domingo, 1 de julho de 2018

A PRODUÇÃO DO ESPAÇO: DE HENRI LEFEBVRE À GEOGRAFIA - PARTE 3

A sociedade urbana


por Jean Pires de A. Gonçalves

Aqui é o momento de recapitularmos em linhas gerais os argumentos defendidos até agora e todo percurso trilhado por nós, pois, a cada passo, chegamos mais e mais próximos do abismo; aliás, cada vez mais perto. Em nosso ponto de partida, partiu-se do pressuposto já vislumbrado por Marx de um mundo tomado plenamente pela forma social da mercadoria, ou do fetiche da mercadoria. Assim, a antiga historicidade é substituída por uma razão econômica. Tentamos demonstrar que essa racionalidade não passava de uma peneira, e que tal racionalidade, a forma coerente da mercadoria, implicava um conteúdo antagônico e dialético, engendrando contradições irredutíveis ao sistema, no processo de reprodução das relações sociais de produção, no espaço da cotidianidade.

No centro, designado aqui e alhures, encontra-se a re-produção das relações de produção, processo que se desenrola sob os olhos de cada um, que se realiza em cada atividade social, inclusive naquelas aparentemente mais indiferentes (os lazeres, a vida cotidiana, o habitar e o habitat, a utilização do espaço), e que ainda não foi objeto de um estudo global. Inerente à prática social, esse processo não era percebido como tal. (LEFEBVRE, 2008, pp. 20 e 21).

De fato, seria bastante simplista reduzir toda a sociedade a uma razão econômica, pois, não só o papel das ideologias é extremamente relevante para se entender a dinâmica social, como o das representações, de uma psicologia de classes e dos indivíduos, e também do papel decisivo da moral (de senhores e escravos)[1] etc. Ora, a reprodução das relações de produção remete a uma organização do espaço de acordo com os pressupostos econômicos do capitalismo via ação burocrática do Estado. Sem dúvida, o espaço, a natureza, subsumida à lógica da mercadoria, da compra e venda, fragmenta-se sob a égide abstrata do valor (os loteamentos, a propriedade, o metro quadrado, o dinheiro etc.), o que suscita diferenças imprevisíveis. Em contrapartida, o desenvolvimento inaudito do processo produtivo e da produção em escala jamais vista, superando de longe as limitações naturais e sociais de períodos históricos precedentes, repõe a contradição fundamental entre produção social e apropriação privada, ao invés de diluí-la. Neste sentido, o da produção do espaço inteiro (cidade-campo) e do cotidiano, o capitalismo paradoxalmente restabelece e atualiza categorias pré-modernas, como a propriedade privada do solo e a cidade, que lhe se tornam imprescindíveis e essenciais na dinâmica e manutenção do sistema econômico. O que não ocorre sem engendrar novas contradições.

Houve crescimento das forças produtivas às custas da destruição de uma parte delas (da “natureza” e pelas guerras). O capitalismo se estendeu subordinando a si o que lhe preexistia: agricultura, solo e subsolo, domínio edificado e realidades urbanas de origem histórica. Do mesmo modo, ele se estendeu constituindo setores novos, comercializados, industrializados: os lazeres, a cultura e a arte dita “moderna”, a urbanização. Entre essas extensões existem, ao mesmo tempo, concordâncias e divergências, unidade com contradições (novas, a esclarecer). Portanto, o capitalismo só se manteve estendendo-se ao espaço inteiro (transbordando dos lugares de seu nascimento, de seu crescimento, de sua potência: as unidades de produção, as empresas, as formas nacionais e supranacionais). (Ibidem, p. 117).

Deste modo, se antes a ênfase recaía na produção de coisas no espaço (capitalismo concorrencial), hoje se produz o próprio espaço (fato que não suprime a produção de coisas; o espaço enquanto coisa). A produção do espaço, tendo como marco as escolas utópicas de arquitetura e urbanismo do início do século XX, não significa outra coisa que a possibilidade concreta de se produzir a própria natureza[2]. O que, como já se assinalou, subentende o desenvolvimento ímpar das forças produtivas e das técnicas, das ciências, tecnologias, materiais etc. Portanto, não é mais simplesmente a ocupação do espaço – modalidades de ocupação do espaço – o que está em jogo aqui, mas, em última análise, a criação da possibilidade de controle do destino e sentido das forças caóticas da natureza.

Efetivamente, um salto das forças produtivas permite produzir espaço. Essa produção pode recorrer a todas as técnicas e todas as ciências, as que captam e utilizam energias massivas e as que estudam ou utilizam energias finas (informática, cibernética). Esse é o reverso e a contrapartida da destruição da natureza: a produção do espaço. (Ibidem, p. 141).

