****
Feitas estas observações, faremos um
breve estudo de alguns temas propostos por Lefebvre (reunindo a bibliografia
que nos foi possível e tendo em vista sempre os prazos e o cronograma do
programa de pesquisa de pós-graduação do departamento desta faculdade). Sem dúvida,
dadas tais circunstâncias, reivindicamos aqui a liberdade do ensaio, assumindo
plenamente o risco de errar. Todavia, acreditamos que podemos colaborar, ainda
que minimamente, aos estudos dos referidos temas, notadamente, o espaço e o urbano, somando aos estudos de outras pesquisas.
Portanto, para nós, dois eixos
centrais que se implicam e situam a obra de Henri Lefebvre: a produção em sentido amplo (já
mencionada e que será tema recorrente nesta pesquisa) e, consequentemente, o
sentido da praxis[3].
Neste sentido, Lefebvre põe em
primeiro plano, no contexto da produção em sentido amplo, a relação fundamental entre ser humano (social) e as coisas
através da praxis[4]. O
que restitui a dignidade do prático-sensível (Marx e Nietzsche). Tal relação é
deteriorada pela técnica e a indústria. Vejamos:
A coisa é módica e mínima, igualmente em número, medida pela pululação de
objetos indiferentes. A coisa é o cântaro, o anel, o espelho, o vaso, obras
artesanais, mais do que obras de arte, mais ainda obras e não produtos (da
indústria ou da operação técnica no sentido moderno). O saber da ciência e a
técnica destruíram as coisas enquanto coisas, muito antes da explosão da bomba
atômica; reduzem a coisa à função e à operação objetivas. Quase não há mais
coisas, e sua “coisidade” permanece retirada, esquecida. (LEFEBVRE, 1976, p.
191).
Num debate que busca uma descrição
mais complexa e refinada da praxis, o
autor retoma o sentido das palavras gregas praxis,
poièsis e mimèsis. Elas se articulam na produção ampla, que, como já foi
dito, envolve a produção do ser humano. A praxis
engloba tanto a poièsis como a mimèsis; elas se relacionam de modo
estreito. Mimèsis não tem o sentido
platônico vulgarizado, da “arte como imitação”, mas envolve reprodução e
criação. Pode, no entanto, se resumir a simples reprodução, a um movimento
automático (técnico). Poièsis também
não se separa da téckne[5],
isto é, do fazer, tampouco se resume
à sua forma verbal e literária (poesia), mas se define no âmbito do vivido pela criação, na produção de estilo ou obra. No capitalismo, estes níveis da praxis estão separados, em prejuízo da poièsis e da mimèsis, em
suas acepções criadoras. A técnica estende seus tentáculos a todos os domínios
da sociedade (veremos mais adiante o surpreendente significado deste fenômeno).
Dito isto, vejamos pormenorizadamente as definições destes termos, nos próprios
dizeres de Henri Lefebvre:
Praxis: O termo “praxis” se usa atualmente em várias acepções. Ora
designa toda atividade, social logo humana (inclusive a técnica, a poièsis e
também o conhecimento teórico). Ora se opõe à teoria e ao conhecimento puros ou
pretensamente tais, o que aproxima a praxis da prática, no sentido corrente.
Ora, enfim, designa a atividade propriamente social, isto é, as relações entre
os seres humanos, distinguidas por legítima abstração das relações com a
natureza e a matéria (técnica e poièsis). É este o sentido que tentaremos
circunscrever e determinar. (LEFEBVRE, 1967, p. 63).
Poièsis: Chamaremos, assim, a atividade humana enquanto se apropria da
natureza (physis) em torno do ser humano e nele (sua própria natureza: sentido,
sensibilidade e sensorialidade, necessidades e desejos, etc.). A poièsis é,
portanto, criadora de obras. Compreende fundações, decisões de consequências
ilimitadas, embora às vezes despercebidas durante longos períodos. Nem toda
criação é, portanto, poièsis, mas toda poièsis é criação. A “poesia” restringe
o sentido do termo. Outra observação: a técnica e a invenção técnica ficarão
para nós fora do campo da poièsis. Se é verdade que as técnicas dominam a
“natureza” (o mundo exterior), se são, portanto, necessárias, não bastam à
apropriação, pelos seres humanos, de sua própria natureza. Distinção essencial
para determinar os limites da técnica na modernidade e para definir
corretamente a alienação tecnológica. (Ibidem, pp. 64 e 65).
Mimèsis: O conceito de mimèsis não coincide com o de imitação. A mimèsis
não é um fato psíquico mas um fato sociológico (envolvendo o psíquico mas
transbordando dele). Nesse sentido, a mimèsis pode ser definida como um aspecto
ou um nível da praxis. Precisa, no entanto, ser fundada, criada. Situando-se
entre a repetição e a invenção transformadora (revolucionária), tem uma relação
com a poièsis. É a noção mista por excelência, ou a noção do misto, meio
(médio), intermediário, mediador, meio (centro). Com a linguagem como tal, ou
melhor, o discurso. Ligamos à mimèsis toda atividade que se desenrola segundo
uma forma e que, aliás, acrescenta à sua forma. Depois, portanto, de uma
apreensão, percepção, ou intuição, inicial da forma. Em seguida, é mais ou
menos conforme. Propicia, eventualmente, um formalismo que pode transviar o uso
e a função da forma. Pode, também, dar lugar a um conformismo, apogeu e paroxismo
da mimèsis. Contrariamente às ilusões correntes, o individualismo em nada
exclui o mimetismo e a mímica, aspecto da mimèsis. Ao contrário. Na “areia
humana”, cada grão imita os outros grãos, acreditando-se só, estando separado.
A forma que segue a mimèsis pode ser lógica, jurídica, cerimonial, gestual,
ritual. (Ibidem, pp. 66 e 67).
*****
DO ESPAÇO À SOCIEDADE
URBANA
Nota 1: Porque só o amor destrói
Há muito tempo tentamos renegar o
amor. Dizemos para nós mesmos: o amor não nos atinge, somos invulneráveis,
nossos corações, petrificados! Somente os piegas, hipócritas ou
sentimentalóides se deslumbram com o amor (o amor próprio, deles mesmos, que,
generosamente, cedem algumas migalhas para outra pessoa, supostamente amada).
Num sentido ainda mais crítico, o amor é vã ilusão (representação), uma
promessa fatalmente descumprida; e, o que é pior, mais do que nunca, na
sociedade atual, o amor tem um preço, vale como qualquer vil mercadoria.
Aparentemente, num mundo reificado pelo capital, não há lugar para mais nada de
humano. Tudo pode ser vendido e comprado no mercado, principalmente o amor.
Todavia, na sociedade, marcada pela
alienação, é possível pensar um momento, evidentemente residual, em que os seres humanos são seres humanos. Este instante
soberanamente humano é um momento que pode ser, sobretudo, do amor, que se
rebela, que se revolta contra as coações impessoais de fora (heteronomia). Este
amor não pode ser negociado no mercado. É irredutível a um preço. Este amor é
como as palavras de Bakunin: “A volúpia de destruir é, ao mesmo tempo, uma
volúpia criadora”. Não é meramente um prazer condicionado pelas imposições
determinadas pela sociedade capitalista; estas de fato degradam o amor. Este
amor que destrói, vê-se bem que não é vulgar de tão vulgar que é.
Que é o amor, por exemplo, fora e além dos múltiplos eventos,
aparentemente insignificantes, da vida cotidiana? Um amor que se quer
‘essencial’ e que se manifesta apenas em ‘grandes circunstâncias’ é um amor
inumano, ressecado, que nada traz para o ser amado; e, tanto mais ele é assim
‘essencial’, tanto mais é interior e secreto, tanto mais é exterior à vida.
(LEFEBVRE, 1995, p.211).
E apesar do massacre promovido pelo
cotidiano, as pessoas ainda assim conseguem sorrir, inesperadamente. Seria o
começo singelo de uma revolução? O amor profano, versão mundana do amai-vos uns aos outros? Momentos de descontração, de festa, de
amizade, de paixão, que nasce na esperança. Ou ainda: Sendo a si tão contrário, é o mesmo amor (Camões). O ódio? Não há guerra
que não seja um crime contra a humanidade! O ódio revolucionário é,
inversamente, uma prova de amor. Sendo assim, o amor, tão presente, tão vulgar,
tão piegas, tão humano, só é possível no socialismo (sem classes sem Estado;
sem pátria nem patrão); numa sociedade onde a alienação for de toda debelada:
“Para o júbilo, o planeta está imaturo; É preciso arrancar alegria lá do
futuro!” (Maikovski).
Nota 2: O pressuposto biológico
A modernidade definiu o ser humano
enquanto “ser racional” – o único existente na natureza – inspirada por
pressupostos aristotélicos e do sujeito cartesiano[6].
Sem dúvida, não há nenhum ser vivo conhecido que possua a capacidade
extraordinária do intelecto humano. Todavia, recentemente, de acordo com as
novas experiências realizadas com animais complexos, como os mamíferos, não se
pode ignorar que estes também apresentam alguma capacidade de pensamento,
inclusive, a faculdade de resolver problemas por meio de operações dedutivas.
