Outras perspectivas: a produção do ser humano
por Jean Pires de A.
Gonçalves
A prática,
e não o sujeito, é a base das relações sociais. Porém, ela não se confunde com
o sujeito, mas, pelo contrário, o sujeito
emerge historicamente da praxis social; tanto na sua forma teórica (sujeito
cognoscente, ativo), como na sua forma social (contratual). Portanto, não há um
movimento paralelo no desenvolvimento econômico em relação à prática social.
Ambos coexistem, implicam-se, um no outro. A praxis engendra as relações sociais, políticas e econômicas.
Sobretudo, a prática engendra contradições sociais. Entretanto, estas
contradições podem engendrar novas práticas.
Deixemos agora as idiossincrasias de
Kurz de lado. Todavia, o estudo de seus textos foi necessário, porque, como
vimos, trata-se de uma interpretação atual da teoria do fetiche da mercadoria,
levando a extremo todas as suas consequências. Grosso modo, parte-se do
pressuposto da invasão da mercadoria em todos os aspectos da vida, nada
escapando de seus efeitos degradantes, numa socialização
negativa. De algum modo, ela reflete um contexto sócio-histórico, atendendo
expectativas práticas e teóricas de setores políticos. Ao impossibilitar
qualquer emancipação possível no cerne do “novo sistema produtor de
mercadorias”; esta só poderia advir de um plano transcendente, isto é, fora da
sociedade constituída por suas categorias. Entretanto, há pelo menos duas
lacunas que esboroam qualquer tentativa nesse sentido: primeiro, porque supõe
um binômio metafísico interior-exterior; sendo que o “exterior” é concebido
apenas dedutivamente sem, no entanto, apresentar qualquer indício ou pista para
alcançá-lo. Segundo, porque não compreende um sentido de superação pela tensão
das contradições. A sensação de inadequação
de alguns indivíduos não é suficiente para se constituir um projeto de mudança
efetiva; é extremamente vago[1]. Esta claro que tal perspectiva
teórica se encontra a oeste na rosa dos ventos do mapa-múndi político. Porém,
como absorve concepções tradicionais da esquerda enfatizando apenas sua
relevância científica e, ao mesmo tempo, tripudiando seu sentido militante e
engajado, permanece numa noite em que todos os gatos são pardos.
Deste modo, outras interpretações são
cabíveis partindo-se dos mesmos referenciais. É por estas veredas que nossa
reflexão seguirá agora: repensar o conceito de trabalho.
Não só o marxismo vulgar associou
intimamente produção e economia, mas, no interior da divisão
das ciências, esta concepção revelou-se promissora. Isto porque de fato no
capitalismo a base econômica é central, e por isso seu fundamento é o trabalho.
No capitalismo, a economia política é essencial. (...) As sociedades
históricas tiveram sua base econômica, certamente; não há sociedade sem
‘produção’, no sentido do termo; no entanto, nas sociedades passadas, as
relações sociais mais importantes não eram econômicas. Tomemos as sociedades
medievais. As relações hierarquizadas se construíram sobre uma base econômica,
sem se reduzir a ela; as relações de violência entre senhores e vassalos foram
‘extra-econômicas’ pois elas permitiam extrair do trabalho agrícola e artesanal
um sobreproduto, por meio de uma pressão direta, o que os mecanismos (que
deviam surgir pouco a pouco, mas não existia, de início: o mercado, o dinheiro)
não permitiam. Em resumo: em seu caráter elementar e violento ainda natural, as
relações sociais características da sociedade medievais se definem para Marx
como relações pessoais, imediatas, portanto, transparentes. (...) No
capitalismo, a base econômica comanda. O econômico comanda. As estruturas e
superestruturas organizam as relações de produção (o que em nada exclui os
atrasos, os distanciamentos e as disparidades) (LELEBVRE, 1999, pp. 111 e 112).
