O trabalho alienado
por Jean Pires de A. Gonçalves
Vimos mais acima, no exame dos textos
de Kurz: se somente as categorias da modernidade são perfeitamente
discerníveis, pois são inerentes à consciência fetichista, então a sociedade do
fetiche moderno é a mais transparente de todas as outras que a precederam até
agora [primeira aporia]; e se toda atividade como abstração real subordinada ao
capital (ou à representação do fetiche moderno) é trabalho abstrato, então não cabe rigorosamente o termo trabalho (tanto no sentido da palavra
como do conceito). E se, da mesma forma, trabalho
é hipostasiado enquanto categoria da consciência fetichista desconectada da
prática real (abstração de dispêndio de energia), então não cabe tampouco o
conceito de trabalho, porque é apenas uma figura de linguagem. Esta é a segunda
aporia que se encontra na crítica categorial, à qual faz do
conceito de trabalho estranho ao próprio conceito.
Como se desembaraçar desta aporia?
(...) Marx mostra como o conceito de trabalho (social) só poderia nascer
e ser formulado em certas condições históricas. Seria preciso que a divisão do
trabalho houvesse atingido alto grau e que os trabalhos parcelares
constituíssem, praticamente, um vasto conjunto, a saber o próprio trabalho
social. Anteriormente, os homens (escravos, camponeses, artesões) trabalhavam.
Mas, não se sabia disso, não se levava isso em conta na filosofia e nos
discursos sobre o homem. As primeiras invenções de máquinas (e não apenas de
utensílios) deixam entrever, ao mesmo tempo, a longínqua possibilidade de uma
emancipação do homem em relação ao trabalho, do qual a máquina se incumbiria. O
conceito de trabalho acompanhou as premissas do não-trabalho (LEFEBVRE, 1967,
p. 104).
O caráter histórico e dialético do
trabalho supõe e pressupõe seu contrário. O trabalho enquanto atividade humana
pode se manifestar num sentido extremamente genérico: o trabalho de um
escultor, de um artista, por exemplo. O trabalho exclusivamente em sentido
econômico fragmenta sua totalidade. É neste sentido que um modo toma o lugar do “ser”;
uma parte, do todo (metonímia). Neste sentido, o que se quer demonstrar nesta
seção é como o trabalho se defronta contraditoriamente em relação ao capital
(trabalho morto).
*****
Não é incomum em diversas situações
do cotidiano ouvirmos alguém dizer: “fulano de tal é alienado”. Embora não seja
uma expressão usual, a palavra alienação
tampouco está restrita a um círculo de eruditos ou especialistas. O significado
literal da palavra é simplesmente alheio,
e num sentido lato, ceder, transferir, alucinar. No repertório jurídico, alienação é venda ou cessão de um direito
ou bem. A partir do século XVI, o termo designava loucura; pressupunha-se um estado patológico: “desordem ou
perturbação mental”. Identificavam-se no comportamento individual manifestações
excêntricas ou um alheiamento não só da realidade objetiva
exterior ao indivíduo, mas de seu próprio “ego”: o lunático fora de si. O conto
“O alienista”, do grande literato brasileiro Machado de Assis, dá uma ideia bem
humorada desse sentido. No conto, Simão Bacamarte é um alienista (hoje
psicólogo, psiquiatra, assistente social etc.) que ao chegar à cidadezinha de
Itaguaí, carregando consigo as mais altas aspirações libertadoras do “homem da
ciência moderna”, passa a examinar compulsivamente todos os habitantes da
cidade. Após constatar desvios de conduta em todos eles, toma a drástica
decisão de interná-los um a um no manicômio municipal. Mas é no desfecho da
trama que se dá uma surpreendente reviravolta. Sendo o protagonista da história
o único “normal” da cidade, sua normalidade
não podia ser normal (pois estava
fora da média). Assim, Bacamarte deduz sensatamente que, num mundo de
alienados, sua própria lucidez era loucura e, por isso, depois de libertar
todos os seus pacientes, toma a sábia decisão de internar ele mesmo no
hospício, encerrando assim o conto. (Machado de Assis já fazia crítica
dialética do iluminismo!).
Num outro sentido, mais atual e
corriqueiro, o termo alienação também é sinônimo de inconsciência política. O que a princípio deve ser uma forma de falsa consciência ou indiferença a
assuntos políticos inerentes ao ser
social (como no poema de Bertold Brecht, “O analfabeto político”). O termo
se difundiu principalmente pelas correntes políticas de esquerda, que
vulgarizaram o sentido de alienação em Marx, e, com base nela, se
auto-intitularam libertadores do povo inconsciente das trevas do capitalismo.
Para tanto, imbuídos das mais atas aspirações do socialismo científico, fundaram um partido de vanguarda que
submetia seus epígonos a uma rígida disciplina e uma hierarquia que devia ser
obedecida cegamente. O desfecho desta história? É por demais conhecido...
Feita esta pequena introdução
ilustrativa, sobre alguns aspetos distintos da palavra alienação, avisamos que
evidentemente não faremos aqui uma discussão do conceito de alienação na
história da filosofia, onde o tema é recorrente, desde Rousseau, Hegel,
Feuerbach e tantos outros. O que nos interessa é o sentido de alienação em Marx
e, principalmente, nos seus Manuscritos
econômico-filosóficos (1844); pois diz respeito à negatividade do trabalho no capitalismo. Logo de início, de nossa
leitura de os Manuscritos,
encontramos, porém, um problema suscitado pela tradução da palavra alemã alienação, que, dentre outros vocábulos
menos usuais, oscila entre os termos Entfremdung
e Entäusserung. O problema surgiu,
para nós, recentemente com a tradução quase textual dos Manuscritos econômico-filosóficos por Jesus Ranieri (2004). Ranieri
deteve-se cuidadosamente nestes termos distintos que até então eram traduzidos
para a língua portuguesa somente por alienação.
