sexta-feira, 15 de junho de 2018

A PRODUÇÃO DO ESPAÇO: DE HENRI LEFEBVRE À GEOGRAFIA - PARTE 2

Henri Lefebvre: pensando a práxis (Parte 2)


por Jean Pires de A. Gonçalves

A dupla determinação[1]

Outro aspecto importante, em Nietzsche, e também para Lefebvre, é, como já dissemos, a dupla determinação (não a hegeliana)[2]. O que significa: Não há dicotomias metafísicas do tipo dentro-fora, mas passagens e relações ilimitadas com os limites, fronteiras, contornos, marcas ou simetria (ou não) do corpo e sua interação com o mundo “A flor que não sabe que é flor, que é bela, possui uma simetria de ordem n” (LEFEBVRE). Vejamos:

Na natureza, inorgânica ou orgânica, as simetrias (segundo um plano ou eixo), isto é, a existência da bilateralidade ou dualidade, de uma esquerda e de uma direita, de uma reflexão ou ‘refecção’, ou ainda de uma simetria de rotação (no espaço) não são propriedades exteriores ao corpo. (LEFEBVRE, Cap. 2, par. 3, p. 2).

O corpo vivente, ao desenvolver-se – modalidades de ocupação do espaço –, depara-se com alteridade do mundo. Neste sentido, desde sua forma embrionária, ocorre pela primeira vez uma relação de oposição interno-externo, “a primeira, a mais decisiva diferença na história do ser biológico. (Ibidem, par. 11, p. 5). O que não quer dizer essência e aparência, coisa em si e fenômeno, mas diferença de momentos. Seja qual for uma dada atividade, esta sempre pressupõe uma relação de dupla determinação opositiva e contraditória que é vivida antes de ser concebida[3]. O próprio sentido de abstração (separação, geral) já se opõe ao concreto (agregado, síntese). Por exemplo, é no andar – como Diógenes, que provava aos sofistas o movimento andando –, sempre numa única direção e sem alterar o sentido, que se descobre a linha reta, inventando-a.

Segue-se que para um ser vivo (à maneira da aranha, do marisco etc.) os lugares fundamentais, os indicativos do espaço, são, portanto, de início qualificados pelo corpo. O “outro” está lá, diante do Eu (corpo diante de um outro corpo). Impenetrável, salvo pela violência – ou pelo amor. (...) Mas o externo é também interno, enquanto que ‘o outro’ é também corpo, carne vulnerável, simetria acessível. Tardiamente, na espécie humana, os indicativos se quantificam. A direita e a esquerda, o alto e o baixo, o central e o periférico (nomeados ou não) provêm do corpo em alto. O que qualifica, parece, não é somente um gesto, mas o corpo inteiro. (Ibidem, par 7, p. 4).

Neste sentido: (...)

No começo foi o Topos. Antes, bem antes do Logos, no claro-escuro do vivo, o vivido tem, desde já, sua racionalidade interior; ele produz, bem antes do espaço pensado e do pensamento do espaço representando a projeção, a explosão, a imagem e a orientação do corpo. (...) Antes do intelecto analítico que separa, bem antes do saber, existe inteligência do corpo. (Ibidem, par. 7, p. 4).

Ou seja, através da atividade corporal inventa-se, pala abstração, a identidade, numa inter-relação com o mundo – caótico, temporal, desordenado, obscuro – em direção ao cosmo – ordenado, espacial, hierarquizado, transparente. Em meio ao caos, há arestas, fronteiras, ritmos que são pontuados, pautados e organizados pela abstração. Obscuridades são descriptadas pelo vir-a-ser da consciência, e daí o infinito é circunscrito no conjunto finito e quantificado numa praxis. “Nesse reino das sombras se desenvolve tardiamente o reino dos símbolos e signos portadores de uma clareza fausta e nefasta” (ibidem, Cap. III, par. 41, p. 12). Neste sentido, esta passagem extraída do livro “Lógica formal/lógica dialética” e transcrita a seguir é particularmente interessante:

O pensamento tem um poder efetivo: o poder de destacar, de separar do imenso devir do mundo, da totalidade do devir certos fragmentos, certos ‘objetos’. Tem o poder de discriminar, de separar: de abstrair. Esse poder nada acrescenta de substancial ou de misterioso ao universo; ao contrário. Existem menos objetos separados que nos objetos da natureza.

Esse poder nada tem de enigmático. Um poder não é um ‘algo’; e tampouco é ‘nada’. É um ato inseparável do que ele produz. Nossa mão procede assim: destaca, separa fragmentos do mundo; arranca a concha do rochedo ou a fruta de sua árvore. Se o pensamento traça linhas fictícias, demarcações teóricas e abstratas em torno de objetos que ele não separa praticamente, mas sim teoricamente, essa operação não é ‘substancialmente’ diferente das operações de nossa mão ou de nossos sentidos (por exemplo: quando nossos olhos ou nosso ouvido destacam ficticiamente, e somente para nós, uma sensação que se dá num conjunto).

É essa a significação profunda da prática. (LEFEBVRE, 1995, p. 102).

