sábado, 1 de setembro de 2018

A QUESTÃO DO HABITAR NA GEOGRAFIA URBANA

A QUESTÃO DO HABITAR


por Jean Pires de A. Gonçalves

Morar[1]

Raça de Ferro

Antes não tivesse eu entre os homens da quinta raça,
mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.
Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir; e árduas angústias os deuses lhe darão.
Entretanto a esses males bens estarão misturados.
Também esta raça de homens mortais Zeus destruirá,
no momento em que nascerem com têmporas encanecidas. (...)

(Hesíodo, Trabalhos e dias; trad.: Mary C. N. Lafer)

Talvez, a questão do habitar na filosofia foi tratada mais pontualmente pelo pensador alemão Martin Heidegger em sua confrontação com Nietzsche, no que toca a “abertura no mundo”. Henri Lefebvre também utiliza o conceito. Logo, comecemos por Heidegger[2]. Porém, deixemos de lado, em Heidegger, a questão do ser; ou da verdade, enquanto ocultamento do ser que se desvela em seu sentido mesmo (alétheia); ou do esquecimento do ser etc. Deixamos de lado também, se isto for possível, a curta passagem do filósofo da Floresta Negra pelo NSDAP (partido nazista), algo que, diante de nossas posições políticas, repudiamos veementemente[3]. Deixamos de lado também a hipocrisia de certos oportunistas. O que nos interessa aqui é uma compreensão no âmbito teórico do conceito de habitar. Portanto, o ensaio intitulado Construir, habitar, pensar de Heidegger parece cair como uma luva aos nossos propósitos. Feita estas considerações, como o próprio título do artigo indica, há no texto mencionado uma estreita relação entre os termos “construir”, “habitar” e “pensar”.

Construir e pensar são, cada um a seu modo, indispensáveis para o habitar. Ambos são, no entanto, insuficientes para o habitar se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao outro. Essa escuta só acontece se ambos, construir e pensar, pertencem ao habitar, permanecem em seus limites e sabem que tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício incessante. (HEIDEGGER, 2002, p. 140).

Se há um pertencimento, que não pode ser isolado em contornos separados, de construir e pensar no habitar, logo, habitar, em Heidegger, não se restringe ao sentido vulgar da palavra. Por isso sua afirmação de que “construir não é, em sentido próprio, apenas uma habitação. Construir já é em si mesmo habitar” (ibidem, p. 126). De fato, para o autor, o habitar não significa apenas a habitação, isto é, a casa, pronta e edificada, mas a toda e qualquer construção. Construir envolve relação, com a coisa construída e o que está à sua volta. Esta relação é associada ao cultivo; isto é, ao cultivar: o deixar desabrochar das coisas. De fato, aqui a referência é o campo, à cultura de certos gêneros de vegetais na agricultura; do cultivar subordinado ao tempo cíclico das estações do ano, do clima e dos ritmos inerentes à atividade agrícola. Da presença do agricultor no plantio e na colheita à sua ausência na espera ansiosa e demorada do germinar, do crescer, do frutificar etc. Daí porque Heidegger afirma: habitar é permanecer ou “de-morar-se”. Este “permanecer” é estar junto na espera daquilo que cresce independente e, por isso, é livre. E nesta presença e esperança (espera), Heidegger introduz uma unidade originária (centro da relação) do “ser” na terra, no céu, com os deuses e os mortais, que o filósofo alemão denomina de quadratura[4]. Portanto, habitar é definido por uma centralidade relativa às potencialidades do ser (humano) que ocupa o mundo (natureza)[5]. O que, em última análise, faz do de-morar-se sobre a terra um de-morar nas coisas.

A coisa (thing) ou a coisidade tem lugar privilegiado na obra heideggeriana[6]. Daí seus ensaios sobre um cântaro, ou um par de sapatos de um camponês, uma choupana no campo, um templo grego etc. As coisas ou utensílios possuem relações múltiplas e passíveis de serem apropriadas e compreendidas em seu significado mesmo, de forma que a existência se descobre neste pertencimento afetivo e pessoal. Por isso, não se trata da coisa mercadoria, que o filósofo abomina (principalmente quando esta subsume a obra de arte), mas, da relação viva, originária e autêntica, na realização das possibilidades do “ser” pela coisa (artesanato), a partir do mundo que se ocupa, que é o habitar.

