domingo, 20 de maio de 2018

ALIENAÇÃO (PARTE 4): O FIM DO TRABALHO E A PRODUÇÃO DO SER HUMANO

Outras perspectivas: a produção do ser humano


por Jean Pires de A. Gonçalves

A prática, e não o sujeito, é a base das relações sociais. Porém, ela não se confunde com o sujeito, mas, pelo contrário, o sujeito emerge historicamente da praxis social; tanto na sua forma teórica (sujeito cognoscente, ativo), como na sua forma social (contratual). Portanto, não há um movimento paralelo no desenvolvimento econômico em relação à prática social. Ambos coexistem, implicam-se, um no outro. A praxis engendra as relações sociais, políticas e econômicas. Sobretudo, a prática engendra contradições sociais. Entretanto, estas contradições podem engendrar novas práticas.

Deixemos agora as idiossincrasias de Kurz de lado. Todavia, o estudo de seus textos foi necessário, porque, como vimos, trata-se de uma interpretação atual da teoria do fetiche da mercadoria, levando a extremo todas as suas consequências. Grosso modo, parte-se do pressuposto da invasão da mercadoria em todos os aspectos da vida, nada escapando de seus efeitos degradantes, numa socialização negativa. De algum modo, ela reflete um contexto sócio-histórico, atendendo expectativas práticas e teóricas de setores políticos. Ao impossibilitar qualquer emancipação possível no cerne do “novo sistema produtor de mercadorias”; esta só poderia advir de um plano transcendente, isto é, fora da sociedade constituída por suas categorias. Entretanto, há pelo menos duas lacunas que esboroam qualquer tentativa nesse sentido: primeiro, porque supõe um binômio metafísico interior-exterior; sendo que o “exterior” é concebido apenas dedutivamente sem, no entanto, apresentar qualquer indício ou pista para alcançá-lo. Segundo, porque não compreende um sentido de superação pela tensão das contradições. A sensação de inadequação de alguns indivíduos não é suficiente para se constituir um projeto de mudança efetiva; é extremamente vago[1]. Esta claro que tal perspectiva teórica se encontra a oeste na rosa dos ventos do mapa-múndi político. Porém, como absorve concepções tradicionais da esquerda enfatizando apenas sua relevância científica e, ao mesmo tempo, tripudiando seu sentido militante e engajado, permanece numa noite em que todos os gatos são pardos.

Deste modo, outras interpretações são cabíveis partindo-se dos mesmos referenciais. É por estas veredas que nossa reflexão seguirá agora: repensar o conceito de trabalho.

Não só o marxismo vulgar associou intimamente produção e economia, mas, no interior da divisão das ciências, esta concepção revelou-se promissora. Isto porque de fato no capitalismo a base econômica é central, e por isso seu fundamento é o trabalho.

No capitalismo, a economia política é essencial. (...) As sociedades históricas tiveram sua base econômica, certamente; não há sociedade sem ‘produção’, no sentido do termo; no entanto, nas sociedades passadas, as relações sociais mais importantes não eram econômicas. Tomemos as sociedades medievais. As relações hierarquizadas se construíram sobre uma base econômica, sem se reduzir a ela; as relações de violência entre senhores e vassalos foram ‘extra-econômicas’ pois elas permitiam extrair do trabalho agrícola e artesanal um sobreproduto, por meio de uma pressão direta, o que os mecanismos (que deviam surgir pouco a pouco, mas não existia, de início: o mercado, o dinheiro) não permitiam. Em resumo: em seu caráter elementar e violento ainda natural, as relações sociais características da sociedade medievais se definem para Marx como relações pessoais, imediatas, portanto, transparentes. (...) No capitalismo, a base econômica comanda. O econômico comanda. As estruturas e superestruturas organizam as relações de produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades) (LELEBVRE, 1999, pp. 111 e 112).

Neste sentido, o trabalho não foi sempre uma categoria econômica. “A formação do capital e do capitalismo passa por uma fase de submissão formal do trabalho social ao capital” (ibidem, p. 108). Portanto, fora do sistema capitalista, a economia não ocupava uma centralidade. Nas formações pré-capitalistas, como a sociedade medieval, as determinações políticas regulavam diretamente o regime da vida social, inclusive os estatutos da servidão. Logo, nestas sociedades não havia trabalho? Não é isso. Em toda a história da civilização, a maior parte da sociedade foi mobilizada em atividades com vistas à reprodução material. A diferença é que a produção não isolava o trabalho numa esfera autônoma, separada da totalidade da vida. Isto é, o trabalho está lá, mas não isolado, enquanto forma ou categoria econômica. Mesmo nas sociedades onde o comércio era intenso, como na Antiguidade, o trabalho assalariado era residual, não entrava na circulação de mercadorias. Somente no capitalismo trabalho é exclusivamente dirigido para um único fim: a produção de mercadorias. A exploração se dá agora não diretamente, mas por coações econômicas. Assim sendo, as sociedades modernas – isto é, o liberalismo clássico – não adotaram o conceito de trabalho mas constataram que pelo trabalho gerava-se riqueza. O grande mérito de Marx, e o que faz com que este não seja um herdeiro da tradição liberal, foi ter demonstrado um fundamento negativo no trabalho, a saber: é inerente ao trabalho gerar a pobreza humana, em todos os sentidos. Descortinando historicamente as categorias da economia política, tidas por naturais, Marx trouxe à luz a exploração do trabalhador (mais-valia). Noutras palavras, a riqueza se realiza no domínio das coisas numa relação inversa ao domínio das relações propriamente humanas.

Feitas estas considerações, ainda fica em aberto a definição de produção. Se observarmos bem a citação acima, Lefebvre é categórico: não há sociedade sem “produção”. Mas, então, qual o seu sentido? Pode-se, eventualmente, produzir mercadoria; pode-se produzir para a subsistência; pode-se produzir artesanato; pode-se produzir obra de arte; etc. Notam-se objetos de diferentes qualidades que modificam o verbo produzir. O que é produção?

Aqui vem a fórmula decisiva. O que é produção? Num sentido amplo, herdado de Hegel, mas transformado pela crítica da filosofia em geral e do hegelianismo em particular, pela contribuição da antropologia, a produção não se limita à atividade que fabrica coisas para trocá-las. Existem as obras e os produtos. A produção em sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção de ideias, das representações, da linguagem. (...) Assim, a produção não deixa nada fora dela, nada do que é humano. O mental, o intelectual, o que passa pelo ‘espiritual’ e o que a filosofia toma como seu domínio próprio, são ‘produtos’ como o resto. Há produção das representações, das ideias, das verdades, assim como das ilusões e erros. Há produção da própria consciência. (...) No sentido estrito, há produção de bens, de alimentação, de vestuário, de habitação, de coisas. Este último sentido apoia o primeiro e designa sua base material. (ibidem, p. 46)[2].

Assim, Lefebvre questiona: “Por que as observações críticas economizariam o pensamento crítico?” (ibidem, p. 47). Interpretamos nesta frase que o “economizariam” pode ter duas acepções recíprocas, o da redução a apenas um único aspecto e, por conseguinte, o próprio sentido economicista dos conceitos da teoria. Aqui, eis uma pista da teoria do fetiche.

Toda sociedade humana produz. Produção é criação. A produção engendra relações; num sentido ainda mais profundo, constitui o próprio ser humano e, por conseguinte, produz a consciência. Ou seja, linguagem, pensamento, instrumentos, arte, ciência etc. A prática – atividade – é seu fundamento, o que há de mais concreto. O mínimo gesto já define uma prática. Neste caso, é interessante a seguinte formulação fundamental em Lefebvre:

O ato do pensamento destaca da totalidade do real, mediante um recorte real ou ‘ideal’, aquilo que é correntemente chamado de um ‘objeto de pensamento’. Um tal produto abstrato do pensamento não apresenta nada mais de misterioso que um produto da ação prática. Esse martelo é um objeto que isolo provisoriamente por meio de contornos definidos; ele vai me permitir separar da totalidade natureza outros objetos (essas pedras que quero cortar), vai me permitir impor a tais objetos, por seu turno, contornos bem definidos. (LEFEBVRE, 1995, p. 112).

A produção das coisas materiais alcança o nível abstrato que molda, forma e conforma as relações sociais e materiais. O espaço é produzido, assim como o tempo.