Sendo assim, dadas estas condições presentes e reais, é possível discernir virtualidades que podem ou não se concretizar (pontos de bifurcação), em direção a um cenário que realiza plenamente a liberdade ilimitada do ser genérico, nos termos já discutidos nesta pesquisa, ou, inversamente, numa realidade de novos constrangimentos e coações. O que sugere a contradição do possível-impossível, da utopia e da realidade, da transição para um novo modo de produção – o do espaço. Portanto, a questão é: por que estas virtualidades não se realizaram até agora no sentido da liberdade, mas, ao contrário, reafirmam as contradições já existentes ou novas e a própria destruição total e irreversível da natureza? Retomemos o que foi dito logo acima. A resposta: porque permanecem intactas as relações de produção, notadamente, catalisadas pela propriedade privada e pelo Estado. Neste sentido, a produção do espaço, assim como a da mercadoria, seguindo a mesma lógica desta, contém e dissimula relações sociais (produção, e é preciso lembrar, no seu sentido restrito, econômico), a saber, da exploração e do lucro. Tais relações emperram a produção do espaço em seu sentido pleno. Daí que categorias arcaicas, como a propriedade privada do solo, tornarem-se centrais numa economia em permanente crise – o imobiliário tornado mobilizado (na forma do dinheiro): a produção do espaço respondendo e “resolvendo” as contradições inerentes do capitalismo, como a baixa tendencial da taxa de lucro etc. A propriedade e a indústria da construção – anteriormente ramo secundário da produção capitalista – tornam-se vitais para o funcionamento dessa economia. Por isso, nos termos daquilo que Lefebvre chamou de economia política do espaço, o mercado da habitação se generaliza; pois, como é demais conhecido, o setor da construção ainda agrega muito capital variável, sob forma de mão-de-obra barata e desqualificada. O mesmo princípio se aplica também para os aparelhos urbanísticos em geral, onde há baixa composição orgânica de capital, como se podem observar, por exemplo, no transporte, na elaboração e manutenção das vias, na energia etc., tornando os investimentos viáveis do ponto de vista do capital. Ainda que a obsolescência dos produtos imobiliários seja bastante lenta, sua rentabilidade, todavia, estimula o inchaço das cidades[3]. Assim, partindo-se de uma perspectiva da produção do espaço da cidade, a importância da propriedade privada do solo não deixa de gerar novas contradições como, notadamente, a de uma certa “ruralização” da cidade:

A propriedade do solo tem esse efeito sobejamente conhecido, sobre o qual não se pode deixar de insistir: as rendas. (...) O efeito mais potente da propriedade do solo, o mais perigoso, não seria a ruralização da cidade no curso de sua extensão e da urbanização generalizada? Nos subúrbios, no “tecido urbano” mais ou menos afastado, as capacidades produtivas são evidentemente reduzidas a pouca coisa. (Ibidem, p. 142).

Além disso, o “consumo do espaço” também não é nada desprezível, como, por exemplo, se verifica na indústria dos lazeres e do turismo, tornando-se uma das principais fontes de lucro do capital. Portanto: “Há nos tecidos urbanos, através do seu caos, um consumo produtivo, o do espaço, das vias de comunicação, das edificações” (Ibidem, p. 175). Em tais setores, ainda se emprega grande força de trabalho, geralmente, mal remunerada e desqualificada.

Por isso, o espaço é produzido muito aquém de suas totais possibilidades, porque submetido à ordem social vigente e às categorias históricas do capitalismo. O que, de acordo com as determinações desta economia, resulta em estratégias de classe (dominação) e numa planificação minuciosa do espaço com vistas a dar conta dos “fluxos” e dos “fixos”, flutuações do mercado etc. A produção do espaço busca empreender uma ordenação do contexto social e, sobre os alicerces do espaço homogêneo, tem por princípio o postulado do espaço neutro (continente), elaborado como uma superfície [um espelho]. O projeto visa iluminar, clarificar, como um sol do meio dia, a realidade social. No entanto, este espaço neutro dissimula e mascara a complexidade do real que não se reduz ao sistema racional dos planos e planejamentos. Portanto, este espaço é instrumental, porque se torna objeto de interesse político, e, por isso, nada tem de “neutro”.

O arquiteto, produtor de espaço (mas nunca sozinho), opera num espaço específico. E, de início, ele tem diante de si, sob seus olhos, sua prancheta, sua folha em branco. O quadro negro, decerto, não tem um efeito muito diferente. Quem não considera essa folha em branco como um simples espelho, e como um espelho fiel? Entretanto, todo espelho é enganoso. Além disso, essa folha em branco é mais e outra coisa que um espelho. O arquiteto a utiliza para seus planos, palavra a ser tomada em toda a sua força: superfície plana, sobre a qual um lápis mais ou menos ágil e habilidoso traça o que o autor considera a re-produção das coisas, do mundo sensível, quando, de fato, essa superfície impõe uma decodificação-recodificação do “real”. (...) A folha sob a mão, diante dos olhos do desenhista, é tão branca, tão branca quanto plana. Ele a considera neutra. Ele considera que esse espaço neutro, que recebe passivamente os traços de seu lápis, corresponde ao espaço neutro de fora, que recebe as coisas, ponto por ponto, lugar por lugar. Quanto ao “plano”, ele não permanece inocentemente no papel. No terreno, o trator realiza “planos”. (Ibidem, pp. 25 e 26).

É possível aqui, na discussão da produção do espaço, retomar facilmente ao conceito de dupla determinação; ou, em termos nietzschianos, retornar a interpretação sobre aspectos apolíneos (legibilidade) e dionisíacos (obscuridade). Neste sentido, a dinâmica da produção do espaço sob a tutela da economia manifesta-se na dualidade entre representações coerentes e racionais (por exemplo, da linguagem, da ideologia, dos códigos, das formas), que buscam suprimir o turbilhão de variáveis indomáveis e incontáveis, próprias e inerentes ao corpo (e não podem ser calculado)[4]. Vejamos:

Entretanto, o desenho comporta evidentemente um risco, o de uma substituição, por grafismos, dos objetos e, sobretudo, das pessoas, dos corpos, dos seus gestos e atos. Ele é redutor, mesmo se não o é para o desenhista no curso de sua ação. (...) A legibilidade é considerada como uma grande qualidade. O que não é falso. Mas não se pode esquecer que toda qualidade tem sua contrapartida e seus defeitos. Qualquer que seja a codificação, a legibilidade se paga por um preço muito elevado: a perda de uma parte da mensagem, da informação ou do conteúdo. Essa perda é inerente ao movimento que, do caos dos fatos sensíveis, extrai um sentido. A emergência desse sentido quebra a rede, frequentemente muito fina e ricamente desordenada, da qual a elaboração é parte. Constituindo outra coisa, ela acaba apagando-a. (Ibidem, pp. 27 e 28).

