terça-feira, 1 de maio de 2018

ALIENAÇÃO (PARTE 1): O TRABALHO ALIENADO


O trabalho alienado


por Jean Pires de A. Gonçalves

Vimos mais acima, no exame dos textos de Kurz: se somente as categorias da modernidade são perfeitamente discerníveis, pois são inerentes à consciência fetichista, então a sociedade do fetiche moderno é a mais transparente de todas as outras que a precederam até agora [primeira aporia]; e se toda atividade como abstração real subordinada ao capital (ou à representação do fetiche moderno) é trabalho abstrato, então não cabe rigorosamente o termo trabalho (tanto no sentido da palavra como do conceito). E se, da mesma forma, trabalho é hipostasiado enquanto categoria da consciência fetichista desconectada da prática real (abstração de dispêndio de energia), então não cabe tampouco o conceito de trabalho, porque é apenas uma figura de linguagem. Esta é a segunda aporia que se encontra na crítica categorial, à qual faz do conceito de trabalho estranho ao próprio conceito.

Como se desembaraçar desta aporia?

(...) Marx mostra como o conceito de trabalho (social) só poderia nascer e ser formulado em certas condições históricas. Seria preciso que a divisão do trabalho houvesse atingido alto grau e que os trabalhos parcelares constituíssem, praticamente, um vasto conjunto, a saber o próprio trabalho social. Anteriormente, os homens (escravos, camponeses, artesões) trabalhavam. Mas, não se sabia disso, não se levava isso em conta na filosofia e nos discursos sobre o homem. As primeiras invenções de máquinas (e não apenas de utensílios) deixam entrever, ao mesmo tempo, a longínqua possibilidade de uma emancipação do homem em relação ao trabalho, do qual a máquina se incumbiria. O conceito de trabalho acompanhou as premissas do não-trabalho (LEFEBVRE, 1967, p. 104).

O caráter histórico e dialético do trabalho supõe e pressupõe seu contrário. O trabalho enquanto atividade humana pode se manifestar num sentido extremamente genérico: o trabalho de um escultor, de um artista, por exemplo. O trabalho exclusivamente em sentido econômico fragmenta sua totalidade. É neste sentido que um modo toma o lugar do “ser”; uma parte, do todo (metonímia). Neste sentido, o que se quer demonstrar nesta seção é como o trabalho se defronta contraditoriamente em relação ao capital (trabalho morto).

*****

Não é incomum em diversas situações do cotidiano ouvirmos alguém dizer: “fulano de tal é alienado”. Embora não seja uma expressão usual, a palavra alienação tampouco está restrita a um círculo de eruditos ou especialistas. O significado literal da palavra é simplesmente alheio, e num sentido lato, ceder, transferir, alucinar. No repertório jurídico, alienação é venda ou cessão de um direito ou bem. A partir do século XVI, o termo designava loucura; pressupunha-se um estado patológico: “desordem ou perturbação mental”. Identificavam-se no comportamento individual manifestações excêntricas ou um alheiamento não só da realidade objetiva exterior ao indivíduo, mas de seu próprio “ego”: o lunático fora de si. O conto “O alienista”, do grande literato brasileiro Machado de Assis, dá uma ideia bem humorada desse sentido. No conto, Simão Bacamarte é um alienista (hoje psicólogo, psiquiatra, assistente social etc.) que ao chegar à cidadezinha de Itaguaí, carregando consigo as mais altas aspirações libertadoras do “homem da ciência moderna”, passa a examinar compulsivamente todos os habitantes da cidade. Após constatar desvios de conduta em todos eles, toma a drástica decisão de interná-los um a um no manicômio municipal. Mas é no desfecho da trama que se dá uma surpreendente reviravolta. Sendo o protagonista da história o único “normal” da cidade, sua normalidade não podia ser normal (pois estava fora da média). Assim, Bacamarte deduz sensatamente que, num mundo de alienados, sua própria lucidez era loucura e, por isso, depois de libertar todos os seus pacientes, toma a sábia decisão de internar ele mesmo no hospício, encerrando assim o conto. (Machado de Assis já fazia crítica dialética do iluminismo!).

Num outro sentido, mais atual e corriqueiro, o termo alienação também é sinônimo de inconsciência política. O que a princípio deve ser uma forma de falsa consciência ou indiferença a assuntos políticos inerentes ao ser social (como no poema de Bertold Brecht, “O analfabeto político”). O termo se difundiu principalmente pelas correntes políticas de esquerda, que vulgarizaram o sentido de alienação em Marx, e, com base nela, se auto-intitularam libertadores do povo inconsciente das trevas do capitalismo. Para tanto, imbuídos das mais atas aspirações do socialismo científico, fundaram um partido de vanguarda que submetia seus epígonos a uma rígida disciplina e uma hierarquia que devia ser obedecida cegamente. O desfecho desta história? É por demais conhecido...

