Revolução urbana
por Jean Pires de A. Gonçalves
As condições materiais, ou, como se
dizia antes, as condições objetivas, abriram o terreno para a sociedade urbana.
Todavia, por si só, as condições objetivas não conduzem a um caminho
determinado; cumpre-se antes agarrar as rédeas dos múltiplos sentidos do tempo
e conduzi-lo ao bom termo. Há atualmente uma perspectiva: a revolução urbana. Mas, como também se disse antes, não há sujeito individual ou coletivo; isto é, uma sociedade formada por
indivíduos plenamente conscientes e livres, preparados intelectualmente etc. Ou
seja, não há uma cidade habitada por uma multidão de filósofos – homogêneos e
iguais – discutindo as questões do ser ou da existência, nem aqui, nem na
Conchinchina, nem em qualquer outro lugar. Também o sujeito não tem uma varinha
de condão que, como num passe de mágica, “encarna seu cavalo” e passa a
controlar conscientemente todas as suas ações, pulsões, emoções e pensamentos.
Como uma planta num vaso de solo árido, sob a penumbra constante, não germina
plenamente, o mesmo se dá com os seres humanos ou qualquer tipo de vida no
planeta. A alienação é, como enfatizamos, alienação das possibilidades.
Vejamos:
Podemos conceber uma história da alienação que atravesse a história
geral, a das ideias e das ideologias, a do conhecimentos e do Estado, que tenha
a sua periodização própria e traga uma nova dimensão e um novo sentido às
outras histórias? Sim. Com a condição de definir bem a alienação, não pela
perda duma essência extraviada, duma “humanidade” e inicial, mas pela perda do
possível, pela sua blocagem (pela dialética do possível-impossível). (LEFEBVRE,
1971, pp. 247 e 248).
O possível é a sociedade urbana, tal
como foi definida anteriormente: fim das alienações. Neste sentido, duas fases
convivem juntas[1], mas em
conflito. Fase I: histórica e vigente (atual). Fase II: trans-histórica,
virtual (pressuposta).
Fase I: Forças que convergem “inconscientemente” (industrialização,
técnica, conhecimento, neocapitalismo, revoluções por vezes) empurram para a
homogeneização. Destas forças, homogeneizantes, destruidoras das
particularidades naturais e de toda a natureza, fazem parte a acumulação (dos
conhecimentos, das técnicas, das riquezas) como a preocupação cada vez mais
exclusiva do crescimento (o economismo), o primado da técnica e a afirmação de
tal modelo, proclamadas a filosofia e a historicidade (sistemáticas).
Fase II: Há resistência ao processo, dos resíduos, das originalidades
irredutíveis. Um conhecimento mais alto, formas de consciência afinadas nascem
no decurso da fase I; lutam a seu modo – revolucionário – para se manifestarem,
seguem em direção às divergências e às diferenças. Ao mesmo tempo em que há
homogeneização, surgem diferenças e simultaneamante consciência das diferenças.
O conhecimento acompanha este processo duplo e uno. Ele baliza a via da
espontaneidade, confirma-a. (Ibidem, p. 265).
*****
Há um projeto revolucionário na obra
de Lefebvre[2], que não
exclui a luta de classes, mas, ao contrário, a amplia. A luta de classes
transcende o público e o privado, está em toda a parte. Mas as classes
dominantes não apenas asseguram seus privilégios pelo uso da força, aparato
militar e policial, mas principalmente por meio das estratégias, o que envolve,
além do uso da força, também o monopólio de todos os setores de controle social,
desde instituições ligadas ao saber e a produção de ideologia até a produção do
espaço, do cotidiano e da cidade. Estas estratégias não são inconscientes,
muito pelo contrário, um número incontável de especialistas altamente
qualificados trabalha incansavelmente para manter a ordem vigente. O que é
inconsciente é uma patologia ou megalomania das classes capitalistas ao
incorporarem e personificarem a lógica (tautológica) do capital. Também aqui
não há um sujeito, mas, pulsões, forças obscuras, irracionais, mesquinhas e
inconscientes, de vontade de poder; e instintos de conservação, que se traduzem
em acumular, acumular, acumular... Seja como for, tais estratégias racionais
buscam, diante das condições que se apresentam, ainda que inconscientemente,
diluir ou esvaziar totalmente o urbano, o encontro, etc. (fase II), numa vã
tentativa de salvaguardar as categorias históricas do neocapitalismo (fase I).
Nenhum recurso para esse fim irracional será poupado, desde pequenas ações para
expulsar grupos sociais indesejáveis até a destruição total de cidades ou de
países inteiros.
Para o poder, há mais de um século, qual é a essência da cidade? Cheia de
atividades suspeitas, ela fermenta delinquências; é um centro de agitação. O
poder estatal e os grandes interesses econômicos só podem então conceber apenas
uma estratégia: desvalorizar, degradar, destruir a sociedade urbana. (LEFEBVRE,
2008, p. 84).
As políticas segregacionistas, nesse
sentido, e a cotidianidade visam transformar a cidade numa máquina, habitada
por autômatos, que apesar de se trombarem e se chocarem todos os dias, nas
grandes multidões, nunca se encontram.
O centro torna-se lugar de passagem, de troca; fato que, ironicamente
“socializa a sociedade”, possibilitando todas as condições do encontro. Quem espera,
todavia, encontrar um grande amor à primeira vista no metrô, no ônibus, na
avenida Paulista, no local de trabalho, na cidade, vai se frustrar
redondamente. Mas está tudo aí! Paradoxo maldito...
*****
Se esta hipótese se confirma: isto é,
a saída da história (que como vimos permanece, não desaparece – fase I); então,
para Lefebvre, a Comuna de Paris de 1871
foi a primeira grande revolução urbana.
Como é bastante conhecido, logo após a Primavera
dos Povos, Paris foi submetida a uma reforma urbana de grandes proporções –
entre 1853 a 1870 –, realizada então pelo prefeito da cidade, o barão Haussmann[3].
Sua orientação estratégica era óbvia; visava, dentre outras coisas, a
possibilidade de intervenção do Estado na cidade, palco de sucessivos levantes
ao longo do XIX, com o intuito de conter as classes populares revoltosas. O que
implicava, para isso, uma remodelação espacial completa que preconizava a
destruição de vielas estreitas e escuras para dar lugar a grandes avenidas,
facilitando, caso necessário, o acesso da cavalaria como também obstar
barricadas, fugas e resistência dos movimentos populares etc. Com a reforma, os
cortiços do centro da cidade foram demolidos e as classes trabalhadoras,
potencialmente perigosas, foram expulsas para a periferia.
A Comuna de Paris pode ser interpretada a partir das contradições do
espaço, e não somente partindo das contradições do tempo histórico (patriotismo
das massas e antipatriotismo das classes dirigentes). Tratou-se de uma réplica
popular à estratégia de Haussmann. Os operários, enxotados para os bairros e
comunas periféricas, reapropriaram-se do espaço do qual o bonapartismo e a
estratégia dos dirigentes os tinham excluído.
Numa atmosfera de festa (guerreira, mas radiante), eles tentaram
reapossar-se do espaço. (LEFEBVRE, 2008b, p. 171).
Não foi, no entanto, a reurbanização
da cidade de Paris o fator que deflagrou a Comuna, embora o projeto
bonapartista de modernização incluía a transformação radical da cidade. A
guerra franco-prussiana, o cerco de Paris e a situação miserável do proletariado
agravada pelo estado de guerra foram o rastilho de pólvora da rebelião. Porém,
o arranjo urbano recém-criado na cidade havia gerado uma exclusão espacial que
devia inspirar um sentimento popular de cidadania roubada, ainda mais com o
fato de as elites terem desertado totalmente, aliando-se e abandonando a cidade
à sanha inimiga. Paris pertencia ao proletariado, seu legítimo dono. Mas é
interessante notar que a Comuna não foi um movimento majoritariamente
socialista, liderado pelo operariado. Acima de tudo, foi um movimento popular
que acabou por assumir, na prática, um programa de caráter verdadeiramente
socialista. Sem dúvida, havia algo maior em jogo do que as reivindicações
tradicionais do operariado, pois, sem as excluir, lutava-se também pela cidade.
O próprio Bakunin reconheceu que: “Os socialistas, à frente dos quais se situa
naturalmente nosso amigo Varlin[4],
formavam na Comuna apenas uma ínfima minoria. Eles eram no máximo 14 ou 15
membros. O resto era composto por jacobinos” (BAKUNIN, 2008, p. 120). É certo
que há algum equívoco nestes números citados; Bakunin talvez tivesse em mente a
ausência da Internacional nos acontecimentos. Mas, de fato, a Comuna foi
liderada principalmente por blanquistas e secundada por mutualistas
proudhonianos[5]. É neste
sentido que Bakunin fala de um instinto
socialista, portanto, inconsciente, dos communards;
que se tornou consciente pelas
próprias necessidades prementes e práticas às quais o proletariado se deparava
ao tomar a cidade de Paris.
Eles são ainda mais escusáveis porque o povo de Paris, sob a influência
do qual eles pensaram e agiram, era socialista muita mais de instinto do que de
ideia ou convicção pensada. Todas as suas aspirações são ao mais elevado grau e
exclusivamente socialistas, mas suas ideias, ou melhor, suas representações
tradicionais ainda estão longe de ter alcançado essa altura. (Ibidem, pp. 121 e
122).
Lefebvre também atenta para a falsa
ideia, posteriormente construída, de inspiração nas reflexões de Marx, sobre a
guerra civil na França, para explicar a derrocada da Comuna pela ausência de um
partido político – nos moldes bolcheviques? – capaz de dirigir o movimento
revolucionário. “Sobre esta imagem ideológica, quantas reservas a formular! O
movimento popular, no fim do assédio de Paris, não reunia apenas operário,
então pouco numerosos e difíceis de definir como tais. Os seus objetivos? Tão
vastos como confusos” (LEFEBVRE, 1971, p. 287). Na verdade, foi o inverso, a
Comuna foi caracterizada antes pela espontaneidade das massas e daí o seu vigor.