É esse o sentido do espaço abstrato cuja função é a de absorver num plano asséptico da forma pura, não sem inúmeras resistências, a realidade obscura e caótica das pulsões humanas. Assim, o Estado – e sua equipe de especialistas – incumbe-se de organizar o espaço, através de sua abstração, de modo a constituir uma infra-estrutura necessária, que, no fundo, dá suporte a empresa capitalista. Para isso, são mobilizados grandes recursos materiais e do saber, no sentido de implantação de um programa racional de otimização das demandas econômicas.

A natureza nesse processo também é sistematicamente ordenada, pela lógica da mercadoria, submetendo-se, da mesma forma, aos princípios de obsolescência programada. Neste sentido, no desenvolvimento do capitalismo, a natureza ascende ao nível dos conceitos econômicos (reificada) enquanto matéria-prima, subordinada ao ritmo tautológico da produção. Evidentemente, ela entra em colapso, já que a lógica da acumulação não tem fim e os recursos naturais são finitos. A natureza passa então a se constituir em novas raridades: água, luz, ar, natureza, espaço. Por outro lado, a sociedade regida pela desigualdade inerente ao capital não consegue resolver a antiga escassez, e em meio à sociedade da abundância, mais da metade da população mundial ainda passa fome[5]. Neste contexto, agravam-se os problemas; a produção do espaço e o desenvolvimento ímpar da produção, ao invés de significarem a possibilidade única da realização da liberdade, tornam-se cenários sombrios de miséria e degradação.

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A problemática do espaço envolve a sociedade urbana. Porém, antes de prosseguirmos, vejamos agora a seguinte notícia que foi registrada pelos mais diversos meios de comunicação como um marco histórico, neste início de século[6]:

“Terça-feira, 19 de abril de 2007. Pela primeira vez em toda a história da humanidade a população urbana ultrapassou a rural em níveis mundiais. Segundo Anna Tibaijuka, diretora executiva do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Urbanos UN-Habitat, em reunião do Conselho Administrativo da entidade, realizado em Nairobi, no Quênia, hoje a maior parte da população do planeta reside nas cidades e há perspectivas para que em 2030 dois terços da população mundial viverem em centros urbanos. “O mundo já passou nesse momento a marca de 50% de pessoas que moram na cidade. Na América Latina, 75% das pessoas moram em cidades. Os problemas gerados são a falta de planejamento dessas cidades, que se refletem em uma demanda não satisfeita por serviços básicos: água, esgotos e lixo. No caso da América Latina, agora o problema central é a regularização das propriedades e o serviço de estrutura das nossas cidades”, explicou Jorge Gavidia, diretor regional do UN-Habitat para América Latina e Caribe.”

Feita esta constatação, atentamo-nos para o seguinte: para Lefebvre, a cidade, mesmo emergindo da divisão do trabalho, é mais obra do que produto e, por isso, sua ênfase recai no uso, propriamente dito. Isto é, obra no sentido do estilo, como já observamos. Portanto, “a cidade é uma obra no seu sentido de uma obra de arte. O espaço não é apenas organizado e instituído. Ele também é modelado, apropriado por este ou aquele grupo, segundo exigências éticas e sua estética, ou seja, sua ideologia” (Ibidem, p. 82). No capitalismo, entretanto, a cidade converte-se em produto, mercadoria (valor de uso e valor de troca). Haveria nessa proposição uma certa nostalgia da cidade enquanto obra em relação à cidade-mercadoria? Não. Mas um projeto de resgate da cidade, sob novas condições históricas, de seu sentido de obra. Todavia, a cidade, nas sociedades pré-capitalistas, apesar de expressar um estilo, foi produzida sobre formas de coações fundadas na dependência pessoal ou política. Na cidade antiga (política) ou na cidade medieval, histórica (comercial), predominavam formas cruéis de subjugação de grande parte da população, mobilizada em função do interesse soberano das oligarquias de então. Todavia, isto não impedia – na verdade, até mesmo estimulava – um certo sentido estético, de grande estilo, que se concretizava em obras monumentais e arquitetônicas destinadas a celebrar adventos memoráveis do passado ou façanhas épicas de heróis e deuses que engrandeciam a história de um povo. Basta lembrarmo-nos, para isso, da Atenas de Péricles.

No contexto urbano, as lutas de facções, de grupos, de classes, reforçam o sentimento de pertencer. Os confrontos políticos entre o “minuto popolo”, o “popolo grasso”, a aristocracia ou a oligarquia, têm a Cidade por local, por arena. Esses grupos rivalizavam no amor pela cidade. Quanto aos detentores da riqueza e do poder, sentem-se eles sempre ameaçados. Justificam seu privilégio diante da comunidade gastando suntuosamente suas fortunas: edifícios, fundações, palácios, embelezamento, festas. Convém ressaltar este paradoxo, este fato mal elucidado: sociedades muito opressivas foram muito criadoras e muito ricas em obras. (Ibidem, p. 13).

Tendo em vista esta distinção, entre obra e produto-mercadoria – “uso” e “valor de uso e valor de troca” –; a cidade produto-mercadoria provoca um fenômeno interessante: a sociedade se urbaniza (socialização da sociedade) em detrimento da cidade. Esta contradição merece uma atenção especial. O que ela quer dizer? Vejamos: “A própria cidades é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos” (LEFEBVRE, 2009, p. 12). Portanto, a socialização da sociedade, pela troca, subordina a cidade à lógica da mercadoria, deteriorando seu sentido fundamental de obra. Fato que se inicia no contexto da Revolução Industrial, capitaneado pela burguesia, que assume a condição política de classe dominante.