Neste sentido, o trabalho não foi sempre uma categoria econômica. “A formação do
capital e do capitalismo passa por uma fase de submissão formal do trabalho
social ao capital” (ibidem, p. 108). Portanto, fora do sistema capitalista, a
economia não ocupava uma centralidade.
Nas formações pré-capitalistas, como a sociedade medieval, as determinações
políticas regulavam diretamente o regime da vida social, inclusive os estatutos
da servidão. Logo, nestas sociedades não havia trabalho? Não é isso. Em toda a
história da civilização, a maior parte da sociedade foi mobilizada em
atividades com vistas à reprodução material. A diferença é que a produção não
isolava o trabalho numa esfera
autônoma, separada da totalidade da vida. Isto é, o trabalho está lá, mas não isolado, enquanto forma ou categoria
econômica. Mesmo nas sociedades onde o comércio era intenso, como na
Antiguidade, o trabalho assalariado era residual, não entrava na circulação de
mercadorias. Somente no capitalismo trabalho
é exclusivamente dirigido para um único fim: a produção de mercadorias. A
exploração se dá agora não diretamente, mas por coações econômicas. Assim
sendo, as sociedades modernas – isto é, o
liberalismo clássico – não adotaram o
conceito de trabalho mas constataram que pelo trabalho gerava-se riqueza. O
grande mérito de Marx, e o que faz com que este não seja um herdeiro da
tradição liberal, foi ter demonstrado um fundamento negativo no trabalho, a
saber: é inerente ao trabalho gerar a
pobreza humana, em todos os sentidos.
Descortinando historicamente as categorias da economia política, tidas por
naturais, Marx trouxe à luz a exploração do trabalhador (mais-valia). Noutras palavras, a riqueza se realiza no domínio das
coisas numa relação inversa ao domínio das relações propriamente humanas.
Feitas estas considerações, ainda
fica em aberto a definição de produção.
Se observarmos bem a citação acima, Lefebvre é categórico: não há sociedade sem “produção”. Mas, então, qual o seu sentido?
Pode-se, eventualmente, produzir mercadoria; pode-se produzir para a
subsistência; pode-se produzir artesanato; pode-se produzir obra de arte; etc.
Notam-se objetos de diferentes
qualidades que modificam o verbo produzir. O que é produção?
Aqui vem a fórmula decisiva. O que é produção? Num sentido amplo, herdado
de Hegel, mas transformado pela crítica da filosofia em geral e do hegelianismo
em particular, pela contribuição da antropologia, a produção não se limita à
atividade que fabrica coisas para trocá-las. Existem as obras e os produtos. A
produção em sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e
compreende a produção de ideias, das representações, da linguagem. (...) Assim,
a produção não deixa nada fora dela, nada do que é humano. O mental, o
intelectual, o que passa pelo ‘espiritual’ e o que a filosofia toma como seu
domínio próprio, são ‘produtos’ como o resto. Há produção das representações,
das ideias, das verdades, assim como das ilusões e erros. Há produção da
própria consciência. (...) No sentido estrito, há produção de bens, de
alimentação, de vestuário, de habitação, de coisas. Este último sentido apoia o
primeiro e designa sua base material. (ibidem, p. 46)[2].
Assim, Lefebvre questiona: “Por que
as observações críticas economizariam o pensamento crítico?” (ibidem, p. 47).
Interpretamos nesta frase que o “economizariam” pode ter duas acepções
recíprocas, o da redução a apenas um único aspecto e, por conseguinte, o
próprio sentido economicista dos
conceitos da teoria. Aqui, eis uma pista da teoria do fetiche.