Feita esta pequena introdução ilustrativa, sobre alguns aspetos distintos da palavra alienação, avisamos que evidentemente não faremos aqui uma discussão do conceito de alienação na história da filosofia, onde o tema é recorrente, desde Rousseau, Hegel, Feuerbach e tantos outros. O que nos interessa é o sentido de alienação em Marx e, principalmente, nos seus Manuscritos econômico-filosóficos (1844); pois diz respeito à negatividade do trabalho no capitalismo. Logo de início, de nossa leitura de os Manuscritos, encontramos, porém, um problema suscitado pela tradução da palavra alemã alienação, que, dentre outros vocábulos menos usuais, oscila entre os termos Entfremdung e Entäusserung. O problema surgiu, para nós, recentemente com a tradução quase textual dos Manuscritos econômico-filosóficos por Jesus Ranieri (2004). Ranieri deteve-se cuidadosamente nestes termos distintos que até então eram traduzidos para a língua portuguesa somente por alienação. O tradutor e comentador expõe o problema assim:

Tentei ser o mais fiel possível ao texto original, procurando garantir a permanência de expressões coloquiais, assim como (bem mais difícil) daqueles termos que denotam o vínculo intelectual de Marx com o idealismo alemão, principalmente com a filosofia de Hegel. (...) Em primeiro lugar, é preciso destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no sistema de Marx (MARX, 2008, p. 15, os grifos são nossos).

Não ficamos muito satisfeitos com a interpretação dos termos de alienação em Ranieri, e resolvemos nós mesmos debruçar sobre o problema.

Segundo a nossa leitura dos “Manuscritos de 1844”, da edição traduzida pelo mesmo Ranieri, realizada em grupo, como já foi explicitado em nota na apresentação desta pesquisa, para nós a distinção dos termos Entäusserung e Entfremdung não é tão marcante a ponto de “ocuparem lugares distintos” mas dignas de observação e atenção. Ambos os termos se tocam reciprocamente, o que, porventura, não é, a nosso ver, incorreto do ponto de vista da língua vernácula designar a palavra por alienação somente, como comumente se fez até então, desde que a referida distinção seja levada em conta o tempo todo em sua relação dialética. Deste modo, a análise dos termos é indispensável, ou seja, do que se quer tratar e se mencionar, para, em seguida, reabilitar o termo vulgar. Por isso, o exame do sentido da palavra obrigou-nos a tarefa de consultar colegas que estudam a língua alemã[1] e mesmo dicionários (algo que gostamos muito de fazer)[2], antes de abordar diretamente o assunto.

Evidentemente, os Manuscritos, considerados um livro filosófico de Marx, são tributários do debate em torno da obra de Hegel, e daí a relevância da alienação, haja vista que o conceito ocupa lugar central na obra deste filósofo. Michael Inwood, em seu “Dicionário Hegel”, inicia o verbete “alienação”, sobre o dilaceramento da consciência, do seguinte modo: Hegel usa duas palavras para “alienação”...

1. Entfremdung corresponde a entfremden (“alhear”), de fremd (“alheio”). No Alto-Alemão médio (isto é, dos séculos XII a XV), referia-se a tomar ou roubar os bens de uma pessoa e também à alienação mental, especialmente o coma ou estupor. Mas passou mais tarde a indicar, primordialmente, o estranhamento ou a desavença entre pessoas. 2. Entäusserung corresponde a entäussern, “tornar exterior ou externo (ausser)[3]”, e significa “renúncia” ou “despojamento”. (Hegel usa Entäusserung, mas não Entfremdung, para se referir à alienação, isto é, ao ato de despojamento voluntário dos próprios bens). Outras palavras na mesma área são: Entzweiung (de zwei, “dois”), “bifurcação”, “desunião”; Zerrissenheit (de zerreissen, “rasgar, dilacerar, desmembrar, desligar”), “desmembramento”, “desconjuntura”; Zwiespalt (também de zwei), “discórdia”, “conflito”, “discrepância”; Diremtion; e Trennung, “separação” (de trennen, “separar”). (...) Hegel não usa a palavra Entfremdung antes da “Fenomenologia do Espírito”, mas vários de seus escritos anteriores prenunciam seus pontos de vista posteriores. (...) A alienação é descrita e de forma sumamente vigorosa na “Fenomenologia do Espírito” mas tanto as palavras quanto as ideias são importantes em obras posteriores de Hegel. Entretanto, a sua importância e até a sua presença foram virtualmente ignoradas pelos estudiosos de Hegel antes do aparecimento das análises de Marx de Entfremdung e Entäusserung em seus “Manuscritos filosóficos” de 1844, mas publicado primeiro em alemão em 1932, e inglês em 1959. (INWOOD, 1997, pp. 45-47).

Feita esta consideração, dá para se ter uma ideia da relação estreita dos termos colocados e da dimensão do problema em se verter palavras de uma língua estrangeira (germânica) para uma outra (latina). Entretanto, a tarefa não é impossível.