A burguesia ‘progressista’ que toma a seu cargo o crescimento econômico, dotada de instrumentos ideológicos adequados a esse crescimento racional, que caminha na direção da democracia e que substitui a opressão pela exploração, esta classe enquanto tal não mais cria; substitui a obra pelo produto. (ibidem, p. 23).

Assim, a cidade industrial, isto é, a cidade tomada de assalto pela indústria, apresenta, no entanto, um paradoxo insolúvel: ao mesmo tempo, de um lado, superdimensiona a cidade ao “infinito” (cidade enquanto sujeito: a cidade pela cidade), isto é, sob a lógica do valor de troca; por outro, destitui a cidade de seu sentido urbano. Tal expansão exponencial da cidade significa também sua implosão: quando o espaço é produzido sob as determinações do capital e a propriedade do solo[7]. Fato que, contraditoriamente, num outro momento, também expulsa a indústria para fora da cidade, engendrando uma divisão do trabalho no interior do tecido urbano.

E aqui é preciso se deter neste aspecto. O valor de troca deteriora a obra no produto. O grande estilo converte-se numa reunião de objetos, coleções culturais, produtos de consumo etc., ou seja, um sintoma da decadência social (niilismo). Sendo assim, a cidade é produzida tendo por objetivo o lucro e não a sociedade é também sintoma da decadência. Num certo sentido, a cidade é alienada, ou melhor, expropriada das mãos daqueles que a produziram. No interior desta dinâmica, o centro é esvaziado e a cidade fragmentada, pulverizada, formando grandes guetos na periferia. Ironicamente, a consolidação material da cidade implica em sua negação, isto é, a urbanização da sociedade não significa outra coisa que a própria crise da cidade (deterioração do campo e da cidade).

Paradoxalmente, neste período em que a cidade se estende desmesuradamente, a forma (morfologia prático-sensível ou material, forma de vida urbana) da cidade tradicional explode em pedaços. O processo duplo (industrialização-urbanização) produz o duplo movimento: explosão-implosão, condensação-dispersão (estouro) já mencionado. (Ibidem, pp. 77 e 78).

Para compreender bem esta contradição e processo é preciso entender aquilo que Lefebvre concebe por teoria das formas. Metodologicamente, do ponto de vista de uma exposição dialética, como vimos, é necessário recorrer à análise e reduzir o conteúdo da realidade concreta ao abstrato e o mais geral, ou ao mínimo e quase nada (a forma). Como vimos, o ponto de partida pode ser o imediatamente sensível, por exemplo, o “isto” que implica o “ser” ou, em outro contexto, a “forma mercadoria”. O “ser”, por exemplo, é o atributo mais geral (isso “é” ou “existe”) e que pode ser aplicado a todas as coisas; mas, é também a designação mais vazia e indeterminada, por se aplicar justamente a todas as coisas. A forma mercadoria é a propriedade comum que torna iguala coisas tão diferentes como uma caneta e um óculos: ambos possuem valor de troca e valor de uso. Assim, a forma, quase num sentido aristotélico de “essência”, é uma exigência do pensamento analítico que abstrai um princípio geral e coerente de uma dada realidade. A forma reafirma a identidade pela não-contradição, o que subentende uma repetição do mesmo, vazio. O conhecimento não pode se contentar na posição afirmativa que paralisa o pensamento e ratifica sempre o já conhecido. Deve sair de si mesmo e partir em busca do desconhecido. A forma é então levada a um outro nível, superior, quando reclama um conteúdo concreto (sintético). Este conteúdo concreto foi negado pela forma. Mas a forma da identidade só é reabilitada quando, num outro nível, encontra este conteúdo desconhecido e conserva-o em si no conceito. Dito isto, a análise isola uma forma urbana pela realidade urbana: “A vida urbana pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos padrões que coexistem na Cidade” (Ibidem, p. 22). O que pode ser sintetizado na citação abaixo:

Forma urbana. Mentalmente: a simultaneidade (dos acontecimentos, das percepções, dos elementos de um conjunto no “real”). Socialmente: o encontro e a reunião daquilo que existe nos arredores, na “vizinhança” (bens e produtos, atos e atividades, riquezas) e por conseguinte a sociedade urbana como lugar socialmente privilegiado, como sentido das atividades (produtivas e consumidoras), como encontro da obra e do produto. (Ibidem, p. 94).
        
Sendo assim, o conteúdo concreto da cidade pressupõe a forma urbana. Não obstante, a forma urbana não se realiza como tal na metrópole capitalista, senão como simulacro. Ressaltemos a contradição: a urbanização da sociedade não constitui a sociedade urbana. Por quê? Porque, ao mesmo tempo, que, morfologicamente, hoje se reúnem todas as condições materiais para realização da sociedade urbana ou simplesmente do urbano, por outro lado, uma já mencionada “ruralização” da cidade, pela concentração da propriedade privada, equipamentos urbanos e controle dos recursos naturais, suspende a consolidação virtual plena da sociedade urbana. Não é a forma urbana, mas a forma mercadoria que fomenta o crescimento das cidades.

O mundo da mercadoria tem a sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, só exprime indiferença diante da forma urbana; ela reduz a simultaneidade e os encontros à forma dos trocadores, e o lugar de encontro ao lugar onde se conclui o contrato ou quase contrato de troca equivalente: o reduz ao mercado. (Ibidem, p. 87).