Toda sociedade humana produz. Produção é criação. A produção engendra
relações; num sentido ainda mais profundo, constitui o próprio ser humano e, por conseguinte, produz a consciência. Ou seja, linguagem, pensamento, instrumentos,
arte, ciência etc. A prática – atividade – é seu fundamento, o que há de mais
concreto. O mínimo gesto já define uma prática. Neste caso, é interessante a
seguinte formulação fundamental em Lefebvre:
O ato do pensamento destaca da totalidade do real, mediante um recorte
real ou ‘ideal’, aquilo que é correntemente chamado de um ‘objeto de
pensamento’. Um tal produto abstrato do pensamento não apresenta nada mais de
misterioso que um produto da ação prática. Esse martelo é um objeto que isolo
provisoriamente por meio de contornos definidos; ele vai me permitir separar da
totalidade natureza outros objetos (essas pedras que quero cortar), vai me
permitir impor a tais objetos, por seu turno, contornos bem definidos.
(LEFEBVRE, 1995, p. 112).
A produção das coisas materiais
alcança o nível abstrato que molda, forma e conforma as relações sociais e
materiais. O espaço é produzido, assim como o tempo.
Um operário trajado com roupas sujas
e amarrotadas finca no chão a enxada para limpar o terreno, que será escavado
por tratores e máquinas movidas por outros operários, onde triunfalmente serão
lançados os alicerces de uma grande edificação. Ali ele inicia um movimento,
mínimo. Em poucos meses, porém, esses trabalhadores erguem um esqueleto
monumental que se atira em direção ao zênite. Logo em seguida, as paredes
isolam a construção do vento e da chuva. Agora, só resta o acabamento. O
prédio, enfim, edificado, poderá servir para muitos propósitos. Mas supomos que
neste caso se estabeleça ali um fórum de justiça. Provavelmente este espaço
será grandioso; vigorosas colunas potencializam seu esplendor, uma portaria
imensa abre-se para um vestíbulo descomunal com um teto altíssimo e ornado com
lustres de cristal de se perder a vista. Diante dele nos sentimos formiguinhas
insignificantes. Socialmente, este prédio representa o poder; onde serão
tomadas decisões sobre as demandas sociais em litígio. Este é o seu reconhecido
sentido simbólico, sua representação. Edificado, o operário da enxada jamais
poderá atravessar seu portal com suas velhas roupas desbotadas e puídas. Os
ritos da justiça exigem decoro às insígnias do direito, da Lei. Os trajes,
exóticos, são neste lugar deveras importantes. Agora o imponderável: Poderá
acontecer um dia, eventualmente, deste mesmo operário ser condenado neste mesmo
prédio. Uma simples canetada de um magistrado põe abaixo seu casebre e sua
família na rua. Uma decisão de alguém, que nem sequer conhece o operário ou conviveu
com ele para saber se é uma boa pessoa ou não; uma decisão que aciona tratores
(dirigido por outros operários) e policiais que esmagam impiedosamente sua
singela residência. Outros interesses são mais importantes. Contudo, se por
acaso o operário um dia se revoltar, será preso e taxado de “vagabundo”, ainda
que tenha passado toda vida trabalhando. O operário não percebia que no ato em
que fincava a enxada apunhalava seu próprio coração. O operário não podia
compreender que, ao embrutecer-se no trabalho pesado, com todas as suas forças
criava seu algoz e também o letrado, que um dia se voltaria contra ele. Não
percebia que a enxada que sulcava a terra ao mesmo tempo criava leis abstratas
que o subjugariam. Surpresa. Espanto. O operário não percebeu que o juiz que o
condenava não era senão sua própria
imagem refletida num espelho côncavo. O seu sacrifício e o dos camaradas de
sua classe que arriscaram a vida no alto dos andaimes engendraram aquele
Edifício que é muito mais que um edifício. Edifício que de agora em diante
olha-o concretamente, de semblante grave e severo. Vigia-o, questiona-o,
reprova-o. Franze as enormes sobrancelhas, inquire. Impõe-se arrogantemente
arrogante. O operário abaixa a cabeça, encolhe os ombros. O Edifício colossal
intempestiva e subitamente ergue seu pé gigantesco e sem mais nem menos esmaga
o operário, como uma barata. Esmaga-o e esmaga-o infinitas vezes, esmaga-o.