Além disso, máquinas e supercomputadores, produtos humanos, diga-se de
passagem, hoje podem resolver com mais rapidez e eficiência problemas lógicos e
matemáticos que o cérebro humano. Hoje, os supercomputadores superam os seres
humanos em “inteligência” (lógico-dedutiva). Um exemplo notável: a derrota de
Garry Kasparov – o lendário enxadrista russo que se notabilizou pelas disputas
épicas com seu arquirrival, não menos lendário, Anatoly Karpov (campeão mundial
por mais de uma década) – a derrota de Garry Kasparov para o supercomputador
Deep Blue, nos anos 90. Neste duelo entre o homem, Kasparov, e a máquina,
aquele ainda imprimiu inúmeras vitórias ao seu adversário mecânico. Mas, depois
de sofrer consecutivas derrotas, o computador foi se aprimorando, memorizando e
incorporando as jogadas geniais de seu oponente humano. E na virada do milênio:
xeque mate![7] A
humanidade perdia para a máquina e desta vez para sempre. Deep Blue
perversamente copiava todos os lances de Kasparov; armazenava tudo em sua
memória de lata; aprendia com os seus erros e de seu adversário, computava cada
detalhe, calculava infinitas possibilidades... Mas este não foi o segredo de
seu triunfo. O mais surpreendente, fato que passou despercebido para o próprio
Garry Kasparov, é que Deep Blue era, na verdade, seu espelho. Que ele, Kasparov, sentava-se diante de seu reflexo, que
jogava contra si mesmo, e que, por fim, seria derrotado implacavelmente por seu
outro-ele-mesmo. O século XXI é então um marco, pois denota o fim de fato do sujeito moderno, não em detrimento da
técnica, mas do autômato (o ser
humano exteriorizado na máquina).
A máquina automática é uma máquina, pois constrói, se desmonta em peças
destacadas, se recompõe, de acordo com uma regra (duplamente determinada:
funcional, estrutural). Ao mesmo tempo, simula o pensamento. Até onde vai, até
onde irá essa simulação? Até alcançá-lo? Até ultrapassá-lo em certos pontos (a
capacidade de cálculo, o intelecto ou a inteligência)? ficando atrás em certos
pontos (a sensação, a emotividade)? (LEFEBVRE, 1967, p. 229).
Portanto, tal definição cartesiana
merece uma revisão... é preciso voltar atrás, resgatar a sensação, a emotividade,
o que há de biológico no ser humano, o que há nele de bicho (ser vivo): o corpo. Mas não é cair no erro da
biologia, ciência especializada, que “biologiza” campos do conhecimento em que
não está autorizada, sem reservas, a tomar parte, como na sociologia. A
biologia – aliás, mais preocupada em produzir tecnologia (máquina) e ideologia
– nega toda e qualquer finalidade na
teoria da evolução, enfatizando sempre processos casuais e acasos no
desenvolvimento orgânico das espécies. Quando, porém, trata do fator social ou
psíquico (principalmente no que se refere às questões das classes sociais),
remonta-os sempre a origens pré-históricas, a finalidades bem determinadas e
“essenciais”, inerentes ao “ser” primeiro (“o homem das cavernas”). Tal
procedimento chega a formulações delirantes. Ultimamente, anunciou-se que um traço especificamente humano, que o define (ontologia), foi finalmente descoberto: o “gene da
generosidade”! Tal gene foi matéria de capa na mídia em geral, mas
principalmente da mídia conservadora. Curiosamente, só não se explica qual é o
papel desse gene numa sociedade marcada pela concorrência selvagem, pelo
individualismo imoral, pela violência e pela drástica desigualdade social.
Aliás, como se manifesta essa “generosidade” do ponto de vista comportamental
quando uma pessoa faminta implora por esmolas e recebe em troca a indiferença
das janelas blindadas e escuras em carros importados?
Portanto, ao invés da ciência
procurar uma essência ontológica exclusivamente humana, melhor seria se
buscasse o que há de complexo, de negativo, de não identidade: o ser humano
como ser genérico (projeto a ser
constituído), produzido historicamente, sem desconsiderar, evidentemente, seu
pressuposto biológico, isto é, o corpo.
“Para a teoria da praxis, o homem se ele mesmo nessa praxis; suas
determinações são múltiplas, nenhuma o esgota. Aliás, trata-se menos de
descrever, de analisar, de expor ou de explicar, em suma, de conhecer o humano,
que de criá-lo. E não apenas de conduzi-lo ou educá-lo em nome de um
conhecimento e de uma definição prévios. Toda definição ou determinação é
limitativa. O homem ‘total’ não é isto ou aquilo: homo faber, sapiens, ludens,
ridens, etc. É tudo isso e ainda ‘outra coisa’ que ainda não foi dita porque
não foi criada” (LEFEBVRE, 1967, p. 366).
Nota 3: Os enigmas da natureza
Antes de prosseguirmos, para reforçar
a argumentação que será exposta, vale a pena citar alguns fragmentos escritos
pelo renomado geólogo e biólogo Stephen Jay Gould, publicados em forma de
ensaio na Natural History Magazine
entre os anos de 1974 e 77, e posteriormente compilados no livro de divulgação
científica Darwin e os enigmas da vida.
a) No ensaio intitulado Tamanho e Forma, Gould escreve:
A própria geometria do espaço é a principal razão para as correlações
entre tamanho e forma. Simplesmente crescendo, mantendo-se inalterada sua
forma, qualquer objeto sofre decréscimo contínuo em superfície relativa. Esse
decréscimo ocorre porque o volume aumenta ao cubo em relação a comprimento
(comprimento x comprimento x comprimento) enquanto que a superfície aumenta ao
quadrado: em outras palavras, o volume cresce mais rapidamente que a
superfície. (GOULD, 1987, p. 167).
Gould argumenta que muitas funções do
corpo dos animais dependem de seu volume inteiro. Neste sentido, algumas
variáveis do ambiente desempenham um papel central no organismo, como a
gravidade. Segundo o biólogo, Galileu reconheceu este princípio na sua obra Discorsi (1638), ao afirmar que ossos de
animais grandes, assim como cilindros, devem ser relativamente mais grossos,
exercendo, porém, a mesma força relativa que os finos ossos de animais menores.
Uma solução para o decréscimo de superfície tem sido particularmente
importante na evolução dos organismos grandes e complexos: o desenvolvimento de
órgãos internos. (...) Alguns animais simples nunca desenvolvem órgãos
internos; se eles crescessem precisariam alterar sua forma de maneira tão
drásticas que a plasticidade para futuras mudanças evolutivas seria sacrificada
por essa especialização excessiva. Assim, uma solitária pode ter até 20 pés de
comprimento, mas sua largura não pode exceder uma fração de polegada, já que
tanto alimentos quanto oxigênio penetram diretamente pela superfície externa,
atingindo todas as partes do corpo. Alguns animais são forçados a ficar
pequenos. (Ibidem, 1987, p. 168 e 169).
Segundo o autor, o mesmo princípio
também vale para todas as coisas, notadamente a arquitetura. E daí,
surpreendentemente, Gould passa a analisar igrejas medievais. E o primeiro
critério inferido é o tamanho. De acordo com o biólogo, estas igrejas foram
construídas numa gama enorme de tamanhos, em conformidade com o conhecimento
técnico e dos materiais utilizados na época, onde pode se constatar que o
número de janelas, a estrutura e a forma variavam em razão da maior ou menor
dimensão destas construções.
As igrejas medievais, assim como as solitárias, não possuem sistemas
internos e precisam alterar sua forma para produzir mais superfície externa à
medida que aumentam de tamanho. (...) Os arquitetos medievais tinham suas
normas práticas, mas, pelo que sabemos, não tinham conhecimento explicito das
leis do tamanho. (Ibidem, p. 171).
E é categórico ao afirmar que nenhuma
igreja gótica é mais larga do que comprida. Gould encerra o ensaio relatando o
diálogo de duas meninas que discutiam sobre o tamanho dos cachorros: “Uma delas
perguntou: ‘Será que o cachorro podia ser do tamanho de um elefante?’ A
amiguinha retrucou: ‘Não, se ele fosse grande como um elefante, ele iria se
parecer com um elefante’. Sábias palavras” (Ibidem, p. 171).
b) No interessante artigo intitulado Sabedoria orgânica, ou por que a mosca deve
comer a mãe por dentro, Gould descreve a reprodução dos cecidomiídeos, um tipo de mosquitinho.
Estes mosquitos podem se reproduzir de duas maneiras, por meio de reprodução
sexuada, caso a alimentação for escassa, ou, quando a alimentação é abundante,
por partenogênese (reprodução assexuada), isto é, quando não há fecundação. Neste
caso, somente a fêmea procria, mas nunca chega à idade adulta e, como não põe
ovos, como na reprodução sexuada, a prole se desenvolve dentro do corpo da mãe.
Pelo fato de não receber nutrientes nem estar protegida por um útero, o “feto”
acaba devorando o corpo materno, de dentro
para fora. Mas não cabe aqui nenhum
juízo de moral, do tipo, “filho desnaturado, ingrato”, pois o filhote
desgraçadamente, depois de dois dias, terá o mesmo destino da mãe. Consolo para
as mulheres-humanas: as dores de parto devem soar como música se comparada às
dos cecidomiídeos.
Segundo Gould:
Os evolucionistas apreenderam que os organismos se adaptam não só através
de alterações de energia e forma, mas também do ajustamento no timing de suas
vidas e na energia despendida em diferentes atividades (alimentação,
crescimento e reprodução, por exemplo). Esses ajustamentos são chamados de
‘estratégias na história de vida’. Os organismos desenvolvem diferentes
estratégias de vida, que se ajustam a tipos de diferentes de meio ambiente.