Um operário trajado com roupas sujas e amarrotadas finca no chão a enxada para limpar o terreno, que será escavado por tratores e máquinas movidas por outros operários, onde triunfalmente serão lançados os alicerces de uma grande edificação. Ali ele inicia um movimento, mínimo. Em poucos meses, porém, esses trabalhadores erguem um esqueleto monumental que se atira em direção ao zênite. Logo em seguida, as paredes isolam a construção do vento e da chuva. Agora, só resta o acabamento. O prédio, enfim, edificado, poderá servir para muitos propósitos. Mas supomos que neste caso se estabeleça ali um fórum de justiça. Provavelmente este espaço será grandioso; vigorosas colunas potencializam seu esplendor, uma portaria imensa abre-se para um vestíbulo descomunal com um teto altíssimo e ornado com lustres de cristal de se perder a vista. Diante dele nos sentimos formiguinhas insignificantes. Socialmente, este prédio representa o poder; onde serão tomadas decisões sobre as demandas sociais em litígio. Este é o seu reconhecido sentido simbólico, sua representação. Edificado, o operário da enxada jamais poderá atravessar seu portal com suas velhas roupas desbotadas e puídas. Os ritos da justiça exigem decoro às insígnias do direito, da Lei. Os trajes, exóticos, são neste lugar deveras importantes. Agora o imponderável: Poderá acontecer um dia, eventualmente, deste mesmo operário ser condenado neste mesmo prédio. Uma simples canetada de um magistrado põe abaixo seu casebre e sua família na rua. Uma decisão de alguém, que nem sequer conhece o operário ou conviveu com ele para saber se é uma boa pessoa ou não; uma decisão que aciona tratores (dirigido por outros operários) e policiais que esmagam impiedosamente sua singela residência. Outros interesses são mais importantes. Contudo, se por acaso o operário um dia se revoltar, será preso e taxado de “vagabundo”, ainda que tenha passado toda vida trabalhando. O operário não percebia que no ato em que fincava a enxada apunhalava seu próprio coração. O operário não podia compreender que, ao embrutecer-se no trabalho pesado, com todas as suas forças criava seu algoz e também o letrado, que um dia se voltaria contra ele. Não percebia que a enxada que sulcava a terra ao mesmo tempo criava leis abstratas que o subjugariam. Surpresa. Espanto. O operário não percebeu que o juiz que o condenava não era senão sua própria imagem refletida num espelho côncavo. O seu sacrifício e o dos camaradas de sua classe que arriscaram a vida no alto dos andaimes engendraram aquele Edifício que é muito mais que um edifício. Edifício que de agora em diante olha-o concretamente, de semblante grave e severo. Vigia-o, questiona-o, reprova-o. Franze as enormes sobrancelhas, inquire. Impõe-se arrogantemente arrogante. O operário abaixa a cabeça, encolhe os ombros. O Edifício colossal intempestiva e subitamente ergue seu pé gigantesco e sem mais nem menos esmaga o operário, como uma barata. Esmaga-o e esmaga-o infinitas vezes, esmaga-o.

“Aquele que não tem capital nem dinheiro, ninguém se preocupa com ele. Se não encontra trabalho, pode roubar ou morrer de fome” (LEFEBVRE, 1999, p. 16). A classe burguesa não dá a mínima para o fetiche moderno, o que não impede de desfrutar de uma qualidade de vida incomparavelmente melhor que a dos trabalhadores ou daqueles que não encontram trabalho. “A vida dos ricos é um tédio, tão deprimente, coitadinhos!” Ora, não é nada disso! Mansões, iates, viagens a qualquer parte do mundo, a qualquer hora, melhores hotéis, restaurantes, hospitais, sem fila nem espera (...) enfim, fetiche da mercadoria! Ora, a classe burguesa (a superclasse) não dá a mínima para as fantasmagorias do fetiche e fará de tudo para manter seus privilégios - mesmo que o capitalismo esteja nos seus estertores. A classe média se sacrifica, se debate, se esperneia, grita, xinga, perde a compostura para assegurar suas pequenas posses. Os pobres se engalfinham, brigam, lutam pelo pão nosso de cada dia. Neste sentido, seríamos surpreendentemente ingênuos em pensar uma emancipação da humanidade ao largo das contradições do capitalismo e, consequentemente, imaginar uma maravilhosa aliança entre “indivíduos organizados”, isto é, patrões, trabalhadores e sem-tetos, todos de braços dados, unidos, marchando pelas ruas com faixas, cartazes e cantando palavras de ordem: “Fora fetiche! Fora fetiche! Abaixo o mundo da mercadoria! Hipe, hipe, hurra!”. Citando A Ideologia Alemã, de Marx, Lefebvre escreve:

Não é a consciência que determina a vida (social), mas a vida que determina a consciência. A libertação ‘é um fato histórico e não um fato intelectual. Impossível libertar os homens enquanto eles não forem capazes de adquirir o que lhes é necessário para viver: alimentação, bebida, habitação, vestuário em qualidade e quantidade perfeitas’ (vollständig). (ibidem, pp. 45 e 46).

A certa altura do livro “A produção do espaço”, Lefebvre compreende metodologicamente que se anuncia um tempo onde deixa de se produzir coisas para se produzir relações. Da mesma forma, Marx também anunciava a tendência de um mundo totalmente dominado pela mercadoria (fetiche).

Ora, Kurz leva ao extremo o fetiche moderno, algo que já havia sido anunciado por Marx, no capítulo inédito de O capital. Neste sentido, pergunta-se, “a mercadoria (o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro. O valor de troca imporá a lei do valor ao planeta inteiro. Num sentido, a história não será senão aquela da mercadoria?” (vale a pena repetir esta frase da citação acima). Se for verdade que, e parece que sim, a mercadoria vem absorvendo todos os momentos da vida, não restaria nada na vida que lhe escapasse?  Resíduos, apenas? A festa, o amor, a amizade, a música, etc. No mundo da mercadoria: quais são então os seus obstáculos? A reprodução das relações sociais de produção reproduz também suas contradições, a exploração (mais-valia): sujeição, sofrimento, humilhação, desespero; que se repetem indefinidamente. O que suscita um dilema: sofrer eternamente ou mudar a vida! Noutras palavras: suportar o fardo da escravidão e viver de joelhos, humilhado para sempre, porque, de qualquer forma, assim será, ou dizer sim à vida e mudá-la radicalmente! A reprodução da submissão, sua repetição, engendra a diferença, a todo instante, aqui-agora, sempre se abrem dois caminhos, o novo e o mesmo. Em todas as circunstancias, em todo momento, sempre a possibilidade de mudar. O capitalista é reproduzido; o trabalhador, o sem-teto, o desempregado também. Repete-se o dilema: aceitar as premissas do fetiche, adorar a mercadoria e renunciar à vida ou dizer um basta. Seja qual for a escolha, assim serão repetidas infinitas vezes. Diariamente. Dia-após-dia. O cotidiano, assim, é o berço das revoluções.

Recapitulemos: por de trás da homogeneidade e transparência da lógica da identidade, quando reproduzida, descobrem-se diferenças incontáveis, contradições inconciliáveis. Em termos mais precisos, a reprodução das relações sociais de produção engendra também a reprodução das lutas sociais. As possibilidades infinitas contidas no ser humano não podem ser formatadas totalmente sem resistência. O residual é o sofrimento, a tristeza, a alegria, a felicidade, a criatividade; é no residual que se vai extrair o novo.

Estas concepções inspiradas na nossa leitura da obra de Lefebvre merecem mais algumas considerações. Para Lefebvre, a obra de Marx tende a um “reino dos fins”.

Quando Marx leva ao limite seu raciocínio teórico, para onde ele vai e o que encontra? O reino dos fins. Entre esses fins e os envolvendo, ou os supondo, para além dos fins parciais, se assim se pode dizer (o do capitalismo do Estado, da raridade, da filosofia, da história, da família etc.) tem-se precedentemente sublinhado o do trabalho. (LEFEBVRE, 1999, p. 128).