O sentido de abstração é tomado quase literalmente – em conformidade com seu radical e sentido original – o de arrancar, retirar algo de alguma coisa. O abstrato é inicialmente o manusear, o trato com a terra (matéria), o pegar etc.[4] As marcas, provocadas pela articulação ou inteligência do corpo, definindo atributos simétricos (e assimétricos) do espaço, suas fronteiras[5], do eu-outro, interno-externo, dentro-fora, espaço-tempo, constituem, enfim, uma fonte de reconhecimento da diversidade infinita e objetiva que já está dada na abertura do mundo. Como já se disse, as leis da natureza são as leis do espaço. Assim, um ato que gesticula, risca ou demarca, como o formidável lince quando arranha o tronco das árvores definindo seu território ou o bivalve que se desloca por propulsão no fundo do mar, já demonstra uma atividade inerentemente espacial, ou melhor, indica modalidades espaciais da presença num ambiente. “O intencional vem tarde, com o cérebro e as mãos” (Ibidem, par. 7, p. 4). Por isso, o ser humano, na qualidade de ser genérico, apropria-se da natureza humanizando-a (negando a natureza). Muito antes, porém, quando as mãos se libertam, elas seguram com força ou acariciam, apanham pedras, galhos, coisas, enfim, aprendem a pegar, soltar, jogar; manipular objetos etc. Talvez, antes ou depois, apontam.

A mão? Ela não parece menos complexa, menos rica que o olho ou que a linguagem. Ela apalpa, acaricia, apreende, brutaliza, fere, mata. O tocar descobre as matérias. Para a ferramenta, separada da natureza e separado dela o que ela alcança, mas que prolonga à sua maneira o corpo e seus ritmos (o martelo, repetitivo linear – o torno do oleiro, circular), a mão modifica materiais. O esforço muscular coloca em ação energias maciças, frequentemente enormes, em gestos repetitivos, aqueles do trabalho, mas também aqueles dos jogos. Quanto à pesquisa de uma informação sobre as coisas, pelo contato, a palpação, a carícia, ela utiliza energias finas. (ibidem, Cap. III, par. 117, p. 72).

Ora, a produção em sentido amplo, a produção do ser humano, da consciência, transforma primeiro a matéria – recorta, molda, abstrai –; processo às vezes violento. É preciso medir, com as mãos, com os passos; separar, comparar, contar, montar, construir; na caverna, na casa, durante a tempestade, na passagem de dentro para fora e vice-versa; na constituição da comunidade, das fronteiras; nas cidades antigas quadriculadas, na geometria etc., a relação com a natureza é uma prática espacial.

Eis um primeiro aspecto, o mais simples, dessa história do espaço que vai da natureza à abstração. Imaginemos o tempo no qual cada povo chegou a medir o espaço tendo suas unidades de medida emprestadas das partes do corpo: polegada, pé, palmo etc. Os espaços de um povo como as durações deviam permanecer incompreensíveis aos outros. As particularidades naturais do espaço e as naturezas particulares aos povos interferem. Mas qual inserção do corpo no espaço assim medida segundo particularidades! A relação do corpo, relação social de uma importância mal conhecida em seguida, conservou então a imediatidade que devia se alterar e se perder: o espaço, a maneira de medi-la e de falar, apresentam aos membros da sociedade uma imagem e um espelho vivo de seu corpo. (Ibidem, capítulo 2, par. 19, p. 27).

Concluindo, o espaço quantificado ou tornado categoria a priori tem por fundamento um qualitativo inerente ao próprio corpo. Assim como a teia da aranha é o seu outro da aranha. “Segue-se que para um corpo vivo (à maneira da aranha, do marisco etc.) os lugares fundamentais, os indicativos do espaço, são, portanto, de início qualificados pelo corpo” (Ibidem, par 7, p.4). Modalidades concretas de ocupação do espaço, dupla determinação, energias maciças e finas, “apolíneas e dionisíacas”, nos dizeres de Nietzsche[6]. “Na verdade, em sua relação consigo e seu espaço, o ser vivo emprega os dois tipos (a não separar, aliás) de energia, as finas e as maciças” (Ibidem, par 20, p. 7). Tal relação implica um ritmo próprio do corpo e da natureza acessível e assimilado em pontuações ou pautas abstratas. A música, a mais sublime manifestação humana, é espacial.

Aqui é possível fazer uma analogia. O som é o efeito produzido pelas vibrações dos corpos materiais e, consequentemente, das ondas sonoras no órgão da audição. Buzinas, motores, britadeiras, conversas, etc. são ruídos caóticos e irregulares aqui e ali. Assim como o canto dos pássaros e da natureza. Já a apropriação desses ruídos, bem como sua combinação, organização regular (harmonia) ou irregular (atonalidade), por instrumentos musicais ou pela imitação da voz, é música. A música é constituída por três elementos: melodia, harmonia e ritmo. São pelas diferenças rítmicas que se caracterizam várias danças (como a valsa, a catira, o samba etc.), definindo-as num ou mais gêneros musicais, como as músicas regionais: brasileira, espanhola, africana, árabe, oriental, etc. Há, portanto, uma sintonia intima da música e da dança, do vinho e da festa. No culto dionisíaco, quando da chegada da primavera, na colheita, comemorava-se, cantava, tocava e dançava. Criava-se um estilo. A música organiza não só os sons, mas também a sociedade; talvez a primeira apropriação do abstrato, através da demarcação do ritmo e do arranjo sonoro. A produção do espaço é uma composição musical.