O operariado estava presente, realmente, mas de modo insignificante, pelas
próprias características da indústria na França daquele final do século XIX,
fortemente marcada pela presença de pequenas oficinas artesanais[6].
Portanto, a Comuna não foi essencialmente
um movimento operário e, portanto, definida pela contradição histórica
capital-trabalho. Mas, além das mazelas suscitadas pelo capitalismo, a Comuna
revelou, na ordem do dia, talvez, especificidades da sociedade urbana: contradições do espaço.
A espontaneidade desempenhou aí o papel maior, uma espontaneidade alegre.
Guerra civil, luta de morte, festa, só se separam no decurso dos
acontecimentos. Além disso, e sobretudo, foi a primeira revolução urbana. Os
operários e o povo parisiense não se bateram apenas na cidade mas pela cidade.
Paris não era apenas o teatro da história, o lugar passivo da ação. Na luta
estava em jogo a Cidade e o seu Centro, a Câmara. A Comuna de Paris não era
apenas um meio político, um instrumento, mas o melhor sentido da luta.
Desapossados da sua cidade, expulso do centro por Haussmann, os operários e o
povo voltaram num tempo para lá de si próprios: uma temporalidade política em
avanço em relação à economia, ao psiquismo e à ética, aos interesses
particulares dos grupos e classes em presença. Eles foram afoitamente até ao
ponto de porem, a partir do centro por eles retomado, as questões de
descentramento e descentralização. Este tempo, ainda que tendo suas raízes na
história, ia para além do movimento histórico, em direção ao possível através
do impossível. A Comuna propôs as primeiras formas de autogestão,
simultaneamente unidades de produção e unidades territoriais (comunas urbanas).
(LEFEBVRE, 1971, pp. 288 e 289).
Assim, a primeira revolução urbana foi, imersa em novas
contradições mal-conhecidas, fortemente anti-estatal e revelou um anarquismo vivo[7],
que longe de representar seus estertores antecipava sua força virtual
atemporal. Por isso Bakunin pôde dizer:
Sou um partidário da Comuna de Paris, que, por ter sido massacrada,
sufocada no sangue pelos carrascos da reação monárquica e clerical, tornou-se
ainda mais viva, mais poderosa na imaginação e no coração do proletariado da
Europa; sou seu partidário sobretudo porque ela foi uma negação audaciosa, bem
pronunciada, do Estado. (BAKUNIN, p. 118).
Gostaríamos então de expor e
transcrever alguns artigos proclamados no programa que devia reger a vida da
Comuna de Paris. Para nós, estes artigos são de clara influência urbana, e, por
isso, extremamente importantes, não só do ponto de vista histórico como também
das estratégias. Nota-se que algumas questões como a dos idosos, das crianças e
das mulheres[8], tão em
voga hoje em dia, mas tão longe de serem ainda resolvidas, já eram colocadas
pela Comuna (a citação é longa mas vale a pena):
Artigo I. As velhas autoridades de tutela, criadas para oprimir o povo de
Paris, são abolidas, tais como: comando da polícia, governo civil, câmaras e
conselho municipal. E as suas múltiplas ramificações: comissariados, esquadras,
juízes de paz, tribunais etc. são igualmente dissolvidas.
Artigo II. A Comuna proclama que dois princípios governarão os assuntos
municipais: a gestão popular de todos os meios da vida coletiva; a gratuidade
de tudo o que é necessário e de todos os serviços públicos.
Artigo III. O poder será exercido pelos conselhos de bairro eleitos.
(...)
Artigo IV. Sobre o problema da habitação, tomam-se as seguintes medidas:
expropriação geral dos solos e sua colocação à disposição comum; requisição das
residências secundárias e dos apartamentos ocupados parcialmente; são proibidas
as profissões de promotores, agentes de imóveis e outros exploradores da
miséria geral; os serviços populares de habitação trabalharão com a finalidade
de restituir verdadeiramente à população parisiense o seu caráter trabalhador e
popular.
Artigo V. Sobre os transporte, tomam-se as seguintes medidas: o ônibus,
os trens suburbanos e outros meios de transporte são gratuitos e de livre
utilização; o uso de veículos particulares é proibido em toda zona parisiense,
com exceção dos veículos de bombeiros, ambulâncias e de serviço a domicílio; a
Comuna põe à disposição dos habitantes de Paris um milhão de bicicletas cuja
utilização é livre, mas não poderão sair da zona parisiense e seus arredores.
Artigo VI. Sobre os serviços sociais, tomam-se as seguintes medidas:
todos os serviços ficam sob o controle das juntas populares de bairro e serão
geridos em condições paritárias pelos habitantes de bairro e os trabalhadores
destes serviços; as visitas médicas, consultas, assistência médica e
medicamentos serão gratuitos.
Artigo VII. A Comuna proclama a anistia geral e a abolição da pena de
morte e declara que sua ação se baseia nos seguintes princípios: dissolução da
polícia municipal, dita polícia parisiense; dissolução dos tribunais e
tribunais superiores; transformação do Palácio da Justiça, situado no centro da
cidade, num vasto recinto de atração e de divertimento para crianças de todas
as idades; em cada bairro de Paris é criada uma milícia popular composta por
todos os cidadãos, homens e mulheres, de idade superior a 15 anos e inferior a
60 anos, que habitem o bairro (...). Paris é proclamada terra de asilo e aberta
a todos os revolucionários estrangeiros, expulsos [de sua terra] pelas suas
ideias e ações.
Artigo VIII. Sobre o urbanismo de Paris e arredores, consideravelmente
simplificado pelas medidas precedentes, tomam-se as seguintes decisões:
proibição de todas as operações de destruição de Paris: vias rápidas, parques
subterrâneos etc.; criação de serviços populares encarregados de embelezar a
cidade, fazendo e mantendo canteiros de flores em todos os locais onde a
estupidez levou à solidão, à desolação e ao inabitável; o uso doméstico (não
industrial nem comercial) da água, de eletricidade e do telefone é assegurado
gratuitamente em cada domicílio; os contadores são suprimidos e os empregados
são colocadas em atividades mais úteis.
Artigo IX. Sobre a produção, a Comuna proclama que: todas as empresas
privadas (fábricas, grandes armazéns) são expropriadas e seus bens entregues à
coletividade; os trabalhadores que exercem tarefas predominantemente
intelectuais (direção, gestão, planificação, investigação etc.) periodicamente
serão obrigados a desempenhar tarefas manuais; (...) fica abolida a organização
hierárquica da produção; as diferentes categorias de trabalhadores devem
desaparecer e desenvolver-se a rotatividade dos cargos de trabalho; a nova
organização da produção tenderá a assegurar a gratuidade máxima de tudo o que é
necessário e diminuir o tempo de trabalho. (...)
Artigo X. Os trabalhadores com mais de 55 anos que desejem reduzir ou
suspender a sua atividade profissional têm o direito a receber integralmente os
seus meios de existência. (...)
Artigo XI. É abolida a escola “velha”. As crianças devem sentir-se como
em casa, aberta para a cidade e para a vida. A sua única função é a de
torná-las felizes e criadoras. As crianças decidem a sua arquitetura, o seu
horário de trabalho e o que desejam aprender. O professor antigo deixa de
existir: ninguém fica com o monopólio da educação, pois ela já não é concebida
como transmissão do saber livresco, mas como transmissão das capacidades
profissionais de cada um.
Artigo XII. A submissão das crianças e da mulher à autoridade do pai, que
prepara a submissão de cada um à autoridade do chefe, é declarada morta. O
casal constitui-se livremente como o único fim de buscar o prazer comum. A
Comuna proclama a liberdade de nascimento: o direito à anticoncepção. As
crianças deixam de ser propriedade de seus pais. Passam a viver em conjunto na
sua casa (a Escola) e dirigem a sua própria vida.
Artigo XIII. A Comuna decreta: todos os bens de consumo, cuja produção em
massa possa ser realizada imediatamente, são distribuídos gratuitamente; são
postos à disposição de todos nos mercados da Comuna. (COGGIOLA, 2003, pp.
14-16).
*****
Embora a Guerra Civil Espanhola ou Revolução
Espanhola não tenha sido propriamente uma revolução urbana nos moldes da
Comuna, isto é, não foram contradições do espaço as causas dos eventos
revolucionários da década de 30, mas, sim, contradições históricas, é possível
discernir, entretanto, aspectos da sociedade urbana plenamente latentes. Pois,
durante o conflito, não houve apenas coletivizações
ou socialização no campo, mas também nas cidades. Além disso, as comunas na
Espanha duraram muito mais tempo do que a curta temporada da Comuna de Paris, e
por isso os problemas concretos revelaram-se mais difíceis e as soluções mais
complexas. Faremos algumas considerações breves a respeito.
Para começar, é preciso antes traçar
em linhas gerais como o anarquismo se tornou um movimento de massa na Espanha.
Grosso modo, o anarquismo enquanto movimento
histórico surge com o cisma do socialismo na Associação Internacional dos
Trabalhados (AIT), fundada em 1864. A cisão tornar-se-ia irremediável quando as
posições de Bakunin suplantam definitivamente as concepções proudhonianas e
rivalizam com as de Marx em torno do projeto socialista. A literatura
anarquista descreveu os oponentes do seguinte modo: de um lado, Bakunin e os socialistas libertários; e de outro,
Marx e os autoritários[9].