O que está em jogo no desenvolvimento das forças produtivas é a possibilidade da maquinaria ou do robô substituírem totalmente o ser humano na linha de montagem da fábrica, stricto sensu, e do trabalho em geral: o fim do trabalho. Lefebvre sublinha: “O trabalho só tem por sentido e por objetivo o não-trabalho” (Ibidem, p 129). Ou melhor: “O fim do trabalho, que paradoxo naquele que descobriu a importância do trabalho e passa, antes de tudo, pelo teórico da classe operária? E, entretanto, sabemo-lo já, a automatização da produção permite vislumbrar o fim do trabalho produtor” (Ibidem, p. 128). Marx é profundamente otimista neste aspecto. “Nada mais positivo que esta concepção de automatismo” (Ibidem p. 73). Mesmo se pensarmos num cenário tenebroso da automação, de desemprego, miséria, fome etc., haverá sempre a possibilidade de uma reviravolta e de submeter as máquinas à vontade humana. Marx supõe um desenvolvimento tão fabuloso da produção, por meio da automatização do capital constante, que deriva daí a coexistência de pelo menos duas perspectivas: primeiro, o reino da necessidade é substituído totalmente pelo reino da abundância e liberdade; e, segundo, o processo produtivo é totalmente automatizado a ponto de liberar as pessoas para atividades criativas, ligadas à arte, pedagogia, poesia etc. Todavia, o que se assiste hoje é o incremento do capital constante redundando em desemprego estrutural (já é até admitido cientificamente, para os economistas liberais, uma média de índice “x” de desempregados permanentes, que nunca assinarão a carteira: são qualificados de “desencorajados”). Esse paradoxo é latente: produção crescente e miséria, idem. A automação atual é altamente negativa. Portanto, novamente, há duas alternativas; somente duas; de duas, uma: 1. a contradição inerente ao capital o levaria automaticamente a um esgotamento de seus pressupostos, resultando num vácuo político aberto a aventureiros pouco recomendados; ou, 2. movimentos politicamente organizados assumiriam o controle e colocariam as máquinas para “trabalhar”, distribuindo igualmente os frutos da produção. Dessas duas alternativas, é possível extrapolar digressões através da identificação de virtualidades possíveis e formular questões: Se a robótica substituir completamente o trabalho humano, num futuro talvez não tão longínquo, será o fim do capitalismo, entretanto, as classes dominantes tentarão ainda exercer seu poder? E os “desencorajados”, que serão a imensa maioria, como poderão garantir sua sobrevivência? O mundo tornar-se-á mais violento? Escravos, de joelhos, vão implorar pelo beijo do chicote? Será necessário exterminar sistemática e aleatoriamente grandes contingentes populacionais em campos de concentração? As bombas atômicas serão jogadas sobre cidades novamente? Ou, num cenário um pouco mais otimista: A miséria humana será erradicada através da distribuição de recursos por políticas assistencialistas? Paremos por aqui, a lista de hipóteses é demasiadamente grande, basta imaginar. Mas, como resolver este dilema? Voltemos a repetir, sem uma praxis transformadora, o destino da humanidade permanecerá ao sabor dos acontecimentos caóticos do mundo, onde tudo será em vão! A autogestão parece surgir no horizonte como alternativa à barbárie[3].

Portanto onde se encontra a utopia? No coração do real que ele habita. Onde se encontra a “realidade”? No possível? Certamente. Mas o que é possível e impossível? (Ibidem, p. 73).

Utopia? Sim e não. Impossível? Sim e não. Virtualidades, apenas.

Possibilidade teórica e prática? Incontestavelmente. O encadeamento posterior das descobertas técnicas confirmou plenamente as visões de Marx. Impossibilidade? Certamente, nos quadros do capitalismo e mesmo da famosa ‘transição’ para uma sociedade socialista ou comunista. Utopia portanto, mas utopia concreta, possibilidade que ilumina o atual e que distancia o atual do possível” (Ibidem, p. 128).

Para encerrar, detenhamo-nos mais sobre um ponto, que ficamos devendo. Diz respeito à metodologia dos Grundrisse. Segundo Lefebvre, na introdução desta obra, Marx discorre sobre “categorias (conceitos)” de relações sociais mais desenvolvidas da sociedade burguesa que, todavia, permitem apreender as estruturas e relações de produção de sociedades passadas, pois subsistem vestígios e virtualidades que alcançam sentido pleno no capitalismo[4]. Tal método é aquilo que Lefebvre denominará regressivo-progressivo, isto é, compreender a gênese de um fenômeno, partindo do atual para o passado e inversamente. Vejamos:

A dialetização do próprio método se persegue, assim, sem que a lógica e a coerência tenham que sofrer. Não obstante, há riscos de obscuridade e de repetições. Marx nem sempre as evitou. Ele as conhecia. A tal ponto que a exposição d’O capital não segue exatamente o método promulgado nos Grundrisse. A grande exposição doutrinal parte de uma forma, a do valor de troca, e não de conceitos postos no primeiro plano na obra anterior: a produção e o trabalho. A démarche anunciada nos Grundrisse se reencontra a propósito da acumulação de capital: Marx mantinha suas proposições metodológicas desde quando estudava na Inglaterra o capitalismo o mais avançado, para compreender os outros países e o próprio processo de formação do capitalismo. (LEFEBVRE, 2003, Capítulo I, par. 169).

Neste sentido, “certos traços pré-capitalistas penetram no capitalismo. Eles se acentuam não somente na sua periferia agrícola, mas no próprio seio da realidade urbana” (LEFEBVRE, 1999, p. 163).

O capitalismo supera e conserva estes traços, dá-lhes um sentido novo, mas guarda os restos de sua história. O camponês expropriado está no operário, assim como o operário está no desempregado permanente, o “desencorajado”, etc. Ou, numa outra possibilidade, o capital, em momentos de crise, reinstitui a escravidão. Assim, as categorias (ou conceitos) do capitalismo quando projetadas ao passado, longe de representarem um anacronismo metodológico, muito pelo contrário, desvendam tais relações. Somente através da realidade atual se pode conceber e compreender o passado e, ainda, extrapolá-la virtualmente no futuro. Logo, o trabalho abstrato permite compreender o trabalho privado – independente – das sociedades pré-capitalistas, enquanto pressuposto, mas, por outro lado, permite vislumbrar também a superação do próprio trabalho social, o seu fim.

Há em Lefebvre uma positividade dialética – não a suprime – no desenrolar da história. A história da humanidade é a história da superação e dominação da natureza, inclusive, da natureza humana. O que faz pensar: a tão propalada hecatombe da natureza é simultaneamente a destruição da humanidade. O objetivo da produção em sentido amplo, da produção humana, é um paradoxo: o retorno à natureza, inclusive, à natureza humana. O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, por exemplo, permitiu criar virtualmente o reino da abundância e da liberdade em relação à carestia e necessidade. Assim, o Estado moderno resgatou o ideal humanista, da igualdade e da liberdade, constituindo-se numa virtualidade presente mas ausente de fato. Os pressupostos do ideal humanista devem ser atualizados, urgentemente. O que provavelmente implica na ausência do Estado. Ao seguir a estrada, caminhando, acima somente o céu e os astros luminosos, testemunhas antigas de erros e acertos; ao redor, a natureza, preciosa; embaixo, a terra; atrás, lembranças, arrependimentos; à frente, uma bifurcação.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


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[1] (...) a crítica radical não significaria porventura querer mobilizar o sujeito (...) contra a escravizante objetivação mas antes, mobilizar, através da ‘brecha’ existente nos indivíduos reais, a ‘individualidade organizada’, que vai ganhando consciência do fato de não se encaixar nas nem reduzir às formas do fetiche, contra a compulsiva relação sujeito-objeto da constituição moderna da forma. (KURZ, 2003, par. 22).
[2] A acepção ampla, herdada da filosofia. Produção significa criação e se aplica à arte, à ciência, às instituições, ao próprio Estado, assim como às atividades geralmente designadas ‘práticas’. A divisão do trabalho que fragmenta a produção e faz com que o processo escape à consciência e a linguagem. A natureza, ela própria transformada, é produzida; o mundo sensível, que parece dado, é criado. (...) A acepção estrita, precisa, embora reduzida e redutora, herdada dos economistas (Adam Smith, Ricardo) mas modificada pela contribuição de uma concepção global, a história. (LEFEBVRE, 1999, p. 46). 
[3] Vejamos o que Bakunin tem a dizer sobre a autogestão: “É necessário a abolição do Estado, que nunca teve outra missão a não ser a de regularizar, sancionar e proteger, com a bênção da Igreja, a dominação das classes privilegiadas e a exploração do trabalho popular em proveito dos ricos. Logo, é preciso: a reorganização da sociedade, de baixo para cima, pela formação livre e pela livre federação das associações operárias, tanto industriais e agrícolas como científicas e artísticas, o operário tornando-se, ao mesmo tempo, homem de arte e de ciência, e os artistas e os sábios tornando-se também operários manuais, associações e federações livres, baseadas na propriedade coletiva da terra, dos capitais, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho (...)” (BAKUNIN,  1999, p. 190). E Marx: “É que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor, ou crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de produção – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, principalmente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico” (MARX, 1977, p. 47).
[4] “A produção do espaço”, Capítulo I, par. 165.