O tradutor e comentador expõe o problema assim:
Tentei ser o mais fiel possível ao texto original, procurando garantir a
permanência de expressões coloquiais, assim como (bem mais difícil) daqueles
termos que denotam o vínculo intelectual de Marx com o idealismo alemão,
principalmente com a filosofia de Hegel. (...) Em primeiro lugar, é preciso
destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e
estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no
sistema de Marx (MARX, 2008, p. 15, os grifos são nossos).
Não ficamos muito satisfeitos com a
interpretação dos termos de alienação em Ranieri, e resolvemos nós mesmos
debruçar sobre o problema.
Segundo a nossa leitura dos
“Manuscritos de 1844”, da edição traduzida pelo mesmo Ranieri, realizada em
grupo, como já foi explicitado em nota na apresentação desta pesquisa, para nós
a distinção dos termos Entäusserung e
Entfremdung não é tão marcante a
ponto de “ocuparem lugares distintos” mas dignas de observação e atenção. Ambos
os termos se tocam reciprocamente, o que, porventura, não é, a nosso ver,
incorreto do ponto de vista da língua vernácula designar a palavra por alienação somente, como comumente se fez
até então, desde que a referida distinção seja levada em conta o tempo todo em
sua relação dialética. Deste modo, a análise dos termos é indispensável, ou
seja, do que se quer tratar e se mencionar, para, em seguida, reabilitar o
termo vulgar. Por isso, o exame do sentido da palavra obrigou-nos a tarefa de
consultar colegas que estudam a língua alemã[1] e mesmo dicionários (algo que
gostamos muito de fazer)[2], antes de abordar diretamente o
assunto.
Evidentemente, os Manuscritos, considerados um livro
filosófico de Marx, são tributários do debate em torno da obra de Hegel, e daí
a relevância da alienação, haja vista
que o conceito ocupa lugar central na obra deste filósofo. Michael Inwood, em
seu “Dicionário Hegel”, inicia o verbete “alienação”, sobre o dilaceramento da consciência, do
seguinte modo: Hegel usa duas palavras
para “alienação”...
1. Entfremdung corresponde a entfremden (“alhear”), de fremd (“alheio”).
No Alto-Alemão médio (isto é, dos séculos XII a XV), referia-se a tomar ou
roubar os bens de uma pessoa e também à alienação mental, especialmente o coma
ou estupor. Mas passou mais tarde a indicar, primordialmente, o estranhamento
ou a desavença entre pessoas. 2. Entäusserung corresponde a entäussern, “tornar
exterior ou externo (ausser)[3]”, e significa “renúncia” ou “despojamento”. (Hegel usa Entäusserung, mas
não Entfremdung, para se referir à alienação, isto é, ao ato de despojamento
voluntário dos próprios bens). Outras palavras na mesma área são: Entzweiung (de
zwei, “dois”), “bifurcação”, “desunião”; Zerrissenheit (de zerreissen, “rasgar,
dilacerar, desmembrar, desligar”), “desmembramento”, “desconjuntura”; Zwiespalt
(também de zwei), “discórdia”, “conflito”, “discrepância”; Diremtion; e Trennung,
“separação” (de trennen, “separar”). (...) Hegel não usa a palavra Entfremdung
antes da “Fenomenologia do Espírito”, mas vários de seus escritos anteriores
prenunciam seus pontos de vista posteriores. (...) A alienação é descrita e de
forma sumamente vigorosa na “Fenomenologia do Espírito” mas tanto as palavras
quanto as ideias são importantes em obras posteriores de Hegel. Entretanto, a
sua importância e até a sua presença foram virtualmente ignoradas pelos
estudiosos de Hegel antes do aparecimento das análises de Marx de Entfremdung e
Entäusserung em seus “Manuscritos filosóficos” de 1844, mas publicado primeiro
em alemão em 1932, e inglês em 1959. (INWOOD, 1997, pp. 45-47).
Feita esta consideração, dá para se
ter uma ideia da relação estreita dos termos colocados e da dimensão do
problema em se verter palavras de uma língua estrangeira (germânica) para uma
outra (latina). Entretanto, a tarefa não é impossível.
A palavra portuguesa alienação
parece conter os dois sentidos, o de Entäusserung
como o de Entfremdung, isto é, tanto
de “sessão de”, “despojamento”, como também “arroubamento de espírito”,
“alheamento”, “indiferença”, “estranheza”, etc. Mas a distinção é, em se
tratando de um estudo conceitual, necessária sim, pois, descreve momentos
dialéticos ou a passagem de um termo no outro e vice-versa. A partir disso,
estabeleceremos aqui a seguinte definição: Entäusserung,
isto é, expressão (sair, pressão para fora); produção
significativa que tende a deformar ou exagerar a realidade (transformação). E Entfremdung: estranhamento (esquecimento), ou melhor, aquilo que é
diferente, que foi tirado (arrancado,
roubado), esquecido como seu e, portanto, tornou-se estranhamente hostil. Neste
sentido, tudo que se expressa em um
meio externo é de certa forma estranho;
diferente daquele interior que saiu num e por um outro, que impressiona.