O Espelho

Haveria a coisa-em-si por trás do espelho? Ou como o gato cinza que ao espiar-se no espelho procura atrás do espelho o outro gato cinza que o espia à sua frente refletido, mas descobre perplexo que não há nenhum outro gato atrás do espelho? O espelho é uma superfície doadora de “profundidade”. Na parede, é uma janela ao contrário. Reflete o interior. O espelho é uma superfície, “mágica”. Através do espelho, por exemplo, posso ver a minha imagem como se fosse a minha imagem outra pessoa à minha frente, como se fosse você. Não posso saber como sou fisicamente – imagem – senão no espelho. Nesse outro (objeto), descobrimo-nos, conhecemo-nos, reconhecemo-nos, esclarecemo-nos. Para saber como sou devo me transformar em um outro (você). Errar, sair de mim através do espelho, e ser-outro de mim mesmo e como outro de mim mesmo voltar a ser-eu mesmo, reconhecendo-me a minha presença nesta ausência subjetiva. A minha duplicação no espelho engendra a diferença: eu sou o outro no espelho e no espelho o outro sou eu. Este sou eu, eu sou esse. Um espelho colocado na frente de outro espelho multiplica a imagem ao infinito. A multiplicação, repetida incontáveis vezes, multiplica a menor diferença à maior diferença, também indefinidamente. Meu lado direito torna-se esquerdo, no espelho; e, no espelho, o esquerdo, direito: uma diferença, uma contradição! Talvez descubro como o gato perplexo que não há ninguém atrás do espelho, e que a multidão, que se repete no jogo de espelho, não passa de uma ilusão de óptica e que na verdade eu estou sozinho multiplicado ao infinito. O espelho é um prolongamento de meu corpo, pois me vejo nele; uma abstração, minha imagem separada de mim mesmo; minha consciência de si (consciência). Então, a multidão de mim mesmo, ora de frente, ora de costas, que se desdobra no jogo de espelho é um encontrar-se se perdendo em seu vertiginoso cair na profundidade da superfície da consciência dobrada. Ao passo que a multiplicação de mim mesmo, que sou-eu e não-sou-eu, na multidão de pessoas reais não é uma representação formal de contradições, mas contradições vividas. Pois a imagem do espelho pode enganar e levar ao erro. (Assim como os ameríndios foram iludidos por sua própria imagem refletida no fascinante mundo dos espelhos, mais valiosa do que o ouro). O espelho também pode ser côncavo e ampliar a minha imagem, de modo hiperbólico, como nos sonhos. Ou pode ser convexo e deixar tudo de cabeça para baixo. E eu, num estado de alienação profunda, posso acreditar que nesta imagem – nesse outro – eu sou exatamente eu. Talvez, apenas, a projeção dos nossos Eus. Na verdade, a clareza da superfície do espelho esconde um mundo obscuro: Eu mesmo-multidão.

O espelho?

Esta superfície pura e impura, quase material, quase irreal, fez aparecer diante do ego sua presença material; ela suscita seu inverso, sua ausência e sua inerência nesse “outro”. Sua simetria aí se projetando, ele aí descobre e pode acreditar que “ego” coincide com esse ‘outro’, ao passo que ele o representa, imagem inversa, onde a esquerda torna-se direita, reflexão que produz uma diferença extrema, repetição que transforma o corpo do eu num fantasma obcecante. De modo que o idêntico, e a transparência equivale à opacidade. (ibidem, Cap. III, par. 30, p. 63).

O espelho é forma. Dupla forma: o real-obscuro; o reflexo-claro. O espelho forma; ilumina, organiza, ordena o caos (mundus): re-presenta. Mas o que era idêntico, reproduzido no espelho, no entanto, engendra a diferença[7]. O erro me leva a verdade. A verdade do corpo. O espelho: mentalmente: a repetição; socialmente: a reprodução. Neste sentido, a forma abstrata demarca um sinal, indicando um conteúdo, contraditório.

Recapitulemos: O ser humano se realiza numa forma (representação, essência) alienando-se de seu corpo, através de suas marcas, símbolos, sinais, na coisa, e conhece de modo operacional e teórico – abstrato. Constitui uma essência. Apropria-se do mundo, de forças devastadoras, um turbilhão desordenado, caótico; transformando-o. Logo, essência que é estranha pois se realiza como um outro: o idêntico que é na verdade o diferente. “O espelho é então um objeto entre os objetos, mas diferente de todo outro objeto: evanescente e fascinante” (Ibidem, par. 33, p. 11). Ora, o espelho é a consciência (consciência-de-si): duplicação da coisa, do objeto, do “ser”, do “Eu”, pura separação (abstração): imagem. Representação que pode esconder a verdade: as sensações do corpo, do tato, do ouvido, do gosto. Erro que, entretanto, conduz a estas mesmas verdades. Metáfora que poderíamos interpretar e descrevê-la como exteriorização e estranhamento. Alteridade e alienação. A atividade humana repete o ser humano não em si mesmo, mas no seu corpo inorgânico; na natureza que se humaniza e humaniza a natureza.