terça-feira, 15 de maio de 2018

ALIENAÇÃO (PARTE 3): TRABALHO ABSTRATO E FETICHISMO

Trabalho abstrato e fetichismo



por Jean Pires de A. Gonçalves

Há muitas referências do trabalho abstrato em todo os Manuscritos. Por exemplo: “que significado tem, no desenvolvimento da humanidade, esta redução da maior parte dela ao trabalho abstrato?” p. 30;  “...trabalho único princípio da economia nacional” p. 93; “... o trabalho, em sua completa absolutidade (Absolutheit), isto é, abstração, seja elevado como a princípio” p. 101 [Marx se refere aqui aos fisiocratas]; entre outras. Neste sentido, o conceito de trabalho abstrato já aparece nos Manuscritos, antecipando obras ulteriores, notadamente O capital, em que Marx, ao analisar a dupla forma da mercadoria, desdobra a relação contraditória do trabalho abstrato e do trabalho concreto. Se nos Manuscritos não há, entretanto, nenhuma menção literal ao “fetichismo da mercadoria”, identificamos o conceito presente em quase todo o texto, em forma embrionária ou virtual. Aliás, no próprio conceito de alienação, já se encontra implicitamente a estrutura do fetiche. Portanto, para nós, não há diferença fundamental entre o “Marx da alienação” (filósofo) e o “Marx do fetiche” (economista).

Como foi dito acima, o trabalhador, enquanto mercadoria, não entra no processo produtivo para suprir suas carências humanas mas a das coisas: “O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer uma necessidade fora dele” (ibidem, p. 83). Portanto, o fetichismo está intimamente ligado ao trabalho alienado, pois o fetiche é o próprio estranhamento da coisa, que adquire vida própria. Quando o trabalhador perde ou esquece o produto que é ele mesmo e passa a viver em função dele, dominado por ele, isto é o auge da alienação, do estranhamento. Alienado, passa acreditar que a coisa que aparece diante dele (trabalho morto) tem vida própria. Isto é o fetiche.

A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si (Selbstentfremdung), tal qual acima o estranhamento da coisa” (ibidem, p. 83). E ainda: “Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entässerung). (ibidem, p.80).
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O conceito mais trivial de fetichismo usado por Marx é do poder que emana do objeto. Curiosamente, o termo “fetiche” já aparece nos Manuscritos. Inicialmente, Marx designa os ideólogos do mercantilismo de fetichistas, por estes acreditarem numa riqueza objetiva inerente à propriedade (metais, moedas). Não é à toa que Marx vai chamar, com Engels, Adam Smith de “o Lutero da economia política”, porque este reconheceu no trabalho a essência subjetiva da propriedade privada[1]. A ironia aqui é que, para Marx, Smith inaugurou um novo fetichismo.

Mas enquanto o fetichismo da velha riqueza externa, existente apenas como objeto, se reduz a um elemento natural muito simples, e sua essência já é reconhecida dentro de sua existência subjetiva, mesmo que parcialmente de uma forma particular, o necessário passo a frente é a essência universal da riqueza seja reconhecida e, portanto, o trabalho em sua completa absolutidade (Absolutheit), isto é, abstração, seja elevado como a princípio. É provado à fisiocracia que a agricultura, do ponto de vista econômico, portanto o único e legítimo, não difere de nenhuma outra indústria; portanto, não o trabalho determinado, um [trabalho] ligado a um elemento particular, uma externação particular de trabalho, mas o trabalho em geral é a essência da riqueza. (ibidem, p. 101).

A essência do trabalho abstrato, como fundamento da riqueza e da propriedade privada, é o novo fetichismo. O trabalho na sua figura encarnada de trabalhador cria riqueza, em sentido positivo. Esse trabalho abstrato, enquanto valor em si das coisas, é estranho e hostil ao trabalhador. A riqueza gerada, por meio das coisas, se volta contra o trabalhador, pois não lhe pertence. A riqueza (dinheiro) do capitalista para o trabalhador, que não se reconhece nela, é legitima porque aparentemente ambos estão em pé de igualdade: são proprietários de mercadorias. Assim, Marx volta os fundamentos do liberalismo contra o próprio liberalismo.

A riqueza, nas sociedades pré-modernas, sedimentada na propriedade privada da terra, isto é, propriedade imóvel, com o desenvolvimento do comércio, converte-se no dinheiro (“propriedade móvel”); pois, no capitalismo, “o dinheiro tem de triunfar sobre a outra forma de propriedade privada” (ibidem, p. 97). O dinheiro, em última instância, é trabalho objetivado, ou seja, exteriorizado e estranho, que, pela metamorfose da mercadoria, torna-se equivalente universal, meio de circulação e valor. O dinheiro passa a intermediar as relações sociais humanas, no sentido mais elementar do fetiche da mercadoria. “Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos?” (ibidem, p. 159). Nota-se nesta citação que os seres humanos só se relacionam por meio de um produto, o dinheiro, elaborado por eles mesmos, mas que adquire autonomia no interior das relações, determinando-as. Noutras palavras, o dinheiro determina as relações humanas.

Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens estão para a produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para com outros homens. Assim como ele [engendra] a sua própria produção para a sua desefetivação (Entwirklichung), para o seu castigo, assim como [engendra] o seu próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal como estranha de si a sua própria atividade, ele apropria para o estranho (Fremde) e atividade não própria deste. (Ibidem, p. 87).

Neste sentido, de fato, o “mundo” produzido pelo trabalho alienado é cada vez mais avassalador e independente do trabalhador, a ponto de se constituir na monstruosidade do valor que se auto-valoriza; a acumulação como finalidade da produção. Estas citações nos Manuscritos são bastante claras, e denotam toda a estrutura do fetiche da mercadoria. Vejamos:
        
Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas as consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio... (ibidem, p. 81).

Ora, esse processo, descrito nos Manuscritos, acerca do trabalho que se torna uma mercadoria, num sentido, e, num outro, o ser humano que só é enquanto trabalhador (existência e subsistência), nada mais é do que a reificação das relações sociais e humanas. Portanto, não há ruptura entre um Marx da alienação e do fetiche da mercadoria: a mercadoria define funções sociais subordinando e submetendo o ser humano à condição de coisa-mercadoria. Neste sentido, já está posto o valor de troca como objetivo da produção social “A riqueza, a produção é explicada pela divisão do trabalho e pela troca” (ibidem, p. 156).

Vejamos a citação a seguir:

A universalidade de seu atributo é a onipotência de ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. O dinheiro é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem. Mas o que medeia a minha vida para mim, medeia-me também a existência de outro homem para mim. (Ibdem, p. 157).

A universalização do dinheiro, intermediando as relações sociais, lhe confere um poder universal onipotente. E a segunda frase, da citação acima, que associa o dinheiro a um alcoviteiro, não poderia ser mais fetichista. O alcoviteiro era um personagem bastante comum quando o amor era proibido, antes do casamento. O alcoviteiro fazia a vez do leva-e-traz, do mexeriqueiro. Quem não se lembra da Ama e de Frei Lourenço na história de Romeu e Julieta[2]? O dinheiro como alcoviteiro, encarnando uma figura humana, logo com vontade, caprichos, enfim, não é senão uma metáfora quase poética do fetiche da mercadoria. O dinheiro ganha vida, passa a intermediar todas as relações humanas e, talvez, numa ironia sutil, inclusive as relações de amor!