Partindo-se disso, é possível refletir, sociologicamente, sobre uma determinada
manifestação humana que se expressa
ou produz algo, que lhe é estranho –
o interior que ao se tornar interior num objeto externo torna-se outro, portanto, diferente. Mas que, num momento posterior, impressiona e é
reconhecido como próprio – interior-exterior –, isto é, re-apropriado, interiormente. Já o estranhamento, ou melhor, o esquecimento, é quando algo que sai de si não retorna, ou não é
re-apropriado novamente, mas aparece (e parece) totalmente desconhecido e
hostil. Consideremos um exemplo: uma cadeira é um objeto produzido por mãos
humanas; ela tem uma forma – forma
humana –, pois, ela é feita para sentar,
mitigar o cansaço; ela tem uma estrutura,
pode ser feita de madeira, plástico etc. (material estranho ao corpo humano); e
ela tem uma função, quando cumpre a
finalidade de aliviar o cansaço: ela é re-apropriada.
Todavia, se a cadeira, por ventura, não cumpre os fins de sua forma, quaisquer
que sejam eles, ela se torna totalmente estranha, desconhecida e mesmo hostil,
ainda que intimamente possua a forma
humana. O que a torna algo estranho (seu Eu objetivado), ameaçador: um
inimigo de si mesmo. Esta é uma questão que nos propomos tentar responder
através dos Manuscritos:
O homem só não se perde em seu objeto se este vem a ser como objeto humano
ou homem objetivo. Isto só é possível na medida em que ele vem a ser objeto social
para ele, em que ele próprio se torna ser social (gesellschaftliches Wesen),
assim como a sociedade se torna ser (Wesen) para ele nesse objeto (MARX, 2008,
p. 108).
Distinguindo-se o ser social do ser natural, lemos: o homem só não se perde em seu objeto se
este vem a ser objeto humano (...). O que significa perder-se em seu objeto? Perder
este objeto que não é senão aquele que
perdeu: perder-se a si mesmo e em si mesmo. Contudo, o objeto é reencontrado se vem a ser objeto humano ou homem objetivado. Se retomarmos o exemplo da cadeira, diríamos que
ela é objeto humano ou homem objetivado
re-encontrado. Neste sentido, os termos hegelianos de alienação são retomados
por Marx nos Manuscritos num sentido
antropológico, porém, sem abandonar a dialética. O pensamento dialético é
fundamental aqui. Nos Manuscritos,
Marx indaga diante do problema lançado pelo idealismo
objetivo: “o que fazer diante da dialética hegeliana?”.
A grandeza da fenomenologia hegeliana e de seu resultado final – a
dialética, a negatividade enquanto princípio motor e garador – é que Hegel
toma, por um lado, a autoprodução do homem como processo, a objetivação (Vergegenständlichung)
como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização (Entäusserung)
e supra-sunção (Aufhebung) dessa exteriorização; é que compreende a essência do
trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como
resultado de seu próprio trabalho (ibidem, p. 123).
Marx reconhece a grandeza da obra de
Hegel (Fenomenologia do espírito) e
de sua ideia da constituição do humano
pela própria atividade humana, isto é, o sentido já tantas vezes referido
aqui de produção ampla. É por sua
própria atividade (“essência do trabalho”) em relação à natureza (o mundo) que
o ser humano se constitui objetivamente. Todavia, a “essência do trabalho” em
Hegel é a do trabalho da consciência que se exterioriza num mundo estranho a si
e o reencontra como consciência-de-si. Portanto, a atividade, em Hegel, se dá apenas no plano do pensamento, nas
palavras de Marx, ao “homem enquanto egoísta
abstrato” (Ibidem, p.125); isto é, somente subjetivamente. Todavia, Hegel abstrai de tal atividade que ela é
realizada por um ser objetivo em
relação a uma realidade objetiva, o
que vale dizer que “um ser não-objetivo é um não-ser” (Ibidem, p. 127).
Quando ele [Hegel] apreendeu, por exemplo, a riqueza, o poder de Estado
etc. como a essência estranha da essência humana, isto acontece somente na sua
forma de pensamento.... O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o
abstratamente espiritual (ibidem, pp. 121-124).
Neste sentido, para Marx, o
reconhecimento humano pela consciência, em Hegel, é, na verdade, uma alienação
absurda (estranhamento hostil), pois concilia de modo absoluto toda a
contradição objetiva (social, natural, do mundo) no e pelo pensamento racional.
A objetividade enquanto tal vale por uma relação estranha do homem,
[relação] não correspondente à essência humana, à consciência-de-si. A reapropriação
da essência objetiva do homem, produzida enquanto [algo] estranho sob a
determinação do estranhamento, tem assim não somente o significado de
supra-sumir (aufheben) o estranhamento, mas [também] a objetividade, ou seja,
dessa maneira o homem vale como uma essência não-objetiva, espiritualista (pp.
124 e 125). (...) Já vimos: a apropriação do ser objetivo ou a supra-sunção[4] da objetividade sob a determinação do estranhamento – que tem de ir da
estranheza (Fremdheit) desinteressada até o efetivo estranhamento hostil – tem
para Hegel, ao mesmo tempo e até principalmente, a significação de supra-sumir
a objetividade, pois não é o caráter determinado do objeto, mas sim seu caráter
objetivo que constitui, para a consciência-de-si, o escandaloso (Anstössige) e
o estranhamento (ibidem, p. 129).
Tal conciliação de toda exteriorização de suas forças objetivas pela
consciência, para os indivíduos sociais (ou para Hegel, consciência-de-si), se
efetiva na sociedade civil na e pela forma do Estado[5]. “O homem que conheceu levar no
direito, na política etc., uma vida exteriorizada, leva nesta vida
exteriorizada, enquanto tal, sua verdadeira [vida] humana” (ibidem, p. 130).