Desenvolvimento notável. O corpo, ponto de partida, ao se produzir (alteridade, a simetria: repetição) no espaço (cosmos-mundo), através de energias duais, finas e maciças (vida, prática), nega a si próprio através da passagem em um outro (o espelho, diluição do corpo, o cogito: espaço abstrato) e se reconhece numa representação, e se realiza nela como tal. Todavia, esse outro deve ser negado novamente pela praxis, pois esse outro não é senão uma superfície, seu prolongamento, seu reflexo: re-apropriação do corpo, do espaço – do corpo inorgânico (natureza). Tal concepção materialista e dialética leva às últimas consequências uma teoria heurística (em sentido forte) do conhecimento, do mundus (obscuridade e nebulosidade) e do cosmos (ordem e transparência), da natureza, da vida, da sociedade. A cidade talvez aparece como a primeira obra humana, extensão do corpo, que desafia e (em partes) domina a natureza[8]. Embora, Lefebvre não tenha uma concepção continuísta ou evolucionista da história (hegelianismo e marxismo), não seria exagero evocar aqui, a título de ilustração, o período grego que os arqueólogos denominam de Geométrico e que caracterizou uma etapa formadora importantíssima da cultura na Grécia Antiga, ainda Idade do Ferro[9]. Curiosamente, foi neste período histórico, no qual os gregos ainda não conheciam a escrita, que surgiram obras-primas, de Homero, que segundo se diz era cego, e Hesíodo; obras estas que foram transmitidas oralmente por sucessivas gerações e eternizadas. E o que dizer da matemática grega, que não era abstrata, mas concreta?[10]

Em termos práticos (praxis), talvez, o novo projeto de emancipação tem por objetivo, primeiro, sair da história, isto é, abolir o nexo coerente e transcendental forjado internamente na história (fetiche da história), e, segundo, produzir um espaço voltado para as diferenças, do corpo e dos ritmos regidos pelo tempo cíclico e natural, já que o fim da história (daquela História acumulativa e linear), ou melhor, a pós-história, se revelou num fragoroso fracasso, suscitando novas contradições e não superando ainda as antigas.

As representações (espelho) tentam apreender o vir-a-ser, que escapa sempre. As representações só podem capturar um momento, daí seu sentido metafórico, o que não resulta em inverdade. A prática social se realiza através das representações. E aqui a praxis engendra a criação. Todavia, o conhecimento intui e descobre um ritmo do próprio corpo, da natureza; descobre uma coerência por meio da abstração racional, congelando-a em meio a ritmos desordenados ou regulares (como a aurora e o poente, as fases da lua, as estações do ano, a órbita dos planetas etc.). Mas fracassa ao tentar determinar uma totalidade imediata, singular, vivida, de modo informal, senão por meio do seu contrário–universal que o obriga imediata e posteriormente a voltar para o singular, no particular. Neste sentido, o corpo é negado à enésima potência até chegar à abstração pura: tempo e espaço (mental). O espaço geométrico, o espaço como categoria do pensamento (continente), axioma ou definição sem demonstração, intuídas pelo “pensamento puro”, é um desdobramento de uma prática espacial concreta, no início, muito simples, como, por exemplo, a construção de uma cerca. Mas adquire um poder próprio, um sentido organizador das relações sociais. O espaço abstrato, que aparece como pura objetividade, fetichizado, vazio, como, por exemplo, o território nacional, é no fundo produto social da atividade humana, que se constitui historicamente por meio de representações.

Se de fato nossa compreensão e interpretação forem corretas, a saber, a de problematizar a dupla determinação nietzschiana, que, nesta perspectiva, não excluiria um viés dialético, então o conceito de abstração-concreta não é tão estranho ao pensamento nietzschiano. Pois a abstração ou representação, de fato, tem um caráter objetivo. Daí a importância da análise do dinheiro e da mercadoria para se compreender uma sociologia do capitalismo. O mesmo pode ser dito em relação ao conceito de alienação que, por conseguinte, tem por ponto de partida o corpo, em sentido nietzschiano. Deste modo, podemos levar às últimas consequências o estranhamento do próprio corpo identificado por meio de representações redutoras. Na sociedade atual (mas do que nunca), a imagem refletida no espelho aparece na figura estranha do autômato. O autômato – máquina, o Estado, o planejamento social, o cotidiano, o capital, a cidade, o androide, o replicante – é a reprodução mais fantástica da imagem objetiva do ser humano no espelho: ele mesmo. É isso que permite Lefebvre escrever esta passagem surpreendente:

Se o robô se aproxima do homem e se o homem se reconhece nessa imagem mimética, a espontaneidade do autômato, é porque o homem já era robô. Não o sabia. Aprende-o. O sistema nervoso e os outros “sistemas” biológicos, fisiológicos? Sistemas autorreguladores. O corpo vivo? Uma rede de tais sistemas, complexo sistema homeostático do qual o quadripolo de Ashby oferece simplificado modelo. O cérebro? Máquina complexa e imperfeita de registrar, combinar, desconjuntar e ordenar. O pensamento? Uma série de “sim” e “não”, de dicotomias. A ação? Uma série de decisões estratégicas, em complexo jogo com a “natureza” e os outros grupos sociais. Se a sociedade pode subsistir, é porque contém sistemas autorreguladores. É porque já é um sistema homeostático. Nas novas ciências da informação e das comunicações, a essência combinatória do real, sua estrutura fundamental, se descobre e se reconhece. A natureza? Nem mesmo existe. Não era, ela também, senão ilusão e mito. Mais: um resíduo. A mimèsis desvela-se como essência da praxis; as aparências da aparência ou do parecer caem, as da poièsis, as da transcendência, da subjetividade e da liberdade subjetiva, da temporalidade e da história, da natureza enfim. O robô não ameaça o homem pela excelente razão que o homem individual e social já é robô e que a imagem ameaçadora do robô faz parte das ilusões. A figura do Golen monstruoso, indomável, revoltado contra o aprendiz de feiticeiro, não passaria de um mito da máquina o mito do inumano robótico um mito do homem. As duas entidades, o autômato e o humano, se encontrariam na mesma categoria: o Cibernântropo! (LEFEBVRE, 1967, p. 247).