(...) os animais são delicadamente postos em ‘sintonia fina’ com o meio
ambiente. (GOULD, 1987 p. 87).
c) Já vimos a importância que o design (figura, forma, desenho,
dimensão) exerce no organismo segundo Stephen J. Gould. Num outro ensaio, A postura faz o homem, escreve o autor:
O cérebro não pode começar a crescer no vácuo. É preciso que um modo
alterado de vida, que coloque uma acentuada e seletiva recompensa sobre a
inteligência, forneça o ímpeto inicial. A postura ereta libera as mãos da
locomoção para a manipulação (literalmente, de manus, ‘mão’). Pela primeira
vez, as ferramentas e armas podem ser elaboradas e usadas com facilidade. A
inteligência aumentada é, em grande parte, uma resposta ao enorme potencial
inerente a mãos livres para a manufatura – de novo, literalmente. (GOULD, p.
207).
Transcreveremos a seguir citação
pouco comum em pesquisadores das ciências naturais. Vejamos:
E, de fato, o século 19 forneceu-nos um pormenorizado relato que sem
dúvida surpreenderá a maioria dos leitores – Fredrich Engels (...) escreveu um
ensaio intitulado O papel desempenhado pelo trabalho na transição do macaco ao
homem. Foi publicado postumamente em 1896 e, infelizmente, não parece ter
impacto visível sobre a ciência ocidental. (Ibidem, p. 208).
Neste ensaio, Engels defende a
hipótese de que a postura ereta fez da mão humana não somente o órgão do trabalho mas também o produto do trabalho. Gould, depois de
afirmar que Engels não viveu suficiente para concluir sua “dialética da
natureza”, lembra que o naturalista alemão e darwinista Ernst Haeckel deve ter
exercido grande influência nos escritos antropológicos do socialista. Feita
esta consideração, descreve como Engels propõe uma história natural da humanidade
demonstrando como, depois de dominar o ambiente, as sociedades humanas com o
tempo depreciaram o trabalho manual reservando-o às populações subjugadas pelas
castas dominantes e guerreiras. Estas, desligadas da produção material,
detiveram-se na administração da sociedade, donde o pensamento era uma
qualidade mais apropriada para a função gestora. Gould, então, constata que
preconceitos (ideologias) – para ele, calcados na separação mão-cérebro – regem as ciências e seu
ideal de pesquisa “pura”, concluindo taxativo:
A importância do ensaio de Engels não está no fato de que o
Australopithecus tenha vindo confirmar uma teoria específica por ele proposta –
via Haeckel – e sim na arguta análise que faz do papel político da ciência e de
como os preconceitos sociais afetam todo o pensamento. (...) Se levássemos a
sério a mensagem de Engels e reconhecêssemos nossa crença na superioridade da
pesquisa pura pelo que ela é – ou seja, preconceito social – talvez
conseguíssemos promover entre os cientistas a união entre a teoria e a prática
de que um mundo perigosamente à beira do abismo como o nosso necessita com
tanto desespero. (Ibidem, p. 210).
*****
O espaço
Mais de uma vez, Lefebvre, ao se
identificar como francês, exortou a racionalidade, digamos nós, cartesiana, da
tradição francesa. Sendo assim, teria sido então Henri Lefebvre um pensador
racionalista, ou idealista? Certamente, não. Mas se nos fosse dada uma licença
[pelo autor] – nós que estudamos sua obra, neste caso um capítulo em especial
de A produção do espaço – Arquitetônica
Espacial – para eleger, metodologicamente, uma “unidade mínima” do espaço –
ou, mais precisamente, fixar seu ponto de
partida, este seria sem dúvida alguma o
corpo. Neste caso, Lefebvre inverte o res
cogitans cartesiano, concebendo um primado teórico à res extensa (para usar os termos do filósofo francês do século
XVII); isto é: o corpo[8].
Para René Descartes, o corpo é espaço pleno, uma vez que não existe vazio, é
uma coisa dotada de extensão pela
simultaneidade de suas partes. Sendo assim, de acordo com a concepção idealista
cartesiana, não se trata do corpo material, que é percebido pelos sentidos,
mas, na matéria evanescente, o que somente é verdadeiro é aquilo que é claramente
pensável: extensão e movimento.
Paradoxalmente, por outro lado, notáveis são os estudos de Descartes sobre a
circulação sanguínea, associando o coração a uma bomba hidráulica, e as
afirmações de que o corpo humano seria do mesmo tipo do dos animais,
funcionando como uma máquina[9].
Feitas estas considerações – que devem ser cuidadosamente registradas –, a
referencia aqui é outra: a crítica de Friedrich Nietzsche ao sujeito
cartesiano:
Descartes, no século XVII, com uma concepção racionalista do mundo, tinha
na lógica o paradigma para o pensamento; Nietzsche, na segunda metade do século
XIX, com uma concepção orgânica do mundo, tinha a biologia seu grande modelo.
Por isso o filósofo alemão concebia a razão como uma faculdade surgida
tardiamente na história dos seres orgânicos, sob a qual ainda repousa uma
multiplicidade de impulsos. O mundo, que para Nietzsche é puro caos de forças
interagindo entre si, é fundamentalmente enganador, por só termos acesso
perspectivo a ele e por só podermos expressá-lo utilizando uma linguagem que
não o apreende. Conceitos como cogito, ego, substância, são palavras que só têm
validade no mundo da lógica, que pressupõe a unidade e a estabilidade. Em um
mundo compreendido como vir-a-ser, eles são aplicáveis apenas para fins utilitários,
e portanto são meros instrumentos. (ITAPARICA, 2000, pp. 75-76).
Para Nietzsche, a subjetividade, como
faculdade doadora do critério de verdade, através da noção de representação
como correspondência exata do objeto, por meio do pensar puramente lógico e que
teria na linguagem, em Hegel, sua forma mais legítima (sujeito, predicado e
objeto)[10],
não é senão uma superficialidade que
omite o que há por debaixo da pele:
uma realidade muito mais complexa e obscura, a do corpo mesmo, compreendido este como uma estrutura social de impulsos e afetos (ITAPARICA, 2000)[11].
Nietzsche tem por pressuposto a
filosofia schopenhaueriana do corpo como representação (espelho espaço-temporal) da vontade, isto é, do querer-viver, já que para Schopenhauer
não existe a coisa-em-si[12].
Assim sendo, para Nietzsche, o corpo é o ponto
de partida e o fio condutor de uma relação que envolve uma dupla
determinação: forças apolíneas e
dionisíacas; aparência e dissolução.
Por outro lado, numa exposição
dialética[13], o
ponto de partida é aquilo que aparece e é imediatamente sensível e, ao mesmo
tempo, o que é mais obscuro, e que só vem à tona – só se torna conhecido –
através da negação determinada, que
tem por pressuposto a relação dos contraditórios: positivo e negativo[14].
Já o projeto lefebvriano parece inserir a dupla
determinação (a unidade dos opostos, Dioniso e Apolo, face-a-face, na
tragédia), numa perspectiva dialética, de contradições reais e vividas[15].
É neste ponto que, tendo o corpo como
ponto de partida, Lefebvre introduz um conceito central, o da apropriação do/e pelo corpo: espaço.
A prática poética, segundo Nietzsche, celebra a apropriação como
possibilidade ao mesmo tempo próxima e longínqua. Este conceito de apropriação,
especulativamente concebido por Hegel (restituição da Ideia do Estado), não foi
suficientemente determinado por Marx. O poeta Nietzsche abre o horizonte do
desejo e do corpo apropriados. Antes de tudo, impõe-se ao indivíduo, à espécie
humana, a apropriação do corpo próprio, a apropriação do corpo total, natureza
e conquistas da atividade multiforme – logo, espaço. (LEFEBVRE, 1976, p.241).
*****
Não é o pensamento ou a consciência
(superfície), ou a categoria filosófica e abstrata “espaço” (representação de
espaço); não é aqui o sujeito que constitui
o objeto, por meio de representações
de objetividade, conforme determina o idealismo filosófico; mas o corpo (a vida) que se desdobra através
de suas energias violentas e sutis e que produz espaço. Portanto, é na praxis que a consciência é produzida,
como num reflexo do corpo projetado numa superfície de espelho. Lá pelas
tantas, Lefebvre elabora uma desconcertante pergunta: “O sono. Que enigma para
filosofia! como pode o cogito adormecer?” (LEFEBVRE, 2003, Cap. 2, par. 105,
p.25)[16].
Se não é o sujeito cartesiano, por outro lado, também não é o inverso, no
sentido empirista, do materialismo vulgar, a saber, o sujeito como pura passividade,
subordinado ao objeto imediato, determinado e evanescente, que impregna de
impressões externas o quadro negro da consciência e de que, em última estância,
nada se poderia falar, senão pelo hábito. Enfim, não é o sujeito, alienado do corpo, mas o sujeito que se desconhece, se
inventa e se descobre no objeto, se
ainda nos é permitido usar esses termos da filosofia (diria Lefebvre). Dito de
outro modo, o sujeito emerge do corpo
pela praxis e exerce uma atividade que é também, em última
análise, consciente, por meio da linguagem organizadora.
Nietzsche incita à subversão, à revolta, à revolução do corpo. Um
estatuto? Não. Quanto muito, poderia dizer-se que o corpo, nos textos de
Nietzsche, se descreve ou se inscreve a vários níveis, como a linguagem. Em
primeiro lugar, o empírico, o corpo-objeto. A este nível, o corpo é estudado,
analisado, cientificamente, mas também cotidianamente. Este nível engloba o
funcional, o relacional, o situacional. Depois, o nível sócio-político – o
corpo-sujeito como suporte de juízos, de “valores”, muitas vezes negativos (a
censura, a humilhação), e de metaforizações (pela linguagem, com primazia do
lisível-visível). O corpo não dirige a produção, e, no entanto, produz-se com o
corpo e para os corpos. A este nível, o corpo desempenha um papel não de
transgressão mas de transmissão do saber e de reprodução das relações sociais,
se bem que estas pesem sobre ele. Seguidamente e por fim, o nível poético, o da
unidade reencontrada através do transe da dissociação. A palavra poética (...)
visa a unidade do corpo e a revelação das suas riquezas. A palavra poética
exorcisa a morte (a “pulsão de morte”) pelo trágico, em vez de se submeter
àquela. Consegue vencer os perigos do discurso e da escrita, renovando o poema,
assim como a música, pelos ritmos do corpo, pelo repetitivo e o diferencial, à
semelhança do corpo. (LEFEBVRE, 1976, pp. 240 e 241).