Vale lembrar também que o socialismo proposto por Bakunin, em nossa opinião,
foi uma síntese do princípio federalista
proudhoniano – e do pressuposto, “a cada um conforme o seu trabalho” – e de
algumas teses do materialismo,
inclusive de viés marxista[10],
como, por exemplo, a questão da luta de classes. Enfraquecida pela repressão
que se seguiu à Comuna (1871), a Internacional não conseguiu sobreviver às
dissensões internas, que culminaram, sobretudo, na expulsão de Bakunin. Muito
mais relevante foi, no entanto, a onda contrarrevolucionária que grassaria na
Europa, nos anos subsequentes, criando um refluxo dos movimentos dos
trabalhadores por pelo menos uma década. Mas, ainda anos de 1868, em pleno
vigor da AIT, Bakunin enviava para a Espanha um de seus colaboradores, o
italiano Giuseppe Fanelli. À época, a Espanha era um país basicamente agrário,
apresentando uma concentração industrial pontual, somente na região da
Catalunha e dos Países Bascos, e, por conseguinte, a organização da classe
operária era frágil e difusa. Por isso, foi incumbido a Fanelli o papel de
organizar os trabalhadores espanhóis sob o estatuto da Internacional, bem como
fundar uma seção desta organização no país. Passados alguns anos desse episódio
crucial, já nos anos de 1900, floresciam muitas associações e sindicatos de
trabalhadores por toda a Espanha. Entre os anarquistas, as formulações do
anarco-comunismo, de cariz kropotkiniano, sob o lema comunista de “a cada um
conforme a sua necessidade”, e do anarco-sindicalismo francês, ganharam terreno
na organização dos trabalhadores. Além disso, o descentralismo propugnado pelas
ideias anarquistas caía como uma luva nos anseios do proletariado espanhol, que
já tinham uma certa tradição nesse sentido com o Partido Federalista, ainda na
primeira metade do XIX, e mesmo uma familiaridade com as obras de Proudhon,
traduzidas por Pi y Margall, no ano de 1968 (NETTLAU, 2008). É preciso também
ressaltar que a constituição de uma identidade
da Nação espanhola, desde os Reis Católicos, passou por cima de diferentes
grupos étnicos e de províncias que tradicionalmente reivindicavam autonomia.
Durante o interregno que se seguiu
desde a chegada de Fanelli e o início da guerra civil, a Espanha viveu um
período de intensa agitação política e social que, evidentemente, não vamos nos
aprofundar aqui. Basta dizer apenas que em março de 1936, em meio à
insatisfação geral, uma frente partidária de esquerda vence as eleições e galga
ao cume do poder. Todavia, seu governo foi incapaz de atender as demandas
populares mais elementares. Mesmo com um governo pusilânime, as oligarquias
espanholas mostraram-se descontentes em perder o controle político e, em junho
do mesmo ano, ocorre uma tentativa de golpe militar (os “velhos” e tão
corriqueiros pronunciamientos
espanhóis), há muito planejada no Marrocos, por Franco e outros pulhas da
Falange. Nesse momento, inicia-se a guerra civil. A partir daí, começa um
intricado “jogo de xadrez”, dentro e fora da Espanha, que caracterizará o
cenário mundial dos anos decorrentes. Não foi à toa a referência, por muitos
historiadores, à guerra civil na Espanha, de “pequena guerra mundial”. De fato,
a Revolução Espanhola iria inaugurar o formato das guerras modernas, inovando
nas técnicas e nos métodos de batalha (por exemplo, bombardeios aéreos, uso de
blindados etc.). Assim, em apenas três anos, o conflito foi um dos mais
sangrentos do século XX, e acabou servindo-se de laboratório dos projetos
nazistas, antecipando os adventos sangrentos da Segunda Guerra Mundial.
No cenário interno, a resistência ao
assédio fascista foi marcada por uma aliança frágil entre as esquerdas. Também
não entraremos em detalhes neste trágico capítulo, repleto de ressentimentos e
mesquinhez. Mas alguns fatos valem a pena serem mencionados, para uma maior
compreensão da natureza da divisão entre os socialistas. Em Barcelona, por
exemplo, os fascistas foram esmagados logo no primeiro dia do golpe pelos
anarquistas, que solicitam desesperadamente a liberação de armas ao governo;
este sempre recalcitrante. Neste dia caíram os primeiros mártires da revolução,
quase todos anônimos; dentre eles, o incansável ativista Francisco Ascaso.
Também, durante a marcha para salvar Madri, a Coluna Durruti, comandada pelo
militante de irretocável caráter, Buenaventura Durruti, por onde passava
instituía o fim da propriedade privada, através de medidas socialistas por meio
da coletivização das terras e da democratização da educação[11].
Aliás, o processo de coletivizações toma toda a Espanha (menos, é claro, os
territórios ocupados pela falange), chocando-se com diversos interesses, mesmo
entre as fileiras revolucionárias. A posição moderada do Partido Comunista
Espanhol, afinado às prerrogativas do stalinismo, condizia com os interesses de
uma burguesia oportunista, que integrava os quadros do partido, e que se
posicionou francamente no sentido de salvaguardar a propriedade privada. Não
demorou muito para as diversas tendências socialistas entrarem em choque,
muitas vezes de forma extremamente violenta, como veio a ocorrer em 37[12].
O boicote de armas e o não pagamento do soldo, por determinação do governo,
também enfraqueciam as linhas no front.
Com a morte de Durruti, ainda no ano de 36, em circunstâncias misteriosas, o Pravda de Moscou publica a seguinte
manchete: “Começa o expurgo aos elementos trotskistas e anarco-sindicalistas na
Espanha”. Diante da ofensiva dos franquistas, destacados membros anarquistas,
como Juan Garcia Oliver e Federica Monteseny, também acabam por integrar
ministérios do governo, causando ainda mais confusão entre os combatentes. Por
outro lado, à medida que a contrarrevolução stalinista ganhava força, a
propriedade fundiária e o comércio foram pouco a pouco restituídos. (Os
fascistas sequer tiveram o trabalho de arrumar a casa!) As tropas também
passaram a ser rigidamente disciplinadas, hierarquizadas e submetidas a um
Estado-Maior, obediente às determinações do PCUS.
No plano internacional, desde o
início do conflito, Alemanha e Itália enviaram prontamente armas e tropas em
auxílio das falanges. Os nazistas alemães ainda dispuseram sua poderosa
esquadra aérea, a Condor. Já as potências democráticas mantiveram-se
maquiavelicamente “neutras”. A URSS, para agradar tanto gregos como troianos,
enviou armas de segunda mão, todas usadas na Primeira Guerra Mundial, e grande
parte delas estragadas ou com defeito, e alguns técnicos militares, mas nenhum
efetivo militar que pudesse fazer frente à aliança internacional que se formava
em torno da extrema-direita na Espanha. Isolados, os revolucionários espanhóis,
contaram com a solidariedade de voluntários do mundo todo, que se alistaram, em
grande parte, nas Brigadas Internacionais.
Neste sentido, dois fatores foram cruciais
para a subida de Franco ao poder. Além das picuinhas internas, promovidas pelo
PCE, que minaram por dentro a coesão da resistência, a política externa foi
também determinante para o desfecho do conflito. Ora, a URSS, única potência
militar e econômica capaz de colaborar decisivamente com os revolucionários,
jamais se envolveu de modo contundente no conflito. Stalin havia muito que
esboçava firmar um pacto com a Inglaterra e França, em virtude do crescimento
do nazismo e dos anseios expansionistas de Hitler, que tinha por alvo de seu
ódio o socialismo. O ditador sabia dos inconvenientes de um país de regime
socialista no seio da Europa ocidental, algo intolerável entre os países
capitalistas, e como prova de boa-vontade, não se interferiu efetivamente no
conflito. Todavia, malograda suas aspirações, Stalin acabou firmando um acordo
de não-agressão justamente com os nazistas! Não é estranho, portanto, que no
ano de 1939, ao término da guerra civil na Espanha, iniciaram-se, quase ao
mesmo tempo, os confrontos da Segunda Guerra Mundial. Curiosamente, os
“negócios” que o PCUS mantiveram com o governo espanhol, como o mencionado
comércio de armas danificadas, acabaram por transferir cerca de 510 toneladas
do ouro espanhol (diga-se de passagem, das Américas) para os cofres soviéticos!
Por outro lado, Franco sentia-se obrigado moralmente aos países do Eixo, e
mesmo com a Espanha em frangalhos ainda pôde, em sinal de gratidão, enviar
tropas em auxílio dos nazistas. Porém, o mal-estar das potências democráticas
com o fascismo na península ibérica durou muito pouco. Em 1955, Franco recebeu
ajuda financeira dos EUA e a Espanha, admitida na ONU.
Seria interessante mencionar aqui, a
título de observação e evitar mau-entendidos, que, em maio de 36, foi aprovado,
num congresso da CNT, a absoluta igualdade entre mulheres e homens, num país,
diga-se de passagem, de forte tradição católica e patriarcal. Neste contexto, o
grupo libertário Mujeres Libres
contou com 20 mil mulheres que não se contentavam em auxiliar os milicianos na
retaguarda, mas, inversamente, alistavam-se na linha de frente e combatiam em
pé de igualdade com seus camaradas de sexo masculino.
As coletividades, assim como as Mujeres Libres, mereceriam um capítulo à
parte. Mas o que queremos enfatizar aqui é uma certa apropriação do espaço
urbano e uma transformação do cotidiano que se pretendia de baixo para cima,
autogestionário. Portanto, as coletivizações buscavam alterar as relações
sociais e de produção no interior da divisão do trabalho, tanto no campo, como
na cidade.
Malgrado sua determinação, as coletividades eram praticamente
organizações libertárias comunistas, que aplicavam a regra de cada um segundo
suas forças, a cada um segundo suas necessidades, seja pela quantidade de
recursos materiais assegurados a cada um ali onde o dinheiro tinha sido
abolido, seja por meio do salário familial lá onde o dinheiro foi mantido. O
método técnico divergia, mas o principio moral e os resultados práticos eram os
mesmos. Essa prática existia, com efeito, sem exceção, nas coletividades agrárias;
pouco frequente, ao contrário, nas coletivizações e socializações industriais,
por ser a vida da cidade mais complexa e o sentimento de sociabilidade menos
profundo. (LEVAL, 2002, p. 86).