Neste sentido, o capital como o sujeito automático já está anunciado nos Manuscritos, inclusive não só submetendo o trabalhador às suas determinações, mas também o próprio capitalista, que, num sentido inverso ao trabalhador, não é senão a redução do ser humano à categoria do capital, personificado na lógica megalomaníaca de acumular por acumular. É o que nos revela esta passagem dos Manuscritos:

Sem dúvida, o capitalista industrial também frui. De modo nenhum ele regressa à simplicidade não natural da carência, mas a sua fruição é apenas coisa sem importância, descanso subordinada à produção, por isso fruição calculada, portanto propriamente econômica, pois ele junta sua fruição aos custos do capital, e sua fruição deve, por isso, custar a ele apenas tanto quanto aquilo por ele esbanjado for novamente substituído pela produção do capital com lucro. A fruição está, portanto, subsumida ao capital, o indivíduo que frui subsume sob o [indivíduo] que capitaliza, enquanto anteriormente acontecia o contrário. (Ibidem, p. 148).

Conclusão, se a economia política destituiu o fetiche das concepções anteriores – dos fisiocratas e mercantilistas – e estabeleceu um novo fetiche no trabalho, como fonte de riqueza; Marx nos Manuscritos vai demonstrar, por outro lado, o caráter negativo do trabalho, voltado para a necessidade da produção do valor de coisas como um fim em si mesmo e, paralelamente, a deterioração de todas as virtualidades humanas, reduzidas a categorias econômicas. O problema da consciência ou da falsa consciência tem, por isso, seus alicerces fundados no dilaceramento real da sociedade capitalista. Cabe, todavia, enfatizar o que resta de humanidade, já que estas categorias tendem a uma homogeneização total da vida.        

Agora, a titulo de demonstração, tracemos um paralelo entre o trabalho alienado dos Manuscritos tal como se tentou descrever até aqui e o “Capítulo VI, inédito de o Capital”. Vejamos: no subtítulo “Mistificação do capital etc.”, Marx não poderia ser mais claro:

O trabalho, precisamente, como exteriorização da capacidade de trabalho, com esforço, pertence ao operário individual – é com ele que o operário realmente (realiter. Lat.) paga ao capitalista o que este lhe dá –, embora, objetivado no produto, pertença ao capitalista; a combinação social, pelo contrário, combinação na qual as diversas capacidades de trabalho funcionam apenas como órgãos particulares de capacidade de trabalho que constitui o atelier coletivo, não pertence a estas: opõe-se-lhe como ordenamento capitalista (arrangement. Ing.) capitalista, é-lhes imposta. (MARX, 2004a, p. 124).

E o fetiche propriamente dito:

O capital emprega o trabalho (Capital employs labour. Ing.). Já esta relação é, na sua simplicidade, personificação das coisas e coisificação das pessoas. De fato, a unidade coletiva na cooperação, a combinação na divisão do trabalho, a utilização das forças naturais e das ciências, dos produtos do trabalho como maquinaria, tudo isto se contrapõe aos operários individuais, de forma autônoma, como um ser alheio, objetivo, que lhes pré-existe, que está ali sem o seu concurso e amiúde contra o seu concurso, como meras formas de existência dos meios de trabalho que os dominam e são independentes deles, na medida em que essas formas (são) objetivas. (ibidem, pp. 126-127).

Seria exaustivo transcrever todas as passagens em que Marx menciona a relação estreita entre trabalho alienado e fetiche. Mas há uma passagem particularmente explícita que vale a pena transcrever:

Compreende-se assim que se o operário for despojado dos meios de produção, também ficará privado dos meios de subsistência e, inversamente, que um homem privado de meios de subsistência não pode criar nenhum meio de produção. Por conseguinte, o que no primeiro processo, antes de o dinheiro e a mercadoria se terem transformado realmente em capital, lhes imprime desde início o caráter de capital não é nem a sua condição de dinheiro nem a sua condição de mercadoria, nem o valor de uso material destas mercadorias, que consiste em servirem como meios de subsistência e de produção, mas sim o fato de que este dinheiro e esta mercadoria, estes meios de produção e meios de subsistência, se defrontam com a capacidade de trabalho – despojada de toda riqueza objetiva – como poderes autônomos personificados nos seus possuidores; o fato de que, portanto, as condições materiais necessárias para a realização do trabalho estão alienadas (entfremdet. Al.) do próprio operário, ou, mais precisamente, se apresentam como fetiches dotados de vontade e uma alma próprias; o fato de as mercadorias figurarem como compradores de pessoas. (ibidem, p. 70, item: “A produção capitalista como produção de mais-valia”).

*****

Antes de encerrar, gostaríamos de fazer algumas justificativas em relação às citações longas demais e de certa forma exaustivas. Há pelo menos dois motivos para isso. Primeiro, houve a intenção, por parte nossa, de preservar o máximo possível o conteúdo dos textos dos Manuscritos econômico-filosóficos e, por um lado, pagar nossa dívida moral com Proudhon. Proudhon, apesar dos equívocos e de algumas posições bastante questionáveis, foi um importante expoente do socialismo no contexto do XIX. Se Proudhon positivou o trabalho; Marx assim o fez com o Estado, ainda que preconizou o seu fim. Segundo, o exame demorado dos textos de Kurz e dos Manuscrito tem a sua razão de ser porque o conceito de trabalho é fundamental nesta pesquisa. Outrora, o sem-teto poderia ser enquadrado facilmente entre os proletários que somavam o exército de reserva ou o lúmpen-proletariado. Contudo, diante da perspectiva de nunca ser absorvido pelo mercado de trabalho, qual é o grau de relação que o liga ao processo produtivo? Esta lacuna sugere outras questões: O sem-teto, então, ocuparia uma posição privilegiada diante da alienação? Poderia o sem-teto, a partir disso, elaborar um projeto de transformação social, impelido pelas condições miseráveis que o afligem? A seguir, pretendemos debater essas e outras questões.

*****

Diante do estudo que desenvolvemos acerca do conceito de trabalho, permitimo-nos aqui a liberdade de pautarmos algumas reflexões a respeito do tema: 1) O conceito de produção ampla não deve ser entendido como uma determinação abstrata e monolítica, de validade geral ou transcendental, mas como uma indicação referente à atividade empírica humana, entendida esta em toda a sua complexidade infinita, considerando-se assim uma ampla gama de virtualidades, inerentes ao próprio conceito, também infinitas e que podem ser ou não realizadas. Diante disto, fica claro que o conceito de produção aqui não se restringe à economia, mas também se aplica à produção de cultura, política, civilização, música, arte etc. 2) Deste modo, o conceito de trabalho comporta uma contradição intrínseca: não-trabalho–trabalho. Ele tanto pode ser um conceito genérico, aplicado a diversas acepções da realidade, ou, ao contrário, um conceito particular, específico. Aqui seria muito oportuno lembrar, com algumas ressalvas, das contribuições metodológicas de Max Weber para a sociologia, com suas construções de tipos ideais, que o permitiu salientar significações individuais históricas e estabelecer critérios comparativos no âmbito da história universal. 3) De outra forma, supor que um conceito corresponda exatamente ao seu objeto é hipostasiá-lo, elevando-o a uma dignidade ontológica da qual ele não tem direito, seja ela positiva ou negativa. 4) Aspectos produtivos da atividade humana, fisiológica (metabólica), ligada à subsistência/sobrevivência, podem, portanto, ser também denominados de “trabalho”, em sentido geral (referencial, contextual, linguístico), tanto quanto à atividade das abelhas, por exemplo; pois a linguagem permite extensões deste tipo, através de figuras de linguagem, como a metáfora, ou de construções literárias, como a poesia. É possível traçar um paralelo, por exemplo, apesar das diferenças de conteúdo e relação, entre trabalho humano mecanizado e adequado às necessidades fixadas pelo capital ao, nos termos de Maurice Maeterlinck, espírito da colmeia: a dedicação das operárias aladas, “trabalhando” até a exaustão, guiadas por uma força irresistível e invisível. Neste caso, a colmeia é espelho dos seres humanos. Com efeito, a linguagem põe um problema no conhecimento e nos limites de uma razão dialética. Uma dialética materialista deve desconstruir as ideologias e interditar as pretensões da ideia absoluta e de um mundo falso. 5) Neste sentido, partiu-se de um pressuposto biológico humano (o corpo e sua extensão inorgânica, a natureza) e de suas manifestações naturais, que identificamos nos Manuscritos de Paris (Marx) sob o termo filosófico e hegeliano de exteriorização. Cabendo aqui duas considerações, que de certa forma desfaz a polêmica central dos Manuscritos: “exteriorização” define um conceito antropológico (de ordem geral); e alienação (“estranhamento”), um conceito histórico. O ser humano, enquanto ser genérico, distingue-se dos demais seres vivos. 6) O conceito específico de trabalho, como categoria independente, é caracterizado então enquanto trabalho alienado (mercadoria); tornando pressuposto um sentido geral e nominal de trabalho aplicado a todas as épocas, que, todavia, só é compreensível e diferenciado a partir do trabalho alienado, mas não como trabalho alienado naturalizado. 7) Portanto, faz todo o sentido a distinção teórica de uma certa escola de sociologia alemã entre comunidade [Gemeinschaft] e sociedade [Gesellschaft]. A primeira diz respeito à associação natural, ligada aos laços de sangue e parentesco da família, tribo, coletividade, da qual não é possível libertar-se. A segunda refere-se à associação mediada pelo contrato, onde, se presume, a liberdade individual das partes. [Embora na língua portuguesa a palavra sociedade admite os dois sentidos]. 8) Nota-se que na comunidade, tradicional, de tipo pré-capitalista, o trabalho é particular; e na segunda, capitalista propriamente dita, o trabalho social (abstrato) fundamenta as relações. 9) É pela forma mercadoria que as partes se acordam, por meio da relação contraditória entre compradores e vendedores de trabalho. 10) Aqui começa a História, propriamente dita, e a luta de classes, que tende para a superação e o fim da história.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