Aqui, antes de prosseguir, devemos
realizar uma inflexão. Marx escreve em seus Manuscritos: “Tão logo eu tenha um
objeto, este objeto tem a mim como objeto” (MARX, p. 128). E mais: “O sol é o objeto da planta, um objeto para ela
imprescindível, confirmador de sua vida, assim como a planta é objeto do sol,
enquanto externação da força
evocadora de vida do sol, da essência objetiva do sol” (Ibidem, p.127). Talvez,
neste ponto, seja o momento de enfatizar e expor em linhas gerais o projeto
lefebvriano que, entre outros, salienta o terreno comum, apesar das
divergências, da perspectiva revolucionária de Marx e da metafilosofia de
Nietzsche, em oposição ao sistema de Hegel: “(...) a ideia dos sentidos e do
corpo tornando-se teóricos (cf. os Manuscritos
de 1844 e Zaratustra, sem
esquecer A Gaia Ciência), o que
implica a rejeição de qualquer sistema” (LEFEBVRE, 1976, p. 245). E ainda:
- o projeto e a perspectiva da produção (criação) de uma “realidade”
inteiramente nova, ainda que conservando “momentos” do passado-ultrapassado. O
que comporta a destruição (mas extensa em Nietzsche, menos violenta em Marx) do
atual;
- a ideia que o essencial, o “criativo”, se não encontra nem no econômico
como tal nem no político como tal; o que implica a rejeição tanto do Estado
como do político em proveito das relações que Marx qualifica de “social”, e a
que Nietzsche chama “humanas”, e depois “sobre-humanas”. (Ibidem, p. 245).
*****
Ora, se é verdade, como diz Kant, que
é impossível pensar os objetos sem a representação “espaço” (continente, a priori), é também impossível pensar a
representação espaço sem os objetos.
Sempre haverá qualquer coisa de qualificativo, ainda que a abstração do espaço
seja levada ao absoluto, isto é, ao nada. Pois, o espaço em Kant (ou o espaço
abstrato, o vazio, o nada) é, em última análise, a abstração do corpo elevada à
enésima potência, concebido apenas pelo pensamento. Mas o totalmente indefinido
não pode ser pensado, senão especulativamente. Em todo caso, a folha de papel
onde estas palavras são escritas é continente
destas palavras, que são continentes da tinta; e a mesa é continente da folha,
que por sua vez está contida neste cômodo, que tem por continente a casa, e
assim por diante até o desconhecido infinito[17].
Ou seja, o continente é também o contido: proposição dialética que determina o espaço nesta tensão
entre o nada e a coisa. Por exemplo: o espaço não é uma mesa, mas a mesa não é
sem um espaço. Por isso, o espaço (assim como o tempo) não é um atributo
contingente e exterior ao “ser”, como a cor de um objeto, que pode variar em
diferentes matizes: o Tadj Mahal é branco, mas podia ser verde, azul etc.,
todavia, não poderia deixar de ocupar, de ter uma dimensão, um volume, uma
figura, isto é, um espaço
(forma-estrutura-função). Uma coisa sem espaço, não seria uma coisa. Por isso,
o corpo é espaço.
Como corpo, o espaço é um conjunto,
orgânico e dinâmico, uma infinidade de fluídos confusos. Neste sentido, o
espaço, não se define unilateralmente, como, por exemplo, o espaço homogêneo e abstrato dos matemáticos e filósofos.
Mas, pelo contrário, o espaço é uma complexidade de elementos variados, físicos
e sociais, que se relacionam e se implicam; o que subentende também, em outros
níveis, uma prática espacial (social) e o espaço mental (abstrato). Lefebvre
quer uma teoria unitária e abrangente do espaço, que parta do mais simples ao
mais complexo e retorne ao mais simples. Acerca do espaço, Kant escreveu: “no
espaço tomado em si mesmo não há nenhuma diferença entre progresso e regresso,
porque, na medida em que suas partes são todas em conjunto simultâneas, ele
constitui um agregado, mas nenhuma série” (KANT). Se as partes no
espaço acontecem de modo simultâneo ou sincrônico, isto é, tudo ao mesmo tempo, é impossível abstrair o espaço do tempo e
vice-versa, como faz Kant, a não de modo analítico. Mas o que a análise separou,
deve unir novamente, em um sentido dialético. Para Lefebvre, “o espaço gerado
pelo tempo é sempre atual, sincrônico e dado como um todo; ligações internas,
conexões religam seus elementos, elas também produzidas pelo tempo” (LEFEBVRE,
2003, Cap. 2, par. 118, p. 27). Neste sentido, Lefebvre ao reconsiderar a
simultaneidade inerente ao espaço, propõe uma analogia à “dinâmica dos fluídos”
(teoria da física). O espaço comporta incontáveis tempos; ele próprio possui
múltiplas idades e dinâmicas.
Vejamos algumas considerações:
Eis uma casa, uma rua. Esta casa de seis andares tem aparência estável,
nela poderíamos ver o símbolo da fixidez: concreto, linhas exatas, frias,
rígidas. (...) Porém esta fixidez não resiste a análise. Que o pensamento
desnude este imóvel de suas placas de concreto, de suas estreitas muralhas,
quase muros-cortinas. Como ele aparece nesta análise imaginária? Ele se cerca
de todas as partes nos fluxos de energia que o percorrem, o atravessam de um
lado e de outro: a água, o gás, a eletricidade, o telefone, as ondas de rádios
e televisão. A fixidez se converte em nó de mobilidades, de condutos que
alimentam e evacuam. Uma imagem do imóvel, mais exata que um desenho ou uma
foto, mostraria a convergência destas
ondas e fluxos, mostrando ao mesmo tempo neste “imóvel”, coisa aparente imóvel,
uma dupla máquina análoga ao corpo ativo: máquina de energias maciças, máquina
de informações. (Ibidem, Cap. 2, par. 62, p. 16).
À noite, a casa é desligada, a casa
“dorme”. Seus habitantes relacionam-se e interagem com ela; ela os reflete,
eles a refletem[18].
Todavia, outros seres despertam: baratas comem os restos do jantar que caem
pelos cantos sob o olhar gélido da lagartixa à espreita; camundongos entram e
saem das xícaras de café, do açucareiro etc.; uma minúscula aranha tece sua
teia dento de um computador; e um peixinho prateado, fóssil vivo habitando as
metrópoles, devora as páginas da história da civilização de uma enciclopédia
empoeirada. Troca de energias, finas e maciças, tudo acontecendo ao mesmo
tempo. “Do mesmo modo a rua inteira, rede de canalizações constituindo uma
estrutura, tendo uma forma global, executando funções. Assim como a cidade, que
consome e consuma energias colossais, físicas e humanas, que cintila e arde
como um braseiro” (Ibidem, Cap. 2, par. 62, p. 16).
Uma árvore pressupõe a semente, diria
Hegel. Da árvore se extrai a madeira, com o machado, o serrote ou a serra
elétrica. Com a madeira, uma cadeira é fabricada, por exemplo. A “essência” da
cadeira é ser um objeto feito para sentar. Uma cadeira não surge
espontaneamente da natureza. A cadeira tem uma (“essência”) forma, estrutura e
função humana. O ser humano ocupa a cadeira: ele senta nela. Assim, a cadeira
também é, além de um objeto independente, um prolongamento de seu corpo
(inorgânico). Ela está na sala, na cozinha, simplesmente. Mas ela pode vir
carregada de significado, de simbolismo: hierarquia e institucionalidade: a
cátedra (cadeira) universitária. Neste sentido, a cadeira, a casa, a rua, a
cidade é natureza transformada, sem prescindir da natureza. O ser humano
ordena, organiza, hierarquiza, molda, forma, transforma a natureza, constrói,
pensa, isto é, produz espaço. Mas não vamos tão longe, há muitas entradas no
tocante ao conceito de produção do espaço que não podemos abordar agora. Por
enquanto fiquemos ainda com o corpo.
*****
No citado capitulo, Arquitetônica espacial, Lefebvre formula
sua concepção de espaço. Antes de prosseguirmos, no entanto, é preciso
observar, na esteira dos argumentos defendidos até agora, que as ciências
humanas (e as ciências em geral) lançam seus alicerces sobre uma premissa
metafísica: a separação total da “sociedade-natureza”. Separadas, natureza e
sociedade tornam-se abstrações, amiúde, elevadas a esferas independentes, e
isoladas de modo absoluto. Ou tudo é natureza, ou tudo é sociedade, sem
mediações. Tudo se passa como se a sociedade fosse regida por leis próprias e
imanentes sem nenhuma relação com a natureza e vise-versa[19].
A relação espaço-tempo, tendo o corpo por fundamento, supera esta dicotomia.
Ironia (para nós, geógrafos): a geografia clama pelo espaço e o espaço não é
senão a própria implosão da geografia, pois visa uma totalidade, que não se fecha numa área de conhecimento específico!
Mais acima, para fins didáticos, asseveramos
a respeito de uma plausível “unidade mínima” do espaço, de influencia
nietzschiana na obra lefebvriana. Seu ponto
de partida, como referimos, em termos dialéticos é o imediatamente dado: o corpo. “O espaço: (...)