Assim, Heidegger, no texto examinado, serve-se do exemplo de uma ponte. A ponte é uma coisa, ela integra: as margens do rio, a travessia, a terra, o céu, “o brilho peregrino das estrelas”, etc.[7] Da ponte surge um lugar. Dos lugares, espaço. “Coisas, que desse modo são lugares, são coisas que propiciam a cada vez espaços” (ibidem, p. 134). Neste sentido, é particularmente interessante salientar o que acreditamos ser a concepção de espaço, em Heidegger, ao qual, como se pode notar, está estreitamente vinculada ao habitar. Vejamos no próprio Heidegger:

O espaço que percorremos diariamente são ‘arrumados’ pelos lugares, cuja essência se fundamenta nesse tipo de coisa que chamamos de coisas construídas. (...) Sempre atravessamos espaços de maneira que já o temos sobre nós ao longo de toda travessia, uma vez que sempre nos de-moramos junto a lugares próximos e distantes, junto às coisas. (...) A referência do homem aos lugares e através dos lugares aos espaços repousa no habitar. A relação entre homem e espaço nada mais é do que um habitar pensado de maneira essencial. (ibidem, pp. 135-137).

As coisas construídas (lugares) que arrumam o espaço do qual, na travessia, demoramo-nos, constituem uma relação fundamental do habitar. Isto é, as referências de forma, perspectiva, distância, nomes (toponímia), atribuídas às coisas em sua disposição espacial, assentam-se nesta centralidade da existência em sentido essencial (refletir, pensar a existência). A travessia, não é passagem simplesmente, mas viver profundamente um lugar (qualquer lugar). Morar é definido por um constante ausentar e presenciar. Demorar é não ter pressa de viver, é eternizar cada momento, cada minuto, cada segundo; é descobrir que cada instante é precioso e é tudo, e é só o que importa. Esta relação concreta que põe o espaço e o ser humano no habitar (isto é, habitar pensado de maneira essencial), não de maneira estanque, separando-os, numa exterioridade-interioridade, mas por uma vivência, já implica, como se percebe, a noção de produção do espaço.

Produzir tais coisas é construir. Sua essência consiste em corresponder à espécie das coisas. As coisas são lugares que propiciam espaços. Construir é edificar lugares. Por isso, construir é um fundar e articular espaços. Construir é produzir espaço. (...) Assim é que, por produzir coisas como lugares, o construir está mais próximo da essência dos espaços e da proveniência essencial “do” espaço do que toda geometria e matemática. (ibidem, pp. 137 e 138).

Enfim, habitar é construir relações. Para nós, a importância da questão do habitar se mostrou concernente na produção do espaço, que não é entendida como produção de coisas enquanto objeto (impessoal), mas sim de coisas carregadas de sentidos que dão significados à existência. Por isso, a produção do espaço induz a reflexão do pensamento, de um espaço de representações. Neste caso, se tomássemos o “habitar” nos termos aqui expostos, vinculados a um construir e um pensar, e tentássemos transportá-lo ao nosso caso específico, isto é, ao problema da falta de moradia do sem-teto e da especulação imobiliária no centro, esta tentativa fecundaria em indagações sobre o sentido do próprio habitar (sobre nós mesmos). Assim, questionar o problema da falta de moradia já é questionar o habitar, o que o torna digno de pensá-la. Heidegger conclui assim suas meditações neste artigo:

O passo seguinte, nesse sentido, seria perguntar: o que acontece com o habitar nesse nosso tempo que tanto dá a pensar? Fala-se por toda parte e com razão de crise habitacional. E não se fala, mas se põe a mão na massa. Tenta-se suplantar a crise através da criação de conjuntos habitacionais, incentivando-se a construção habitacional mediante um planejamento de toda a questão habitacional. Por mais difícil e angustiante, por mais avassaladora e ameaçadora que seja a falta de habitação, a crise propriamente dita do habitar não se encontra, primordialmente, na falta de habitação. (ibidem, p. 140).


Para Heidegger, portanto, o habitar, inerente ao próprio ser, é um problema ontológico e que, por isso, ultrapassa a Modernidade, que o perverte. A problemática da crise do habitar se coloca e sugere uma busca pela essência do habitar, em aprender habitar. Por isso, em Heidegger, a crise da habitação (o nomadismo, o desenraizamento – da existência) longe de ser um problema, é justamente uma pista, que pode indicar uma solução, pois coloca um questionamento dessa essência (centralidade) perdida e originária, que, ao longo dos séculos, foi esquecida. Solução esta que só advém através da construção a partir do habitar e pensando em sua direção, o que envolve um engajamento e comprometimento ético[8]. Ou seja, pela crise, o habitar é novamente posto em questão pelo pensamento.