A palavra portuguesa alienação parece conter os dois sentidos, o de Entäusserung como o de Entfremdung, isto é, tanto de “sessão de”, “despojamento”, como também “arroubamento de espírito”, “alheamento”, “indiferença”, “estranheza”, etc. Mas a distinção é, em se tratando de um estudo conceitual, necessária sim, pois, descreve momentos dialéticos ou a passagem de um termo no outro e vice-versa. A partir disso, estabeleceremos aqui a seguinte definição: Entäusserung, isto é, expressão (sair, pressão para fora); produção significativa que tende a deformar ou exagerar a realidade (transformação). E Entfremdung: estranhamento (esquecimento), ou melhor, aquilo que é diferente, que foi tirado (arrancado, roubado), esquecido como seu e, portanto, tornou-se estranhamente hostil. Neste sentido, tudo que se expressa em um meio externo é de certa forma estranho; diferente daquele interior que saiu num e por um outro, que impressiona. Partindo-se disso, é possível refletir, sociologicamente, sobre uma determinada manifestação humana que se expressa ou produz algo, que lhe é estranho – o interior que ao se tornar interior num objeto externo torna-se outro, portanto, diferente. Mas que, num momento posterior, impressiona e é reconhecido como próprio – interior-exterior –, isto é, re-apropriado, interiormente. Já o estranhamento, ou melhor, o esquecimento, é quando algo que sai de si não retorna, ou não é re-apropriado novamente, mas aparece (e parece) totalmente desconhecido e hostil. Consideremos um exemplo: uma cadeira é um objeto produzido por mãos humanas; ela tem uma forma – forma humana –, pois, ela é feita para sentar, mitigar o cansaço; ela tem uma estrutura, pode ser feita de madeira, plástico etc. (material estranho ao corpo humano); e ela tem uma função, quando cumpre a finalidade de aliviar o cansaço: ela é re-apropriada. Todavia, se a cadeira, por ventura, não cumpre os fins de sua forma, quaisquer que sejam eles, ela se torna totalmente estranha, desconhecida e mesmo hostil, ainda que intimamente possua a forma humana. O que a torna algo estranho (seu Eu objetivado), ameaçador: um inimigo de si mesmo. Esta é uma questão que nos propomos tentar responder através dos Manuscritos:

O homem só não se perde em seu objeto se este vem a ser como objeto humano ou homem objetivo. Isto só é possível na medida em que ele vem a ser objeto social para ele, em que ele próprio se torna ser social (gesellschaftliches Wesen), assim como a sociedade se torna ser (Wesen) para ele nesse objeto (MARX, 2008, p. 108).

Distinguindo-se o ser social do ser natural, lemos: o homem só não se perde em seu objeto se este vem a ser objeto humano (...). O que significa perder-se em seu objeto? Perder este objeto que não é senão aquele que perdeu: perder-se a si mesmo e em si mesmo. Contudo, o objeto é reencontrado se vem a ser objeto humano ou homem objetivado. Se retomarmos o exemplo da cadeira, diríamos que ela é objeto humano ou homem objetivado re-encontrado. Neste sentido, os termos hegelianos de alienação são retomados por Marx nos Manuscritos num sentido antropológico, porém, sem abandonar a dialética. O pensamento dialético é fundamental aqui. Nos Manuscritos, Marx indaga diante do problema lançado pelo idealismo objetivo: “o que fazer diante da dialética hegeliana?”.

A grandeza da fenomenologia hegeliana e de seu resultado final – a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e garador – é que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como processo, a objetivação (Vergegenständlichung) como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização (Entäusserung) e supra-sunção (Aufhebung) dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como resultado de seu próprio trabalho (ibidem, p. 123).

Marx reconhece a grandeza da obra de Hegel (Fenomenologia do espírito) e de sua ideia da constituição do humano pela própria atividade humana, isto é, o sentido já tantas vezes referido aqui de produção ampla. É por sua própria atividade (“essência do trabalho”) em relação à natureza (o mundo) que o ser humano se constitui objetivamente. Todavia, a “essência do trabalho” em Hegel é a do trabalho da consciência que se exterioriza num mundo estranho a si e o reencontra como consciência-de-si. Portanto, a atividade, em Hegel, se dá apenas no plano do pensamento, nas palavras de Marx, ao “homem enquanto egoísta abstrato” (Ibidem, p.125); isto é, somente subjetivamente. Todavia, Hegel abstrai de tal atividade que ela é realizada por um ser objetivo em relação a uma realidade objetiva, o que vale dizer que “um ser não-objetivo é um não-ser” (Ibidem, p. 127).

Quando ele [Hegel] apreendeu, por exemplo, a riqueza, o poder de Estado etc. como a essência estranha da essência humana, isto acontece somente na sua forma de pensamento.... O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual (ibidem, pp. 121-124).

Neste sentido, para Marx, o reconhecimento humano pela consciência, em Hegel, é, na verdade, uma alienação absurda (estranhamento hostil), pois concilia de modo absoluto toda a contradição objetiva (social, natural, do mundo) no e pelo pensamento racional.

A objetividade enquanto tal vale por uma relação estranha do homem, [relação] não correspondente à essência humana, à consciência-de-si. A reapropriação da essência objetiva do homem, produzida enquanto [algo] estranho sob a determinação do estranhamento, tem assim não somente o significado de supra-sumir (aufheben) o estranhamento, mas [também] a objetividade, ou seja, dessa maneira o homem vale como uma essência não-objetiva, espiritualista (pp. 124 e 125). (...) Já vimos: a apropriação do ser objetivo ou a supra-sunção[4] da objetividade sob a determinação do estranhamento – que tem de ir da estranheza (Fremdheit) desinteressada até o efetivo estranhamento hostil – tem para Hegel, ao mesmo tempo e até principalmente, a significação de supra-sumir a objetividade, pois não é o caráter determinado do objeto, mas sim seu caráter objetivo que constitui, para a consciência-de-si, o escandaloso (Anstössige) e o estranhamento (ibidem, p. 129).