é, de início, meu corpo (...) (Ibidem,
Cap. 2, par. 29, p. 10). Mas que corpo? O meu? Não, somente. Todos. “E isto
quer se trate de corpúsculos ou de planetas, de cristais, de campos
eletromagnéticos, de divisões celulares, de mariscos ou de formas arquiteturais
(...)” (Ibidem, Cap. 2, par. 3, p. 2). Uma pedra, uma xícara, uma cadeira, uma
casa, uma rua, uma cidade, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, o universo,
mas também seres vivos (orgânicos). Neste sentido, “cada corpo vivo é um espaço
e tem seu espaço: (...)” (Ibidem,
Cap. 2, par. 3, p. 2). O que pode escandalizar? O espaço também é vivo!
Ora, Lefebvre define o espaço,
inicialmente, de biomórfico e antropológico[20],
até se constituir no espaço social e mental. Mas a princípio, tudo se passa
como se houvesse uma “inteligência” intrínseca na natureza. Segundo o autor,
esta inteligência são leis do espaço,
ou melhor, modalidades de ocupação do
espaço.
Em que e como a natureza como tal pode ‘ser’ matemática, os filósofos têm
tornado incompreensível, com os recortes científico-ideológicos. O observador
fica perplexo diante da beleza de um marisco, de um vilarejo, de uma catedral.
Ao passo que se trata (talvez) apenas de modalidades materiais de uma
‘ocupação’ ativa, a do espaço. (Ibidem, Cap. 2, par. 5, p. 3).
*****
É preciso voltar a Nietzsche, pois
aqui Lefebvre é profundamente nietzscheniano. Faremos então breves anotações
sobre o corpo em Nietzsche[21].
Como vimos, a princípio, tudo se passa como se houvesse uma “inteligência” na
natureza (ou como a natureza pode ser
matemática?) Para Nietzsche, a natureza é Vontade de Potência, isto é, faculdade de se conservar, dominar,
exercer e prolongar seu poder – criar, avaliar. “Todo corpo, todo átomo estende
sua força, sua ação tão longe quanto pode” (HAAR, 1998, p. 17). Neste sentido,
todo corpo natural, inorgânico ou orgânico, “pensa”, ou seja, realiza formas; havendo, no entanto,
maior clareza para os primeiros do que para os últimos, pois a vida é sujeita a
erros e ilusões. “Quando passamos do inorgânico ao orgânico, passamos do claro
e do certo ao obscuro e ao indefinido. (...) É a incerteza da vida, sua
necessidade de tatear, de errar, que faz a sua potência” (Ibidem, p. 17). Neste
ponto, pode se encontrar um elo, como faz Lefebvre, entre o sentido da incerteza da vida, de tatear, manusear,
etc. – tentativa e erro, de onde
surge o raciocínio – e o sentido mais elementar da práxis, como nos Manuscritos
de Marx, na afirmação de como os sentidos podem se tornar teóricos[22].
Em Nietzsche, “viver é aceitar ou recusar, e, para isto, abstrair” (Ibidem, p.
18). Ora, se a vida natural é esta terrível e constante luta, isto é, ferir,
dominar, destruir, portanto, isenta de qualquer postulado moral, há aqui uma
certa positividade com relação à incerteza do “erro”, como sentido mais
paradoxal da verdade. Ou seja, a verdade é esta potência criadora vital
oriunda de pulsões e instintos de dar
formas. Ora, partindo-se desta lógica,
em Nietzsche, o sentido primordial da vida orgânica é a nutrição que, diante do
caos da natureza (ausência total de sentido e objetivo, e, portanto, valores
éticos), é condição fundamental de sua sobrevivência – ou conservação. A
nutrição já indica uma capacidade sensível, de avaliação, de escolha, enfim, de
pensamento. “A intuição genial de
Nietzsche consiste em tomar a vida como faculdade de incorporação: Einverleibung (Ibidem, p. 21). O
organismo de certa forma organiza, separa, incorpora, ordena o caos do mundo. A
consciência aparece apenas como um sintoma da manifestação da vida. O
pensamento como aquilo que há de mais superficial, incapaz de apreender as
energias finas que emanam do corpo. A linguagem é, portanto, metafórica, capaz,
como vimos, de associar o cair de uma estrela ao desejo[23],
dando sentido ao caos. Em contraposição a essa “inteligência” imanente e
inerente ao organismo, Nietsche desenvolve, como se percebe, a concepção de
“Caos universal”. O caos é necessariamente o mundo: um turbilhão monstruoso de força sem começo e sem fim.
Ou seja, totalidade aberta sem contorno, sem unidade, sem finalidade,
desordenada, disforme, sem beleza, sem moral, sem identidade, sem razão. E é
precisamente essa eternidade do mundo que garante a experiência do tempo
cíclico, do Eterno Retorno.
A natureza é então esse monstruoso e
colossal turbilhão de forças confusas e caóticas de que não se pode servir de
exemplo a ser copiado por esta inteligência do corpo, a não ser pelo vir-a-ser dos ciclos e dos seres cíclicos
capaz de ultrapassar circunstâncias contrárias ou contraditórias. A imoralidade
do mundo se converte então em moralidade, o que reabilita, em Nietzsche, um fisiologismo – um retorno à natureza.
Assim, a amizade, o amor, a criação artística dependem da disposição do
corpo. Durante séculos, o homem conheceu mal seu corpo, ou o desprezou, o
maltratou. Trata-se de admirar, de imitar sua sabedoria, de aprender dele a
viver, isto é, de aprender isto que convém à saúde. De considerar a preocupação
com o clima, o lugar, o momento, o regime alimentar, a escolha dos lazeres,
como indignos de um filósofo. (Ibidem, p. 28).
Daí a necessidade de se conhecer os ritmos do corpo, da vida. “Escutar
música, caminhar. Não ler demasiado. (...) Conhecer é saber praticar seu
próprio regime. Seguir seu próprio ritmo de vida” (Ibidem, p. 28)[24].
Neste sentido, é a necessidade da afirmação, um dizer-sim – dionisíaco – à vida – pelo corpo vivente – de que tudo
retorna, que restabelece a unidade da totalidade do caos. “A unidade do mundo
não é orgânica, mas depende de um sim.
Este sim pode ser dito; ou não... Em todo caso, ele deve ser dito” (Ibidem,
p. 31).
*****
Feita estas breves considerações,
vejamos em Lefebvre, o corpo novamente. O corpo: fonte, distribuição e
receptáculo de energias; o corpo ocupa, tem e produz espaço. O pensamento
analítico descobre uma “coerência”,
não sem violência.
Relação notável: o corpo, com suas energias disponíveis, o corpo vivo
cria ou produz seu espaço: inversamente, as leis do espaço, isto é, da
dicernibilidade no espaço, são aquelas do corpo vivo e do desenvolvimento de
suas energias. (...) O corpo, os desenvolvimentos de energia, produzem o espaço
e se produzem, com movimentos segundo as leis do espaço. (LEFEBVRE, Cap. 2,
par. 3, p. 2).
Ora, Lefebvre parece substituir ou
reabilitar a Vontade de Potência pelo
conceito de produção do espaço
(talvez, esta frase seja mais uma interrogação do que afirmação). A relação conflituosa do corpo com o
mundo – apropriação, produção de formas
– caracterizaria assim o espaço[25].
O corpo exerce, com suas pulsões, energias finas e maciças, numa atividade
criativa ou reprodutiva, através de uma relação objetiva no mundo (caótico)[26].
Haveria, assim, nessas leis do espaço um rígido determinismo espacial? Longe de determinismo, em relação ao espaço,
Lefebvre considera-o um lugar de iniciativas e possibilidades; do
possível-impossível (o impossível descobre-se possível quando a vida descobre a
saída); da plasticidade do vir-a-ser (ou devir). Portanto, ilimitado a um
continente fechado.
O organismo vivo, considerado dinamicamente, pode se definir como um
dispositivo que capta (por meios diversos) energias em sua vizinhança. Ele
absorve calor, respira, se alimenta. Ele detém e retém “normalmente” um excesso
de energia disponível: mais do que lhe é necessário para responder às
solicitações e agressões imediatas. O que lhe deixa uma margem de iniciativas
(não submetidas aos determinismos e, todavia, não deixadas ao acaso). (Ibidem,
par. 14, p. 5). E mais: O organismo vivo, o corpo total, contém a possibilidade
(o que não quer dizer nem realização, nem as motivações) do jogo, da violência,
da festa, do amor. (Ibidem, Cap. 2, par. 17, p. 6).
Vejamos: a aranha tece sua teia,
“estabelece uma trama e uma cadeia, com simetrias e dissimetrias” (...) “Ela
produz, ela secreta, ela ocupa um espaço e engendra à sua maneira, aquele de
sua teia, aquele de suas estratégias
e suas necessidade” (Ibidem, Cap. 2, par, 6, p. 3, grifos nossos). Ou seja, o
corpo se relaciona com seu espaço de
modo “estratégico” e em relação às
energias disponíveis, o que pressupõe uma ação (iniciativa), uma prática,
espaço-tempo.
Em torno do ser vivo, as energias que ele capta e as que o ameaçam são
moventes. São “correntes” (“fluxos”). Em contrapartida, para captar estas
energias disponíveis, o organismo deve deter dispositivos estáveis. Ele deve
responder às agressões por defesas, determinando fronteiras que ele guarda e
protege: em torno de seu corpo. (Ibidem, Cap. 2, par. 21, p. 7).
Pergunta-se: uma aranha produz espaço ou apenas ocupa ativamente
um espaço?