As coletivizações na cidade foram
muito mais difíceis do que no campo, que, apesar da concentração fundiária,
tinha já uma tradição nesse sentido. A vida cotidiana nas cidades estava, ao
contrário, bastante cristalizada e não seria do dia para a noite que essa
situação se alteraria bruscamente. Houve muitas tentativas de socialização, mas
o que se viu numa primeira etapa foram relações capitalistas privadas
tornarem-se coletivas[13].
Ora, esse fato é justificável. Como mudar a rotina de pessoas que acordam pela
manhã preocupadas com as despesas e as contas a pagar e encontram uma cidade
totalmente mudada por um novo regime político-econômico estendido a quase todo
território nacional de uma hora para outra? O que devia se passar na cabeça
desses trabalhadores, quantas incertezas e inseguranças sobre o futuro, apesar do
otimismo e da esperança? Portanto, a produção não devia parar; todavia, as boas
novas da primeira hora foram que o odioso sistema do patronato havia sido enfim
abolido.
Nenhum dos patrões se encontrava lá. Os trabalhadores não deviam apenas
retornar a seus postos de trabalho, no trem, no bonde ou nos escritórios. Eles
deviam também se encarregar da direção geral das fábricas, das oficinas, das
empresas etc. em outras palavras, aos operários e empregados, ocupados em todos
os setores da economia do país, incumbia, doravante, a direção da indústria e
de toda a vida econômica. (SOUCHY, 2002, p. 30).
Neste sentido, o de organizar a vida
econômica nos moldes da autogestão, coube a cada sindicato, única estrutura com
capacidade administrativa naquele momento, capaz de substituir o Estado, o
controle da produção e articular a distribuição. Nota-se que tal gestão era
extremamente descentralizada e pouco burocrática, pois a organização sindical
fundava-se no trabalho voluntário dos filiados, o que dispensava a contratação
de funcionários permanentes. Até mesmo os socialistas que viam na experiência
soviética um modelo a ser copiado renderam-se as coletividades e mesmo eles
chegaram a promover coletivizações. Além disso, essencialmente, os sindicatos
revolucionários estavam acima de qualquer suspeita; eram entidades de
integridade ideológica inquestionável; de fato, apresentavam-se como a única
organização que os trabalhadores podiam realmente confiar. Além disso, seus
filiados, além de viverem modestamente e dividir as atividades sindicais com o
trabalho na indústria, também se dedicavam obstinadamente no front, como o exemplo dos já mencionados
Ascaso e Durruti.
Após o 19 de julho de 1936, os sindicatos da CNT encarregaram da produção
e do abastecimento. Os sindicatos, de início, esforçaram-se para resolver a
questão mais urgente: a de assegurar o provimento da população. Em cada bairro,
cozinhas foram instaladas nos locais dos sindicatos. Comitês de abastecimento
ocupavam-se de buscar víveres nos armazéns centrais da cidade ou no campo.
Esses víveres eram pagos com bônus cujo valor era garantido pelo sindicato.
Cada membro dos sindicatos, as mulheres e os filhos dos milicianos, e também a
população em geral, foram alimentados gratuitamente. (...) Os sindicatos de
empresa transformaram-se em empresas industriais. O sindicato da construção
civil de Barcelona encarregou-se da execução dos trabalhos das diferentes
empresas de construção da cidade. Os salões de beleza foram coletivizados.
(ibidem, pp. 31-35).
É preciso ressaltar também que os
revolucionários viviam numa economia de guerra e que muitos produtos tinham de
ser importados, notadamente, os manufaturados. A demanda por armas e
combustível também era grande. Logo, não era tão fácil assim se livrar de certas
categorias econômicas, como a circulação em dinheiro (ou bônus), principalmente
quando o intercambio com o exterior e regiões onde careciam produtos e outras
eram produtoras exigia que as trocas fossem contabilizadas. Vejamos estes
exemplos:
A companhia de ônibus de Barcelona, apresentava excedentes de receita.
Uma parte desses excedentes é destinada a um fundo de reserva para compra de
material no estrangeiro. (...) Quando o combustível se tornava raro, 4000
motoristas de táxi ficaram desempregados. Seus salários tiveram de ser pagos,
ainda pelo sindicato. Foi um pesado ônus para o sindicato dos transportes. Ele
teve de pedir ajuda aos outros sindicatos e à comuna de Barcelona. (...) O
transporte do leite das zonas rurais para as cidades também é assegurado pelos
sindicatos, que se ocupam, além do mais, do funcionamento da maioria das
leiterias. O sindicato da alimentação controla as empresas agrícolas e trabalha
em colaboração com as fazendas coletivizadas. A diminuição da entrada na
Espanha do leite condensado teve por consequência uma penúria de leite. O
sindicato da alimentação comprou leite condensado no estrangeiro e, assim,
acabou a penúria do leite em Barcelona. (Ibidem, pp. 35-40).
Seria precipitado ou maledicente
condenar as coletividades urbanas por não terem conseguido eliminar
imediatamente todas as categorias do capitalismo. Foram, na verdade, realidades
incomparáveis. Todavia, a experiência de apropriação da coisa urbana, com seus acertos e equívocos, é prenhe de lições, que
já indicavam a necessidade de se conceber a vida social na cidade sobre
pressupostos verdadeiramente democráticos. Com certeza, experiências desse tipo
não foram exclusivas da Revolução Espanhola, mas, ao nosso ver, a guerra civil
na Espanha parece ser emblemática porque anuncia, pela primeira vez, o
esgotamento das categorias históricas.
Antes de concluir o assunto, ainda há
espaço para mais algumas considerações. Num contexto histórico, como o
descrito, houve a oportunidade para um líder nacionalista (falangista) declarar
a seguinte frase aos berros: “Abaixo a inteligência, viva a morte!” Feita esta
observação, gostaríamos de lembrar que o poeta andaluz Federico Garcia Lorca
foi uma das primeiras vítimas dos franquistas. Portanto, nada mais justo do que
transcrever esses versos do poeta em homenagem aos revolucionários:
(...)
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramos.
Os dois companheiros subiram.
O forte vento deixava
na boca um raro gosto
de fel, menta e alfavaca.
Compadre! Onde está,
dize-me, tua menina amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes esperara
rosto corado, negro cabelo,
nesta verde varanda! (...)
(Romance Sonâmbulo)
*****
Outro momento que queremos destacar é
Maio de 68, mas não vamos, deveras,
nos estender muito sobre o assunto. Em primeiro lugar, é importante lembrar a
simultaneidade de eventos que marcaram este ano. O que torna inútil uma
interpretação unitária. Por isso, nos deteremos brevemente apenas naquilo que
pode ser relacionado à questão da forma
urbana.
Apesar das manifestações reunirem
milhares de pessoas no mundo todo, frequentemente envolvendo conflitos entre
manifestantes e polícia, às vezes, resultando em consequências gravíssimas por
causa da extrema violência repressiva dos aparelhos estatais, a cidade de Paris
parece ter se tornado um símbolo destas irrupções. Um fato, porém, marca todos
estes acontecimentos, a saber, de não terem sido iniciados pela classe
trabalhadora. Assim sendo, foram os estudantes os precursores das manifestações
que agitaram o mundo na década de 60, do século XX.
Neste contexto, Henri Lefebvre ao
analisar a sociedade francesa, demonstra como o Estado, longe de diminuir seu
papel na sociedade, inflacionou o seu Poder para além dos limites de sua
própria definição (liberal). O Estado tornou-se, então, uma potência econômica
controladora da produção ideológica e organização social. Neste sentido, o
Estado aparece como a única “entidade” capaz de organizar e estabelecer uma
unidade, através de estratégias globais. Unidade esta conciliadora de
interesses divergentes de todos os setores sociais, incluindo, evidentemente, o
dos monopólios capitalistas. Neste sentido, os limites da ação estatal não se
resumiam a um mero reflexo passivo do capital monopolista, mas cabia a ele a função
de coordenar o capital, sendo o próprio Estado o maior dos monopólios.
Os monopólios ou “oligopólios”, conforme o vocabulário que passa por
científico, são certamente poderosos, mas cada um deles ocupa um setor.
Organizações verticais, apesar de uma tendência para as extensões horizontais
não constituem um sistema. Não são mais os bancos com cada organização
monopolística tendo o seu banco ou seus bancos. A quem incumbe a coesão? O
Poder encarrega-se dela. Na França, grandes “sociedades” praticam o autofinanciamento,
o que facilita as operações a prazo curto e médio (exploração do mercado
interno e externo, pesquisa de novas produções) mas que incomoda a coesão do
conjunto. Esta coesão não é assegurada por um pensamento racional (a
planificação) mas por uma vontade, o Poder. (LEFEBVRE, 1968c, pp. 97 e 98).
A máquina estatal não apenas
garantiria assim a coesão e a unidade, mas garantiria também o lucro das
empresas capitalista, porque lucra e também se beneficia do lucro privado.
Por certo, ele encoraja o lucro, sabendo que uma parte bem grande vai
para os investimentos. Além do mais, ele gera: realiza, sobre a renda nacional,
adiantamentos maciços, para operações próprias (ouro, force de frappe, etc.).
Enfim, ocupa-se ativamente com as construções imobiliárias, com as novas
cidades, com a urbanização. O que se chama de “urbanismo” faz parte
simultaneamente da ideologia e da prática do Estado que se deseja racional.
(ibidem, p. 98).
Este Estado não é senão o Poder
detido nas mãos da burguesia ou da classe capitalista (ou superclasse).
Portanto, tal unidade é ilusória.