Tal conciliação de toda exteriorização de suas forças objetivas pela consciência, para os indivíduos sociais (ou para Hegel, consciência-de-si), se efetiva na sociedade civil na e pela forma do Estado[5]. “O homem que conheceu levar no direito, na política etc., uma vida exteriorizada, leva nesta vida exteriorizada, enquanto tal, sua verdadeira [vida] humana” (ibidem, p. 130). Marx, por outro lado, vai demonstrar que não há conciliação pelo pensamento nem pelo Estado, mas, ao contrário, que tanto um como outro dissimulam as diferenças e contradições reais, objetivas, que não se resolvem na esfera abstrata e ideal da autoconsciência[6]. Porém, tal desenvolvimento da lógica dialética guiará o método materialista de Marx, na sua famosa (des)inversão do “mundo invertido” de Hegel. Marx não poderia ser mais claro em seu projeto como mostra esta passagem abaixo:

O supra-sumir como movimento objetivo retomando de volta em si a exteriorização (Entäusserung), expresso no interior do estranhamento, da apropriação do ser (Wesen) objetivo mediante a supra-sunção de seu estranhamento, o juízo estranhado na objetivação efetiva do homem, na apropriação efetiva de seu ser objetivo mediante a eliminação da determinação estranhada do mundo objetivo, mediante sua supra-sunção na sua existência (Dasein) estranhada, (...). (ibidem, p. 132).

O centro do processo sai da consciência e recai no corpo. E daí Marx pode realizar a sua crítica do sujeito. Ora, a atividade no mundo não se procede por meio de uma atividade pura da consciência racional, mas, ao contrário, pelo manifestar (Entäusserung e Entfremdung) dos sentidos humanos, enquanto atividade de um ser natural objetivo, em sua prática social que produz sua própria realidade objetiva:

Quando o homem efetivo, corpóreo, com os pés bem firmes sobre a terra, aspirando e expirando suas forças naturais, assente suas forças essenciais objetivas e efetivas como objetos estranhos mediante sua exteriorização (Entäusserung), este [ato de] assentar não é sujeito; é a subjetividade das forças essenciais objetivas, cuja ação, por isso, tem também que ser objetiva. O ser objetivo atua objetivamente e não atuaria objetivamente se o objetivo (Gergenständliche) não estivesse posto em sua determinação essencial. Ele cria, assenta apenas objetos, porque ele é assentado mediante esses objetos, porque é, desde a origem, natureza (weil es Von Haus aus Natur ist). No ato de assentar não baixa, pois, de sua “pura atividade” a um criar do objeto, sua atividade enquanto atividade de um ser natural objetivo. (ibidem, p. 127).

Proposta de debate: tomando o que foi dito acima, alienação não pode ser entendida como necessária, num sentido psicológico, à consciência (dilacerada); dilaceramento este que também estaria presente em todas as sociedades humanas. Pois, a alienação não se dá primeiro no plano da consciência; mas, da vida (concreta). Portanto, a alienação é objetiva, e pode e deve ser suprimida; pois o que se visa suprimir é o estranhamento da exteriorização, ou seja, o caráter peregrino da essência humana, que não retorna de sua jornada, porque nunca saiu daqui, mas que, forasteiro de um país inimigo, escraviza-se na sua própria essência. Dito de outro modo, quando ela (essência), por não ser reconhecida essencialmente, torna-se inumana. Contudo, como escapar de uma interpretação ontológica da alienação, do “ser” ou da “essência”? Da seguinte maneira, destronando o ser da posição central que ocupa na ordem do pensamento filosófico, e instituir o corpo, em seu vir-a-ser[7], neste lugar privilegiado, cuja implicação disto é a própria superação dos pressupostos da filosofia (mente e corpo) e mesmo das ciências parcelares: divisão do trabalho (intelectual e manual). Ou seja, não há uma essência humana pré-fabricada, perdida e esquecida num passado distante, mas o “esquecimento” das virtualidades humanas, de seu ser genérico, multilateral. O caráter errante da essência humana perdida é, na verdade, a privação de todas as potencialidades do corpo. Esta essência, entretanto, não é imanente, genética. Mas, ao contrário, ela se constitui na prática e se realiza exteriormente, no mundo das coisas, seu espelho. Neste sentido, alienação é sempre alienação do possível.

Antes de prosseguirmos, esclarecemos também que seguiremos a orientação teórica de István Mészáros (2007). Segundo Mészáros, o conceito de trabalho alienado foi a “grande descoberta histórica” do Marx dos Manuscritos e que vai atravessar toda a sua obra, como conceito fundamental, enquanto denominador comum de desdobradas outras formas de alienação no capitalismo[8].