Neste sentido, o Estado capitalista desempenha um papel importante na organização cidade. Tem por pressuposto o planejamento da sociedade fragmentada em setores, “nichos”, zonas etc., em sintonia com as determinações econômicas. Logo, o que está implícito no espaço neutro são políticas de segregação social e guetos urbanos, encarnados em conjuntos habitacionais (habitat), condomínios etc. O planejamento estratégico busca dirigir o consumo a partir do postulado da legibilidade racional e coerente desenvolvida pelo urbanismo (zoneamento) e demais ciências reprodutoras. Supõe então a identidade do real ao racional e do racional ao real, no Estado. Porém, a forma urbana reclama um conteúdo, contraditório.

Portanto, “o urbano” se apresenta não como um dado, atual, mas, ao contrário, como virtualidade (potencial). Pois são as condições que já estão dadas convivendo com as categorias que estão em gestação. A paixão é o momento sensível do amor; na paixão, o amor (uma ideia: amizade) é uma virtualidade que só se concretiza efetivamente num momento posterior, negando-a, porém, sem suprimir a paixão (conciliando o sensível e a ideia) etc. O vir-a-ser é fundamental para a compreensão deste processo dialético. Portanto, para resumir o que foi dito: não é que o sistema capitalista está em colapso, mas a crise é antes um sintoma do esgotamento das suas categorias econômicas. Por isso, suas instituições e organização do poder, sob a égide da classe capitalista, ainda se mantêm sólidas. Mas um novo mundo, no seio do capitalismo, se anuncia: a sociedade urbana. Será que ela vai se realizar conforme a teoria ou estará fadada também a um reino das sombras? Vejamos:

Assim se forma esse conceito novo: o urbano. É preciso distingui-lo bem da cidade. O urbano se distingue da cidade precisamente porque ele aparece e se manifesta no curso da explosão da cidade, mas ele permite reconsiderar e mesmo compreender certos aspectos dela que passaram despercebidos durante tempo: a centralidade, o espaço como lugar de encontro, a monumentalidade etc. O urbano, isto é, a sociedade urbana, ainda não existe e, contudo, existe virtualmente; através das contradições entre o habitat, as segregações e a centralidade que é essencial à prática social, manifesta-se uma contradição plena de sentido. (LEFEBVRE, 2008, p. 84).

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Se há de fato, uma nova realidade em gestação, então é preciso repensar as contradições sociais. No capitalismo concorrencial, os produtores eram expropriados, em última análise, das coisas que produziam. No neocapitalismo ou capitalismo de organização (fase, bem entendido, de transição), os produtores são expropriados do espaço que produzem. Como vimos, as categorias do capitalismo não deixaram de vigorar, mas, ao contrário, permanecem intactas, como fósseis vivos. À alienação do trabalho, soma-se a alienação do espaço. O que significa dizer: a cidade é alienada dos cidadãos; a natureza, dos “seres” naturais; o ar, dos pulmões; a água, da sede etc. Daí a importância da figura deste novo tipo de proletário, o sem-teto (antigos lúpen-proletariados); pois ele é a encarnação das novas contradições.

Vejamos então o sentido de uma dialética do espaço face aos elementos teóricos que acumulamos. A explosão-implosão da cidade não representa senão a generalização do aporte material da sociedade urbana (socialização da sociedade), sem realizá-la. Novos conflitos se apresentam, entre centro e periferia (segregação).

Pode-se dizer então que a realidade urbana desapareceu? Não, ao contrário. Ela se generaliza. A sociedade inteira torna-se urbana. O processo dialético é o seguinte: a cidade – sua negação pela indústria – sua restituição a uma escala muito mais ampla que outrora, a da sociedade inteira. Este processo não transcorre sem conflitos, cada vez mais profundos. As relações de produção existentes se estenderam, se ampliaram; elas conquistaram uma base mais ampla integrando simultaneamente a agricultura e a realidade urbana, mas nessa ampliação introduzem novos conflitos. De um lado, instituíram-se centros de decisão dotados de poderes ainda desconhecidos, pois eles concentram a riqueza, a potência repressiva, a informação. De outra lado, o estilhaçamento das cidades antigas permitiu segregações multiformes; os elementos da sociedade são implacavelmente separados uns dos outros no espaço, acarretando uma dissolução das relações sociais, no sentido o mais amplo, que acompanha a concentração das relações imediatamente ligadas às relações de propriedade. (Ibidem, p. 84).

Ora, a forma urbana pressuposta, como vimos, reclama um conteúdo: o encontro, a reunião, a simultaneidade, logo, centralidade.

A centralidade tem seu movimento dialético específico. Ela se impõe. Não existe realidade urbana sem centro, quer se trate do centro comercial (que reúne produtos e coisas), do centro simbólico (que reúne significações e as torna simultâneas), do centro de informação e de decisão etc. Mas todo centro destrói-se a si próprio. Ele se destrói por saturação; ele se destrói porque remete a uma outra centralidade; ele se destrói na medida em que suscita a ação daqueles que ele exclui e expulsa para as periferias. (Ibidem, p. 85).

De acordo com nossas interpretações, a luta por moradia no centro da cidade, diante de processos de especulação imobiliária generalizados, por parte daqueles que poderíamos designar provisoriamente por “guerrilheiros urbanos”, é uma das primeiras manifestações da luta pelo urbano, ainda que suas categorias não estejam plenamente refinadas e conscientes. Num sentido muito mais profundo, a luta do movimento sem-teto é muito mais que a reivindicação por moradia. Sua luta é por habitar.

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Antes de avançarmos, vejamos algumas questões pontuais, que não são descabidas de todo interesse: Sobre a sustentabilidade (ou o que quer que seja isso) e Sobre um pesadelo.