Porém, o Estado, que se quer absoluto, total, super-racional, criou um vazio
social em torno de si, pois, aboliu todas as mediações possíveis entre ele e a
sociedade. Somente grupos constituídos, em que pese o poder econômico,
conseguem fazer valer seus interesses mediante ao Estado. As liberdades
individuais ou os direitos civis não passam aqui de mera ficção, assim como
entidades representativas de classes ou frações de classes. Labirinto kafkiano,
o Estado, esfera abstrata e ao mesmo tempo concreta, dispersa os elementos
sociais, completamente perdidos e caóticos, ou expulsa a sociedade civil para
uma região de trevas, através, contraditoriamente, de sua luminosidade
ofuscante. “Entre o nível político e o da sociedade civil, está o vazio. Um
vazio político, uma vazio social e ideológico. Esses grupos sociais reduzido ao
papel de membros passivos da sociedade não política há já algum tempo não têm
mais projetos” (ibidem, p. 100).
Para Lefebvre, este vazio,
caracterizado por uma crise institucional, em maio de 68, foi preenchido pela
contestação e pela espontaneidade na rua,
esfera política por excelência. “A mais surpreendente característica da
situação francesa, nestas horas ditas ‘histórica’, foi e ainda é a existência
de uma terceira força: a da contestação e espontaneidade, a força da rua”
(ibidem, p. 120). A autogestão aparecia então como a forma política desta
terceira força que buscava superar as dissociações engendradas pelo vazio circundante
do Poder. “Espontaneamente, a prática social se liberta daquilo que institui as separações, a saber, uma
soma de instituições” (ibidem, p. 124). É neste sentido que a revolução nasce
do cotidiano e põe em cheque a cotidianidade, pela autogestão. “A autogestão
mostra o caminho para uma transformação da vida cotidiana. ‘Mudar a vida’,
assim se define o sentido do processo revolucionário” (ibidem, p. 125).
Portanto, na produção do espaço, nas
classes sociais projetadas no solo, nas representações e ideologias que se
materializam no chão, no hiato e nas dissociações promovidas pelo Estado, a
cidade aparece como cenário, onde a forma urbana é reivindicada. “Efetuadas no
terreno, é no terreno que podem ser superadas: na rua. Aqui é o estudante
encontra o trabalhador e a razão reduzida a suas funções reencontra a palavra”
(ibidem, p. 130). Maio de 68 foi
marcado pela solidariedade e o diálogo direto entre estudantes e trabalhadores
à revelia das instituições já bastante carcomidas que os forjavam uma
representação postiça. Esta foi sua principal característica urbana.
Permita-nos agora transcrever aqui
algumas das belas passagens do livro de Em
68: Paris, Praga e México, de Carlos Fuentes, sobre as revolta nas ruas de
Paris e que parecem traduzir bem o espírito do conteúdo vivo da forma urbana
realizada: o encontro (A citação é
longa mais vale a pena):
“De onde vem, camarada” é a primeira saudação dos jovens que saíram para
fazer poesia e política nas ruas de uma cidade que não me atrevo a reconhecer e
que, entretanto, só agora é idêntica a si mesma. Uma Paris de mãos abertas,
onde chegar de significa unir-se a.
- D’où viens-tu, camarade?
- México.
- C’est loin, ça.
- Pas tellement.
Unir-se ao diálogo, à fraternidade e ao amor de uma revolução
que, em primeiro lugar, aconteceu nas consciências e nos corações.
Cafés, bistrôs, oficinas, aulas, fábricas, lares, esquinas
dos bulevares: Paris se transformou em um grande seminário público. Os
franceses descobriram há anos que não dirigiam a palavra uns aos outros, e que
tinham muito a se dizer. Sem televisão e sem gasolina, sem rádio e sem revistas
ilustradas, deram-se conta de que as “diversões” os tinham, realmente distraído
de todo contato humano real. Durante um mês, ninguém tomou conhecimento das
gestações da princesa Grace ou dos amores de Johnny Halliday, ninguém se sentiu
impelido pelos apelos publicitários para trocar de carro, relógio ou marca de
cigarros. Em lugar das “diversões” da sociedade de consumo, renasceu de maneira
maravilhosa a liberdade de interrogar e duvidar.
PARLEZ À VOS VOISINS!
Os contatos se multiplicaram, iniciaram-se, restabeleceram-se. Houve uma
revolta – tão importante quanto as barricadas estudantis ou greves operárias –
contra a calma, o silêncio, a satisfação, a tristeza. Pais e filhos encontraram
uma possibilidade de comunicação (ou se certificaram de que havia perdido).
Maridos e mulheres se separaram por incompatibilidade política, moral e erótica
(pois se trata de sinônimos). Outros pares se conheceram nas barricadas, no
debate permanente do Odéon, nas passeatas: o amor nasceu com a mesma velocidade
dos acontecimentos. (...) Jean-Jacques, um amigo psicanalista, queixa-se
amargamente: “Os consultórios se esvaziaram, e muito. A revolução substituiu o
psiquiatra. Nós nos sentimos inúteis. Ontem uma paciente minha esteve no
consultório e me disse: ‘Os senhores querem nos adaptar a essa sociedade
idiota. Eu me nego a ser adaptada. Quero ser rejeitada e rejeitar o mundo
atual.’ E me deixou, como lembrança, um paralelepípedo em cima da mesa”. (...)
Os
desconhecidos deixaram de sê-lo. A revolução, mais uma vez, foi um encontro e
um abraço: para a revolução não há desconhecidos.
“Quanto mais faço a
revolução, mais vontade tenho de fazer amor; Quanto mais faço amor, mais
vontade tenho de fazer a revolução”.
Houve o irrepetível e há o
irreversível.
Irrepetível, e não poderia
ser de outra maneira (poesia, revolução, consagração do momento, Octávio Paz,
alta incandescência da maré temporal), a explosão libertária, o júbilo, a
imaginação, o humor, o excesso, a loucura, no pátio da Surbonne, nos debates do
Odéon, nas manifestações gigantescas, nas passeatas as portas das fábricas a
fim de selar aliança (impedida pela Confederação Geral dos Trabalhadores e pelo
Partido Comunista Francês) dos estudantes com os operários, no incêndio da
Bolsa de Paris ao grito de “Templo do bezerro, arde!”, nas terríveis lutas
noturnas das barricadas da rue Gay-Lussac, o Boul’Mich, Saint-Germain-des-Prés,
a Place Edmond e a rue d’Assas com as brutais CRS (Companhias Republicanas de
Segurança, tropa de elite da polícia francesa) que avançam contra a fumaça e as
chamas e as árvores caídas, lançando gases letais, batendo indiscriminadamente
em pedestres, jornalistas e paroquianos de cinemas e cafés, insinuando-se para
as mulheres, a quem matracam o grito de “putas, putas!”, lançando granadas
plásticas em direção às janelas abertas, perseguindo os estudantes pelas
escadas dos edifícios e até dentro dos apartamentos onde se refugiaram.
(FUENTES, 2005, pp. 21-25).
*****
Para concluir gostaríamos de fazer
algumas considerações sobre o Minimanual
do guerrilheiro urbano de Carlos Marighella.
Antes disso, ainda faremos uma
observação, para introduzir o assunto, sobre o fim do período histórico, como
já nos referimos, caracterizado pela dominação da natureza, através do
conhecimento e da técnica, em sintonia de processos acumulativos. Nossa hipótese
é a de que poderá vir à luz de repente um novo período: a sociedade urbana. Ou
ser esta abortada. Este novo período terá a marca indelével da apropriação: apropriação do corpo, do
desejo, do tempo e do espaço. Como já reiteramos tantas vezes, as condições
materiais já estão aí. A sociedade urbana é uma possibilidade, e apresenta
agora seus sintomas: as diferenças.
Tese: O período de apropriação, período pós-histórico, só pode ser
pensado em função da sociedade urbana. Entramos já nesta sociedade e neste
período. Sintomas e indícios: tanto a guerrilha urbana como as vastas reuniões
de jovens “não-violentos”, ávidos de contatos, de encontros, de amor, de
erotismo, de fruição, de alegria e de esquecimento. (Se se confirmar que
Heidegger entreviu a importância da diferença e da apropriação, poderemos
dizer, retomando o seu esquema, que o urbano vem após a técnica na via do ser e
do seu desenvolvimento. Mas podemos objetar que estas proposições ainda
filosóficas não têm grande importância para esclarecer a praxis...). (LEFEBVRE,
1971, p. 281, “guerrilha urbana”, sublinhado por nós).
Neste sentido, a guerrilha urbana é um sinal. Sendo assim, conforme nossa
perspectiva analítica relativa à questão do Estado, é preciso lembrar que o
golpe de 64 (o golpe dentro do golpe: o quinto Ato Institucional de 1968) não apenas criou um vazio em torno do
Poder, como também dissipou qualquer representação de mediação supostamente
garantida pela democracia moderna, entre a sociedade civil e a sociedade
política. A política linha dura que se seguiu ao golpe, não podia ser
preenchida pela contestação e espontaneidade pacífica das massas, senão pelo
confronto direto e armado realizado por pequenos grupos que conseguiam se
organizar clandestinamente, nas trevas. As condições históricas, implementadas
pelo governo militar, obstariam qualquer trabalho massivo contundente nas
bases. Por isso, pequenos grupos revolucionários, como ALN, VPR, VAR-Palmares,
PCBR, Polop, Ação Popular, PC do B (Ala Vermelha), MR-8, entre outros, decidiram
enfrentar o governo diretamente e de forma violenta. Para isso, os modelos
idealizados de atuação foram praticamente importados: a guerrilha rural maoista
ou guevarista-castrita (o foquismo).
Porém, as necessidades pragmáticas e reais surgidas no embate, tomaram uma
direção inusitada até então: a guerrilha
urbana. Esta acabou tornando-se uma regra, no período de 64 a 72; exceção
feita ao trágico episódio do Araguaia (de 72 a 74). É neste sentido que podemos
também inserir dentro desta interpretação da sociedade urbana o Mini-manual do guerrilheiro urbano.