Vejamos então o desenrolar dos conceitos de exteriorização (Etäusserung) e estranhamento (Enfremdung) nos Manuscritos. Se, antes, os pressupostos defendidos aqui forem aceitos, a acepção pejorativa de alienação tem mais a ver com o sentido de estranhamento (hostil), em si, do que com exteriorização, propriamente dita, ainda que os termos não se excluam mutuamente. A relação exteriorização-estranhamento é, portanto, um processo (natural) de objetivação e constituição do ser humano, por meio de suas obras ou produtos[9]. Há aí um certo estranhamento na produção de uma “essência” humana através de um outro exterior que é esta essência – “a humanidade da natureza e da natureza criada pela história” (p. 122). Assim sendo, esse outro-de-si-mesmo constitui historicamente as sociedades humanas (segunda natureza), em suas várias formas. O estranhamento causado por este outro-de-si-mesmo é re-apropriado na vida produtiva (em sentido amplo) e reconhecido na produção da consciência que afirma e preserva a vida. Por isso, dominar, controlar ou conhecer a natureza em seu estado caótico, contingente, é pressuposto da liberdade, próprio do ser humano, que Marx denomina de ser genérico[10]. “A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem” (MARX, 2008, p. 84). A objetivação da atividade vital (prático-sensível), através da expressão do ser genérico num outro, pode ser designada por trabalho, enquanto pressuposto, no sentido de uma atividade que suprime carências naturais (carência de estética, de beleza, por exemplo)[11]. Por isso, esta supressão converte necessidade em liberdade[12]; natureza em humanidade. Este “exprimir-se num e por um outro”, que, como num espelho, é seu reflexo, pode ser denominado de trabalho; lembrando-se que a linguagem não é uma transparência – uma coisa pode ter muitos nomes e um nome pode designar muitas coisas – o que não quer dizer que não tenha uma eficácia real. É por meio deste opaco que se constitui o conhecimento (transparência). De fato, como já se assinalou, trabalho não tem unicamente um sentido econômico, stricto sensu. Trabalho aqui não é ainda trabalho alienado; posto enquanto categoria econômica (na forma de mercadoria), ou seja, separado (estranho e hostil) do produtor, na figura do trabalho abstrato (social) e do trabalhador, mas apenas uma das inúmeras manifestações humanas; um modo de expressar sua força vital objetivamente. O ser humano se constitui, se autoproduz – ou melhor, cria sua própria essência – transformando, socialmente, a natureza e radicalmente sua própria natureza. Neste sentido, a humanidade emerge e se reconhece em si através da atividade expressa na sua objetivação (alteridade).

A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza. (ibidem, p. 84).

Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum seu objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para ser seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo é um não-ser. (ibidem, p. 127).

A natureza é por assim dizer um pressuposto, definida enquanto corpo inorgânico, ela não pode ser separada de modo metafísico do corpo humano e, por extensão, da sociedade. Uma implica a outra, fisiologicamente. O corpo inorgânico é uma extensão – descontínua/contínua – do corpo (orgânico) humano, e vice e versa (metabolismo). Retomando o exemplo da cadeira, pode se dizer peremptoriamente que a cadeira é mais humana que o próprio ser humano. Portanto, “um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo”.

*****

O estranhamento em relação ao trabalho é um conceito que aparece numa sociedade, determinada pelo econômico, no capitalismo somente, como “trabalho alienado”. Isso porque o trabalhador não se reconhece no produto de seu trabalho (isto é, nele mesmo), porque seu próprio trabalho se tornou estranho a si, alheio de si, e porque ele próprio, enquanto trabalhador, tornou-se-lhe estranho também. Deste modo o trabalhador se realiza apenas como e tão somente enquanto trabalhador, abstração de si mesmo, de sua humanidade. O trabalho alienado é “(...) primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. (...) A vida mesma aparece só como meio de vida” (ibidem, p. 84). Ou seja, o trabalhador é reduzido apenas aos meios de subsistência individual (ou familiar), frequentemente inferiores às condições mínimas que garantem sua existência plena como trabalhador. A condição de trabalhadoré uma redução das possibilidades e virtualidades infinitas do ser genérico, reduzido a uma categoria econômica (coisa-mercadoria). O trabalhador somente é na abstração do trabalho e pelo trabalho. Segundo Marx, “a existência abstrata do homem como puro homem que trabalha e que, por isso, pode precipitar-se diariamente de seu pleno nada absoluto e, portanto, na sua efetiva (wirkliche) não-existência” (ibidem, p. 93). O ser humano plasmado numa categoria econômica, o trabalho, reflete esta categoria econômica pura e simplesmente em sua relação social e também na produção, esta também reduzida.

Chega-se por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente livre como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanos só [sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano se torna animal. (ibidem, p. 83).

Entende-se o “animal” aqui também no sentido de força motriz, autômato e coisa, quando os animais desempenham tarefas humanas: assim como cavalos eram usados para puxar charretes, bondes, engenhos etc. Ou seja, “(...) tal como todo cavalo, [o trabalhador] tem que receber o suficiente para poder trabalhar” (ibidem, p. 30). E por isso a anima (alma), orbitando ao redor das coisas econômicas, é violentamente convertida em máquina-vida. No capitalismo: “O trabalho humano é simples movimento mecânico; (...) A um indivíduo tem de ser atribuído o mínimo possível de operações” (ibidem, p. 156). Ou seja, é a destituição da vida plena, a negação mesma da vida. O trabalhador é condenado a repetir incessantemente o mínimo possível de operações, e com isso rebaixado à condição de máquina. (Seu trabalho se objetiva em trabalho morto!). “Posto que o trabalhador baixou à [condição de] máquina, a máquina pode enfrentá-lo como concorrente” (ibidem, p. 27). De fato, este é um dos sentidos do fetiche moderno: o trabalhador aparece na produção como mais uma peça da engrenagem da maquinaria (capital constante, trabalho morto). A maquinaria da linha de produção se apresenta a ele com um poder próprio, estranho – ele não se reconhece nela –, e que o domina (Entfremdung). O capital gera a discórdia entre as pessoas, a guerra entre os trabalhadores por emprego, a diluição do caráter social, onde o dinheiro (trabalho objetivado) se torna o alcoviteiro das relações sociais (como se verá mais abaixo). O ser humano transformado em máquina priva-se de sua humanidade natural e da natureza mesma. Neste sentido, no capitalismo o trabalho não produz o ser humano, mas, ao contrário, deteriora-o (sentido negativo do trabalho), na produção de coisas-mercadorias.

Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha o homem a natureza, 2) [e o homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero [humano]. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranha. (ibidem, p. 84).

O trabalho alienado é a objetividade que se volta contra o trabalhador, isto é, pela mercadoria. Sem dúvida, já vimos anteriormente que é pela forma da mercadoria que o trabalhador é explorado; porém, esta exploração não é entendida como tal.

A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha (ibidem, p. 81).

Neste sentido, o trabalho é alienado na forma de trabalho assalariado; vendido (alienado) para outro. “O que antes era ser-externo-a-si (sich Äusserlichsein), exteriorização (Etäusserung) real do homem, tornou-se apenas ato de exteriorização, de venda (Veräusserung)” (MARX, 2008, p. 100). Vender sua força vital, eis o que é estranho! Logo, o trabalho é transformado em propriedade de outro – cedido a outro – por meio da forma mercadoria. “Se o trabalho é, portanto, uma mercadoria, é então uma mercadoria com a mais infelizes propriedade” (ibidem, p. 37). A infeliz propriedade do trabalho-mercadoria, Marx demonstrará em obras posteriores, é ser valor de uso e, sendo assim, gerar mais-valor, através da exploração intensiva do trabalho não-pago. Ou seja, por meio da forma transparente e aparentemente equivalente da forma social, desvenda-se a mais obscura expropriação e degradação do ser humano.

Dentro desta perspectiva, a exploração do trabalhador vai num sentido de “que seu próprio trabalho cada vez mais se lhe defronte como propriedade alheia, e cada vez mais os meios de existência de sua atividade se concentrem nas mãos do capitalista” (ibidem, p. 26). Deste modo, para a realização do trabalho-mercadoria (alienado) é indispensável o trabalho aparecer como a única propriedade dos trabalhadores. “É evidente por si mesmo que a economia nacional considere apenas como trabalhador o proletário, isto é, aquele que, sem capital e renda da terra, vive puramente do trabalho, e de um trabalho unilateral, abstrato” (ibidem, p. 30).

Marx vai descrever, num momento posterior, o processo histórico de expropriação camponesa, denominado de “cercamentos”. Neste processo, milhares de camponeses, expropriados da terra, migram para as cidades engrossando a mão-de-obra ociosa indispensável ao mercado de trabalho relativo à indústria nascente. Analisando mais detidamente este processo, constata-se que os camponeses foram expropriados (separados) de seus instrumentos e meios de produção (terra). Estes camponeses, agora proletários, passam a ser “proprietários” apenas de sua força de trabalho enquanto “direito natural”, de acordo com os preceitos liberais (Locke). Formam assim potencialmente a massa de trabalhadores assalariados, onde a premissa do trabalho livre, sem amarras (livres da terra) e independente do poder político (feudalismo), é essencial ao desenvolvimento do capitalismo. No mercado, a força de trabalho é mais uma mercadoria, consumida pela classe dos industriais. Convertido o próprio corpo na mercadoria-trabalho, os trabalhadores podem doravante negociar “livremente”, supostamente em pé de igualdade, nos termos do contrato social, a compra e venda de trabalho, na medida em que, tanto eles como a classe capitalista, aparecem na figura de “proprietários”. O trabalho alienado, trocado por salário (preço), passa a compor, de modo legítimo, os bens do capitalista, que vai dispor de seu direito de proprietário para usá-lo como bem entender.

Assim, o trabalho aparece como uma mercadoria, logo subsumido ao capital:

O trabalhador [produz], portanto, a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador, enquanto mercadoria, é o produto do movimento total. O homem nada mais é do que trabalhador e, como trabalhador, suas propriedades humanas o são apenas na medida em que o são para o capital, que lhe é estranho. (...) O trabalhador só é, enquanto trabalhador, assim que é para si como capital, e só é, como capital, assim que um capital é para ele. A existência (Dasein) do capital é sua existência, sua vida, tal como determina o conteúdo de sua vida de um modo indiferente a ele. (ibidem, p. 91).

Nesta passagem, é preciso ter bastante cuidado, pois poderia suscitar a interpretação de que o ser humano se realiza enquanto trabalhador, sendo o trabalho sua essência. Ora, é justamente o contrário. Aqui se trata de um processo violento de incorporação de categorias econômicas – capital-trabalho – que, como vimos, “deforma” o corpo e põe a contradição fundamental da economia. Portanto, o trabalho converte-se em capital! Além disso, a sociedade cinde-se de modo inconciliável: duas classes principais aparecem em relação conflituosa.