Aqui (talvez) seja necessário fazer
uma outra reflexão: “Uma aranha trabalha? Perguntar-se-ia Marx. Ela segue
impulsos cegos? Ela tem, ou melhor, ela é uma inteligência? Ela sabe o que faz?
Ela produz, ela secreta, ela ocupa um espaço e engendra à sua maneira, aquele
de sua teia, aquele de suas estratégias e suas necessidades” (Ibidem, Cap. 2,
par. 6, p. 3)[27]. Marx
distingue o trabalho humano do de um
castor, uma abelha, uma aranha etc. Como? Através de um projeto, de um planejamento? Que planejamento? Isto não
colocaria antes a consciência e depois o corpo? Evidentemente, não é o planejamento.
Mas a distinção se dá na dialética necessidade-liberdade,
do seu ser genérico, isto é, social e
multilateral, que ao produzir além de suas necessidades imediatas produz também
a consciência, tendo por pressuposto o corpo humano. Vejamos isto nos Manuscritos:
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue
dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade
e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma
determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade
vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade animal.
Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser
consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um
ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre. (...) O engendrar
prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do
homem enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser
genérico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si seu ninho,
habitações como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas de que
necessita imediatamente para si ou para sua cria; produz unilateral[mente]; o
animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o
homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e
verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o [animal,] o seu
produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se
defronta livre[mente] com seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e
a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente
ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza. (MARX,
2008, p. 85).
O ser genérico não produz para si e
suas necessidades imediatas, mas, socialmente e de modo mediato. O sapateiro
produz um sapato, uma coisa que é um prolongamento de seu pé. A necessidade
individual e imediata de proteger o pé pode ser também social e mediata,
independentemente das contingências naturais. “Pode-se dizer que a aranha tece
sua teia como um prolongamento de seu corpo?” (LEFEBVRE, Cap. 2, par. 6, p. 3).
O ser humano ultrapassa a realidade imediata da aranha, ainda que a teia da
aranha esmere a perfeição. A aranha não se liberta das formas geométricas que
produz em sua teia. A fiandeira ou o tecelão, entretanto, produzem o agasalho
não apenas no inverno e para suprir carências individuais imediatas, mas produzem socialmente, para outro, e para
fins que excedem as determinações naturais. Produzem não apenas o vestuário ou
a alimentação e o abrigo. O ser genérico ultrapassa suas limitações físicas e
pode metamorfosear-se na forma de peixe, produzindo o “peixe de metal” que
cruza os oceanos; ou de pássaro, produzindo o “pássaro de aço” que corta de
horizonte a horizonte o céu tempestuoso. Por exemplo, a geometria, inicialmente
rabiscos e desenhos sobre a terra, possibilitou Arquimedes descobrir o
princípio que leva seu nome. Mas muito antes os seres humanos já se aventuravam
sobre as águas, em pequenas e grandes embarcações. Ou seja, a urgência da vida
no ser genérico não podia esperar o gênio de Arquimedes para lançar Ulisses nas
ondas do mar em seu épico desafio ao furioso Poseidon. Neste sentido, a certa
altura, Marx denomina o ser humano de omnilateral[28].
Isto é, o ser humano produz universalmente, dominando e se apropriando da
natureza. Tal concepção sugere uma complexidade infindável das necessidades
sociais a serem sempre produzidas e inventadas. Novamente, o sentido amplo de
produção, de que nos fala Lefebvre, no “jovem Marx”.
A fiandeira tece, borda, costura a
renda perfeita, com mãos ágeis e precisas, sabe o ponto, o nó, e confecciona o
brocado entretecido com fios de ouro e bonitos desenhos em relevo; tece o
vestido feito de linho ou o tecido macio de seda da China; e transforma o fio
de lã ou algodão – ou petróleo – em roupas que agasalham, aquecem o corpo, no
mais rigoroso inverno. Como a aranha, as mãos da tecelã produzem fios e tecidos
diversos, finos ou espessos, costurando o seu hábito. Se, todavia, a fiandeira
tecer automaticamente e, subjugada, curvar-se a uma determinação que a nega
enquanto ser genérico, suas mãos transformam-se imediatamente em aranhas, e ela
própria num aracnídeo ou num bicho da seda. Porque de certo modo ela já é um
bicho da seda.
Nota-se que não há uma ontologia
essencial do ser humano, mas há um pressuposto: o corpo humano, biológico, sua
forma natural, sua anatomia, resultado de um processo e uma história natural.
Há também sua realidade histórica e social que supera o dado biológico. Mas,
podemos nos perguntar: se a produção em sentido amplo produz o ser humano, haveria
então seres humanos mais humanos que outros? Há civilizações e estilo
(Nietzsche). Neste sentido, é inegável que, independente das diversas
“culturas” e civilizações (estilos), há um biótipo comum ao gênero e espécie
humana, que, como demonstram as ciências, mantém-se relativamente estável por
pelo menos uns cem ou cinquenta mil anos. Todavia, é complicado afirmar que um
determinado grupo social produziu uma humanidade “superior” às demais, com base
no desenvolvimento da civilização.
Neste sentido, uma “essência humana”
é uma representação produzida
historicamente. Aquilo que pode ser definido como a “essência humana” pode ser altamente ideológico (no sentido mais
perverso deste conceito). Todavia, a produção de uma representação de uma
“essência humana” é, no fundo, uma recaída em seu contrário, da mesma forma que
enfatizar somente o pressuposto biológico. A razão iluminista, pressupondo a
emancipação do ser humano pelos benefícios da razão instrumental, justificou
uma verdadeira barbárie através da missão
civilizatória. Tal abstração reduziu, ironicamente, o ser genérico ao
“estado de natureza” do lobo hobbesiano
do liberalismo (bellum omnium contra
omnes não é nada mais que a concorrência capitalista sob a moderação de um
rei) e transformou o Estado moderno – eurocêntrico – no absoluto
universalizante. Arauto da razão e de seu poder de tirar, através das luzes,
“povos selvagens” de seu obscurantismo mítico, o cientificismo do século XIX
autorizou ideologicamente nações imperialistas europeias a rapinarem recursos
naturais no mundo inteiro, bem como explorar o trabalho daqueles ditos povos
selvagens a quem devia ter libertado das trevas. O conteúdo da missão
civilizatória transfigurou-se em barbárie, selvageria.
O nazismo, também, elaborou sua
ideologia na representação de apenas uma “essência” humana, pretensamente
superior e homogênea, que teoricamente remetia genealogicamente a antiga e
mítica raça ariana, cujo povo germânico
descendia diretamente e livre de miscigenação. Contudo, tal concepção se inverteu
em seu contrário, a raça dita superior dos nazistas, na prática, provou ser a
mais inferior, a exemplo do sadismo e
do genocídio dos campos de concentração, das câmaras de gás, do extermínio
sistemático dos “não-arianos” etc. A teoria da raça superior ao ser colocada em
prática provou ser a negação do ser humano. Sobre outros pressupostos, moral
puritana, liberdade e democracia, bombas atômicas dizimaram cidades inteiras e
tantos outros crimes foram praticados contra a humanidade, na luta do “bem” contra
o “mal”. Como vimos, estas manifestações históricas são diametralmente opostas
ao conceito de ser genérico. Todas são um anti-humanismo, representações
hipócritas que “humanizam” a violência. O ser genérico se caracteriza por sua
heterogeneidade, e não o inverso. Reafirmamos o que já dissemos acima: não há guerra que não seja um crime contra a
humanidade!
Por outro lado, enfatizar apenas o
pressuposto biológico, como faz atualmente a biossociologia e a psicologia
social é também um anti-humanismo, pois reduz o ser humano apenas aos
instintos, às pulsões, a comportamentos ancestrais. Neste sentido, o ser humano
é reduzido a glicídeos, lipídeos, protídeos, hidrogênio, oxigênio, e enxofre;
sais minerais, vitaminas, ácidos graxos, gorduras – gorduras! O amor é
explicado pela ação de dois ou três elementos químicos etc. As teses que
defendem que, por exemplo, a divisão das classes sociais é determinada pela
constituição congênita e natural própria da espécie humana, tendo por modelo
alguns macaquinhos rabugentos, é também a justificação da barbárie. Mas tais
teorias vão contra os fundamentos da própria biologia, toda fundamentada na
possibilidade de um organismo se adaptar a condições desfavoráveis, ou mesmo de
um organismo unicelular se desenvolver em pluricelular etc. Tais concepções
redutoras passam ao largo do pressuposto do ser genérico, ao qual, como vimos,
supera a natureza imediata. Historicamente, o ser humano já é segunda natureza. Ademais, o amor nada
tem a ver com química; e sem amor o ser humano sequer existiria, como não
existe hoje.
*****
Evidentemente, Lefebvre conhecia
muito bem as pesquisas científicas realizadas nas mais diversas áreas do
conhecimento. Porém, jamais pôde aceitar a divisão das ciências em
conhecimentos estanques. Tudo acontece no mundo
(caos) e no cosmo (harmonia) ao
mesmo tempo: o natural, o social, o psicológico, o histórico, o econômico, o
físico, o geográfico, etc. Na realidade, tudo está acontecendo, entre Dioniso e
Apolo; tudo está conectado, tudo relacionado, no devir.
Fonte: Fragmento da tese
de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia,
FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de
Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar
bibliografia diretamente na tese.