E se o desenraizamento do homem fosse precisamente o fato de o homem não pensar de modo algum a crise habitacional propriamente dita como a crise? Tão logo, porém, o homem pensa o desenraizamento, este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar. (ibidem, p. 141).

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Embora bastante pertinente a maneira de como é tratado o tema do habitar, implicando engajamento e compromisso prático e ético, não podemos aceitá-lo totalmente aqui. Não podemos aceitá-lo porque uma ontologia, como vimos, está diametralmente oposta ao conceito do ser genérico, que não tem uma “essência original”. Neste caso, a produção do ser humano inventa historicamente uma essência, sempre móvel e virtual. Mas o conceito de “de-morar” é extremamente importante para nós. E é neste sentido que reconsideramos o texto de Heidegger. Ressaltamos, todavia, algo que nos parece ter sido um pouco negligenciado, mas não omitido, pelo texto do filósofo alemão. O habitar junto às coisas pode ser interpretado equivocadamente, aos desavisados, como reificação. De fato, não é isso; a reificação é justamente a impessoalidade junto à coisa. Porém, gostaríamos de enfatizar mais aqui o sentido de “de-morar-se” entre as pessoas, e até mesmo entre os animais. Isto é, viver eternamente cada instante esta presença. Esse demorar é a amizade e o amor[9]. E é, como diz o filósofo, um cultivar também. E, neste sentido, a amizade e o amor é um deixar crescer, desenvolver, florescer, e é deixar livre. O tempo aqui não é apenas concreto, é precioso. Desta perspectiva, a reivindicação da “casa”, que sempre foi uma demanda conservadora, passa a ser revolucionária, porque coloca o ser humano no centro da questão.

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De certa forma, a cidade transcende a natureza, tem um ritmo próprio (segunda natureza). Claro que às vezes a cidade é acometida por catástrofes naturais geralmente associadas a razões climáticas. Ao mesmo tempo, o impacto ambiental provocado por edificações de concreto, retificações de rios, aterros etc. arruínam o delicado equilíbrio da natureza (eco-sistema de oikos [greg.]: casa, relação; oikia: edificação)[10]. A cidade, talvez, seja a mais antiga conquista da luta da superação humana aos determinismos naturais[11]. O ser humano domina a natureza. Dominar vem de domus, “casa” (casa aristocrática, mais precisamente), entre os latinos (os gregos também denominavam domaton – casa). Os dominus eram caçadores romanos ligados à aristocracia imperial. Metaforicamente, o caçador subjuga a natureza. Construir, edificar, já significa uma superação, dominação (um domínio), uma apropriação das contingências da natureza. Construir já é humanizar; construir a si mesmo. A nossa casa é a terra: é nestes termos que se deve pensar a questão ambiental. A casa deve ser conservada, cuidada.

É possível traçar um paralelo entre habitar e exteriorização, já discutida extensamente em outro lugar. Alguns aspectos devem ser retomados, por exemplo, o corpo; o pressuposto biológico. Quando, por exemplo, um camponês constrói uma cabana, ele exterioriza suas necessidades, seus desejos, suas expectativas (esperanças) e perspectivas nos lugares, no espaço (representações). Deste modo, ele mede, mensura, projeta-se no e pelo corpo sua casa (o seu espelho). A casa é sua representação: presença-ausência. O mesmo vale para um andarilho que faz de seu caminho sem destino sua casa, e o mundo, seu habitar. “Onde quer que eu encoste a minha cabeça, eu vou chamar de meu lar” (Tom Waits).

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Segundo Lefebvre, o habitat reduz às necessidades mais básicas (comer, dormir, reproduzir) o habitar[12], por isso, “foi preciso a reflexão metafilosófica, de Nietzsche e de Heidegger, para tentar a restituição desse sentido: o habitar” (LEFEBVRE, 2004, p. 80). Portanto, transcrevemos esta citação que se segue extraída do livro Revolução urbana para reconstituir o sentido do habitar no urbano, e servindo-se dela para a orientação de nossas reflexões. (A citação é longa mais vale a pena):