Através do trabalho estranhado, exteriorizado, o trabalho engendra, portanto, a relação de alguém estranho ao trabalho – do homem situado fora dele – com este trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação do capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o trabalho. (ibidem, p. 87).

Portanto, o que está em jogo é a abstração do trabalhador dos meios de produção (há muitas referências disto nos Manuscritos). O estranhamento do trabalhador não está apenas, como vimos, no seu não reconhecimento do seu produto (que é, exatamente, o trabalhador), mas também no próprio fato do trabalho se tornar estranho ao trabalhador e, consequentemente, o trabalhador se tornar estranho a si mesmo, seu espelho convexo: a identidade reconhecida no e pelo trabalho. Pois, o próprio trabalhador se reconhece intimamente na figura alienada de si mesmo, do trabalhador. Primeiro, corporifica o trabalho; depois personifica o trabalho. Na personificação, a consciência é dilacerada. Vejamos:

Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com produtos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato de produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio (fremd) ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente resumo (Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo (Ibidem, p. 82).
        
Nota-se que tais concepções referem-se exclusivamente ao capitalismo. Por exemplo, na escravidão o escravo tem consciência de que seu corpo é transformado num instrumento de trabalho e, por isso, quer se libertar. O que não ocorre no modo de produção capitalista. O próprio Marx, nos Manuscritos, não faz um recuo a um passado longínquo em busca de uma “essência humana”, remontada a uma sociedade primitiva idealizada. Inversamente, o método de Marx consiste em examinar criticamente a realidade presente a partir da economia política (nos Manuscritos designadas por “economia nacional”), para depois “desviar” – ou negar, no sentido dialético – tais pressupostos e desvelar seu conteúdo específico e, consequentemente, seu caráter ideológico.

Partimos dos pressupostos da economia nacional. Aceitamos sua linguagem e suas leis. Supusemos a propriedade privada, a separação de trabalho, capital e terra, igualmente do salário, lucro e capital e renda da terra, da mesma forma que a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor etc. A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras, constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à potência (Macht) e à grandeza (Grösse) da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação de capital em poucas mãos, portanto a mais tremenda restauração do monopólio, que no fim a diferença entre capitalista e o rentista fundiário (Grundrentner) desaparece, assim como entre o agricultor e trabalhador em manufatura, e que, no final das contas, toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade. (Ibidem, p. 79).

É evidente, assim, que Marx quer desnaturalizar os conceitos e categorias da economia política e não “ontologizá-los”. Está claro nos Manuscritos um período histórico bem demarcado: o capitalismo. O que exclui toda possibilidade de uma ontologia do trabalho abstrato. Há poucas passagens nos Manuscritos que se referem a outros modos de produção, pré-capitalistas (essa análise será realizada em obras posteriores). Ora, como já se afirmou, somente no capitalismo há um predomínio do econômico, organizando as relações sociais de produção. Entretanto, há muitas passagens nos Manuscritos ilustrando um processo contraditório, em que a riqueza do capital é a miséria do trabalhador etc.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


Posts relacionados:

Alienação (2): a negatividade do trabalho; Alienação (3):trabalho abstrato e fetichismo; Alienação (4): o fim do trabalho e a produçãodo ser humano

A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia

A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)