Sobre a sustentabilidade (ou o que quer que seja isso)

O desenvolvimento sustentável supõe, evidentemente, desenvolvimento, não qualquer desenvolvimento, mas o econômico. Pois, já há algum tempo, algumas mentes brilhantes constataram que a melhoria na qualidade de vida nas sociedades estava relacionada diretamente ao desenvolvimento econômico destas. Por outro lado, notaram-se também que, contraditoriamente, o desenvolvimento econômico resultava na destruição do meio ambiente, com a poluição do ar, dos rios e mares, os desmatamentos das florestas, o derretimento das calotas polares etc. Logo, para equacionar essa fórmula perversa, inventaram o desenvolvimento com sustentabilidade. Assim sendo, temas como efeito estufa, esgotamento dos recursos naturais e aquecimento global inundam todos os dias os noticiários de TV e até os assuntos da chamada filosofia de botequim. É a onda verde. Entretanto, omite-se, nas entrelinhas, que o desequilíbrio natural causado pela ação antrópica, algo que não questionamos, tem sido motivado por uma economia predatória, desde a Revolução Industrial, que subordina a produção e o consumo à lógica incessante do lucro pelo lucro. Ironicamente, os movimentos ambientalistas jamais põem o dedo nessa ferida. Isto porque seus expoentes são ironicamente os mesmos que se beneficiam dos lucros. Não é de se estranhar, portanto, que alguns dos presidentes e reis das mais importantes ONGs ambientalistas tenham por “hobby” a caça esportiva de animais em extinção[8]. Ou seja, o discurso ambientalista serve de ideário para justificar, pasmem, a destruição da própria natureza! Daí surgiu a mais nova falácia: o desenvolvimento sustentável. Não perderemos nosso precioso tempo nem espaço discutindo seriamente as bases do desenvolvimento sustentável. Basta apenas rebater um folheto publicitário apanhado fortuitamente num balcão de supermercado. Como faremos agora. (Só para constar):

“Pecuária Orgânica: um negócio de Respeito. Sabor com sustentabilidade

“Foi-se o tempo em que viver do campo era sinônimo de uma vida dura e sem respeito ao trabalhador, a terra e aos animais. (...) A linha Bife Orgânico é o resultado de um sistema de pecuária orgânica baseada no respeito ao tripé da produção sustentável: economicamente viável, socialmente responsável e ecologicamente correta”.

Réplica: Logo de início, algo nos parece insólito e mesmo intrigante, pois, é possível alguma pecuária e algum bife que não sejam orgânicos? Bom, em todo caso, o texto tem o mérito de reconhecer que houve um tempo em que não havia respeito nem com o trabalhador, a terra e os animais. Da nossa parte, temos dúvidas de que esse tempo tenha passado. Todavia, se, de boa-fé, acreditarmos nos que diz o folheto, ao que tudo indica um novo conceito está surgindo. Nesse novo conceito que transforma aquilo que já era naquilo que ainda é – o bife em orgânico –, verifica-se que a produção sustentável se apoia num tripé: economicamente viável – isto é fácil entender, quer dizer lucrativa... –, socialmente responsável e ecologicamente correta. O que vem a ser “socialmente responsável” e “ecologicamente correta”? É o que vamos tentar descobrir:

“O Ser

“A qualidade da linha Bife Orgânico começa com o respeito ao trabalhador do campo. Com todos os seus direitos garantidos, sua família conta com auxílio médico e educação na própria fazenda. Assim, o trabalhador exerce a sua função em condições dignas, desempenhando um papel fundamental na produção orgânica, respeitando o campo e os animais”.

Réplica: O “Ser”. O “Ser” é o trabalhador. Assim, mais uma proeza do Bife Orgânico: o trabalhador é promovido à dignidade dos conceitos metafísicos: o Ser! Poderíamos especular, na melhor tradição filosófica, se ele existe ou não existe. A princípio, ele existe, mas não é uma existência como a nossa. Existe como uma criaturazinha sem-vergonha, distante de nós, mas que merece algum respeito. Seu atributo é exercer sua função: o papel que é fundamental tanto na produção orgânica como na inorgânica, respeitando ou não o campo ou os animais, a saber: trabalhar. Matamos a segunda charada, das mais difíceis, a questão ontológica da essência do trabalhador! Agora falta...

“O Meio

“Produzir e Preservar. Esse é o lema de quem lida com produção orgânica. Com a natureza como grande aliada da produção orgânica, cuidados e ações para a sua preservação são fundamentais. Além da conservação das matas ciliares e dos rios, as árvores exercem um papel vital. Com o seu plantio planejado, há o sequestro de carbono, proporcionando um ar mais puro e também sombra para o descanso e conforto do gado”.

Réplica: Com um aliado do porte da Natureza, o lema não poderia ser mais edificante: “produzir e preservar”. Vê-se bem que, na pauta de reivindicações do movimento militante Bife Orgânico, as árvores são bastante esforçadas já no seu exercício diário e bastante natural de desempenhar seu papel vital. Lembremo-nos também do papel fundamental do Ser trabalhador na produção orgânica. Eis agora a divisão natural do trabalho! Mais um conceito novo em economia, orgânica! O Bife Orgânico também realiza operações espantosas de um plantio totalmente planejado, talvez por alguma organização de inteligência secreta, capaz do extraordinário fenômeno do sequestro de carbono. (Algo que nos faz sentirmos realmente mais seguros). Fato que ao que tudo indica deve proporcionar indubitavelmente um ar mais puro, sombra e água fresca para o gado. Pobre gado!