Para reencontrar o habitar e seu sentido, para exprimi-los, é preciso utilizar conceitos e categorias capazes de ir aquém do “vivido” do habitante, em direção ao não-conhecido e ao desconhecido da cotidianidade – e aquém, em direção à teoria geral, à filosofia e à metafilosofia. Heidegger assinalou o caminho dessa restituição ao comentar as palavras esquecidas ou incompreendidas de Hölderlin: “O homem habita como poeta”. Isso quer dizer que a relação do “ser humano” com a natureza e com sua própria natureza, com o “ser” e seu próprio ser, reside no habitar, nele se realiza e nele se lê. Em que pese a crítica “poética” do “habitat” e do espaço industrial pode ser considerada como uma crítica de direita, nostálgica, “passadista”, ela não deixou de inaugurar a problemática do espaço. O ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma morada onde vive sem algo a mais (ou a menos) que ele próprio: sua relação com o possível como com o imaginário. A filosofia ia buscar essa relação além ou aquém do “real”, do visível e legível. Ela acreditava encontrá-la numa transcendência ou numa imanência, uma ou outra velada. Basta olhar para que o véu caia. Essa relação reside na morada e no habitar, do templo e dos palácios à choupana do lenhador, à cabana do pastor. A casa e a linguagem são dois aspectos complementares do “ser humano”. Acrescentamos: o discurso e as realidades urbanas, com diferenças e relações, secretas e/ou evidentes. O “ser humano” (não dizemos “o homem”) só pode habitar como poeta. Se não lhe é dado, como oferenda e dom, uma possibilidade de habitar poeticamente ou de inventar uma poesia, ele a fabricará à sua maneira. Mesmo o cotidiano mais irrisório retém um vestígio de grandeza e de poesia espontânea, exceto, talvez, quando não passa de aplicação da publicidade e encarnação do mundo da mercadoria, a troca abolindo o uso, ou o sobredeterminando. (...) Não é menos verdadeiro que essa relação do “ser humano” com o mundo, com a “natureza” e sua própria natureza (com o desejo, com o seu próprio corpo) jamais foi imensa numa miséria tão profunda como sob o reino do habitat e da racionalidade pretensamente “urbanística.” (Ibidem, pp. 81 e 82).

À casa e à linguagem[13], Lefebvre acrescenta a realidade urbana na esfera do habitar. (O ser humano só pode habitar a cidade como poeta). Mas, como vimos, o habitat é a degradação do habitar. O habitat é uma analogia a uma apropriação técnica da natureza feita pela ecologia. Aqui, o ambiente é tido por um frágil equilíbrio dos nexos insubstituíveis de um sistema regido por uma hierarquia expressa na cadeia alimentar. Sem dúvida, a cidade, a partir de um certo período histórico, será produzida sobre este pressuposto: o sistema. Por isso, o habitat nada tem a ver somente com a realidade dos conjuntos habitacionais, mas antes se refere a uma realidade maior, um conceito, isto é, um modo de como toda a cidade é pensada, compreendida e ordenada. Neste sentido, uma racionalidade, pretensamente urbanística, pretende dar conta da dinâmica do conjunto orgânico da cidade, em que, em última instância, é entendida como máquina de morar, ou melhor, cidade do trabalho (Trabantenstadt).

Este último designa um “conceito”, ou melhor, um pseudoconceito caricatural. No final do século XIX, um pensamento (se é possível dizer) urbanístico, tão forte quanto inconscientemente redutor, pôs de lado e literalmente entre parênteses o habitar.  Ele concebeu o habitat, função simplificada, restringindo o “ser humano” a alguns atos elementares: comer, dormir, reproduzir-se. Nem ao menos se pode dizer os atos funcionais elementares sejam animais. A animalidade tem uma espontaneidade mais complexa. (Ibidem, p. 80).

Para que o funcionamento metabólico da cidade transcorra sem desequilíbrios é necessário estabelecer três níveis de articulação e dimensões hierárquicas interagidas formalmente: o nível global (G), o do poder, representado pelo Estado (“ordem distante”); um nível misto (M), a mediação desempenhada pela cidade; e o nível privado (P), o do habitar. O nível global incumbe-se de organizar o meio, a cidade, através de representações (de espaço) e estratégias de intervenção, por meio da planificação e políticas públicas. O nível misto é a cidade, substrato dos arranjos e rearranjos das lógicas de intervenção do nível global. Já o nível privado é o que restou do habitar, mas que, sem articulação com o publico, converte-se em habitat, ou melhor, dormitório. Assim, o conjunto de relações destes três níveis – habitat – caracteriza o espaço institucional do capitalismo.

Esse nível global é o das relações mais gerais, portanto, as mais abstratas e, no entanto, essenciais: mercado de capitais, política do espaço. Ele não deixa de reagir mais e melhor no prático-sensível e no imediato. Esse nível global, ao mesmo tempo social (política) e mental (lógica e estratégia) projeta-se numa parte do domínio edificado: edifícios, monumentos, projetos urbanísticos de grande envergadura, cidades novas. Projeta-se também no domínio não edificado: estrada e autoestradas, organização geral do trânsito e dos transportes, do tecido urbano e dos espaços neutros, preservação da “natureza”, sítios etc. (Ibidem, p. 78).