“Aquele que não tem capital nem
dinheiro, ninguém se preocupa com ele. Se não encontra trabalho, pode roubar ou
morrer de fome” (LEFEBVRE, 1999, p. 16). A classe burguesa não dá a mínima para
o fetiche moderno, o que não impede de desfrutar de uma qualidade de vida
incomparavelmente melhor que a dos trabalhadores ou daqueles que não encontram
trabalho. “A vida dos ricos é um tédio, tão deprimente, coitadinhos!” Ora, não
é nada disso! Mansões, iates, viagens a qualquer parte do mundo, a qualquer
hora, melhores hotéis, restaurantes, hospitais, sem fila nem espera (...)
enfim, fetiche da mercadoria! Ora, a classe burguesa (a superclasse) não dá a
mínima para as fantasmagorias do fetiche e fará de tudo para manter seus
privilégios - mesmo que o capitalismo esteja nos seus estertores. A classe
média se sacrifica, se debate, se esperneia, grita, xinga, perde a compostura
para assegurar suas pequenas posses. Os pobres se engalfinham, brigam, lutam
pelo pão nosso de cada dia. Neste sentido, seríamos surpreendentemente ingênuos
em pensar uma emancipação da humanidade ao largo das contradições do
capitalismo e, consequentemente, imaginar uma maravilhosa aliança entre
“indivíduos organizados”, isto é, patrões, trabalhadores e sem-tetos, todos de
braços dados, unidos, marchando pelas ruas com faixas, cartazes e cantando
palavras de ordem: “Fora fetiche! Fora fetiche! Abaixo o mundo da mercadoria!
Hipe, hipe, hurra!”. Citando A Ideologia
Alemã, de Marx, Lefebvre escreve:
Não é a consciência que determina a vida (social), mas a vida que
determina a consciência. A libertação ‘é um fato histórico e não um fato
intelectual. Impossível libertar os homens enquanto eles não forem capazes de
adquirir o que lhes é necessário para viver: alimentação, bebida, habitação,
vestuário em qualidade e quantidade perfeitas’ (vollständig). (ibidem, pp. 45 e
46).
A certa altura do livro “A produção
do espaço”, Lefebvre compreende metodologicamente que se anuncia um tempo onde
deixa de se produzir coisas para se produzir relações. Da mesma forma, Marx
também anunciava a tendência de um mundo totalmente dominado pela mercadoria
(fetiche).
Ora, Kurz leva ao extremo o fetiche
moderno, algo que já havia sido anunciado por Marx, no capítulo inédito de O capital.
Neste sentido, pergunta-se, “a mercadoria
(o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro. O valor de troca imporá a lei do
valor ao planeta inteiro. Num sentido, a história não será senão aquela da
mercadoria?” (vale a pena repetir esta frase da citação acima). Se for
verdade que, e parece que sim, a mercadoria vem absorvendo todos os momentos da
vida, não restaria nada na vida que lhe escapasse? Resíduos, apenas? A festa, o amor, a amizade,
a música, etc. No mundo da mercadoria: quais
são então os seus obstáculos? A reprodução das relações sociais de produção
reproduz também suas contradições, a exploração (mais-valia): sujeição,
sofrimento, humilhação, desespero; que se repetem indefinidamente. O que
suscita um dilema: sofrer eternamente
ou mudar a vida! Noutras palavras:
suportar o fardo da escravidão e viver de joelhos, humilhado para sempre,
porque, de qualquer forma, assim será, ou dizer sim à vida e mudá-la radicalmente! A reprodução da submissão, sua
repetição, engendra a diferença, a todo instante, aqui-agora, sempre se abrem
dois caminhos, o novo e o mesmo. Em todas as circunstancias, em todo momento,
sempre a possibilidade de mudar. O capitalista é reproduzido; o trabalhador, o
sem-teto, o desempregado também. Repete-se o dilema: aceitar as premissas do
fetiche, adorar a mercadoria e renunciar à vida ou dizer um basta. Seja qual
for a escolha, assim serão repetidas infinitas vezes. Diariamente.