*****

Da alienação ao cotidiano

A citação acima pode ser chocante, mas é bastante reveladora: um sentido visceral de alienação. Portanto, voltemos às nossas metáforas: Inúmeros insetos passam por metamorfose antes de atingir a idade adulta. Os insetos conhecidos por holometábolos, passam por uma mudança completa e tão radical que não apenas sua aparência se transforma, como também seus hábitos, meio de vida, alimentação etc. Alguns, depois de passar anos em estado larval, aprisionados num casulo, ao tornarem-se um inseto adulto, vivem apenas o tempo necessário para reproduzirem-se, às vezes, por poucos minutos ou horas, pois muitos deles nem sequer possuem aparelho digestivo. Cumprida a função de reprodução, morrem logo em seguida e assim o ciclo vicioso se completa: um eterno retorno. Sem querer entrar no mérito das interpretações literárias, é possível fazer algumas digressões aventureiras a respeito de Gregório Samsa, personagem protagonista de A metamorfose de Fanz Kafka, que ao acordar pela manhã sente um terrível mal-estar, porque havia se transformado numa barata. Talvez mesmo, a parábola de Kafka diz do horror da imagem humana refletida no seu espelho. O problema, novo por sinal, é que Gregório Samsa não se descobriu transformado de repente num inseto, mas, talvez, descobriu antes que insetos sonhavam em ser seres humanos. Os insetos, assim como crustáceos e aracnídeos, são artrópodes, possuem exoesqueleto, membros articulados; de perto, alguns são seres monstruosos, parecem ter vindo de outro mundo; outros, entretanto, são de uma beleza sublime, como as borboletas; ou ainda, como certos coleópteros, têm aparência de tanques blindados e parecem metálicos; ou têm o aspecto frio de um robô, como o devastador gafanhoto: máquinas-vivas. A partir disso, tomemos a liberdade de alterarmos a primeira frase da citação acima sem mudar em nada o seu sentido: “Se o inseto se aproxima do ser humano e se o ser humano se reconhece nessa imagem mimética, a espontaneidade do autômato, é porque o ser humano já era inseto”. Terrível constatação! O mal-estar de Gregório Samsa, ao tentar se levantar, as dores que sentiu, a voz gutural incompreensível e incomunicável é na verdade o mal-estar já compartilhado por todos nós. O mais espantoso é que não é a tese idealista do primado do pensamento (a consciência ou planejamento), distinguindo, pelo trabalho, o ser humano das abelhas ou formigas. Mas, justamente o oposto: a comparação da sociedade humana a um formigueiro procede, porque o trabalho destitui o ser humano de suas virtualidades, rebaixando-o a uma existência predeterminada e subordinada ao espírito da colmeia. Se o Homem-de-Lata ambicionava um coração humano, na história do Mágico de Oz; na modernidade, é a humanidade que não tem coração. Mas a redução a um único aspecto da existência, automático e unilateral, sem dúvida, não nega totalmente o humano e a possibilidade de sua humanidade plena, do projeto de realização de suas virtualidades inumeráveis a serem ainda produzidas. E este é o “x” do problema: o ser humano não é uma abelha, mas está a meio caminho de sua plenitude. Por isso a resistência, o mal-estar, a revolta. Por isso, a representações cinematográficas do temor de uma rebelião de androides num futuro impreciso, mas próximo. Por isso o pavor de uma invasão de insetos gigantescos extraterrestres. Este temor, na verdade, é o medo de si mesmo, de uma humanidade segregada pelo apartheid social.

Neste ponto, é possível traçar uma conexão entre o conceito de incorporação, ou melhor, de ritmos do corpo (Nietzsche)[11], e o de alienação (Marx). Ora, a alienação, a do trabalho, impõe um ritmo, abstrato (tempo do relógio), cumulativo, linear, compatível à lógica do capital. Já a temporalidade rítmica do corpo é circular, não cumulativa, concreta, orgânica. Neste sentido, a incorporação, ou, num plano psicológico, a personificação, das categorias econômicas do capitalismo é uma negação (um reconhecimento diante do espelho côncavo) do próprio corpo (ego). Uma renúncia da vida; ou melhor, uma vida de renúncias. Pois, a realização e o reconhecimento nestas figuras estranhas e reduzidas é o que vai caracterizar a alienação.