Posts relacionados:




[1] MARX, 2008, p. 99.
[2] “AMA – Ó santo frade, dizei-me santo frade. Onde está o esposo de minha ama, onde está Romeu? FREI LOURENÇO – Ali está estendido no chão, embebedado pelas próprias lágrimas. AMA – Ele está no mesmo estado, tal e qual, da minha senhora. FREI LOURENÇO – Consolo doloroso! lamentável igualdade de situação! AMA – desse forma ela está estendida, soluçando e chorando, chorando e soluçando. Coragem, coragem, coragem, sois um homem. Em nome de Julieta, em nome dela, erguei-vos, ponde-vos de pé! Por que cair assim em tão profundos ais?” Esta citação de Shakespeare não é por acaso, pois é exatamente isto que fará Marx no Manuscritos.


segunda-feira, 7 de maio de 2018

ALIENAÇÃO (PARTE 2): A NEGATIVIDADE DO TRABALHO


Proudhon, Marx e a propriedade privada: o sentido negativo de trabalho


por Jean Pires de A. Gonçalves

Quando Marx escreveu os Manuscritos ainda não havia rompido definitivamente com Proudhon. Prova disso é que em um texto posterior escrito em parceria com Engels, A sagrada família, de 1845, Marx defende Proudhon dos ataques dos jovens hegelianos, os irmãos Bauer, reconhecendo o socialista francês como “o primeiro socialista científico”[1].

Nos Manuscritos, há algumas referências a Pierre-Joseph Proudhon. Para entendermos a diferença fundamental entre Marx e Proudhon é necessário compará-los. Vejamos, portanto, alguns extratos selecionados do mais célebre memorial da propriedade escrito pelo, como evocava Bakunin, “pai de todos”: O que é a propriedade? Tal desenvolvimento vai nos ajudar a compreender o próprio conceito de propriedade privada e do trabalho nos Manuscritos econômico-filosóficos.

Na formulação do livro de Proudhon, de 1840, que relançou o “slogan” socialista de 1793, mais emblemático do XIX – “a propriedade é um roubo” –, o autor analisa criticamente obras de economistas, juristas e dos utópicos, como Say, C. Comte, Destutt de Tracy, Saint-Simon e outros, para depois refutá-los quase à maneira de um casuísta que quer provar suas teses.

Tomaremos a liberdade de organizar os extratos subscritos em “Tese” e “Antítese”, assim como faz Kant (antinomias), apenas para tornar didático o sentido da dialética proudhoniana.

1. Tese.

Que o trabalho, por si mesmo, não tem sobre as coisas nenhum poder de apropriação:

“‘O problema está solucionado”, exclama Hennequin. ‘A propriedade, filha do trabalho, apenas sob a égide das leis pode gozar do presente e do futuro. Sua origem vem do direito natural; seu poder, do direito civil; a combinação dessas duas ideias, trabalho e proteção, surgiram as legislações positivas...’” (PROUDHON, 1988, p. 81).

“Say dá a entender que, caso o ar e a água não apresentasse natureza fugidia, seriam também apropriados. Adiantarei que isso é mais que uma hipótese, é uma realidade.  O ar e a água foram apropriados não direi tantas vezes quantas se pode, mas quantas foram permitidas” (Ibidem, p. 82).

“No texto de Say, transcrito acima, não se percebe com clareza se o autor faz depender o direito de propriedade da qualidade não-fugidia do solo ou do consentimento que a seu ver foi dado por todos os homens a essa apropriação” (Ibidem, p. 84).

“O direito de propriedade foi o início do mal na terra, o primeiro elo da longa cadeia de crimes e misérias que o gênero humano arrasta desde o nascimento; a mentira das prescrições é o encanto funesto atirado sobre os espíritos, a palavra de morte bafejada às consciências para estancar o progresso do homem rumo à verdade e manter a idolatria do erro” (Ibidem, p. 85).

“Mas toda propriedade necessariamente começou pela prescrição, ou como diziam os latinos, pelo usucapião, isto é, pela posse contínua: pergunto então, em primeiro lugar, como a posse pode tornar-se pela passagem do tempo propriedade?” (Ibidem, p. 90).

“Vamos demonstrar, pelos próprios aforismos da economia política e do direito, isto é, por tudo o que a propriedade pode objetar de mais especioso:

“1º. – Que o trabalho, por si mesmo, não tem sobre as coisas da natureza nenhum poder de apropriação;

“2º. – Que ao reconhecer entretanto esse poder no trabalho seremos conduzidos à igualdade das propriedades, quaisquer que sejam a espécie de trabalho, a raridade do produto e a desigualdade das faculdades produtivas;

“3º. – Que na ordem da justiça o trabalho destrói a propriedade” (Ibidem, p. 93).

“Dizer que a propriedade é filha do trabalho e depois atribuir ao trabalho uma concessão por meio do exercício cria, se eu não me engano, um círculo vicioso. As contradições vão aparecer” (Ibidem, p. 96).

“Para transformar a posse em propriedade, é preciso algo mais que o trabalho, sem o que o homem cessaria de ser proprietário quando deixasse de trabalhar; ora, segundo a lei, o que faz a propriedade é a posse imemorial, incontestada, numa palavra, a prescrição; o trabalho é apenas o sinal sensível, ato material pelo qual a ocupação se manifesta” (Ibidem, p. 97).

2. Antítese.

Que o trabalho conduz à igualdade das propriedade:

“Concordemos, porém, que o trabalho confira um direito de propriedade sobre a matéria: por que esse princípio não é universal? Por que o benefício dessa pretensa lei, restrito à minoria, é negado à massa dos trabalhadores?” (Ibidem, p. 98).

“Quem trabalha torna-se proprietário: fato inegável dentro dos atuais princípios de economia política e direito. E quando digo proprietário não entendo apenas, como os economistas hipócritas, o proprietário de seu soldo, salário, estipêndio; refiro-me ao proprietário do valor que ele cria e do qual o dono é o único a beneficiar-se” (Ibidem, p. 100).

“Minha posição é esta: O trabalhador conserva, mesmo após receber seu salário, um direito natural de propriedade sobre a coisa que produziu” (Ibidem, p. 100).

“Essa quantia paga não basta [o salário]: o trabalho dos operários criou um valor; ora, tal valor é propriedade deles. Mas não o venderam, nem o trocaram; e vós, capitalistas, de modo algum adquiristes. (...) O dinheiro com que pagais as diárias dos trabalhadores mal cobriria a posse perpétua que eles vos abandonam. O salário é a despesa que a manutenção e a restauração diária dos que trabalham exige; estais errado vendo nisso o preço da venda. O operário não vendeu nada: não conhece nem seu direito nem o alcance da cessão que vos fez, nem o sentido do contrato que pretendeis ter lavrado com ele. De sua parte, ignorância completa; da vossa, erro e surpresa, para não dizer dolo e fraude” (Ibidem, pp. 100 e 101).

“O trabalhador precisa de um salário que lhe permita viver enquanto trabalha, pois só produz consumindo. Quem emprega um homem deve-lhe alimentação e manutenção, ou salário equivalente. É o primeiro passo da produção” (Ibidem, p. 103 e 104).