Portanto, a cidade é projetada tendo por fundo a divisão social de trabalho. Cabe ao Estado dar fluidez, estruturar as trocas e garantir o cumprimento dos contratos. O caos harmônico da vida é deslocado e substituído pela ordem espacial da forma mercadoria. “A grande cidade consagra a desigualdade. Entre a ordem dificilmente suportável do caos sempre ameaçador, o poder, qualquer que seja – o poder de Estado – sempre escolherá a ordem” (Ibidem, p. 89).

Obviamente, as grandes operações urbanas, ou qualquer outro termo que se aplica às políticas implementadas pelo nível G., têm por objetivo dinamizar a fluidez dos capitais. Assim sendo, a elaboração de leis de ocupação do solo, plano diretor, estatuto da cidade, política habitacional etc. devem ser compreendidos dentro destas estratégias do poder sempre comungando aos interesses de mercado. Como vimos anteriormente, o grande paradigma é o autômato. Por isso, a meta do urbanismo é dar respaldo coerente ao substrato material da cidade que se manifesta sem sentido e objetivo. Esta racionalização determinada funciona como uma camisa-de-força.

Como exprimir arquitetural e urbanisticamente essa situação do “ser humano” inacabado e pleno de virtualidades contraditórias? No nível dito o mais elevado, os “objetos” constituem um sistema. Trata-se do nível sócio-lógico. Cada um comunica a cada ação seu sistema de significações, que lhe provém do mundo da mercadoria, do qual ele é o veículo. Cada objeto contamina cada ação, o que é muito exato. Entretanto, esses sistemas não têm o caráter pleno e acabado indicado pela tese de uma lógica do espaço ou da coisa. Em toda parte existem falhas, vazios, lacunas. E conflitos, inclusive os existentes entre as lógicas e as estratégias. (Ibidem, p. 84).

Retomemos agora o conceito de sociedade urbana (esta hipótese: virtual e possível). Se esta hipótese se confirmar, novas categorias estão em formação ou são residuais (potencialmente). Estas contradições latentes vão aparecer cada vez mais como luta pelo espaço. Sem dúvida, luta de classes, mas sob novos referenciais. Todavia, assim como, na história do Ocidente, o feudalismo e o capitalismo não surgiram de um dia para o outro, a sociedade urbana está em fase de gestação. Por isso, as categorias históricas ainda estão presentes e resistirão ao desaparecimento, isto é, como urbanização crítica.

A cidade explode; o urbano se anuncia; a urbanização completa se prepara; e, no entanto, os antigos quadros (instituições e ideologias vinculadas às antigas formas, funções, estruturas) se defendem, adaptam-se às novas situações. O segundo nível (M) pode parecer essencial. Considerá-lo como tal não seria agir no plano teórico como defensor da realidade urbana? E, porém, ele é simplesmente o intermediário (misto) entre a sociedade, o Estado, os poderes e saberes à escala global, as instituições e as ideologias, de um lado, e, de outro, o habitar. Se o global quer reger o local, se a generalidade pretende absorver as particularidades, o nível médio (misto: M), terreno de defesa e ataque, de luta, pode servir. (...) Se a reforma urbana pode assim proceder, um pensamento mais profundo, mais radical, ou seja, que alcance a raiz das coisas, portanto, mais revolucionário, afirma o primado durável do habitar. (Ibidem, p. 87).

*****

De tudo que foi dito, é neste sentido que morar pode ser questionado enquanto obra. E é exatamente esta a questão que se coloca Alexandre Rocha em sua dissertação de mestrado quando formula uma pergunta, título do capítulo: “O morar pode ser obra?”. Feitas as devidas considerações sobre uma sobrecarga de trabalho usada no tempo livre do trabalhador na construção de sua própria casa (autoconstrução), Rocha discerne e considera “uma atividade diferenciada”, empregada à autoconstrução, que não estaria subsumida no trabalho abstrato. Esta atividade diferenciada não é, sobretudo, alienada no sentido estrito do termo, isto é, a casa autoconstruída, a princípio, não entra diretamente no mercado; ela não é expropriada ao trabalhador por meio da coação do dinheiro ou do contrato de trabalho. O ato de construir de cuja prática remete ao habitar ganha significados de apropriação plena nestes momentos, e por isso, quando do término da edificação da casa, sobra tempo para a celebração e a festa. Vejamos:

Mesmo sendo uma coação a exigência do trabalhador usar seus momentos de folga do trabalho alienado para construir sua casa, existe concretamente a possibilidade de uma relação diferenciada nesta atividade. Nos bairros com predomínio de autoconstrução o ato de encher a laje ganhou uma característica de festa, o convite é para uma feijoada (figurativo da massa de concreto). Aliás quando terminada a laje, tem-se a feijoada ou churrasco regado a cerveja, cachaça, samba, truco. O potencial integrador existe, aprimoram-se as relações de vizinhança. São momentos que imperam a solidariedade, que mesmo em um trabalho fisicamente exaustivo o ambiente é de festa. O semblante não é de sofrimento. (...)

Nos ambientes de autoconstrução temos um nível da reprodução que não está totalmente em concordância com a reprodução das relações sociais de produção. Quando o próprio trabalhador assume as tarefas da construção de sua casa, o faz por necessidade. Mas as relações que se estabelecem nas atividades desenvolvidas para suprir esta necessidade, que está no nível da sobrevivência, ultrapassam o nível do trabalho abstrato. Não somente produção. (ROCHA, pp. 85 e 86).

De fato, um artista quando conclui uma obra pode se sentir “realizado”. É bastante comum esta expressão, entre nós, que denota um modo de alcançar um objetivo ou ideal. Isto é, tornar real uma vontade ou uma ideia, um projeto, através de uma realização prática ou de uma coisa (uma pintura, um livro, uma música, uma casa etc.). Diferentemente de um operário na linha de montagem, onde mal participa uma das etapas do processo produtivo, pois sua tarefa consiste a um mínimo de gestos possíveis e o produto final aparece-lhe impessoal (não apropriado e expropriado). Por isso, apesar da sobrecarga de trabalho, o trabalhador vive integralmente a construção de sua habitação, que de alguma forma se realiza e o realiza. Aqui ele não é mais um trabalhador, mas um ser humano comum. Por isso, este construir é um instante, um momento da produção no sentido amplo. Os amigos, a família, os vizinhos, o cachorro, o gato se reúnem em torno da construção. Quando a laje fica pronta, esta vira o salão da festa onde todos vão participar. E na festa, novamente, estão todos lá comemorando: os amigos, a família, os vizinhos, o cachorro, o gato. A presença de todos aqui é imprescindível, insubstituível, importantíssima. Um dia bonito, azul, ensolarado, todos reunidos, sorrindo, cantando, dançando, música de fundo, conversas paralelas, risadas, até o entardecer: sem dúvida, um dia memorável; inesquecível! Aqui a “obra” (como é comum no Brasil se referir a uma reforma ou a uma construção) é arte da vida, seu sentido estético e sublime. Nota-se aqui que a casa (coisa) reuniu as pessoas, integrou a paisagem, constitui os lugares, produziu espaço. Sem dúvida, um momento, de de-morar-se entre as pessoas, os animais e as coisas[14].

Uma constatação está nas relações de vizinhança, percebe-se uma intensidade bem alta de convivência entre os vizinhos: as brincadeiras da criançada, as fofocas e mexericos, a infinidade de relações de solidariedade que se confrontam com as explicações baseadas no isolamento dos indivíduos moradores das grandes cidades. É importante ter clareza que são apenas momentos e que no universo das múltiplas alienações, ao qual o morador da periferia está submetido, estes momentos parecem ínfimos. (Idem, p. 87).

Em nossa pesquisa de mestrado, constatamos que o ato de ocupar um imóvel vago no centro da cidade é também denominado de festa pelos movimentos de moradia. (Os movimentos que ocupam terrenos na periferia também assim o denominam). Frequentemente, estes imóveis não foram destinados ao uso residencial. Por isso, depois de ocupados, os militantes sem-teto constroem seus “barracos” dentro do imóvel. O imóvel ocupado geralmente é batizado de acordo com o logradouro mais representativo e de fácil memorização espacial. Por exemplo, o “Prestes Maia” não é evidentemente uma homenagem ao antigo prefeito da cidade de São Paulo, mas o nome se justiça antes pelo fato do edifício estar situado na avenida Preste Maia. Os exemplos toponímicos são inúmeros: a ocupação da Mauá, da Nove de Julho, do casarão Santos-Dumont, da Rego Freitas etc. No caso do “Prestes Maia”, “objeto” do presente estudo e de nossa dissertação de mestrado, o prédio foi uma fábrica têxtil, há muito desativada, e adquirido, pelos atuais proprietários, num leilão realizado anos 80. O imóvel ficou ocioso durante todo esse período e os proprietários acumularam dívidas com os órgãos públicos que ultrapassam o valor do próprio imóvel. O movimento sem-teto, ao ocupar, dá um significado novo ao imóvel. Imediatamente, os militantes se organizam quase espontaneamente em mutirões e passam a construir suas moradias com tapumes, tábuas e todo tipo de materiais apanhados na rua (shopping-rua). A manutenção, como limpeza e reparo de instalações, é toda feita coletivamente. Não é dado um passo sem que uma questão não seja deliberada em assembleia. O individualismo e a indiferença tão comum no dito fenômeno urbano, aqui não é possível. Por isso um dos lemas destes movimentos é “Ocupar, Resistir, Construir, Morar”[15]. Além do mais emblemático: “Quem não luta morre!”; que pode ser interpretado em sua positividade, como um dizer sim à vida. Sem dúvida, poder-se-ia dizer até que os sem-teto intuíram na prática, no vivido, o conceito de habitar, conforme vimos acima.