A produção do espaço: de HenriLefebvre à Geografia – parte 2 (15/6/18); A produção do espaço: de Henri Lefebvre à Geografia – parte 3 (1/7/18); A produção do espaço: de Henri Lefebvre à Geografia –parte 4 (15/7/18); Henri Lefebre: arte e crítica da vida cotidiana; Fragmentos do "Fim da história"
A alienação do trabalho
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A alienação do trabalho
[1] Na
década de 30, a “alienação” teve um papel insignificante ou até mesmo esteve
ausente da argumentação, tanto marxista ortodoxa quanto dissidente, e o
afastamento em relação a Hegel, conservado como relíquia na Pequena História do PCU, mereceu poucos
comentários. Além disso, os poucos marxistas ou quase-marxista estavam fora da
vida política e da luta partidária, como Ernst Bloch e o grupo de Frankfurt, ou
eram comunistas stalinistas leais, como Lukács e Lefebvre. (HOBSBAWM, 2003, p.
136).
[2]
Logo no capítulo 1, de Sociologia de Marx,
Lefebvre escreve o seguinte: “Este curto estudo insere-se naquilo que já
denominamos: uma nova leitura de Marx.
Trata-se de uma interpretação? Não. Trata-se de maisnada de uma revisão que se
tornou necessária, graças ao desenvolvimento contraditório do pensamento
marxista e o mundo moderno” (LEFEBVRE, 1968b p.).
[3]
Continuará esse filósofo moderno a ser um filósofo? (...) Porque Nietzsche
condena e recusa a filosofia inteira. Tal como Marx. Este a recusa e refuta-a,
pelo fato de à filosofia faltar uma ligação com a prática, o que impossibilita
de realizar a sua ideia do homem.
(LEFEBVRE, 1976, p. 171).
[4]
Heidegger não esclarece a questão da coisa. Acrescenta às questões já
formuladas uma nova pergunta. O objeto mais ou menos técnico, produto do modo
de representação científica, é vazio de poesia. A coisa, obra artesanal, foi rica em poesia. O objeto se consome. A
coisa cria em torno dela um microcosmo humano. Que concluir? Heidegger confirma
uma visão essencial: a relação do homem com a coisa é um aspecto do problema mais geral, o da relação entre o
homem e suas obras múltiplas. Sem dúvida, a teoria da alienação (da dupla
relação com o objeto e a coisa: presença e alienação, realidade e reificação)
falta em Heidegger para que responda à sua pergunta. Além disso, o culto da
coisa artesanal, um pouco arcaica, traduz-se em Heidegger por um sentimento
tocante, patriarcal e germânico, da Casa. (LEFEBVRE, 1967, p 192).
[5] O
professor Marco Aurélio Werle ensina que Heidegger mostra como a técnica
moderna reduz toda a essência do produzir para si, enquanto entre os gregos
estava intimamente associada com a arte. “Tudo se decide na questão de pensar o
produzir em toda a sua amplitude, e isso significa ao mesmo tempo no sentido
dos gregos. (...) Em vista disso, o que é produzido manual e artisticamente,
por exemplo, a taça de prata, tem a irrupção do produzir não em si mesmo, mas
no outro, no artesão e no artista. (...) A técnica não é, portanto, meramente
um meio. É um modo de desabrigar. (...) Tal perspectiva é, para nós, estranha.
Mas ela exatamente deve estranhar, e se possível por um bom tempo e de modo
opressor, para que finalmente também tomemos a sério a simples questão do que
diz, pois, o nome: ‘técnica’. (...) Por um lado, téckne não é somente o nome para o fazer e poder manual, mas também
para as artes superiores e belas artes. A téckne
pertence ao produzir, à poièsis;
é algo poético [Poietisches]”
(HEIDEGGER, 2007, pp. 379 e 378).
[6]
Rousseau defendeu um primado do sentimento no ser humano, seu romantismo já não
representava uma crítica do iluminismo no seio do iluminismo?
[7] O
supercomputador Deep Blue possuía 256 processadores capazes de analisar 200
milhões de lances por segundo e uma memória onde se registravam mais de 700 mil
partidas de Mestres e Grandes Mestres do xadrez. Na época de
sua derrota, Kasparov acusou os programadores do computador de trapacearem
durante as partidas, por meio de auxílio de jogadores humanos. Foi a primeira
vez que um computador venceu um grande campeão, na história do xadrez, em
torneio realizado em maio de 1997. Kasparov declarou então que era “o último
humano campeão” e que, num torneio realizado no ano de 2003, entre ele e Deep
Junior, um outro computador, que este possuía “qualidades humanas, por isso,
era menos previsível”.
[8]
Tomemos um exemplo concreto. Descartes aperfeiçoou
a álgebra e inventou a geometria analítica; descobriu a lei da refração, os
refluxos fisiológicos e uma parte do mecanismo da circulação sanguínea.
Enquanto fisiólogo e físico, acreditava na existência objetiva da res extensa, do espaço geométrico sobre
o qual incidiam os novos instrumentos matemáticos que inventara. Ao mesmo
tempo, é o metafísico idealista que define a existência do puro pensamento e da
consciência de si: “cogito, ergo sum”.
(...) Seu sistema metafísico, portanto, conduz a conclusões idealistas; ele
justapõe seu idealismo metafísico e seu materialismo científico num “dualismo”
discutível: o corpo e o pensamento, a natureza e o espírito, existem cada um de
seu lado, distintos, cada um com suas leis próprias. (LEFEBVRE, 1995, p. 61).
[9] “O
que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo quantos autômatos, ou máquinas moventes, a
indústria dos homens pode criar, utilizando poucas peças em comparação com a
grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras
partes existentes no corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feitas pelas
mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e possui em si movimentos
mais admiráveis do que nenhuma das que podem ser inventadas pelos homens”
(DESCARTES, 2009, p. 95). “O homem se conhece, se reconhece, se realiza em sua
obra, seu ser-outro: a máquina. O ser-outro, sua imagem, seria ele-mesmo”
(LEFEBVRE, 1967, p. 236).
[10]
Assim, quando afirma que o ato é uma ficção, Nietzsche está revelando a
limitação da linguagem gregária – e da moral que a sustenta – em compreender o
que ele chama de efetividade (Wirklichkeit),
ou seja, o vir-a-ser, o mundo caótico das sensações, mundo esse desprovido de
ordem, fim ou sentido. Para Nietzche, essa efetividade não poderia ser
compreendida como algo em si, pois, segundo ele, o surgimento da noção de em si
teve como origem um impulso moral de negar o vir-a-ser através do estável, o
que na linguagem resulta no conceito como unidade. Os homens, à efetividade,
mas, quando se expressam, utilizam uma linguagem que procura estabilizar esse
mundo do vir-a-ser. Eles não podem, portanto, conhecer a essência do ser,
simplesmente porque ela não existe, em um mundo compreendido como vir-a-ser.
(...) Assim, ao admitir que a linguagem não alcança esse mundo do vir-a-ser,
Nietzsche assume que sua explicação do mundo também é uma interpretação, uma
falsificação, e que, como toda interpretação, expressa determinados valores.
Nesse sentido, a linguagem de Nietzsche é fundamentalmente performativa, pois,
se não há uma estrutura essencial do mundo, não
apenas por só termos um acesso consciente a ele através da linguagem, mas também
por ele se apresentar como um vir-a-ser caótico, sua filosofia aspira a
expressar valores com que se possa viver de forma mais afirmativa perante esse
mundo da efetividade. (ITAPARICA, 1998, pp. 70 e 71).
[11] O
pensamento “profundo” (entre aspas irônicas, pois Nietzsche ironiza e desconfia
desde que ser consciente abandona a superfície, o espelho cintilante, e também
porque só o poeta pode aspirar a tanto), o pensamento de Nietzsche parece ser o
seguinte, pelo menos até à Gaia Ciência.
Inicialmente, a “profundidade” do corpo, da energia acumulada explosivamente,
dos fenômenos fisiológicos, é informe; os acasos têm um papel preponderante.
Dois processo permitem introduzir neste caos inicial e fundamental uma certa
ordem: com a linguagem, a lógica que simplifica, e com o juízo e a apreciação,
o valor ético e estético que permite a escolha. Pode então “funcionar” uma vida
social; a necessidade, determinada ou livre, reina. (LEFEBVRE, 1976, p. 209).
[12]
Contra Hegel e seu racionalismo unitário, Schopenhauer quis mostrar uma cisão
fundamental do “ser” (e do “ser humano”). Se há cisão há consequentemente
“alienação”, mas esta alienação é constitutiva. O “ser” é, por um lado,
impulso, querer, profundidade cega, elementar e vital, e, por outro lado,
consciência, claridade, reflexão. Qual é relação entre estes dois termos? O ser
no mundo desdobra-se em vontade e representação. A historicidade? Nem sequer se
pode definir. A temporalidade resulta do conflito insolúvel entre o
querer-viver (tão espontâneo e inconsciente como obscuro) e a re-presentação
desse querer no plano daquilo que realiza para logo destruir. (...) Dessa
dissociação, Nietzsche retém o conflito entre Dioniso (a violência, a sombria
crueldade, a embriaguez, o êxtase) e Apolo (a serenidade, o sonho, a luz).
(LEFEBVRE, 1971, p. 93).
[13]
As pressuposições implícitas e o ponto de
partida são sem dúvida algo ‘dado’ (um
donné), como é de resto o caso em qualquer apresentação dialética, a qual
não deve começar nem por princípios ou fundamentos dedutivos, nem por verdades
empíricas. Mas tais dados serão desenvolvidos, mais do que isto, serão
‘negados’ (Aufhebung), o que não quer
dizer que eles sejam pontos de partida provisórios. A apresentação dialética é
passagem da aparência à essência, a aparência permanece como aparência (FAUSTO,
1987, p. 145, os grifos são nosso).
[14] O
conceito (ou melhor, a imagem conceito) de vontade
de poder mantém uma certa relação com a luta de morte das consciências
segundo Hegel. Nietzsche disse-o repetidas vezes: todo o Alemão tem qualquer
coisa de hegeliano e, por conseguinte, entra em linha de conta com a violência.