Marx, por outro lado, vai demonstrar que não há conciliação pelo pensamento nem
pelo Estado, mas, ao contrário, que tanto um como outro dissimulam as
diferenças e contradições reais, objetivas, que não se resolvem na esfera
abstrata e ideal da autoconsciência[6]. Porém, tal desenvolvimento da
lógica dialética guiará o método materialista de Marx, na sua famosa
(des)inversão do “mundo invertido” de Hegel. Marx não poderia ser mais claro em
seu projeto como mostra esta passagem abaixo:
O supra-sumir como movimento objetivo retomando de volta em si a
exteriorização (Entäusserung), expresso no interior do estranhamento, da apropriação
do ser (Wesen) objetivo mediante a supra-sunção de seu estranhamento, o juízo
estranhado na objetivação efetiva do homem, na apropriação efetiva de seu ser
objetivo mediante a eliminação da determinação estranhada do mundo objetivo,
mediante sua supra-sunção na sua existência (Dasein) estranhada, (...).
(ibidem, p. 132).
O centro do processo sai da consciência e recai no corpo. E daí Marx pode realizar a sua
crítica do sujeito. Ora, a atividade
no mundo não se procede por meio de uma atividade
pura da consciência racional, mas, ao contrário, pelo manifestar (Entäusserung e Entfremdung) dos sentidos humanos, enquanto atividade de um ser natural objetivo, em sua prática
social que produz sua própria realidade objetiva:
Quando o homem efetivo, corpóreo, com os pés bem firmes sobre a terra,
aspirando e expirando suas forças naturais, assente suas forças essenciais objetivas
e efetivas como objetos estranhos mediante sua exteriorização (Entäusserung),
este [ato de] assentar não é sujeito; é a subjetividade das forças essenciais objetivas,
cuja ação, por isso, tem também que ser objetiva. O ser objetivo atua
objetivamente e não atuaria objetivamente se o objetivo (Gergenständliche) não
estivesse posto em sua determinação essencial. Ele cria, assenta apenas
objetos, porque ele é assentado mediante esses objetos, porque é, desde a
origem, natureza (weil es Von Haus aus Natur ist). No ato de assentar não
baixa, pois, de sua “pura atividade” a um criar do objeto, sua atividade
enquanto atividade de um ser natural objetivo. (ibidem, p. 127).
Proposta de debate: tomando o que foi dito acima, alienação não pode ser entendida como
necessária, num sentido psicológico, à consciência (dilacerada); dilaceramento
este que também estaria presente em todas as sociedades humanas. Pois, a
alienação não se dá primeiro no plano da consciência; mas, da vida (concreta). Portanto, a alienação é
objetiva, e pode e deve ser
suprimida; pois o que se visa suprimir é o estranhamento
da exteriorização, ou seja, o caráter
peregrino da essência humana, que não
retorna de sua jornada, porque nunca saiu daqui, mas que, forasteiro de um país
inimigo, escraviza-se na sua própria essência.
Dito de outro modo, quando ela (essência), por não ser reconhecida essencialmente, torna-se inumana. Contudo, como escapar de uma
interpretação ontológica da
alienação, do “ser” ou da “essência”? Da seguinte maneira, destronando o ser
da posição central que ocupa na ordem do pensamento filosófico, e instituir o corpo, em seu vir-a-ser[7],
neste lugar privilegiado, cuja implicação disto é a própria superação dos
pressupostos da filosofia (mente e corpo) e mesmo das ciências parcelares:
divisão do trabalho (intelectual e manual). Ou seja, não há uma essência humana pré-fabricada, perdida e
esquecida num passado distante, mas o “esquecimento” das virtualidades humanas,
de seu ser genérico, multilateral. O caráter errante da essência humana perdida
é, na verdade, a privação de todas as potencialidades do corpo. Esta essência,
entretanto, não é imanente, genética. Mas, ao contrário, ela se constitui na
prática e se realiza exteriormente, no mundo das coisas, seu espelho. Neste sentido, alienação é
sempre alienação do possível.
Antes de prosseguirmos, esclarecemos
também que seguiremos a orientação teórica de István Mészáros (2007). Segundo
Mészáros, o conceito de trabalho alienado
foi a “grande descoberta histórica” do Marx dos Manuscritos e que vai atravessar toda a sua obra, como conceito
fundamental, enquanto denominador comum de desdobradas outras formas de
alienação no capitalismo[8].