“O salário do trabalhador não ultrapassa suas necessidades diárias e não lhe assegura o salário do amanhã, ao passo que o capitalista encontra no instrumento produzido pelo trabalhador uma garantia de independência e segurança para o futuro” (Ibidem, p. 104).

“Ora, esse fermento reprodutor, esse eterno de vida, essa preparação de um fundo e instrumentos de produção é o que o capitalista deve ao produtor e não paga nunca: e essa denegação fraudulenta é que provoca a indigência do trabalhador, o luxo ao ocioso e a desigualdade de condições. Nisso sobretudo é que consiste aquilo que tão bem se denominou a exploração do homem pelo homem” (Ibidem, p. 104, grifos nossos).

“De fato, se o trabalhador é o proprietário do valor que cria, conforme se pretende e nós concordamos, segue-se:

“1º. – Que o trabalhador adquire a expensas do proprietário ocioso;

“2º. – Que, sendo toda a produção necessariamente coletiva, o trabalhador tem direito, na proporção de seu trabalho, à participação dos lucros;

“3º. – Que, sendo todo o capital acumulado propriedade social, ninguém pode ter sua propriedade exclusiva.

“Tais consequências são irrefragáveis; só elas bastariam para subverter toda nossa economia, mudar nossas instituições e leis” (Ibidem, p. 105).

“Toda criação industrial possui um valor venal, absoluto, imutável, portanto legítimo e verdadeiro? – Sim.

“Todo produto do homem pode ser trocado por produto do homem? – Ainda uma vez, sim.

Quantos pregos valem um par de tamancos?

“Se pudéssemos resolver esse terrível problema, teríamos a chave do sistema social que a humanidade vem buscando há seis mil anos. Diante desse problema, o economista confunde-se e recua; o camponês não sabe ler nem escrever, responde sem hesitar:

Tantos quantos se possa fabricar em tempo igual e com a mesma despesa.

“O valor absoluto de uma coisa é, então, o que ela custa em termos de tempo e despesa: quanto vale um diamante que só custou o trabalho de ser apanhado na areia? – Nada; não é um produto humano. – Quanto valerá depois de lapidado e engastado? – O tempo e as despesas que terá custado ao operário. (Ibidem, pp. 121 e 121, grifos nossos).
        
Contrapondo tese e antítese, Proudhon conclui em sua dialética negativa:

Que na ordem da justiça o trabalho destrói a propriedade”.  Para em seguida afirmar: “A razão última dos proprietários, o argumento fulminante cujo poder invencível os tranquiliza é que, segundo eles, a igualdade das condições é impossível. (...) Se eu demonstrar que a propriedade é que é impossível, que a propriedade é que é contradição, quimera, utopia; e se o fizer, não por considerações de metafísica ou direito, mas pela razão dos números, equações e cálculos qual não será o espanto do proprietário embasbacado? (...) Axioma – A propriedade é o direito de ganho que o proprietário se atribui sobre uma coisa marcada com seu selo. (Ibidem, pp. 133 – 135).

Proudhon parte de duas teses contraditórias, uma jurídica e outra liberal (econômica):

a) que a origem da propriedade não está fundada no trabalho, mas no direito de prescrição; b) que a propriedade não está fundada na prescrição, mas, sim, no trabalho.

Ao contrapor estas teses opostas, Proudhon chega a conceitos muito próximos da mais-valia, trabalho alienado, etc., para em seguida suspender a contradição e, por fim, resolver a questão pela impossibilidade da propriedade, através de um “axioma”. A propriedade só se fundamenta no plano jurídico, por força da lei; no plano econômico, a propriedade restitui o produto aos produtores (trabalhadores). Se isto não ocorre é porque o Estado, pelo direito da prescrição, justifica um roubo (rigorosamente, não-propriedade). “O proprietário, o ladrão, o herói, o soberano, pois esses nomes são sinônimos, impõe sua vontade pela lei e não se sujeita nem a contradições nem a controles, isto é, pretende ser poder legislativo poder executivo ao mesmo tempo” (Ibidem, p. 239). Para Proudhon, o projeto socialista, através do conhecimento trazido à luz pela ciência, inevitavelmente corrigirá esta injustiça, demonstrando o absurdo do axioma da propriedade. Pois, no fundo, como se percebe, para Proudhon, há “duas propriedades”: 1. a “propriedade injusta”, pressupondo a desigualdade, tendo por princípio as determinações do direito (econômico), fundada pelo “consenso universal”; e 2. a “propriedade justa”, baseada no trabalho (economia liberal), que conduziria necessariamente à igualdade. Por que a economia política mascara essa verdade?

Nesse sentido, para nós, a grande contribuição de Proudhon se deu no plano político, pois insistiu que as contradições da economia capitalista têm por instância reguladora o Estado. Justamente ele, “uma contradição em pessoa”, nos dizeres de Marx. De origem camponesa, na cidade, tornou-se operário (tipógrafo) e talvez contador: “o camponês não sabe ler nem escrever, responde sem hesitar” (citação acima). Autodidata, recebeu bolsa de estudo, mas, acabou expulso da Academia por suas ideias subversivas[2]. Portanto, o socialista francês sentiu na pele a exploração sofrida pelo proletariado. Sendo assim, acabou por pressentir a mais-valia como trabalho não-pago, legitimado pela coerção do Estado, e atribuiu a diferença entre salário e meios de subsistência a um “erro de cálculo”, passível de ser corrigido.

Evidentemente, não entraremos aqui nos episódios que levaram o rompimento das relações travadas entre Marx e Proudhon, que só ocorrerá definitivamente em 1850[3].

Vejamos então qual o teor da crítica de Marx a Proudhon, ainda nos Manuscritos, e tentemos daí descobrir a própria noção de propriedade privada no texto de 44:

Que erro cometem os reformadores em détail, que ou desejam elevar o salário e por este melhorar a situação da classe trabalhadora, ou consideram (como Proudhon) a igualdade do salário como objetivo da revolução social? (Marx, 2008, p. 30).

Vimos que para Proudhon, na medida que o trabalho conduz à igualdade de propriedade (ou destruição da mesma), o trabalhador também tem direito “à participação dos lucros”. Para Proudhon, o “operário não vendeu nada” –  preço de venda de trabalho na forma de salário mal cobre as despesas mínimas do trabalhador – pois ao alugar (vender) sua força de trabalho foi enganado pelo proprietário ocioso, que o roubou. Marx, ao contrário, parte do trabalho alienado, como fundamento de sua argumentação. E, como vimos, o trabalho aparece como a única propriedade do trabalhador, que o vende como qualquer mercadoria:

Que significado tem, no desenvolvimento da humanidade, esta redução da maior parte dela ao trabalho abstrato? (ibidem, p. 30).

A economia nacional considera o trabalho abstratamente como uma coisa; o trabalho é uma mercadoria: se o preço é alto, a mercadoria é muito procurada; se é baixo, [a mercadoria] é muito oferecida; como mercadoria, o trabalho deve baixar cada vez mais de preço: o que força a isso é em parte a concorrência entre capitalista e trabalhador, em parte a concorrência entre trabalhadores... (ibidem, p. 35 e 36).

Em relação a Proudhon:

A economia nacional parte do trabalho como [sendo] propriamente a alma da produção, e, apesar disso, nada concede ao trabalho e tudo à propriedade privada. Proudhon, a partir dessa contradição, conclui em favor do trabalho [e] contra a propriedade privada. Nós reconhecemos, porém, que esta aparente contradição é a contradição do trabalho estranhado consigo mesmo, e que a economia nacional apenas enunciou as leis do trabalho estranhado. (ibidem, p. 88).

Mesmo a igualdade de salários, como quer Proudhon, transforma somente a relação do trabalhador contemporâneo com seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade é, nesse caso, compreendida como um capitalista abstrato. (ibidem, p. 88).

E ao denunciar a negatividade do trabalho alienado, Marx demonstra simultaneamente a positividade da propriedade privada, que legitima o trabalho como propriedade (dos não-proprietários):

Através do trabalho estranhado, exteriorizado, o trabalhador engendra, portanto, a relação de alguém estranho ao trabalho – do homem situado fora dele – com este trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o trabalho.

A propriedade privada é, portanto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

A propriedade privada resulta portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado. (p. 87).