Carlos Marighella, nascido em 1911,
diplomado em engenharia, era filho de um operário italiano com uma mulher negra
natural da Bahia. Ainda quando estudante, Marighella entrou no PCB, fato que o
levou sucessivamente à prisão. Não obstante, chegou a se eleger deputado nos
tempos de legalidade (anistia de 1945) até ser cassado durante o governo de
Eurico Gaspar Dutra. No contexto das denúncias dos crimes de Stalin por
Kruchov, em 1956, a ala stalinista pecebista se recrudesceu ainda mais, sem
contudo encontrar apoio na base do partido e do próprio PCUS; o que a levou a
se aproximar do PCCh (Partido Comunista
Chinês) e, posteriormente, à formação PC do B, em 1962. Adotando então a linha
maoísta, pregava a luta armada via revolução camponesa, em contraposição à via pacifica do PCB. Apesar da dissensão
partidária, Marighella permaneceu no PCB, mas por pouco tempo. Seu temperamento
aguerrido colocava-o frontalmente em desacordo com a insistência do PCB em
atuar ainda no âmbito da política parlamentar e, por conseguinte, formar
alianças com a burguesia nacional. Fato que culminou com sua expulsão. No ano
de 1968, Marighella fundaria a Ação Libertadora Nacional (ALN), dando inicio à
guerrilha urbana. No ano de 1969, foi assassinado pelo Esquadrão da Morte no famoso episódio envolvendo frades
franciscanos, numa emboscada na alameda Casa Branca.
Portanto, a dureza que pode ser lida nas páginas do Manual se explica pela própria dureza do sistema político, como o
próprio Marighela justificou. Na dedicatória do mesmo Manual, escreve aos “heroicos combatentes e guerrilheiros urbanos
que caíram nas mãos dos assassinos da polícia militar, da marinha, da
aeronáutica, e também do DOPS, instrumentos odiados da repressora ditadura
militar” e “aos bravos camaradas – homens e mulheres – aprisionados em
calabouços mediáveis do governo brasileiro e sujeitos a torturas que se igualam
ou superam os horrendos crimes cometidos pelos nazistas”. Não há exagero nenhum
nas palavras de Marighella, o governo militar eliminou sistematicamente toda
forma de oposição interna ao regime, sob o terrorismo institucionalizado do
Estado[14].
Os métodos empregados pelos opressores são bastante conhecidos e seria
redundância descrevê-los aqui[15].
Neste sentido, levando-se em conta a
mudança de conjuntura política, torna-se necessário repensar as novas
estratégias dos “guerrilheiros urbanos” de hoje. Estes – talvez, incorporados
na figura do sem-teto – que reivindicam a centralidade, a urbanidade, de modo
pacífico e não violento, resumido no lema ocupar
e resistir.
Tomemos algumas lições do Manual do
guerrilheiro urbano que podem ser úteis para a concepção teórica e prática
categorial da sociedade urbana:
Na definição do guerrilheiro
urbano podemos extrair algumas qualidades ainda válidas na atuação nas
ruas. A versatilidade:
O guerrilheiro urbano tem que ter a iniciativa, mobilidade, e
flexibilidade, como também versatilidade e um comando para qualquer situação. A
iniciativa é uma qualidade espacialmente indispensável. Nem sempre é possível
se antecipar a tudo, e o guerrilheiro não pode deixar se confundir, ou esperar
por ordens. Seu dever é o de atuar, de encontrar soluções adequadas para cada
problema que encontrar, e não se retirar. É melhor cometer erros atuando a não
fazer nada por medo de cometer erros. Sem a iniciativa não pode haver guerrilha
urbana.
Outras qualidades importantes no guerrilheiro urbano são as seguintes:
que possa caminhar bastante; que seja resistente à fadiga, fome, chuva e calor;
conhecer como se esconder e vigiar, conquistar a arte de ter paciência
ilimitada; manter-se calmo e tranquilo nas piores condições e circunstancias;
nunca deixar pistas ou traços.
O guerrilheiro urbano tem que ter uma grande capacidade de observação,
tem que estar bem informado a respeito de tudo, em particular dos movimentos de
seu inimigo, tem que estar constantemente alerta, procurando, e ter grande
conhecimento sobre a área em que vive, opera, ou através da qual se movimenta.
Lá onde o guerrilheiro urbano caminha
por semanas, meses, anos, pelos meandros escuros da cidade, construída pela
multidão de fantasias operárias... é para lá que anda o guerrilheiro urbano. E
caminhando, tranquilo e calmo, guerrilheiro-poeta, a tempestade não pode
pará-lo, nem a fome, nem os tiros da arma covarde podem apagar seu nome.
Da preparação técnica do guerrilheiro urbano, este deve buscar possuir
uma formação integral, buscando um conhecimento que supere as competências
fragmentárias e a separação da divisão entre trabalho manual e intelectual. O
guerrilheiro urbano deve ter um espacial zelo pelo conhecimento do espaço:
Esta preparação técnica do guerrilheiro urbano baseia-se na sua
preocupação pela preparação física, seu conhecimento e no aprendizado de
profissões e habilidades de todas as classes, particularmente as habilidades
manuais.
Também é importante ter conhecimento de informação topográfica, poder
localizar a posição através de instrumentos ou outros recursos disponíveis,
calcular distancias fazer mapas e planos, desenhar escalas, calcular tempos,
trabalhar com escalonamentos, compasso, etc.
Grupo de fogo
era a denominação dada à linha de frente das organizações clandestinas e
guerrilheiras dos anos 60. Os novos guerrilheiros urbanos devem se organizar em
“grupos de fogo”, tomando um novo
sentido, mas com a mesma determinação e horizontalidade que caracterizam esta
organização descentralizada, como concebia Marighella:
Quando existem tarefas planejadas pelo comando estratégico, estas tarefas
tomam preferência. Mas não há tal coisa com um grupo de fogo sem sua própria
iniciativa. Por esta razão é essencial evitar qualquer rigidez na organização
para permitir uma maior quantidade de iniciativa possível por parte do grupo de
fogo. O velho tipo de hierarquia, o estilo do esquerdista tradicional não
existe em nossa organização.
Portanto, o novo “guerrilheiro
urbano” deve conhecer o terreno, isto
é o espaço urbano. Por isso, as
categorias do espaço devem constituir o repertório de conhecimento e
estratégias urbanas. Sua prática fundamental, do ponto de vista da resistência,
é transformar a cidade num espaço
labirinto:
O melhor aliado do guerrilheiro é o terreno porque o conhece como a palma
de sua mão.
Ter o terreno por aliado significa saber como utilizar suas
irregularidades com inteligência, seus pontos mais altos e baixos, suas curvas,
suas passagens regulares e secretas, áreas abandonadas, terrenos baldios, etc.
(...) Os lugares impenetráveis e os lugares estreitos, as ruas sob construção,
pontos de controle de polícia, zonas militares e ruas fechadas, entradas e
saídas de túneis e aqueles que o inimigo possa bloquear, viadutos que devem ser
cruzados, esquinas controladas pela polícia ou vigiadas, suas luzes e sinais,
tudo isto tem que ser completamente estudado para poder evitar erros fatais.
Nosso problema é o de passar de saber onde e como esconder-nos, deixando
o inimigo confuso em áreas que ele não conhece.
O guerrilheiro urbano familiarizado com o terreno difícil e irregular,
avenidas, ruas, estradas e saídas, esquinas dos centros urbanos, suas passagens
e atalhos, os lotes vazios, suas passagens subterrâneas, seus tubos e sistemas
de esgoto pode cruzar com segurança pelo terreno não familiar para a polícia,
onde podem ser surpreendidos...
Para conhecer o terreno o guerrilheiro pode passar a pé, em bicicleta, em
automóvel, 4X4, ou caminhão e nunca ser apanhado. Atuando em grupos pequenos
com umas quantas pessoas, os guerrilheiros podem se reunir em uma hora em
lugares determinados, prosseguindo o ataque, com novas operações de guerrilha,
ou evadindo o círculo da polícia e desorientando o inimigo com audácia sem
precedente.
É um problema sem solução para a polícia, num terreno tipo labirinto do
guerrilheiro urbano, prender alguém que não pode ver, ou tratar de fazer
contato com alguém que não pode encontrar.
Nossa experiência é que o guerrilheiro urbano ideal é alguém que opera em
sua própria cidade e que conhece completamente a cidade e suas ruas, suas
vizinhanças, seus problemas de trânsito, e outras particularidades.
O guerrilho urbano tem que saber o caminho em detalhe e, neste sentido,
tem que praticar o itinerário antes do tempo de treinamento para evitar
caminhos que não tenham saída, ou acabando em engarrafamentos, ou terminar
paralisado por construções do Departamento de Trânsito.
Da informação.
Todo guerrilheiro urbano deve se misturar à multidão, passando-se assim
despercebido diante dos holofotes do sistema, que busca iluminar intensamente,
classificar, taxar, numerar etc. Deve estar atento a tudo e a todos e ter os
sentidos à flor da pele, não apenas a visão (“racionalizadora”). Portanto, a
visão deve estar aguçada mas todos os sentidos também! Deve ter “ouvido
absoluto”, para ouvir a música infinita da multidão, da melodia de suas
conversas, do tom de suas vozes. Compreender o significado e mesmo a poesia das
narrativas dos sonhos e o ritmo dos desejos nas mensagens imersas e que, ao
mesmo tempo, transcendem o cotidiano. Deve computar todo tipo de informação,
desde as mais banais às mais suspeitas. Sua curiosidade deve ser instigada e
até treinada. Deve vivenciar intensamente o dia a dia, as cores, as luzes, os
sons, toques e cheiros, etc.
O guerrilheiro urbano, vivendo em meio da população e movendo-se entre
eles, tem que prestar atenção a todo tipo de conversação e reações humanas,
aprendendo a esconder seus interesses com grande juízo e destreza.