Na Fenomenologia, a consciência-de-si
nasce da ação recíproca entre as consciências no estado embrionário; este
nascimento doloroso não se processa sem luta. A emergência acima do imediato,
da natureza – do ‘inconsciente’ –, na abstração e na reflexão
(consciência-de-si), implica uma luta de morte no decurso da qual (mais
exatamente, no fim da qual) cada ‘agente’ se faz conhecer e reconhecer pelo
outro, em resultado do que se reflete
(se reconhece) a si próprio. Jogo de espelhos? Jogos de palavras? Jogos de
mãos? De forma alguma. Por outro lado, não existe nada erótico no pensamento de
Hegel. É preciso lutar para emergir. O Senhor e o Escravo defrontam-se de armas
na mão (Ibidem, p. 210).
[15]
No prefácio do livro Lógica forma/lógica
dialética, Lefebvre salienta o papel da dupla-determinação na lógica
concreta e dialética, das relações da ordem próxima e distante no espaço etc.
No livro sobre Nietzsche, Lefebvre,
ao comentar algumas interpretações sobre o filósofo alemão, escreve em nota:
“Aplicando a Nietzsche un método histórico y dialéctico hasta en lo que tuvo de
anti-histórico, y antidialéctico se evitan estas interpretaciones excesivas y
errôneas” (LEFEBVRE, 1993, p. 106).
[16]
Proposição que lembra que o caminho da dúvida cartesiano é para Hegel o próprio
desespero ou a angustia: como o cogitos pode estar certo de não estar louco?
[17] O
problema foi colocado por Kant na Antinomia
da Razão Pura. A regressão empírica temporal levaria a problemas insolúveis
como: o universo é finito ou infinito, tem começo e fim ou não; o espaço tem
limites ou é ilimitado etc. Para Kant o espaço é forma intuitiva sem objeto e os problemas de ordem cosmológica só
podem ser resolvidos pela experiência
possível atrelada às categorias a priori da consciência (espaço, tempo,
causa e efeito, etc.). Fora da experiência possível está a coisa em si. Para Nietzsche a coisa
em si, isto é, o desconhecido, é um dos maiores méritos da filosofia de
Kant, apesar de seu idealismo. É o desconhecido ou mal-conhecido, o caos, o
sem-sentido. É o espaço efetivo que as representações tentam ansiosamente dar
forma e organizar.
A teoria da
relatividade formulada por Albert Einstein ensina que tempo e espaço são
relativos e indissolúveis à matéria. Ou seja, sem matéria não há tempo nem
tempo. Hoje em dia, a Teoria M propõe não apenas três, mas dez dimensões.
[18] O
homem vê-se intimado a criar sua moradia. Não como diz Heidegger, a morada do
Ser pela linguagem, mas a morada do homem como “ser humano”, construída pela
praxis. Sobre a terra. (LEFEBVRE, 1967, p. 391).
[19] A
contribuição da filosofia em geral e das filosofias a uma antropologia não
autoriza a definir o homem fora da natureza (por exemplo, pela cultura e apenas
pela cultura). Tal determinação acentua a abstração e a extrapolação (a
unilateralidade) das filosofias especulativas. A antropologia, pesquisa sobre o
homem como tal, remete a uma elucidação da relação humana na praxis, na
história, com a “natureza” e o “ser”. Não se trata pois de definir o homem e o
humano, mas de afastar as representações que pretendem defini-lo, deixando-o
definir-se livremente a si mesmo na praxis. (LEFEBVRE, 1967, p. 368).
[20]
[Parágrafo 1] Para resumir o que precede; o espaço social, inicialmente
biomórfico e antropológico, tende a extrapolar essa imediaticidade. Contudo,
nada desaparece completamente; o que perdura não se poderia definir somente
pelo traço [vestígio] ou pela recordação ou sobrevivência. O anterior, no
espaço, permanece o suporte do que segue. As condições de tal espaço social
guardam uma duração própria e uma atualidade no sei desse espaço. Desse modo, a
natureza primeira na “natureza segunda”, num sentido completamente adquirido
[conquistado] e artificial: a realidade urbana. A arquitetônica descreve, analisa, expõe essa persistência que certas
metáforas, tais como “camadas”, reinos, sedimentos etc., dizem em resumo. Este
estudo compreende, pois, e tenta reagrupar o que dispersa nas ciências
parcelares e especializadas: etmologia, etnografia, geografia humana,
antropologia, pré-história e história, sociologia etc. [Parágrafo 2] O espaço
assim concebido poder-se-ia nomear “orgânico”. (LEFEBVRE, Cap. IV, pars. 1 e 2,
p.1).
[21]
Considerações estas que se baseiam no artigo Vida e totaldade natural de Michel Haar, da Universidade de Paris
I, traduzido por Alberto Marcos Onate.
[22]
Por isso, imediatamente em sua práxis, os sentidos
se tornam teoréticos. (MARX, 2008, p.
109).
[23] As distinções, as nuanças, o sentido de rapidez, da
simultaneidade e da consecução de que é capaz o corpo são bem mais refinados,
bem superiores às categorias simples, como aquela da causalidade, de que dispõe
o intelecto. A extraordinária sutileza do pensamento orgânico é capaz de
apreender as flutuações infinitas do vir-a-ser sem fixá-lo sob formas rígidas,
em identidade arbitrárias. Seria necessário aqui citar como exemplo todas as
descrições que Nietzsche faz das relações da consciência e do corpo. A consciência
é um simples órgão, um instrumento muito parcial mantido à parte dos processos
de conjunto que se desenvolvem no corpo. A consciência tem a ilusão de reinar,
de decidir, mas ela não governa. Ela é o instrumento que executa as escolhas e
decisões já adquiridas em profundidade. Tudo que emerge à consciência é o
reflexo de um equilíbrio momentâneo no jogo das pulsões. Quem decide este
equilíbrio? A ‘grande razão’ que é o corpo, isto é, o pensamento orgânico que
não cessa de fazer o cálculo sutil e espontâneo das relações entre os quanta de força. A vida é uma lógica
encarnada que combina segundo o melhor – segundo a mais grande vantagem de sua
conservação e de seu crescimento – o conjunto de suas forças. Isto é muito
leibniziano. Dum vita calculat, fit
mundus, poderia ter dito Nietzsche. O que justifica a idéia de que ele é o
precursor da Técnica como universal instrumentalização (cada pulsão torna-se
órgão) e calculabilidade integral (HAAR, 1998, p. 22).
[24]
Sobre os ritmos do corpo e as
atividades alienantes ou os vícios que nos fazem abdicar de um dia maravilhoso
de sol – que nos convida insistentemente para se deitar na grama e cochilar –
em prol do trabalho, dos compromissos, da ambição etc., aqui Nietzsche parece
revisitar o dilema de Fausto: “Nós morremos muito jovens, pela sequência de uma
prática manchada de erros e de ignorância sem número” (Nietzsche). O que não
significa, evidentemente, um apelo à ignorância e à falta de instrução, mas, ao
contrário, um respeito muito grande ao que ele chama de ritmos do corpo e ao vivido. (Ora, será preciso provar que um
passeio numa bela tarde ensolarada não custa nada!).
[25] E
sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo em meu espelho? Este
mundo: um monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea
grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas
apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem
despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de “nada”
como de seu limite, nada evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente
extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por
toda parte, como jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo,
aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de forças
tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente
recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de
suas configurações, partindo do mais simples às mais múltiplas, do mais quieto,
mais rígido, mais frio ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório
consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de
contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando ainda a si próprio,
nessa igualdade de suas trilhas e anos, abençoando a si próprio Aquilo que
eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma
saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço (...). (Nietzsche, A vontade de potência, par. 1067,
grifado por nós).
[26] É
possível traçar um paralelo a Hegel, embora, partindo-se de Nietzsche, não sem
restrições: “Consiste a missão da arquitetura em conferir à natureza inorgânica
transformações que, devido à magia da arte, a aproximam do espírito. Os
materiais com que trabalha representam, pelo aspecto exterior e direto que têm,
uma pesada massa mecânica, e as formas deles continuam a ser da natureza
inorgânica ordenadas de acordo com as relações abstratas da simetria. (...)
Arranca o lugar para reuniões íntimas, constrói um abrigo para os membros
destas reuniões, uma proteção contra a tempestade que ameaça, contra a chuva e
as intempéries, contra as feras. Exterioriza, dando-lhe uma forma concreta e
visível, o comum querer-ser. Este é seu destino, esse é o seu conteúdo que lhe
cumpre realiza. Os materiais são-lhe fornecidos pela grosseira matéria
exterior, na forma de massas mecânicas e pesadas. O trabalho desses materiais é
um trabalho exterior, executado de acordo com regras abstrata da simetria”
(Hegel, Estética – a ideia e o ideal).
[27] O
gênio arquitetural do homem constrói
edifícios prodigiosos: as sociedades, os Estados. Este poderoso gênio
construtivo produz cúpulas colossais com uma matéria tão frágil, tão sutil como
o fio da aranha: o conceito. (LEFEBVRE, 1976, 202).
[28] O
homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral,
portanto como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, desgustar, sentir,
pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua
individualidade, assim como órgãos que são imediatamente em sua forma como
órgãos comunitários, [VII] são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento
para com o objeto a apropriação do mesmo, apropriação da efetividade humana; seu comportamento para com o
objeto é o acionamento da efetividade
humana (por isso ela é precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades
humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento,
humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano. (MARX, 2008, p. 108).
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