Dia-após-dia. O cotidiano, assim, é o berço das revoluções.
Recapitulemos: por de trás da
homogeneidade e transparência da lógica da identidade, quando reproduzida,
descobrem-se diferenças incontáveis, contradições inconciliáveis. Em termos
mais precisos, a reprodução das relações
sociais de produção engendra também a
reprodução das lutas sociais. As possibilidades infinitas contidas no ser
humano não podem ser formatadas totalmente sem resistência. O residual é o
sofrimento, a tristeza, a alegria, a felicidade, a criatividade; é no residual
que se vai extrair o novo.
Estas concepções inspiradas na nossa
leitura da obra de Lefebvre merecem mais algumas considerações. Para Lefebvre,
a obra de Marx tende a um “reino dos fins”.
Quando Marx leva ao limite seu raciocínio teórico, para onde ele vai e o
que encontra? O reino dos fins. Entre esses fins e os envolvendo, ou os
supondo, para além dos fins parciais, se assim se pode dizer (o do capitalismo
do Estado, da raridade, da filosofia, da história, da família etc.) tem-se
precedentemente sublinhado o do trabalho. (LEFEBVRE, 1999, p. 128).
O que está em jogo no desenvolvimento
das forças produtivas é a possibilidade da maquinaria ou do robô substituírem
totalmente o ser humano na linha de montagem da fábrica, stricto sensu, e do trabalho em geral: o fim do trabalho. Lefebvre sublinha: “O trabalho só tem por sentido e por objetivo o não-trabalho” (Ibidem,
p 129). Ou melhor: “O fim do trabalho, que paradoxo naquele que descobriu a
importância do trabalho e passa, antes de tudo, pelo teórico da classe
operária? E, entretanto, sabemo-lo já, a automatização da produção permite
vislumbrar o fim do trabalho produtor” (Ibidem, p. 128). Marx é profundamente
otimista neste aspecto. “Nada mais positivo que esta concepção de automatismo”
(Ibidem p. 73). Mesmo se pensarmos num cenário tenebroso da automação, de
desemprego, miséria, fome etc., haverá sempre a possibilidade de uma
reviravolta e de submeter as máquinas à vontade humana. Marx supõe um
desenvolvimento tão fabuloso da produção, por meio da automatização do capital
constante, que deriva daí a coexistência de pelo menos duas perspectivas:
primeiro, o reino da necessidade é
substituído totalmente pelo reino da
abundância e liberdade; e, segundo, o processo produtivo é totalmente
automatizado a ponto de liberar as pessoas para atividades criativas, ligadas à
arte, pedagogia, poesia etc. Todavia, o que se assiste hoje é o incremento do
capital constante redundando em desemprego estrutural (já é até admitido
cientificamente, para os economistas liberais, uma média de índice “x” de
desempregados permanentes, que nunca assinarão a carteira: são qualificados de
“desencorajados”). Esse paradoxo é latente: produção crescente e miséria, idem.