Vejamos então o desenrolar dos
conceitos de exteriorização (Etäusserung) e estranhamento (Enfremdung)
nos Manuscritos. Se, antes, os pressupostos defendidos aqui forem aceitos, a
acepção pejorativa de alienação tem
mais a ver com o sentido de estranhamento
(hostil), em si, do que com exteriorização,
propriamente dita, ainda que os termos não se excluam mutuamente. A relação exteriorização-estranhamento é, portanto, um processo (natural) de objetivação e constituição do ser humano,
por meio de suas obras ou produtos[9]. Há aí um certo estranhamento na produção de uma “essência” humana através de um outro exterior que é esta
essência – “a humanidade da natureza
e da natureza criada pela história” (p. 122). Assim sendo, esse
outro-de-si-mesmo constitui historicamente as sociedades humanas (segunda natureza), em suas várias formas. O
estranhamento causado por este outro-de-si-mesmo
é re-apropriado na vida produtiva (em
sentido amplo) e reconhecido na produção da
consciência que afirma e preserva a
vida. Por isso, dominar, controlar ou conhecer a natureza em seu estado
caótico, contingente, é pressuposto da liberdade,
próprio do ser humano, que Marx denomina de ser
genérico[10]. “A vida produtiva é, porém, a vida
genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se
o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente
livre é o caráter genérico do homem” (MARX, 2008, p. 84). A objetivação da atividade vital (prático-sensível), através da expressão do ser
genérico num outro, pode ser designada por trabalho,
enquanto pressuposto, no sentido de uma atividade que suprime carências naturais (carência de
estética, de beleza, por exemplo)[11]. Por isso, esta supressão converte necessidade em liberdade[12]; natureza em humanidade. Este “exprimir-se
num e por um outro”, que, como num espelho, é seu reflexo, pode ser denominado
de trabalho; lembrando-se que a
linguagem não é uma transparência – uma coisa pode ter muitos nomes e um nome
pode designar muitas coisas – o que não quer dizer que não tenha uma eficácia
real. É por meio deste opaco que se
constitui o conhecimento (transparência). De fato, como já se assinalou, trabalho não tem unicamente um sentido
econômico, stricto sensu. Trabalho aqui não é ainda trabalho alienado; posto enquanto categoria econômica (na forma de
mercadoria), ou seja, separado (estranho
e hostil) do produtor, na figura do trabalho
abstrato (social) e do trabalhador, mas apenas uma das inúmeras
manifestações humanas; um modo de expressar
sua força vital objetivamente. O ser humano se constitui, se autoproduz – ou melhor, cria sua própria essência – transformando, socialmente, a natureza e radicalmente
sua própria natureza. Neste sentido, a humanidade emerge e se reconhece em si
através da atividade expressa na sua objetivação (alteridade).
A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto
ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é
seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer.
Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem
outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o
homem é uma parte da natureza. (ibidem, p. 84).
Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural,
não toma parte na essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora
de si não é nenhum seu objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um
terceiro ser não tem nenhum ser para ser seu objeto, isto é, não se comporta
objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo é um não-ser.
(ibidem, p. 127).
A natureza é por assim dizer um pressuposto, definida enquanto corpo
inorgânico, ela não pode ser separada de modo metafísico do corpo humano e, por
extensão, da sociedade. Uma implica a outra, fisiologicamente. O corpo
inorgânico é uma extensão –
descontínua/contínua – do corpo (orgânico) humano, e vice e versa
(metabolismo). Retomando o exemplo da cadeira, pode se dizer peremptoriamente
que a cadeira é mais humana que o próprio ser humano. Portanto, “um ser que não
tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo”.
*****
O estranhamento em relação ao
trabalho é um conceito que aparece numa sociedade, determinada pelo econômico,
no capitalismo somente, como “trabalho alienado”. Isso porque o trabalhador não se reconhece no produto de seu
trabalho (isto é, nele mesmo), porque seu próprio
trabalho se tornou estranho a si, alheio de si, e porque ele próprio,
enquanto trabalhador, tornou-se-lhe
estranho também. Deste modo o trabalhador se realiza apenas como e tão somente
enquanto trabalhador, abstração de si
mesmo, de sua humanidade. O trabalho alienado é “(...) primeiramente o
trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem
apenas como meio para a satisfação de
uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. (...) A vida
mesma aparece só como meio de vida”
(ibidem, p. 84). Ou seja, o trabalhador é reduzido apenas aos meios de
subsistência individual (ou familiar), frequentemente inferiores às condições
mínimas que garantem sua existência plena como trabalhador. A condição de trabalhador já é uma redução das possibilidades e virtualidades infinitas do ser
genérico, reduzido a uma categoria econômica (coisa-mercadoria). O trabalhador somente é na abstração do trabalho e pelo trabalho. Segundo Marx, “a
existência abstrata do homem como
puro homem que trabalha e que, por isso, pode precipitar-se diariamente de seu
pleno nada absoluto e, portanto, na sua efetiva (wirkliche) não-existência” (ibidem, p. 93). O ser humano plasmado
numa categoria econômica, o trabalho,
reflete esta categoria econômica pura e simplesmente em sua relação social e
também na produção, esta também reduzida.
Chega-se por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só
se sente livre como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e
procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanos
só [sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano se torna animal.
(ibidem, p. 83).
Entende-se o “animal” aqui também no
sentido de força motriz, autômato e
coisa, quando os animais desempenham tarefas humanas: assim como cavalos eram
usados para puxar charretes, bondes, engenhos etc. Ou seja, “(...) tal como
todo cavalo, [o trabalhador] tem que receber o suficiente para poder trabalhar”
(ibidem, p. 30). E por isso a anima
(alma), orbitando ao redor das coisas econômicas, é violentamente convertida em
máquina-vida. No capitalismo: “O
trabalho humano é simples movimento mecânico; (...) A um indivíduo tem de ser
atribuído o mínimo possível de operações” (ibidem, p. 156). Ou seja, é a
destituição da vida plena, a negação mesma da vida. O trabalhador é
condenado a repetir incessantemente o
mínimo possível de operações, e com isso rebaixado à condição de máquina. (Seu trabalho se objetiva em
trabalho morto!). “Posto que o trabalhador baixou à [condição de] máquina, a
máquina pode enfrentá-lo como concorrente” (ibidem, p. 27). De fato, este é um
dos sentidos do fetiche moderno: o
trabalhador aparece na produção como mais uma peça da engrenagem da maquinaria
(capital constante, trabalho morto). A maquinaria da linha de produção se
apresenta a ele com um poder próprio, estranho – ele não se reconhece nela –, e
que o domina (Entfremdung). O capital
gera a discórdia entre as pessoas, a guerra entre os trabalhadores por emprego,
a diluição do caráter social, onde o
dinheiro (trabalho objetivado) se torna o alcoviteiro
das relações sociais (como se verá mais abaixo). O ser humano transformado em
máquina priva-se de sua humanidade natural e da natureza mesma. Neste sentido,
no capitalismo o trabalho não produz o ser humano, mas, ao contrário, deteriora-o (sentido negativo do trabalho), na
produção de coisas-mercadorias.
Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha o homem a natureza, 2)
[e o homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital;
ela estranha do homem o gênero [humano]. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio
da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual.
Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua
forma abstrata e estranha. (ibidem, p. 84).
O trabalho alienado é a objetividade
que se volta contra o trabalhador, isto é, pela mercadoria. Sem dúvida, já
vimos anteriormente que é pela forma
da mercadoria que o trabalhador é explorado; porém, esta exploração não é
entendida como tal.
A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o
significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa
(äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que fora dele (ausser
ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht)
autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil
e estranha (ibidem, p. 81).
Neste sentido, o trabalho é alienado
na forma de trabalho assalariado;
vendido (alienado) para outro. “O que antes era ser-externo-a-si (sich Äusserlichsein), exteriorização (Etäusserung) real do homem, tornou-se
apenas ato de exteriorização, de venda (Veräusserung)”
(MARX, 2008, p. 100). Vender sua força vital, eis o que é estranho! Logo, o
trabalho é transformado em propriedade de
outro – cedido a outro – por meio da forma mercadoria. “Se o trabalho é,
portanto, uma mercadoria, é então uma mercadoria com a mais infelizes
propriedade” (ibidem, p. 37). A infeliz
propriedade do trabalho-mercadoria, Marx demonstrará em obras posteriores,
é ser valor de uso e, sendo assim,
gerar mais-valor, através da exploração intensiva do trabalho não-pago. Ou seja, por meio da forma transparente e
aparentemente equivalente da forma social, desvenda-se a mais obscura
expropriação e degradação do ser humano.
Dentro desta perspectiva, a
exploração do trabalhador vai num sentido de “que seu próprio trabalho cada vez
mais se lhe defronte como propriedade alheia, e cada vez mais os meios de
existência de sua atividade se concentrem nas mãos do capitalista” (ibidem, p.
26). Deste modo, para a realização do trabalho-mercadoria (alienado) é
indispensável o trabalho aparecer como a única propriedade dos
trabalhadores. “É evidente por si mesmo que a economia nacional considere
apenas como trabalhador o proletário, isto é, aquele que, sem
capital e renda da terra, vive puramente do trabalho, e de um trabalho
unilateral, abstrato” (ibidem, p. 30).
Marx vai descrever, num momento
posterior, o processo histórico de expropriação camponesa, denominado de
“cercamentos”. Neste processo, milhares de camponeses, expropriados da terra,
migram para as cidades engrossando a mão-de-obra ociosa indispensável ao
mercado de trabalho relativo à indústria nascente. Analisando mais detidamente
este processo, constata-se que os camponeses foram expropriados (separados) de seus instrumentos e meios
de produção (terra). Estes camponeses, agora proletários, passam a ser
“proprietários” apenas de sua força de
trabalho enquanto “direito natural”, de acordo com os preceitos liberais
(Locke). Formam assim potencialmente a massa de trabalhadores assalariados,
onde a premissa do trabalho livre,
sem amarras (livres da terra) e independente do poder político (feudalismo), é
essencial ao desenvolvimento do capitalismo. No mercado, a força de trabalho é
mais uma mercadoria, consumida pela classe dos industriais. Convertido o
próprio corpo na mercadoria-trabalho,
os trabalhadores podem doravante
negociar “livremente”, supostamente em pé de igualdade, nos termos do contrato social, a compra e venda de
trabalho, na medida em que, tanto eles como a classe capitalista, aparecem na
figura de “proprietários”. O trabalho alienado,
trocado por salário (preço), passa a compor, de modo legítimo, os bens do
capitalista, que vai dispor de seu direito de proprietário para usá-lo como
bem entender.
Assim, o trabalho aparece como uma
mercadoria, logo subsumido ao capital:
O trabalhador [produz], portanto, a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador,
enquanto mercadoria, é o produto do movimento total. O homem nada mais é do que
trabalhador e, como trabalhador, suas propriedades humanas o são apenas na
medida em que o são para o capital, que lhe é estranho. (...) O trabalhador só
é, enquanto trabalhador, assim que é para si como capital, e só é, como
capital, assim que um capital é para ele. A existência (Dasein) do capital é sua
existência, sua vida, tal como determina o conteúdo de sua vida de um modo
indiferente a ele. (ibidem, p. 91).
Nesta passagem, é preciso ter
bastante cuidado, pois poderia suscitar a interpretação de que o ser humano se
realiza enquanto trabalhador, sendo o trabalho sua essência. Ora, é justamente o contrário. Aqui se trata de um
processo violento de incorporação de
categorias econômicas – capital-trabalho – que, como vimos, “deforma” o corpo e
põe a contradição fundamental da economia. Portanto, o trabalho converte-se em
capital! Além disso, a sociedade cinde-se de modo inconciliável: duas classes
principais aparecem em relação conflituosa.
Através do trabalho estranhado, exteriorizado, o trabalho engendra,
portanto, a relação de alguém estranho ao trabalho – do homem situado fora dele
– com este trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação
do capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o trabalho.
(ibidem, p. 87).
Portanto, o que está em jogo é a abstração do trabalhador dos meios de
produção (há muitas referências disto nos Manuscritos).