“A Vida

“Para um gado saudável e com grande valor agregado são necessários cuidados especiais no tratamento, que vão desde a não utilização de agrotóxicos ou antibióticos, até o respeito total ao animal, do seu nascimento até o abate. Isso proporciona um ciclo de vida sem stress, resultando em uma carne mais macia e saborosa. Com a produção orgânica, também é possível realizar o rastreamento genético do boi, traçando todo o seu ciclo de vida e também de sua linhagem. Dessa maneira, pode se ter um perfeito entendimento da cadeia genética do gado, o que se traduz em maior qualidade e segurança alimentar. Respeito a vida (sic) e principalmente a você”.

Segue-se uma receita de Goulash de miolo de alcatra (...)

Réplica: A “Vida” significa respeito total ao animal do seu nascimento até o abate! Mas, respeito principalmente ao estômago do Ser vivo, identificado no folheto por “você”, que eventualmente fará um bom churrasquinho de bife orgânico. Mas, cá entre nós, abstraindo esse inconveniente detalhe, o boi é bem tratado, recebe uma dieta saudável, equilibrada e livre de conservantes, e sua estadia na fazenda – do seu nascimento ao abate – deve se parecer com uma maravilhosa temporada de férias num SPA. No fim das contas, as neuroses do “Ser” boi e da vaquinha são facilmente resolvidas dentro da panela!

E aqui descalçamos todos os pés do tripé da produção orgânica. A despeito da boa vontade do gênio que escreveu este folheto publicitário e da carne da linha Bife Orgânico ser pelo menos três vezes mais cara do que as demais (“inorgânicas”), o desenvolvimento sustentável em suas linhas gerais e teóricas não poderia ser melhor representado, senão por meio deste folheto. Portanto, a economia sustentável não merece nem mais uma palavra. É um rótulo de uma mercadoria como outra qualquer.

Sobre um pesadelo

No ano de 2008, um homem negro, Barak Hussein Obama, foi eleito presidente dos EUA; fato inédito na história daquele país, que até bem pouco tempo atrás possuía um dos mais cruéis sistemas de discriminação racial, institucionalizado pelo ideal W.A.S.P. Sua vitória, no entanto, foi marcante principalmente nos grandes centros urbanos, de população mais heterogênea, com forte presença de imigrantes, em contraste com interior do país, ainda bastante conservador, denominado de “América profunda”. Pode se dizer que a chegada de Obama ao poder é fruto (ou traição das), dentre outras coisas, das lutas pelos direitos civis que foram iniciadas por Frederick Douglass e tiveram seu auge nos anos de 1960, sob a liderança do pastor luterano Martin Luther King. Seria a virada do século as portas abertas de uma Nova Era, calcada na diferença, a realização da sociedade urbana? Todavia, descumprindo promessas de campanha, Obama manteve de pé políticas imperialistas do seu predecessor, enviando contingentes sucessivos de soldados para o Afeganistão, ocupado por tropas estadunidenses. Apesar desta política beligerante declarada, foi, não obstante, laureado com o prêmio Nobel da “paz” (homenagem que traz o nome do inventor da dinamite). Sociedade urbana?

Encontramo-nos então num ponto crítico. Vivemos um simulacro do urbano, das diferenças. As diferenças são apenas aparentes, enquanto nichos de mercado. Sim, eis a falsidade, também o urbano (que, diga-se, é uma virtualidade) foi transformado em mercadoria. Pelo menos por enquanto.

Haveria aqui, então, um espaço para narrar um pesadelo que tivemos ainda acordados em meio à vertiginosa multidão de sonâmbulos? Ora, alguém poderia contestar o rigor científico de um pesadelo como outrora o fizeram com os sonhos. Mas responderíamos que os pesadelos também fazem parte da realidade humana quando esta se parece com um pesadelo. Permitam-nos contar este pesadelo então:

“Chegará um tempo em que os seres humanos serão imortais; talvez num futuro muito próximo. Algumas tartarugas, como é bem sabido, são imortais (não nos cabe aqui especular os motivos pelos quais elas morrem). Com o avanço da genética, bastará aos seres humanos copiarem estas tartarugas. Não é difícil imaginar. Se a manipulação genética chegar a tal ponto de desenvolvimento e for capaz de realizar em termos proporcionais os mesmos feitos que a ciência da informática tem hoje realizado, então, não haverá mais limites para a apropriação e domínio total da natureza humana. Nessa terra, que já se avista, as pessoas poderão finalmente escolher como elas vão querer ser. Tudo: altura, cor da pele, dos olhos, cabelos etc. É bastante provável que nos países ricos (europeus e os EUA) sejam os primeiros a deterem desta tecnologia. É bastante provável também que o biotipo atlético e padrão racial do “homem nórdico” sejam o mais escolhidos (basta ver quem são os astros do cinema). (E se você pudesse escolher, como você gostaria de ser?). Algo que poderá tornar as ruas das cidades semelhantes a um desfile de moda. É provável então que nos países centrais do capitalismo surja uma nova raça de “semideuses”. Bem alimentados e instruídos, eles poderão superar em tudo – em inteligência, força, beleza, felicidade – os demais seres humanos, marginalizados dos benefícios da ciência. Sim, pois, assim como no mundo de hoje, no do amanhã também nem todos terão acesso aos benefícios materiais e avanços tecnológicos que revolucionam a humanidade. A grande maioria da população formará, ao contrário, um grande exército de maltrapilhos e de constituição física falhada. O que fazer com eles? A raça de semideuses descobrirá saídas racionais de controle sobre essa massa caótica de infelizes, que será contida em campos de concentração de dimensões impensáveis, às vezes do tamanho de um continente! Mas, o que nos deixa mais estarrecido é que a aberração do nazismo só foi uma aberração, porque nasceu prematura, fora de seu tempo. Ora, este tempo se aproxima. Aparece no presente como virtualidade sombria. Constatação chocante! Pesadelo do qual lutamos para dissipar. Reafirmamos, o que nos deixa perplexos: o nazismo está dentro de nós (e se você pudesse escolher...), e o nazifascismo dos anos de 1930-45 não foi senão uma caricatura grotesca, uma paródia que assombra o futuro. Dois caminhos, somente dois caminhos; a humanidade mais uma vez se encontra-perdida num ponto de bifurcação, um ponto crítico. Precisamos acordar!”