A automação atual é altamente negativa. Portanto, novamente, há duas
alternativas; somente duas; de duas, uma: 1. a contradição inerente ao capital
o levaria automaticamente a um esgotamento de seus pressupostos, resultando num
vácuo político aberto a aventureiros pouco recomendados; ou, 2. movimentos
politicamente organizados assumiriam o controle e colocariam as máquinas para
“trabalhar”, distribuindo igualmente os frutos da produção. Dessas duas
alternativas, é possível extrapolar digressões através da identificação de
virtualidades possíveis e formular questões: Se a robótica substituir
completamente o trabalho humano, num futuro talvez não tão longínquo, será o
fim do capitalismo, entretanto, as classes dominantes tentarão ainda exercer
seu poder? E os “desencorajados”, que serão a imensa maioria, como poderão
garantir sua sobrevivência? O mundo tornar-se-á mais violento? Escravos, de
joelhos, vão implorar pelo beijo do chicote? Será necessário exterminar
sistemática e aleatoriamente grandes contingentes populacionais em campos de
concentração? As bombas atômicas serão jogadas sobre cidades novamente? Ou, num
cenário um pouco mais otimista: A miséria humana será erradicada através da
distribuição de recursos por políticas assistencialistas? Paremos por aqui, a
lista de hipóteses é demasiadamente grande, basta imaginar. Mas, como resolver
este dilema? Voltemos a repetir, sem uma praxis
transformadora, o destino da humanidade permanecerá ao sabor dos acontecimentos
caóticos do mundo, onde tudo será em vão! A autogestão parece surgir no
horizonte como alternativa à barbárie[3].
Portanto onde se encontra a utopia? No coração do real que ele habita.
Onde se encontra a “realidade”? No possível? Certamente. Mas o que é possível e
impossível? (Ibidem, p. 73).
Utopia? Sim e não. Impossível? Sim e
não. Virtualidades, apenas.
Possibilidade teórica e prática? Incontestavelmente. O encadeamento
posterior das descobertas técnicas confirmou plenamente as visões de Marx.
Impossibilidade? Certamente, nos quadros do capitalismo e mesmo da famosa
‘transição’ para uma sociedade socialista ou comunista. Utopia portanto, mas
utopia concreta, possibilidade que ilumina o atual e que distancia o atual do
possível” (Ibidem, p. 128).
Para encerrar, detenhamo-nos mais
sobre um ponto, que ficamos devendo. Diz respeito à metodologia dos Grundrisse. Segundo Lefebvre, na
introdução desta obra, Marx discorre sobre “categorias (conceitos)” de relações
sociais mais desenvolvidas da sociedade burguesa que, todavia, permitem
apreender as estruturas e relações de produção de sociedades passadas, pois
subsistem vestígios e virtualidades que alcançam sentido pleno no capitalismo[4]. Tal método é aquilo que Lefebvre
denominará regressivo-progressivo,
isto é, compreender a gênese de um fenômeno, partindo do atual para o passado e
inversamente. Vejamos:
A dialetização do próprio método se persegue, assim, sem que a lógica e a
coerência tenham que sofrer. Não obstante, há riscos de obscuridade e de
repetições. Marx nem sempre as evitou. Ele as conhecia. A tal ponto que a
exposição d’O capital não segue exatamente o método promulgado nos Grundrisse.
A grande exposição doutrinal parte de uma forma, a do valor de troca, e não de
conceitos postos no primeiro plano na obra anterior: a produção e o trabalho. A
démarche anunciada nos Grundrisse se reencontra a propósito da acumulação de
capital: Marx mantinha suas proposições metodológicas desde quando estudava na
Inglaterra o capitalismo o mais avançado, para compreender os outros países e o
próprio processo de formação do capitalismo. (LEFEBVRE, 2003, Capítulo I, par.
169).
Neste sentido, “certos traços
pré-capitalistas penetram no capitalismo. Eles se acentuam não somente na sua
periferia agrícola, mas no próprio seio da realidade urbana” (LEFEBVRE, 1999,
p. 163).
O capitalismo supera e conserva estes
traços, dá-lhes um sentido novo, mas
guarda os restos de sua história. O camponês expropriado está no operário,
assim como o operário está no desempregado permanente, o “desencorajado”, etc.
Ou, numa outra possibilidade, o capital, em momentos de crise, reinstitui a
escravidão. Assim, as categorias (ou conceitos) do capitalismo quando
projetadas ao passado, longe de representarem um anacronismo metodológico, muito pelo contrário, desvendam tais
relações. Somente através da realidade atual se pode conceber e compreender o
passado e, ainda, extrapolá-la virtualmente no futuro. Logo, o trabalho
abstrato permite compreender o trabalho privado – independente – das sociedades
pré-capitalistas, enquanto pressuposto, mas, por outro lado, permite vislumbrar
também a superação do próprio trabalho social, o seu fim.