O estranhamento do trabalhador não está apenas, como vimos, no seu não
reconhecimento do seu produto (que é, exatamente, o trabalhador), mas também no
próprio fato do trabalho se tornar estranho ao trabalhador e, consequentemente,
o trabalhador se tornar estranho a si mesmo, seu espelho convexo: a identidade reconhecida no e pelo
trabalho. Pois, o próprio trabalhador se reconhece intimamente na figura
alienada de si mesmo, do trabalhador.
Primeiro, corporifica o trabalho;
depois personifica o trabalho. Na
personificação, a consciência é dilacerada. Vejamos:
Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob
apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com produtos do seu
trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e
principalmente, no ato de produção, dentro da própria atividade produtiva. Como
poderia o trabalhador defrontar-se alheio (fremd) ao produto da sua atividade
se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é,
sim, somente resumo (Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto
do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a
exteriorização ativa, a exteriorização da atividade da exteriorização. No
estranhamento do objeto do trabalho resume-se o estranhamento, a exteriorização
na atividade do trabalho mesmo (Ibidem, p. 82).
Nota-se que tais concepções
referem-se exclusivamente ao capitalismo. Por exemplo, na escravidão o escravo
tem consciência de que seu corpo é transformado num instrumento de trabalho e,
por isso, quer se libertar. O que não ocorre no modo de produção capitalista. O
próprio Marx, nos Manuscritos, não
faz um recuo a um passado longínquo em busca de uma “essência humana”,
remontada a uma sociedade primitiva idealizada. Inversamente, o método de Marx consiste
em examinar criticamente a realidade presente a partir da economia política
(nos Manuscritos designadas por
“economia nacional”), para depois “desviar” – ou negar, no sentido dialético –
tais pressupostos e desvelar seu conteúdo específico e, consequentemente, seu
caráter ideológico.
Partimos dos pressupostos da economia nacional. Aceitamos sua linguagem e
suas leis. Supusemos a propriedade privada, a separação de trabalho, capital e
terra, igualmente do salário, lucro e capital e renda da terra, da mesma forma que
a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor etc. A partir da
própria economia nacional, com suas próprias palavras, constatamos que o
trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria,
que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à potência (Macht) e à
grandeza (Grösse) da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é
a acumulação de capital em poucas mãos, portanto a mais tremenda restauração do
monopólio, que no fim a diferença entre capitalista e o rentista fundiário (Grundrentner)
desaparece, assim como entre o agricultor e trabalhador em manufatura, e que,
no final das contas, toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos
proprietários e dos trabalhadores sem propriedade. (Ibidem, p. 79).
É evidente, assim, que Marx quer
desnaturalizar os conceitos e categorias da economia política e não
“ontologizá-los”. Está claro nos Manuscritos
um período histórico bem demarcado: o capitalismo. O que exclui toda
possibilidade de uma ontologia do trabalho
abstrato. Há poucas passagens nos Manuscritos
que se referem a outros modos de produção, pré-capitalistas (essa análise será
realizada em obras posteriores). Ora, como já se afirmou, somente no
capitalismo há um predomínio do econômico, organizando as relações sociais de
produção. Entretanto, há muitas passagens nos Manuscritos ilustrando um processo contraditório, em que a riqueza
do capital é a miséria do trabalhador etc.
Fonte: Fragmento da tese de doutorado
“Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de
autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana –
LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.
Alienação (2): a negatividade do trabalho; Alienação (3):trabalho abstrato e fetichismo; Alienação (4): o fim do trabalho e a produçãodo ser humano
A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia
A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)
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[1] Perguntamos a nossa colega e amiga de tanto tempo,
Verônica, estudante de alemão da Faculdade de Letras da FFLCH-USP, que, em
programa de intercâmbio na Alemanha, escreveu-nos gentilmente: “Oi Jean... Tudo
bem? Tanta coisa acontecendo pelo Brasil e no mundo! (...) Quanto a sua
pergunta: Entäusserung é quando eu digo a minha opinião, tem a
ver com o que eu penso e o que eu sinto sobre o meu ponto de vista. Entfremdung
quer dizer, em linhas gerais, “estranhamento”. Se tornar estranho ao outro. Ou
também quando algo é esquecido ou também quando alguém é esquecido. Se faz
esquecer. Espero que te ajude. Pedi ajuda ao um alemão, meu namorado, ele disse
"nossa, seu amigo deve estudar coisas interessante", eu disse
"Ele é uma pessoa interessante e humana". Quando você precisar de
algo mais me fale e não só quando precisar. Pode escrever. Você ainda almoça no
bandejão, né?! E como vão os seus estudos? Como vai a sua vida? Sua família?
Tudo de bom a você Jean! Saudades. Abraços e beijos. Verônica Kienen Dias”.
Obrigado!
[2] A palavra alienação,
de origem latina (alienare, alienus mesmo radical de “alheio”), é
traduzida no alemão por Veräuβerung; Entfremdung; Geisteskrankeit (mental), entre outras. O sentido explícito de
alienação em sessão (de direitos ou
bens) ou transferência (“sair para fora”), ou melhor, a palavra
“externação” é, em alemão, Äuβerung ou
ainda “externo”, äusserlich. O termo
alemão Entäusserung é traduzido em
português por desapropriação, renúncia, abandonar, despojamento, expressar. “Estranho” é em alemão fremd (“estranhamento”, Befremden, entre outras). Nota-se que
“estranho” em português pode significar: desconhecido;
estrangeiro; alheio ao meio; forasteiro,
etc.
[3] Ausser, prep., fora de, fora; exposto,
além de... etc.