Há múltiplos sentidos da alienação, em certo sentido ela deve ser reatualizada em diversos níveis. No nível mais profundo, o trabalho deve ser convertido constantemente em valor, isto é, trabalho não-pago, e depois novamente em trabalho. Para tanto, a forma mercadoria deve se generalizar, ou seja, a produção social deve aparecer enquanto produção de mercadorias. Neste sentido, todos os membros sociais figuram formalmente como possuidores de mercadorias, corporificados ora em trabalhadores, ora em capitalistas. (Evidentemente, não é uma questão de escolha consciente, mas uma imposição determinada por contingências históricas e sociais). Assim, de um lado, o dinheiro é convertido em meios de trabalho, condições objetivas de produção, e, de outro, o trabalho vivo deve se tornar mercadoria, na figura central do trabalho assalariado. Graças a isso, é possível descer da esfera da circulação à da produção, por meio da metamorfose da mercadoria, expressa na fórmula capitalista D-M-D’. O trabalho vivo aparece como a única mercadoria que, através de seu valor de uso, produz mais riqueza, na forma também de mercadorias (o dinheiro). Então, o ciclo tautológico se cumpriu (rotação). Em seguida, repete-se novamente o processo, infinitamente. É de se lembrar que o conteúdo social desta relação é determinado pela forma mercadoria, que se manifesta concretamente entre classes sociais distintas e opostas e em frações ou classes intermediárias. Porém, este esquema, segundo Lefebvre, explicava de modo suficiente apenas o capitalismo concorrencial, do século XIX. Numa fase mais complexa do capitalismo – o neocapitalismo ou capitalismo de organização – não é mais suficiente se deter na reprodução das categorias econômicas apenas. É preciso reproduzir a sociedade inteira, o cotidiano. A reprodução das relações sociais de produção é então o conceito chave para compreensão não só da reprodução das categorias econômicas como também da cotidianidade, etc.[12]. Em termos estritamente econômicos há reprodução da força de trabalho (do trabalho vivo) e reprodução do capital (do trabalho morto). Em termos mais amplos, há reprodução das relações, da cotidianidade. Neste sentido, em todas as esferas da vida há reatualização das relações sociais que se repetem indefinidamente, de modo automático – tendo em vista o capital enquanto valor em processo (sujeito automático). Citemos um exemplo de reprodução das relações, bastante significativo, no nível do cotidiano, para retomar a metáfora acima: Pode se dizer hoje que vivemos numa época bastante diversa daquela da era vitoriana ou puritana da Viena de Sigmund Freud. Atualmente, setores sociais das mais diversas esferas, notadamente os meios de comunicação, de revistas a programas de televisão, estimulam deliberadamente questões que envolvem a sexualidade[13]. Tal ênfase ou estimulo bastante permissivo do comportamento sexual em geral, em nada tem a ver com a revolução sexual proposta nos anos de 1960, nem tampouco é um fato novo historicamente.

Sem dúvida, se é possível alguma generalização simplista sobre a relação entre domínio de classe e liberdade sexual, é a de que os dominadores consideram conveniente estimular a permissividade ou lassidão sexuais entre seus súditos apenas para conservar seu pensamento afastado do estado de sujeição que se encontram. Ninguém jamais impôs o puritanismo sexual aos escravos – ao contrário. As sociedades em que a pobreza é estritamente mantida em seu lugar estão acostumadas a certas explosões de massa regulares e institucionalizadas de sexo livre, como os carnavais. De fato, como o sexo é a forma mais barata de divertimento, bem como a mais intensa (como dizem os napolitanos, a cama é a ópera do pobre), é politicamente muito vantajoso, sendo iguais os demais fatores, levar o povo a praticá-lo tanto quanto possível. (HOBSBAWN, 2003, p. 217).

A colocação de Eric Hobsbawn é de fato muito procedente, mas o problema é talvez ainda mais drástico, pois se trata no fundo de virar às avessas aquilo que se afirma. A questão central não se resume apenas na contenção das classes laboriosas. Não é apenas a reprodução da força de trabalho pura e simplesmente. Vai mais além. Pois, jamais foi tão moralista, tão repressora. Num certo sentido, a ética protestante do trabalho é enaltecida aí. Evidentemente, as classes dominantes se beneficiam desses instrumentos ideológicos, embora também elas se enveredam pelos caminhos dessa mesma lógica. Tal espetacularização do tema reflete bastante bem o problema da alienação do qual, na verdade, diz sobre a passividade dos “espectadores-consumidores” e do esvaziamento brutal do conteúdo de todos os aspectos da vida, de modo generalizado; ou seja, a impossibilidade da realização criativa inseparável da condição humana. A forma pura se impõe completamente para recair em seu contrário, ditando comportamentos que são repetidos ou reproduzidos automaticamente. O espetáculo engendra um ideal (suprassensível) que vai muito além da vida real. O resultando é a frustração e a conversão das pessoas em objetos descartados, que devem satisfazer apenas o desejo metafísico inspirado por representações inatingíveis. A vida se realiza completa num outro plano imaginado, enquanto no cotidiano, no fundo, não é senão a miséria da vida esvaziada que subsiste.