Há em Lefebvre uma positividade dialética – não a suprime –
no desenrolar da história. A história da humanidade é a história da superação e
dominação da natureza, inclusive, da natureza humana. O que faz pensar: a tão
propalada hecatombe da natureza é simultaneamente a destruição da humanidade. O
objetivo da produção em sentido amplo, da produção humana, é um paradoxo: o
retorno à natureza, inclusive, à natureza humana. O desenvolvimento das forças
produtivas no capitalismo, por exemplo, permitiu criar virtualmente o reino da
abundância e da liberdade em relação à carestia e necessidade. Assim, o Estado
moderno resgatou o ideal humanista, da igualdade e da liberdade,
constituindo-se numa virtualidade presente mas ausente de fato. Os pressupostos
do ideal humanista devem ser atualizados, urgentemente. O que provavelmente
implica na ausência do Estado. Ao seguir a estrada, caminhando, acima somente o
céu e os astros luminosos, testemunhas antigas de erros e acertos; ao redor, a
natureza, preciosa; embaixo, a terra; atrás, lembranças, arrependimentos; à
frente, uma bifurcação.
Fonte: Fragmento da tese
de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia,
FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de
Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar
bibliografia diretamente na tese.
Alienação (1): otrabalho alienado; Alienação (2): a negatividade do trabalho; Alienação (3):trabalho abstrato e fetichismo;
A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia
A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)
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[1]
(...) a crítica radical não significaria porventura querer mobilizar o sujeito
(...) contra a escravizante objetivação mas antes, mobilizar, através da
‘brecha’ existente nos indivíduos reais, a ‘individualidade organizada’, que
vai ganhando consciência do fato de não se encaixar nas nem reduzir às formas
do fetiche, contra a compulsiva relação sujeito-objeto da constituição moderna
da forma. (KURZ, 2003, par. 22).
[2] A
acepção ampla, herdada da filosofia. Produção
significa criação e se aplica à arte,
à ciência, às instituições, ao próprio Estado, assim como às atividades
geralmente designadas ‘práticas’. A divisão do trabalho que fragmenta a
produção e faz com que o processo escape à consciência e a linguagem. A
natureza, ela própria transformada, é produzida; o mundo sensível, que parece
dado, é criado. (...) A acepção estrita, precisa, embora reduzida e redutora,
herdada dos economistas (Adam Smith, Ricardo) mas modificada pela contribuição
de uma concepção global, a história. (LEFEBVRE, 1999, p. 46).
[3] Vejamos o que Bakunin tem a dizer sobre a autogestão:
“É necessário a abolição do Estado, que nunca teve outra missão a não ser a de
regularizar, sancionar e proteger, com a bênção da Igreja, a dominação das
classes privilegiadas e a exploração do trabalho popular em proveito dos ricos.
Logo, é preciso: a reorganização da sociedade, de baixo para cima, pela
formação livre e pela livre federação das associações operárias, tanto
industriais e agrícolas como científicas e artísticas, o operário tornando-se,
ao mesmo tempo, homem de arte e de ciência, e os artistas e os sábios
tornando-se também operários manuais, associações e federações livres, baseadas
na propriedade coletiva da terra, dos capitais, das matérias-primas e dos
instrumentos de trabalho (...)” (BAKUNIN,
1999, p. 190). E Marx: “É que assim que o trabalho começa a ser
distribuído, cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que
lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor, ou
crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de produção
– ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo
exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a
sociedade regula a produção geral e, principalmente desse modo, torna possível
que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde,
crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de
me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico” (MARX, 1977, p. 47).
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