Em lugares onde as pessoas trabalham, estudam e vivem, é fácil obter todo
tipo de informação de pagamentos, negócios, pontos de vista, opiniões, estado
de mente das pessoas, viagens, interiores de edifícios, oficinas e habitações,
centros de operações etc. A observação, investigação, reconhecimento e
exploração do terreno também são fontes excelentes de informação. O
guerrilheiro urbano nunca vai a nenhum lugar sem prestar atenção e sem
precaução revolucionária, sempre alerta se acontece algo. Olhos e ouvidos
abertos, sentidos alertas, a memória gravada com todo o necessário para agora
ou para o futuro, e para a continuação da atividade do soldado guerrilheiro.
Diante
do repertório conceitual espacial, o guerrilheiro urbano deve saber que a rua
é a esfera política por excelência, e fundamental para a revolução urbana.
E, portanto, é na rua que se efetua a verdadeira política e se efetiva a
verdadeira democracia, direta.
As táticas de rua são usadas para lutar com o inimigo nas ruas,
utilizando a participação das massas contra ele.
Em 1968, os estudantes brasileiros utilizam táticas de rua excelentes
contra as tropas da polícia, tais como marchar pelas ruas contra o trânsito, e
utilizar estilingues e bolas de gude contra a polícia.
Outras táticas de rua consistem na construção de barricadas, atirando
garrafas, tijolos, e outros projéteis desde o telhado de apartamentos e
edifícios de negócios contra a polícia; utilizando edifícios sob construção
para a sua fuga, para esconder-se e para apoiar os ataques de surpresa.
As táticas de rua têm revelado um novo tipo de guerrilheiro urbano, o
guerrilheiro urbano que participa dos protestos em massa. Este é o tipo que
designaremos como guerrilheiro manifestante, que se une à multidão e participa
das marchas populares com fins específicos e definitivos.
A ação direta, como a greve e
sabotagem, não está descartada, ao contrário, é um meio eficaz para alterar a
cotidianidade de forma caótica.
As interrupções de trabalho e estudo, apesar de serem de breve duração,
causam dano severo ao inimigo. É suficiente para eles surgir em pontos
diferentes e em diferentes setores nas mesmas áreas, interrompendo a vida
diária, ocorrendo, sem fim, um dia depois do outro, de forma autenticamente
guerrilheira.
A guerrilha urbana deve pôr em perigo a economia do país, particularmente
seus aspectos financeiros, assim como as redes comerciais domésticas e
estrangeiras, suas mudanças nos sistemas bancários, seu sistema de coleta de
impostos, e outros.
Escritórios públicos, centros de serviços do governo, armazéns do governo
são alvos fáceis para sabotagem.
A respeito dos sistemas de comunicações e de transportes do inimigo,
começando com o tráfego ferroviário, é necessário atacá-los sistematicamente
com armas de sabotagem. (...) A única precaução é a de não causar morte ou
ferimento aos passageiros, especialmente aos que viajam com regularidade nestes
trens suburbanos ou de longa distância.
As rodovias podem ser obstruídas por árvores, veículos estacionados,
valas, deslocação de barreiras por dinamite e pontes destruídas por explosão.
As linhas telefônicas e telegráficas podem ser sistematicamente
destruídas, suas torres serem destruídas, e suas linhas ficarem sem uso algum.
O sigilo e a memória devem ser norma
da ação do guerrilheiro urbano.
Endereços e livros de telefones devem ser destruídos e não se deve
escrever ou guardar papéis; é necessário evitar manter arquivos de nomes legai
ou ilegais, informação biográfica, mapas e planos. Os pontos de contato não se
devem escrever, mas simplesmente memorizá-los.
O guerrilheiro urbano deve fazer sua
as demandas populares, que é a da sociedade
urbana, pois ele não se distingue do povo ou dos Urbanos.
Um dos problemas principais do guerrilheiro é sua identificação com as
causas populares para ganhar o apoio popular.
A rebelião do guerrilheiro urbano e sua persistência na intervenção de
questões políticas é a melhor forma de assegurar o apoio popular na causa que
defendemos. Repetimos e insistimos em repetir: é a melhor forma de assegurar o
apoio popular. Tão pronto uma porção razoável da população começa a levar a
sério a ação do guerrilheiro urbano, seu êxito é garantido.
As pessoas se recusam a colaborar com as autoridades, e o sentimento
geral é o de que o governo é injusto, incapaz de resolver problemas, e recorre
somente a liquidação de seus oponentes.
Ora, do ponto de vista da práxis, hoje estas lições devem ter um sentido mais metafórico do que
real. Elas devem inspirar a construção por parte da sociedade de um mundo mais
justo e melhor, de sociabilidade plena e de vazão de todas a possibilidades
humanas contidas na frase: mudar a vida!
Elas dizem respeito à poièsis e ao
vivido e tem em conta a reivindicação pela sociedade urbana (o urbano), isto é, a realização prática da
forma urbana. Como vimos, o espaço
tornou-se instrumental, lugar das estratégias de segregação. “Desde então, a
estratégia haussmanniana foi estendida e aprofundada (...). A classe operária
foi submetida a manipulações no espaço, pois há uma política do espaço, cada
vez mais atuante, cada vez mais consciente e deliberada” (LEFEBVRE, 2008b, p.
172).
Daqui se podem fazer algumas
inferências: a sociedade urbana pressupõe o fim do Estado e das categorias do
capitalismo. Nas cidades, a mulheres desempenham um papel cada vez mais
relevante. Cada vez mais mulheres assumem uma posição na sociedade outrora
destinada exclusivamente aos homens. Aliás, as mulheres deixam de exercer um
papel coadjuvante para, na sociedade urbana, serem protagonistas. Nos anos 60,
os guerrilheiros urbanos eram de ambos os sexos, de todas as cores, de todas as
raças e etnias, de todas as origens: árabes, judeus, africanos, ameríndios,
orientais, europeus, etc. As diferenças os uniam em torno da humanidade comum a
todos e da luta pela liberdade e igualdade irrestrita. A próxima revolução, a grande
revolução urbana, vai abalar os pilares da ordem cósmica, e terá à frente
Amazonas invencíveis, como no tempo das hordas que atemorizavam a Ásia Menor;
ou ainda as heróicas Valquirias, desobedientes às prerrogativas do implacável
Odim. O arauto, mensageiro do tempo, já anuncia esse novo mundo; as ciências
sociais, novas categorias. Não restará pedra sobre pedra!
Fonte: Fragmento da tese
de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia,
FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de
Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar
bibliografia diretamente na tese.
Posts relacionados:
[1]
Temos à nossa frente um duplo processo
ou, preferencialmente, um processo com dois aspectos: industrialização e
urbanização, crescimento e desenvolvimento, produção econômica e vida social.
Os dois “aspectos” desse processo, inseparáveis, têm uma unidade, e no entanto
o processo é conflitante. Existe, historicamente, um choque violento entre a
realidade urbana e a realidade industrial. Quanto à complexidade do processo,
ela se revela cada vez mais difícil de ser aprendida, tanto mais que a
industria não produz apenas empresas (operários e chefes de empresas), mas sim estabelecimentos diversos, centros
bancários e finaceiros, técnicos e políticos. (LEFEBVRE, 2008, p. 16).
[2] Ao
longo destas peripécias, e embora lentamente esclarecida, nunca desapareceu a
ideia da dupla brecha: através da
política e da crítica da política, para ultrapassar como tal; através da
poesia, do Eros, do símbolo e do imaginário, através da recusa e da mudança
(bem como a da alienação e compreensão do presente). – No espaço, confluem a
brecha objetiva (socioeconômica) e a brecha subjetiva (poética). No espaço
inscrevem-se e, mais ainda, “realizam-se” as diferenças, da menor à extrema.
Desigualmente explorado, desigualmente acessível, eriçado de obstáculos, ele
próprio obstáculo face às iniciativas, modelado por elas, o espaço torna-se o
lugar e o meio das diferenças. A experiência dos conflitos e a do espaço tendem
a coincidir, no caso de tudo o que se afirma e tenta uma “abertura” (brecha),
objetiva ou subjetiva. Este projeto do espaço, obra à escala planetária de uma
dupla atividade produtora e criadora (estética e material), acaso seria o
substituto empírico do sobre-humano, um produto de substituição? Não. Implica
antes a superação (Ueberwinden) à
escala do mundo, capaz de precipitar no abolido os resultados mortos do tempo
histórico. E comporta uma provação concreta, ligada à prática e à totalidade do
possível, segundo o pensamento mais radical de Marx; ligada igualmente à
restituição inteira do sensível e do corpo, em conformidade com a poesia
nietzschiana. Este projeto rejeita para o nada dos resultados mortos o espaço
hegeliano, produção do Estado em que este se instala e desdobra. Obra-produto
da espécie humana, o espaço sai da sombra, como o planeta de um eclipse.
(LEFEBVRE, 1976, pp. 258 e 259).
[3]
Depois de 1948, solidamente assentada sobre a cidade (Paris), a burguesia
francesa possui aí os meios de ação, bancos do Estado, e não apenas residência.
Ora, ela se vê cercada pela classe operária. Os camponeses afluem, entalam-se
ao redor das “barreiras”, das portas, na periferia imediata. Antigos operários
(nas profissões artesanais) e novos proletários penetram até o próprio âmago da
cidade; moram em pardieiros mas também em casas alugadas onde pessoas abastadas
ocupam os andares inferiores e operários, os andares superiores. Nessa
“desordem”, os operários ameaçam os novos ricos, perigo que se torna evidente
nas jornadas de junho de 1848 e que a Comuna confirmará. Elabora-se então uma estratégia de classe que visa ao
remanejamento da cidade, sem relação com sua realidade, com sua vida própria. É
entre 1948 e Haussmann que a vida de Paris atinge sua maior intensidade: não a
“vida parisiense”, mas a vida urbana da capital. Ela entra então para a
literatura, para a poesia, com uma potência e dimensões gigantescas. Mais tarde
isso acabará. (LEFEBVRE, 2008, p. 22)
[4]
Eugène Varlin, operário encadernador, participou da conferencia de Londres da
AIT em 1865 e, na Internacional, foi membro dos mais atuantes e respeitáveis.