Portanto, se a propriedade privada (coisa abstrata, reificada) é diametralmente oposta ao habitar (construir, integrando, vivenciando) e se, como ensina Heidegger (2007), para Nietzsche a arte é a figura mais transparente e conhecida da vontade de poder, então, o morar, que inverte a representação vazia da propriedade privada num dizer sim à vida, que confere e cria formas, então o morar pode ser obra.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.

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A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia




[1] A redação desta seção foi sugestão do próprio professor Alexandre Rocha em nosso exame de qualificação desta presente pesquisa.
[2] Aqui também devemos especial agradecimento a Felipe Catalani pelas indicações dos textos de Heidegger.
[3] É importante recordar que Heidegger influenciou pensadores que jamais poderiam ser associados ao nazismo, como Sartre e Foucault, entre outros.
[4] Quando evocamos terra, céu, deuses e mortais, Heidegger nos alerta que eles constituem uma unidade originária que traduz o habitar que não nos permite pensar um sem o outro. Eles constituem juntos, em resguardo, e crescem entregues ao seu vigor. Com essa visão começamos a compreender como o construir pertence ao habitar, já que só é possível construir quando deixamos as coisas ganharem a sua essência, que se revela em uma demora junto às coisas. Demorar juntos às coisas é permitir que elas aconteçam em seu vigor, demorar está relacionado a uma paragem - lugar para se realizar este encontro. O encontro só pode acontecer mediante o respeito às quatro faces: terra, céu, deuses, mortais. Respeito que se traduz na obediência ao ritmo próprio das coisas e isto acontece quando se resguarda a quadratura, ou seja, as coisas quando entregues ao seu vigor de essência se encontrando na sua unidade originária. A quadratura revela o momento e a hora em que as coisas ficam livres ao seu próprio vigor. Vigor este, que revela aridez da terra que resguarda as estações do ano a espera da chuva que só o céu pode oferecer. Deste modo o homem pode arar, plantar, esperar nascer e agradecer o divino pela colheita. (JESUS, 2007, pp. 5 e 6).
[5] É bastante interessante notar a semelhança deste conceito de quadratura com a meta da união em si do céu (pai), da terra (mãe), do ser humano (irmãos) e das coisas (companheiros) proferida pelo confucionismo na busca da perfeição.
[6] É interessante notar que um filósofo tão diferente como Theodor W. Adorno, avesso a qualquer ontologia, também conceda uma grande importância à relação humana e as coisas. No texto aqui já mencionado, Sobre sujeito e objeto, Adorno escreve: “O atual é tão vergonhoso porque trai o melhor, o potencial de um entendimento entre homens e coisas, para entregá-lo à comunicação entre sujeitos, conforme os requerimentos da razão subjetiva”.
[7] A ponte permite o seu curso ao mesmo tempo em que preserva, para os mortais, um caminho para sua trajetória e caminhada de terra em terra. A ponte da cidade conduz dos domínios do castelo para a praça da catedral. A ponte sobre o rio, surgindo da paisagem, dá passagem aos carros e aos meios de transporte para as aldeias dos arredores. Sobre o curso quase inaparente do rio, a antiga ponte de pedra leva, dos campos para a aldeia, o carro com a colheita, transporta o carregamento de madeira da estrada de terra para a rodovia. (...) Enquanto passagem transbordante para o divino, a ponte cumpre uma reunião integradora. O divino está sempre vigorando, quer considerado como propriedade e pensado como visível gratidão na figura de um santo padroeiro, quer desconsiderado ou mesmo renegado. (HEIDEGGER, 2002, p. 132).