Segundo Lefebvre, a vida cotidiana sempre foi desprezada pela filosofia, enquanto esfera inapropriada por conceitos filosóficos. Isto é, na cotidianidade, as pessoas comuns são expatriadas a uma vida imersa em trivialidades, do dia a dia, da rotina do trabalho, das pequenas coisas, da vulgaridade monótona de uma existência mesquinha, nos afazeres do lar, na educação, nos lazeres etc. Aos filósofos, inversamente, cabe-lhes uma existência mais nobre – e mais digna? –, voltada para a contemplação, a especulação filosófica, a especialização, as dúvidas existenciais, da teoria, propriamente dita. Mas, para Lefebvre, justamente por ser um conceito não-filosófico – irredutível a um sistema – que o cotidiano, enquanto esfera residual, ganha importância filosófica[14]. Pois, a princípio, a vida cotidiana estabelece, enquanto negação (da filosofia), uma relação de identidade com seu contrário. A negação determinada de um termo passa necessariamente no seu oposto, no caso o não-cotidiano (filosófico) ao cotidiano, pelo menos virtualmente. Portanto, como poderia o filósofo escapar das banalidades da vida, de uma vida igual a todo mundo, escapar da rotina? Ou, inversamente, como o “simplório”, diante das injustiças, ou da aspereza da vida, não poderia refletir conceitualmente sobre o mundo e até contestar o estado vigente das coisas? Segundo Lefebvre, o projeto filosófico de uma razão dialética, tanto hegeliana como marxista, abarcaria também o cotidiano. Como já comentamos acima, a historicidade ou a razão na História, ciência privilegiada, culminaria, para Hegel, no Estado Moderno – encarnação da razão – e, para Marx, no comunismo (para Lefebvre, há ainda, na obra de Marx, uma pós-história, um mundo habitado por “poetas”). Desnecessário dizer, como já dissemos, que nenhum desses fins se realizou, senão como reino das sombras, isto é, a face escura da teoria. Todavia, tal pretensão racional permitiria chegar ao cotidiano, na medida que, em Hegel, os filósofos tornar-se-iam tecnocratas a serviço do Estado, ou melhor, o cidadão-filósofo se identificaria exatamente com a racionalidade do Estado e nele se realizaria – pressupondo um mundo habitado por filósofos. Em Marx, o operariado, a classe trabalhadora, através da praxis, que se dá no cotidiano, assumiria a condição única de sujeito histórico da transformação social em direção ao comunismo. O fracasso real de ambos os projetos, desvelando de um certo modo à ausência de sentido histórico, deu margens às objeções de Nietzsche e o seu projeto de ultrapassar o niilismo, através do seu empreendimento de mudar a vida. Ora, também esse projeto nietzschiano visava alcançar o cotidiano, contrapondo a clareza das aparências apolíneas (platônicas) à sua dissolução, pelo obscuro e explosivo mundo dionisíaco (a dimensão plena do corpo, portanto, do “irracional”). Em todos os projetos, buscava-se a superação entre doxa (opinião, vulgar) e epistème (discurso lógico, científico). Mas, como vimos também, o projeto nietzschiano, com sua crítica devastadora do Logos socrático e os valores judaico-cristãos, também malogrou. Vejamos:

Para Hegel é claro: a racionalidade vem da Razão, da Ideia, do Espírito. Para Marx e o marxismo também é bastante claro: a razão nasce da prática, do trabalho e de sua organização, da produção e da reflexão inerente à atividade criadora considerada em toda a sua amplidão. Mas atribuir um sentido (este sentido) à “história” e à “sociedade” não é também torná-las responsáveis pelas ausências de sentido, pelas violências sem nome, pelas absurdidades, pelos impasses?

Descobrimos que a inocência do vir-a-ser pressupõe sua falta de sentido. A hipótese nietzschiana, isto é, niilismo como etapa e momento, como situação a superar, não é então eliminada por antecipação. Se aceitarmos a orientação hegeliana e marxista – a realização do racional pela filosofia –, a análise crítica do cotidiano decorre daí. Se aceitássemos a hipótese nietzschiana de uma avaliação, de uma visão em perspectiva de um sentido decretado sobre a falta de sentido dos fatos, a análise e a transformação do cotidiano aderem a essa hipótese: é um ato inaugural. (LEFEBVRE, 1991, p. 21)[15].

Todavia, ainda hoje, a crítica do cotidiano, marcado pela barbárie, não só é possível como urgente e atual. Tal crítica deve oscilar entre as duas tendências mencionadas e unir aquilo que as toca: desvelar uma racionalidade (um sentido) inerente ao cotidiano (Hegel e Marx); ou inventar uma representação racional de um sentido que de alguma forma organiza e preserva a vida (Nietzsche). Das duas, uma: mudar o mundo. Neste ponto, ganha importância o residual: aquilo que passava despercebido às grandes narrativas e aos sistemas; logo, o banal, o amor piegas e vulgar, o não-filosófico, o senso comum ganham um novo sentido para o pensamento-ação.

Seria possível estabelecer um diálogo entre a trajetória Heráclito-Hegel-Marx e a trajetória que parte do Oriente e termina em Nietzsche, linha de pensamento da qual Heráclito também faz parte? O cotidiano seria o lugar desse confronto? Ele conteria o critério que permitisse descobrir ou o segredo do enigma ou a indicação de uma verdade mais elevada? (Ibidem, p. 25).

Ora, mudar a vida! Revolucionar a rotina avassaladora, da reprodução diária. Mudar o cotidiano! Os dias se passam, como o rio heraclitiano, e, no entanto, se repetem as mesmas coisas, a água sempre tem o mesmo gosto. O despertador que toca irritante sempre no mesmo horário, de manhã; os mesmos caminhos, a mesma calçada pisada apressada; as mesmas paisagens e lugares; pontualmente bater o ponto; as horas enfadonhas que se arrastam longamente vazias no serviço, mas encurtam a vida; o restaurante self-service, a comida fria, a mosca na sopa, o troco, o dinheiro; as horas que se arrastam pesadas – distantes de nós – e sem beleza –, perdidas, de que somos servos. A perplexidade: a multidão indiferente vagando obcecada e apressadamente em linha reta em direção a pontos incógnitos; sempre correndo, sempre apressada, na tentativa desesperada de aproveitar o que restou do dia (talvez na frente da TV: novela, futebol); e de repente o choque, o encontro...