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


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A alienação do trabalho

A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)



[1] É um grande erro supor uma inerência das categorias econômicas à complexidade das relações sociais e individuais. Esse foi o erro do marxismo vulgar, o desprezo pelas contradições de todas as esferas humanas quando se visava o socialismo e o comunismo. De repente, as categorias econômicas ganharam mais relevância que os seres humanos, o que na verdade só ratificava teoricamente o fetiche. Como explicar, entretanto, o conservadorismo moral em sociedades muito pobres e arcaísmos (clientelismo) em sociedades modernas. Pela alienação, sem dúvida. Mas não a alienação enquanto falsa consciência apenas. Alienação, no sentido discutido até aqui, como não realização das possibilidades humanas.
[2] Uma região da terra, em contrapartida, é desafiada por causa da demanda de carvão e minérios. A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva mineral de carvão, o solo como espaço de depósitos minerais. Do outro modo se mostrava o campo que o camponês antigamente preparava, onde preparar significava: cuidar e guardar. O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento. Entretanto, também a preparação do campo entrou na esteira de um tipo de preparação diferente, um tipo que põe <stellt> a natureza. Esta preparação põe a natureza no sentido do desafio. O campo é agora uma indústria de alimentação motorizada. O ar é post para o fornecimento de nitrogênio, para o fornecimento de urânio, este para a produção de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico ou à destruição. (...) A central hidroelétrica está posta no rio Reno. Ela coloca <sellt> o Reno em função da pressão de suas águas fazendo com que, desse modo, girem as turbinas, cujo girar faz funcionar aquelas máquinas que gerem a energia elétrica, para a qual estão preparadas as centrais interurbanas e sua rede de energia destinada à transmissão de energia. No âmbito dessas consequências engrenadas de encomenda de energia elétrica aparece também o rio Reno como algo encomendado. A central hidroelétrica não está construída no rio Reno como a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que está construído na central elétrica. Ele é o que ele agora é como rio; a saber, a partir da essência da central elétrica, o rio que tem a pressão da água. (HEIDEGGER, 2007, pp. 380 e 381).
[3] Se ainda houver dúvidas sobre esse ponto, basta lembrar que a crise de 2008, tida como a pior desde o crash de 29, foi uma crise provocada pela especulação no setor imobiliário dos EUA. Neste contexto, o governo Lula, além de lançar o programa “Minha casa, minha vida”, que prevê a construção de um milhão de moradia, suspendeu os tributos incididos em materiais de construção, como incentivo para conter a crise, provocando maior demanda e produtividade no setor. O governo Dilma deu continuidade a essa política.
[4] Para Nietzsche, o olhar é uma redução (superfície) de todos os demais sentidos do corpo. Foi pela música que o filósofo descobriu o sentido da tragédia.
[5] Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado em 14 de setembro de 2010, o número de pessoas que sofrem com a fome diminuiu pela primeira vez em 15 anos, passando de um total de 1,02 bilhões de subnutridos, em 2009, para 925 milhões. Tais cifras são inaceitáveis, pois representam 1/5 da população mundial e provavelmente os números oficiais não correspondam com a realidade, que deve elevar esses números a um patamar ainda maior. O que explica esse absurdo na dita “sociedade da abundância” é a escandalosa concentração de renda em níveis mundiais. A realidade europeia não serve de modelo para explicar o restante do mundo. Se há raridade do espaço, tampouco há distribuição equânime dos gêneros de primeira necessidade, como a alimentação. Portanto, no atual momento da história da humanidade, as contradições são ainda maiores e mais graves, o que nos faz pensar que se aproxima uma situação limite e que só há um caminho de fato para o dilema que se apresenta diante do ponto de bifurcação.
[6] Se, em meados do século XIX, a população urbana representava apenas 1,7% da população mundial, em 1950 tal porcentagem era de 21% e, em 1960, de 25%. Assim, a urbanização é um fenômeno não apenas recente como também crescente, e em escala planetária. O fato de que, entre 1800 e 1950, a população mundial multiplicou-se por 2,5 e a população urbana por vinte, mostra a importância que a urbanização vem tendo no mundo desde mais de um século. (SANTOS, 2008, p. 13).
[7] Com a indústria, tem-se a generalização da troca e do mundo da mercadoria, que são seus produtos. O uso e o valor de uso quase desapareceram inteiramente, não persistindo senão como exigência do consumo de mercadorias, desaparecendo quase inteiramente o lado qualitativo do uso. Com tal generalização da troca, o solo tornou-se mercadoria; o espaço, indispensável para a vida cotidiana, se vende e se compra. Tudo o que constituiu a vitalidade da cidade como obra desapareceu frente à generalização do produto. (LEFEBVRE, 2008, p. 83).
[8] Segundo notícias veiculadas amplamente pela mídia, o rei da Espanha Juan Carlos I, presidente da WWF, tem como singelo passa-tempo caçar elefantes, apesar da organização condenar esta atividade (17/04/02).


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