Na Comuna foi responsável pela comissão ministerial de finanças e subsistência
e lutou até o fim nas barricadas. Na repressão que se seguiu à Semana sangrenta, Varlin foi preso,
torturado, teve seu corpo arrastado pelas ruas de Paris, e finalmente fuzilado.
[5]
Bakunin escreveria no seu texto sobre a Comuna de Paris, “há jacobinos e
jacobinos”, “jacobinos magnânimos”, “herdeiros da fé democrática de 1793” etc.,
em referência à luta heroica que os “jacobinos” blanquistas empenharam-se em
defesa da Comuna. Os blanquistas, seguidores de Auguste Blanqui, tinham como
referência a Revolução Francesa e o
ano de 1793 (a figura de Babeuf e sua Conspiração dos Iguais), porém, em meados
do no século XIX, muitos se autodenominavam comunistas. “Nas grandes reuniões
públicas no final do final do Segundo Império, os blanquistas eram muito
ativos, principalmente nos salões dos bairros operários do norte e do leste de
Paris. Falando para um público que, não raro, ultrapassava 3 mil pessoas, os
blanquistas se autodenominavam comunistas, criticavam os socialistas pela sua
posição reformista e pregavam a necessidade da tomada do poder político para
implantar a ‘Comuna revolucionária’” (BOITO, 2001, p. 57).
[6]
“Dos 37 milhões de habitantes, mais de 25 milhões eram rurais. As pequenas
empresas eram maioria na indústria. Paris tinha uma população de 2 milhões de
habitantes: a nova divisão administrativa de 1859, os grupava em 20 bairros (arrondissements), com 442 mil operários
em 1866 e 550 mil em 1872. Seu número crescia, e também sua concentração: o
número de patrões diminuiu de 65 mil em 1847 para 39 mil em 1872; a relação
patrão/operário passou de 1:5 em 1847 para 1:14 para 1872: havia empresas com
mais de 5 mil operários. Cail, na metalúrgica, por exemplo, empregava mais de 2
mil operários. Gouin (construção de locomotivas), mais de 1.500, assim como a
Gevelot. A maior parte das empresas da metalurgia, contudo, ocupava de 15 a 50
operários. Nas profissões tradicionais de Paris (têxtil, calçados, artesanato)
predominava a pequena industria artesanal: havia na cidade três grandes casas
de produção de calçados. Na insurreição de março de 1871 as categorias mais
presentes foram a metalurgia, a construção e os jornalistas” (COGGIOLA, 2003,
p. 13). Com relação a certa historiografia, de tendência liberal, que quer
apagar a participação operária e socialista da Comuna, Armando Boito Jr.
escreve: “O órgão que comandou a insurreição de 18 de março de 1871, dando
origem a Comuna de Paris, foi o Comitê Central da Guarda Nacional. Esse comitê
era composto por 38 delegados eleitos nos bairros de Paris, sendo que 21 desses
delegados eram operários; cerca de 20 deles eram filiados à seção francesa da
Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) e às Câmaras Sindicais de
Paris. Além de a maioria de operários havia dez escritores, artistas e
profissionais liberais, três empregados, três pequenos fabricantes e um
rentista. Do ponto de vista de sua composição social, compreende-se que o
Comitê Central da Guarda Nacional tenha proclamado que assumia o poder em nome
do proletariado de Paris” (BOITO, 2001, p. 55).
[7] A
organização político-administrativa baseia-se em certo tipo de federalismo,
exercido por intermédio de ampla democracia direta. Cada localidade – vila e
cidade – tem seu autogoverno e está unida por um contrato. A unidade política é
a Comuna autogovernada, e a nacional
assegurada por uma Convenção nacional. O órgão supremo do Estado é o conselho
da Comuna, eleito por voto universal
e, em caso de não corresponder à confiança neles depositada, seus membros podem
ser destituídos a qualquer momento, por vontade soberana de seus eleitores. A
Nação é a união das Comunas,
representadas por delegados com mandato imperativo, assegurando limites ao
exercício da autoridade do governo central. (COSTA, 1998, p. 72).
[8] O
historiador do movimento operário Claude Willard e associado ao grupo Les Amis de la Commune destaca três
obras da Comuna: a democracia anti-burocrática baseada no sufrágio universal
para todas as funções, no mandato imperativo, isto é, os representantes devem
obedecer decisões tomadas pelos trabalhadores, e no princípio da revogabilidade
(MARTORANO, 2001); na participação expressiva das mulheres; e o desenvolvimento
da cultura e da educação popular. “(...) O segundo aspecto da obra da Comuna,
que possui até hoje grande atualidade, era o lugar ocupado pelas mulheres.
Vimos que elas se colocaram à frente da cena, desde o dia 18 de março. Não
somente as mulheres eram muito ativas nos clubes, mas criaram o primeiro
movimento feminino de massas. A União das Mulheres, dirigida por uma jovem
aristocrata russa de 20 anos, Elizabeth Dmitrieff – que aliás era uma das
poucas comunardas a ter contatos com Marx – agiu aliás pela emancipação das
mulheres. (...) Imaginem bem, os próprios eleitos da Comuna eram impregnados
pelo machismo, como muitos proudhonianos. Mas é o movimento das mulheres, a
ação das mulheres, a democracia direta que levará a Comuna a constituir uma
etapa importante na direção de emancipação das mulheres” (WILLARD, 2001, pp. 19
e 20).
[9] Os
termos são de época: “Esse é o ponto que divide principalmente os socialistas
ou coletivistas revolucionários dos comunistas autoritários, partidários da
iniciativa absoluta do Estado. Seu objetivo é o mesmo: ambos os partidos querem
a igualmente a criação de uma nova ordem social, fundada unicamente na
organização do trabalho coletivo, inevitavelmente imposto a cada um e todos
pela própria força das coisas, sob condições econômicas iguais para todos, e na
apropriação coletiva dos instrumentos de trabalho” (BAKUNIN, 2008, p. 116).
[10]
“Meu velho amigo, Serno, comunicou-me essa parte de tua carta que me concernia.
Perguntas-lhe se eu continuo a ser teu amigo. Sim, mais do que nunca, caro
Marx, porque melhor do que nunca consegui compreender o quanto tinhas razão
seguindo e convidando-nos a todos a trilhar a grande via da revolução
econômica, e criticando (?) aqueles dentre nós que se perderiam nas sendas das
iniciativas nacionais ou exclusivamente políticas. Faço agora o que começaste a
fazer, há mais de vinte anos. Desde o adeus solene e público que dirigi aos
burgueses do Congresso de Berna, não conheço mais outra sociedade, outro meio
senão o mundo dos trabalhadores. Minha pátria, agora, é a Internacional, da
qual és um dos principais fundadores. Vê, pois, caro amigo, que sou teu
discípulo, e orgulho-me de sê-lo. Eis tudo o que era necessário para
explicar-te minhas relações e meus sentimentos pessoais. (...) Teu devotado, M.
Bakunin. Lembranças minhas, rogo-te, à sra. Marx”. Carta de Bakunin endereçada
ao Conselho Geral da Internacional, em Londres, em 22 de dezembro de 1968;
citada por James Guillaume em A
Internacional (vol. 1).
[11] O ensino progrediu com uma rapidez até então
desconhecida. A imensa maioria das coletividades e das municipalidades mais ou
menos socializadas construiu uma ou várias escolas. Cada uma das coletividades
da Federação do Levante tinha sua escola no início de 1938. (LEVAL, 2002, p.
92).
[12]
Declaração de Gil Robles, presidente da Confederação Espanhola das Direitas
Autônomas (CEDA): “Não nos enganemos, o país pode viver sob a monarquia ou sob
a república, sob o presidencialismo ou parlamentarista, sob o comunismo ou o
fascismo, mas não pode viver na anarquia”.
[13]
Essa mudança constituiu uma legítima melhoria em relação à situação anterior,
pois desta vez os operários colhiam, de fato, os frutos de seu trabalho. Mas
essa melhoria, esse estatuto econômico não era socialista nem comunista. Um
capitalista era substituído por um tipo de capitalismo coletivo. Lá onde havia
um único proprietário de fábrica ou de um bar, houve, em seguida, um
proprietário coletivo constituído pelos operários da fábrica, o pessoal do bar.
(SOUCHY, 2002, p. 34).
[14]
Vê-se, por conseguinte, que, já no primeiro semestre de 1968, a extrema direita
militar estava decidida a recorrer a um “plano
diabólico e hediondo” – nas palavras insuspeitas do brigadeiro Eduardo
Gomes – a fim de suprimir os resquícios liberais remanescentes. (...) Consumado
o fechamento ditatorial, não era mais necessário a atuação provocadora das
organizações paramilitares. O terrorismo de direita se oficializou. Tornou-se
terrorismo de Estado, diretamente praticado pelas organizações militares
institucionais. (GORENDER, 1990, p. 152).
[15]
Vejamos o quadro com as informações hoje disponíveis e aproximações calculadas
por baixo: cerca de 50 mil pessoas com passagem pelas prisões por motivos
políticos; cerca de 20 mil pessoas submetidas a torturas físicas também por
motivos políticos; 320 militantes de esquerda mortos pelos órgãos repressivos,
incluindo 144 dados como “desaparecidos”; centenas de baleados em manifestações
públicas, com uma parte incalculável de mortos; 8 mil acusados mais 11 mil
indiciados em 800 processos judiciais por crimes contra a segurança nacional;
centenas de condenações a penas de prisão; 4 condenações a pena de morte; 130
banidos do território nacional; milhares de exilados; 780 cassações de direitos
políticos por dez anos com base em ato institucional; incontáveis reformas,
aposentadorias e demissões do serviço público por atos discricionários.
(Ibidem, p. 235).
Nenhum comentário:
Postar um comentário