[8] Entre as partes que, num processo normal, continuarão sempre a exercer, num nível pré-reflexivo, estas funções protetivas, sustentadoras, acolhedoras, que oferecem renovadamente a “quietude do centro”, ressaltamos as moradas, sejam as casas materiais, de madeira, pedra, tijolos ou mesmo papelão, sejam moradas simbólicas proporcionadas pelo ethos. Uma ética, na verdade, institui uma troca regulada de afetos e obrigações recíprocas entre indivíduos. É esta reciprocidade que permite que cada um possa, dentro de certos limites, confiar com a presença de alguns outros em maior ou menor número, como self-objetos em circunstâncias. Mais que isso, a reflexidade implicada nas éticas, ou seja, as relações de si para consigo, fazem com que as partes de um indivíduo possam assumir com alguma autonomia e diante dele mesmo certas funções antes exercidas pelos outros. Poderíamos dizer, então, que o sujeito ético pode desenvolver a capacidade de manter e, numa certa medida, edificar sua própria morada com relativa independência. (FIGUEIREDO, 1995, pp. 143 e 144).
[9] Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual ao igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é. (...) Digo ao senhor: nem em Diadorim mesmo eu não firmava o pensar. Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. Gostava e não gostava. Sei, sei, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáteis, em amizade de amor. (João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas).
[10] É interessante tomar nota que Aristóteles, em sua Política, distingue a riqueza doméstica (economia), natural e que se aplica à administração das necessidades cotidianas e do acúmulo limitado de bens e materiais destinados a manutenção da família e, por conseguinte, da Cidade, da crematística (troca de dinheiro), ou seja, do acúmulo ilimitado de riqueza pelo comércio e usura, o que, entre nós, vulgarmente passou a ser denominado de economia. Em razão desta distinção, Aristóteles pôde escrever: “Iniciemos o exame da questão com a seguinte consideração: cada coisa que possuímos tem dois usos. Ambos estes usos pertencem à coisa, mas não da mesma maneira, pois um é próprio, conforme a sua destinação, e o outro é impróprio ou desviado para algum outro fim. Por exemplo, o sapato pode ser usado para ser calçado ou pode ser usado para ser vendido; no segundo caso, não é o seu uso próprio, pois ele não foi feito para servir ao comércio. O mesmo se dá com as outras coisas que se tem: não foram feitas pela natureza para o comércio, entretanto, foram levadas a isso circunstancialmente, em razão de alguns homens possuírem mais e outros menos as coisas que são necessárias à vida” (ARISTÓTELES, 2006, p. 68).
[11] Apenas para situar o tema na geografia, vale a pena mencionar dois geógrafos contemporâneos tão díspares como Friedrich Ratzel e Piotr Kropotkin. “A necessidade de habitação é de natureza tão simples que em qualquer época estabeleceu entre o homem e o solo as mesmas relações. (...) Quanto mais sólido se torna o vínculo através do qual a alimentação e a moradia prendem a sociedade ao solo, tanto mais se impõe à sociedade de manter a propriedade e seu território. Diante desse último a tarefa do Estado continua sendo em última análise apenas uma: a da proteção. O Estado protege o território contra as violações vindas de fora, que poderiam reduzi-lo” (RATZEL, 1990, pp. 74-76). E Kropotkin: “A casa não foi edificada pelo proprietário. Quem a construiu, quem decorou e atapetou não foi o proprietário: foram centenas de trabalhadores que a fome impeliu para as oficinas e que a necessidade de viver obrigou a aceitar um salário limitado” (KROPOTKIN, 1975, p.102).
[12] Il y a d’autres aspects de ce processus et d’autres points critiques. L’habiter, acte social et cependant poétique, générateur de poésie et oeuvres, disparaît devant l’habitat, fonction économique. (LEFEBVRE, 1981, p. 94).
[13] Qual a relação essencial que se estabelece entre o construir e o habitar? Para pensar tal relação, temos que investigar onde ela se manifesta que para Heidegger é na linguagem. (...) Segundo Heidegger a palavra construir (bauen), se pensada a partir da linguagem, significa habitar. O habitar a partir do construir não se restringe a somente possuir uma residência, mas é a própria condição em que o homem se encontra no mundo. Esta condição do homem é compreendida por ele como um cultivo, resguardo. (JESUS, 2007, pp. 1-4).

[14] Aliás, “casar”, aliança, união, é constituir casa.
[15] Análogo ao lema do MST é “Ocupar, Resistir, Produzir”.



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