De fato, da contradição Marx descobre uma relação:

A relação (Verhältnis) da propriedade privada contém latente em si a relação da propriedade privada como trabalho, assim como a relação dela mesma como capital e a conexão (Beziehung) destas duas expressões uma com a outra. (ibidem, p. 93).

A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho. (ibidem, p. 99).

Neste sentido, a propriedade privada não tem valor intrínseco, objetivo, mas é resultado de uma relação social subjetiva, isto é, resultado da atividade que constitui seu próprio mundo. “Quanto vale um diamante que só custou o trabalho de ser apanhado na areia? – Nada; não é um produto humano. – Quanto valerá depois de lapidado e engastado?” (Proudhon, citado acima). Encontrar um diamante, lapidá-lo, aí reside o seu valor. Não é a beleza em si do diamante, ou a sua raridade (oferta e demanda), que lhe torna valioso, mas o processo que demandou um tempo necessário para produzi-lo enquanto produto humano. O direito de propriedade aufere valor ao diamante não para aqueles que trabalharam para fazer torná-lo um produto humano. A propriedade privada é a forma legal do estranhamento.

Trabalho decompõe-se em si e no salário. O trabalhador mesmo [como sendo] um capital, uma mercadoria. (ibidem, p. 99).

Portanto, em Proudhon o trabalho é negativo, “destrói a propriedade” (formal, jurídica), de um lado, e, por outro, positivo, afirma a igualdade, do trabalhador. Em Marx, o inverso: o trabalho (positivo) constitui a propriedade privada e nega o trabalhador (negativo). Proudhon não compreendeu o sentido negativo do trabalho; percebe, no entanto, a negatividade, mas não de modo intrínseco, o que o impediu de fazer a crítica do trabalho, e por isso, sem o saber, reafirma a categoria do capital que espolia o trabalhador[4]. Isto porque Proudhon interpretou com boa fé a premissa do liberalismo clássico, isto é, o trabalho enquanto direito natural gerador de riqueza. Notou que, se de um lado, a classe capitalista enriquecia, de outro, o proletário amargava a mais triste miséria. Tentou descobrir então o que estava errado na economia política e apontou suas contradições. Encontrou no direito à propriedade o “x” da questão. Por sua vez, Marx, ao contrário, descobre o negativo no próprio trabalho – como fonte de riqueza privada apropriada pelo capital. Marx assim o explicita numa fórmula: “o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão” (ibidem, p. 80). A exploração se dá pelo trabalho, enquanto mercadoria. Este é o sentido da propriedade privada nos Manuscritos, isto é, a legitimidade de uma relação de acúmulo de riqueza ou de valor em si e para si.

Mas o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo e, portanto, carente, que, a cada momento em que não trabalha, perde seus juros e, com isso sua existência. Como capital, o valor do trabalhador aumenta no sentido da procura e da oferta e, também fisicamente, a sua existência (Dasein), a sua vida, se torna e é sabida como oferta de mercadoria, tal como qualquer outra mercadoria. O trabalhador [produz] o capital; o capital produz o trabalhador. (ibidem, p. 91).

Tal compreensão do trabalho alienado é fundamental e vai atravessar toda obra de Marx. Em última análise: “o trabalho enquanto a única essência da riqueza” (Idem, p. 100). Ora, por ser o ser humano um ser carente, isto é, um ser com necessidades (físicas, fisiológicas etc.), ele é obrigado por força das coisas a converter-se em trabalhador e oferecer-se no mercado de trabalho; e neste ato, que não é por livre e espontânea vontade nem é plenamente consciente, seu trabalho se volta contra ele, trabalhador.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


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[1] “Para terminar as origens do pensamento de Marx, diremos que o jovem Marx deve a Proudhon mais do que se admite geralmente, devido à ruptura dos dois e aos ataques virulentos que se lhe seguiram. Como Marx, Proudhon foi fortemente influciado por Saint-Simon, e, como Marx, dialetizou o pensamento de Saint-Simon por um lado, e por outro tornou-o revolucionário. O que não pode deixar de chamar a atenção do jovem Marx, mais moço que Proudhon nove anos – um nascera em 1809, o outro em 1818. As primeiras obras de Proudhon “La célebration du dimanche”, 1938, “O que é a propriedade?” 1840 (que o celebrizou) e o volume “Memóire sur la propriété”, 1841, saíram num momento em que Marx não tinha escrito ainda nada; “La création de l’odre dans l’Humanité” saiu do prelo em 1843, alguns meses antes da chegada de Marx em França. (...) Ninguém se surpreenderá pois que as primeiras apreciações de Marx sobre Proudhon tenham sido entusiastas. Desde 16 de outubro de 1842 falava ele, no “Journal Rhénan”, dos ‘trabalhos tão penetrantes de Proudhon’ e, numa carta da mesma época, celebrou ‘Proudhon como o pensador francês mais ousado’. Após ter mencionado Proudhon várias vezes numa obra inédita, ‘Economie Politique’, 1843-1844, Marx dedica-lhe quase sessenta páginas em “A sagrada família” publicado em 1845; defendendo-o contra a incompreensão e as críticas de Edgar Bauer, irmão de Bruno. E Marx escreve: ‘Proudhon submete a base da economia nacional, a propriedade privada... ao primeiro exame sério e científico. Eis o grande progresso científico que realizou, um progresso que revoluciona a economia nacional e propõe pela primeira vez a possibilidade de uma verdadeira ciência econômica. A obra de Proudhon “O que é a propriedade?” tem para a economia social moderna a mesma importância que a obra de Sieyès “O que é a teoria do Estado” para a política moderna’. ‘Proudhon levou a sério o aspecto humano (isto é, social) das relações econômicas, e o opôs nitidamente à sua realidade não humana’. ‘Opôs igualmente às tendências hierárquicas de Saint-Simon um igualitarismo operário’. Demonstrou que o ‘proletariado não pode suprimir as suas próprias condições de existência sem suprimir todas as contradições de existência inumanas da sociedade atual’. E Marx conclui: ‘Proudhon não escreve somente nos interesses dos proletários; ele próprio é proletário, operário. A sua obra é um manifesta científico do proletário francês, e apresenta pois uma importância histórica muito diferente da elucubração literária de uma crítica ‘qualquer’”(GURVITCH, 1960. pp. 39-41).
[2] Proudhon recebeu bolsa de estudo instituída por Madame Suard da Academia de Besançon, à qual recebeu dedicatória no “O que é a propriedade?”. A Academia diante da publicação do livro escreveu o seguinte: “Um membro chama a atenção da Academia para uma brochura no mês de junho último pelo titular da bolsa Suard, sob o título “O que é a propriedade?” e dedicada pelo autor à Academia. Pensa que esta sociedade deve à justiça, ao exemplo e à sua própria dignidade rejeitar por uma desaprovação pública a responsabilidade pelas doutrinas anti-sociais que tal reprodução encerra Pede em consequência: 1º. Que a Academia desaprove e condene da maneira mais formal a obra do bolsista Suard, como tendo sido publicada sem sua autorização, atribuindo-lhe opiniões inteiramente opostas aos princípios de todos os seus membros; 2º. Que seja exigida do bolsista, no caso de segunda edição, a anulação da dedicatória; 3º. Que este julgamento da Academia seja consignado em suas publicações. As três propostas, postas em votação, foram adotadas” (Proudhon, p. 6).
[3] Estas oposições doutrinárias devem provocar a ruptura em 1846 e suscitar a redação da Miséria da Filosofia em resposta a “Os sistemas das contradições econômicas”. Como inicialmente Marx havia negligenciado as oposições que o separavam de Proudhon, negligenciará desta vez os pontos que o aproximam dele. (...) É interessante confrontar “Os sistemas das contradições econômicas” não com a obra que lhe responde, “Miséria da filosofia” mas “O capital”. O livro de Proudhon aparece desde então como um momento importante na evolução do pensamento de Marx, ocasião de uma formulação metodológica, descoberta de uma tentativa que fornecerá um modelo à redação de “O Capital” (VlLAIN, 2001, p.145).
[4] Este já era o sentido da crítica de Marx a economia política e a Hegel: “Hegel se coloca no ponto de vista dos modernos economistas nacionais. Ele apreende o trabalho como a essência, como a essência do homem que se confirma; ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu [lado] negativo” (MARX, 2008, p. 124).