[1] Perguntamos a nossa colega e amiga de tanto tempo, Verônica, estudante de alemão da Faculdade de Letras da FFLCH-USP, que, em programa de intercâmbio na Alemanha, escreveu-nos gentilmente: “Oi Jean... Tudo bem? Tanta coisa acontecendo pelo Brasil e no mundo! (...) Quanto a sua pergunta: Entäusserung é quando eu digo a minha opinião, tem a ver com o que eu penso e o que eu sinto sobre o meu ponto de vista. Entfremdung quer dizer, em linhas gerais, “estranhamento”. Se tornar estranho ao outro. Ou também quando algo é esquecido ou também quando alguém é esquecido. Se faz esquecer. Espero que te ajude. Pedi ajuda ao um alemão, meu namorado, ele disse "nossa, seu amigo deve  estudar coisas interessante", eu disse "Ele é uma pessoa interessante e humana". Quando você precisar de algo mais me fale e não só quando precisar. Pode escrever. Você ainda almoça no bandejão, né?! E como vão os seus estudos? Como vai a sua vida? Sua família? Tudo de bom a você Jean! Saudades. Abraços e beijos. Verônica Kienen Dias”. Obrigado!
[2] A palavra alienação, de origem latina (alienare, alienus mesmo radical de “alheio”), é traduzida no alemão por Veräuβerung; Entfremdung; Geisteskrankeit (mental), entre outras. O sentido explícito de alienação em sessão (de direitos ou bens) ou transferência  (“sair para fora”), ou melhor, a palavra “externação” é, em alemão, Äuβerung ou ainda “externo”, äusserlich. O termo alemão Entäusserung é traduzido em português por desapropriação, renúncia, abandonar, despojamento, expressar. “Estranho” é em alemão fremd (“estranhamento”, Befremden, entre outras). Nota-se que “estranho” em português pode significar: desconhecido; estrangeiro; alheio ao meio; forasteiro, etc.
[3] Ausser, prep., fora de, fora; exposto, além de... etc.
[4] Ranieri traduz a palavra alemã Aufhebung pelo neologismo “supra-sunção”. Assim explica os critérios da tradução: “Outro obstáculo foi encontrar uma tradução adequada para o verbo aufheben que, em alemão, significa, a um só tempo, o ato de erguer (algo do chão), o de guardar (um objeto, para que se conserve) e o de suspender (por exemplo, a vigência de um ato jurídico). Em geral, traduz-se aufheben por suprimir, abolir ou ainda superar, assim como se traduz o substantivo Aufhebung por supressão, abolição ou superação. O problema é que o significado em aufheben e desdobramentos é muito maior, mais rico e variado, o que dificulta sobremaneira a versão para um termo adequado, que contenha ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do original. Minha opção foi de vertê-los, de maneira geral, para supra-sumir e supra-sunção, posto que o que se deve reter é a dinâmica do movimento dialético que carrega consigo, no momento qualitativamente novo, elementos da etapa que está sendo ou foi superada ou suprimida, ou seja, a um só tempo, a eliminação, a conservação e a sustentação qualitativa do ser que supra-sume” (MARX, 2008, p. 16). Embora bem concernente este argumentos para a compreensão da amplitude de Aufhebung, nós optaremos apenas por negação determinada ou simplesmente negação dialética, para evitar uma leitura hermética e por demais erudita.
[5] Hegel esboçou uma teoria da praxis. A bem dizer, o conceito de praxis já está presente, na Filosofia do Direito, elaborado em sua amplitude, complexidade e contradições. Nenhum aspecto, nenhum nível é desprezado: trabalho, organização do trabalho, produção no sentido amplo (objetos e obras), necessidades individuais e sociais, educação, família e familiaridade, praxis estreita e praxis ampliada, política e histórica. A práxis é superação, abertura para a realização e a presença efetiva da liberdade. A teoria da praxis aí está. E, todavia, não está: toda a praxis está presa à especulação e é finalmente absorvida no Estado. (LEFEBVRE, 1967, p. 91).
[6] Tal é o sentido da famosa proposição de Marx sobre a “inversão” da dialética hegeliana, que é verdadeira se posta do avesso: a contradição, que é forma exterior de manifestação da unidade real para Hegel, é o interno e essencial para Marx, enquanto que a identidade, que é para Hegel esta essência interna e verdadeira realidade, embora se manifeste exteriormente em coisas diferentes e opostas, torna-se para Marx a aparência exterior de que reveste a realidade essencialmente contraditória. (Nota: este é o ponto em que se apoia o artigo de Theunissen, M. “Krise der Macht. These zur Theorie des dialektischen Widerspruchs”. In: Köhn, Pahl-Rugenstein. Hegel jahrbuch. Berlim, Verlag, 1974, p. 325). A igualdade jurídica entre o trabalhador e o capitalista, assim, é real e básica para que a relação de capital exista, mas é apenas uma dimensão externa determinada pela contradição mais profunda que de fato constitui esta relação; é preciso que o trabalhador seja vendedor de mercadorias para que venda sua força de trabalho ao capitalista, mas isto porque o capital tem de comprar e possuir a propriedade da fonte de sua própria existência, do valor que se valoriza, para poder ser capital. Desta forma, toda a harmonia é somente o aspecto exterior de que se reveste a contradição do capitalista, não podendo caracterizar por si só este sistema e servindo inclusive para mascarar a contradição essencial dele; daí a crise represente seu desmascaramento, determinando sua crítica. (GRESPAN, 1996, p. 300).
[7] Que o homem é um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível significa que ele tem objetos efetivos, sensíveis como objeto do seu ser, de sua manifestação de vida (Lebensäusserung), ou que ele pode somente manifestar (äussern) sua vida em objetivos sensíveis efetivos (wirkliche sinnliche Gegenstände). (MARX, 2008, p. 127).
[8] Deve estar claro, a esta altura, que nenhum dos significados de alienação usados por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos desapareceu de seus escritos posteriores. E não é surpresa. Pois o conceito de alienação, tal como é compreendido por Marx em 1844, com todas as suas complexas ramificações, não é um conceito que pudesse ser abandonado, ou unilateralmente “traduzido”. (MÉSZÁROS, 2007, p. 207).
[9] Não há realidade humana sem obras, mas não há obras sem uma atividade humana produtora. As obras não deixam de ser “o ser-outro” do homem, que mantém com ele dupla relação: alteridade, alienação. A investigação marxista, sobre as relações entre o homem (social: o da praxis) e as obras, não pode ser considerada nem econômica, nem psicológica, nem sociológica, nem filosófica. (LEFEBVRE, 1967, p. 96).
[10] O comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo na condição de ser genérico, ou o acionamento de seu [ser genérico] enquanto um ser genérico efetivo, isto é, na condição de ser humano, somente é possível porque ele efetivamente expõe (herauschafft) todas as suas forças genéricas – o que é possível apenas mediante a ação conjunta dos homens, somente enquanto resultado da história –, comportando-se diante delas como frente a objetos, o que, por sua vez, só em princípio é possível na forma do estranhamento. (MARX, 2008, p. 123).
[11] (...) apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém cultivadas, em parte recém engendrados. Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada. (Ibidem, p. 110).
[12] O homem rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade da manifestação humana de vida. (ibidem, p. 112).


Nenhum comentário:

Postar um comentário