[4]
Ranieri traduz a palavra alemã Aufhebung
pelo neologismo “supra-sunção”. Assim explica os critérios da tradução: “Outro
obstáculo foi encontrar uma tradução adequada para o verbo aufheben que, em alemão, significa, a um só tempo, o ato de erguer
(algo do chão), o de guardar (um objeto, para que se conserve) e o de suspender
(por exemplo, a vigência de um ato jurídico). Em geral, traduz-se aufheben por suprimir, abolir ou ainda
superar, assim como se traduz o substantivo Aufhebung
por supressão, abolição ou superação. O problema é que o significado em aufheben e desdobramentos é muito maior,
mais rico e variado, o que dificulta sobremaneira a versão para um termo
adequado, que contenha ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do original.
Minha opção foi de vertê-los, de maneira geral, para supra-sumir e
supra-sunção, posto que o que se deve reter é a dinâmica do movimento dialético
que carrega consigo, no momento qualitativamente novo, elementos da etapa que
está sendo ou foi superada ou suprimida, ou seja, a um só tempo, a eliminação,
a conservação e a sustentação qualitativa do ser que supra-sume” (MARX, 2008,
p. 16). Embora bem concernente este argumentos para a compreensão da amplitude de
Aufhebung, nós optaremos apenas por negação determinada ou simplesmente negação dialética, para evitar uma leitura hermética e por demais erudita.
[5]
Hegel esboçou uma teoria da praxis. A
bem dizer, o conceito de praxis já está presente, na Filosofia do Direito, elaborado em sua amplitude, complexidade e
contradições. Nenhum aspecto, nenhum nível é desprezado: trabalho, organização
do trabalho, produção no sentido amplo (objetos e obras), necessidades
individuais e sociais, educação, família e familiaridade, praxis estreita e
praxis ampliada, política e histórica. A práxis é superação, abertura para a
realização e a presença efetiva da liberdade. A teoria da praxis aí está. E, todavia, não está: toda a praxis está presa à
especulação e é finalmente absorvida no Estado. (LEFEBVRE, 1967, p. 91).
[6]
Tal é o sentido da famosa proposição de Marx sobre a “inversão” da dialética
hegeliana, que é verdadeira se posta do avesso: a contradição, que é forma
exterior de manifestação da unidade real para Hegel, é o interno e essencial
para Marx, enquanto que a identidade, que é para Hegel esta essência interna e
verdadeira realidade, embora se manifeste exteriormente em coisas diferentes e
opostas, torna-se para Marx a aparência exterior de que reveste a realidade
essencialmente contraditória. (Nota: este é o ponto em que se apoia o artigo de
Theunissen, M. “Krise der Macht. These zur Theorie des dialektischen Widerspruchs”. In: Köhn,
Pahl-Rugenstein. Hegel jahrbuch.
Berlim, Verlag, 1974, p. 325). A igualdade jurídica entre o trabalhador e o
capitalista, assim, é real e básica para que a relação de capital exista, mas é
apenas uma dimensão externa determinada pela contradição mais profunda que de
fato constitui esta relação; é preciso que o trabalhador seja vendedor de mercadorias
para que venda sua força de trabalho ao capitalista, mas isto porque o capital
tem de comprar e possuir a propriedade da fonte de sua própria existência, do
valor que se valoriza, para poder ser capital. Desta forma, toda a harmonia é
somente o aspecto exterior de que se reveste a contradição do capitalista, não
podendo caracterizar por si só este sistema e servindo inclusive para mascarar
a contradição essencial dele; daí a crise represente seu desmascaramento,
determinando sua crítica. (GRESPAN, 1996, p. 300).
[7]
Que o homem é um ser corpóreo, dotado
de forças naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível significa que ele tem objetos efetivos, sensíveis como objeto
do seu ser, de sua manifestação de vida (Lebensäusserung),
ou que ele pode somente manifestar (äussern) sua vida em objetivos sensíveis
efetivos (wirkliche sinnliche Gegenstände).
(MARX, 2008, p. 127).
[8]
Deve estar claro, a esta altura, que nenhum
dos significados de alienação usados por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos desapareceu de seus escritos
posteriores. E não é surpresa. Pois o conceito de alienação, tal como é
compreendido por Marx em 1844, com todas as suas complexas ramificações, não é
um conceito que pudesse ser abandonado, ou unilateralmente “traduzido”.
(MÉSZÁROS, 2007, p. 207).
[9]
Não há realidade humana sem obras, mas não há obras sem uma atividade humana
produtora. As obras não deixam de ser “o ser-outro” do homem, que mantém com
ele dupla relação: alteridade,
alienação. A investigação marxista, sobre as relações entre o homem (social: o
da praxis) e as obras, não pode ser
considerada nem econômica, nem psicológica, nem sociológica, nem filosófica.
(LEFEBVRE, 1967, p. 96).
[10] O
comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo na
condição de ser genérico, ou o acionamento de seu [ser genérico] enquanto um
ser genérico efetivo, isto é, na condição de ser humano, somente é possível
porque ele efetivamente expõe (herauschafft)
todas as suas forças genéricas – o que é possível apenas mediante a ação
conjunta dos homens, somente enquanto resultado da história –, comportando-se
diante delas como frente a objetos, o que, por sua vez, só em princípio é
possível na forma do estranhamento. (MARX, 2008, p. 123).
[11]
(...) apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a
riqueza da sensibilidade humana
subjetiva, que um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as
fruições humanas todas se tornam sentidos
capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém cultivadas, em parte recém engendrados.
Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos
espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a
ser primeiramente pela existência do seu
objeto, pela natureza humanizada.
(Ibidem, p. 110).
[12] O
homem rico é simultaneamente o homem carente
de uma totalidade da manifestação humana de vida. (ibidem, p. 112).
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