Confrontando estas duas tendências (sentido e não-sentido). Sociologicamente, é possível discernir uma racionalidade imposta e definidora do cotidiano, determinada por abstrações sociais (representações), passíveis de serem descobertas e descritas; do emprego racional e coerente do tempo no espaço ao emprego do poder do espaço sobre o tempo. Neste sentido, no cotidiano, “aí tudo conta, porque tudo é contado: desde o dinheiro até os minutos. Aí tudo se enumera em metros, quilos, calorias” (Ibidem, p. 27). Esta racionalidade, em grande parte, respaldada pelas ciências parcelares[16], ganha consistência real. Por outro lado, é possível também discernir a completa falta de sentido no cotidiano (irracionalidade): o fluxo caótico, sem objetivo, sem direção; a paixão. O cotidiano é por excelência o lócus da vida real, de sua efervescência. “É no cotidiano que se tem prazer ou sofre. Aqui e agora” (Ibidem, p. 27). As categorias sociais, daquilo que poderia se denominar de ordem distante, a saber, instituições regidas por normas corretivas e códigos jurídicos, organizam pela força, no espaço, aquilo que se denominaria de ordem próxima, isto é, as relações entre indivíduos, grupo, classes etc.[17] Mas quanta coisa escapa! Assim sendo, a representação jurídica que visa a equivalência e permeia todos os contatos e contratos, da carteira de identidade, de eleitor, ao casamento civil etc., não podem determinar toda a dimensão da vida cotidiana, pois tudo isso não passa de mais uma superfície. Vejamos: Num princípio de uma noite quente de primavera, milhares de efêmeras sobrevoam ao redor de uma luminária pendurada no alto de um poste. Um homem sentado na calçada observa fascinado a revoada, talvez embriagado, sem dúvida fatigado; não é sujeito (jurídico) nem objeto (mercadoria), apesar das relações sociais que o impelem ora como sujeito, ora como objeto. – Vozes de criança ao longe: “Olha, aleluias! esperanças?” “Cuidado, não deixem elas entrar, elas viram cupins”, alertam as mulheres – Em meio ao seu cansaço, o homem descobre um instante para sonhar. Descobre um momento real de apropriação do seu tempo e do seu espaço: o aqui-agora. E talvez: Mudar a vida. Da mesma forma, no entardecer, em algum lugar da cidade, no parapeito de uma ponte em forma de arco, um mendigo olha – com brilho nos olhos – as folhas do outono que deslizam sobre as águas de um riacho e os peixes que parecem olhar para ele e falar, com o seu abrir-e-fechar incessante de bocas. O que estão tentando dizer? Parecem avisar, alertar alguma coisa. Mas o quê? Indiferente a tudo, absorto e em comunhão consigo mesmo, que enigma! O que vai pelos seus pensamentos? Já no centro da cidade, algumas pessoas dormem na rua, ao relento da fria noite, mas uma delas está acordada: ela olha para o misterioso céu. Ou ainda, um andarilho que caminha sob uma madrugada linda, de luar, estrelada, silenciosa, calma e doce; nem ele ao certo sabe para onde vai o seu caminho, mas se detém para ouvir um passarinho que na noite canta, com sua flauta serena. O passarinho: “Que importa a ti? Deves ainda seguir, andar, e nunca, nunca, nunca parar! Ficas ainda? (...) pobre homem da andança!” (Nietzsche). Para sair dessa “letargia”, é preciso alçar as instâncias abstratas da sociedade, os fóruns de representação, seguir os trâmites legais e absorver mentalmente a forma social por excelência: a da lógica da mercadoria. Não sem dor e sofrimento; não sem revolta.

Assim, a cotidianidade se define por um emprego racional e homogêneo do tempo e do espaço, solapando a confusão indomável e heterogênea da vida. Tempo linear que repete; espaço vazio, e que arrasta o mundo com ele. Mas para compreender o cotidiano é preciso ainda atentar para uma distinção crucial. Segundo Lefebvre, quando a historiografia ou antropologia busca descrever, às vezes, minuciosamente o cotidiano de sociedades pré-capitalista, na verdade elas descobrem um estilo[18]. Deste modo,

Entre os incas ou os astecas, na Grécia ou em Roma, um estilo caracterizava os mínimos detalhes: gestos, palavras, instrumentos, objetos familiares, vestimentas etc. Os objetos usuais, familiares (cotidianos), ainda não tinham caído na prosa do mundo. E a prosa não se separava da poesia. Nossa vida cotidiana se caracteriza pela nostalgia do estilo, por sua ausência e pela procura obstinada que dele empreendemos. (Ibidem, p. 36).

A coleção consagrada à vida cotidiana embaralha e confunde os conceitos por não se separar a especificidade do cotidiano após a generalização da economia. Então e assim cresceu a prosa do mundo, invadiu tudo, os textos, o que se escreve, os objetos como os escritos, chegando a expulsar a poesia para longe. (Ibidem, p. 36).

Neste ponto cabem várias considerações. Em primeiro lugar, Lefebvre rejeita a noção de “cultura”, por se tratar de um fenômeno da modernidade implicado num sistema, sendo impreciso estendê-la sem reservas a sociedades pré-modernas ou não-capitalistas[19]. O estilo definiria melhor estas sociedades (civilizações)[20]. Também não haveria sub-estilos na sociedade contemporânea, como atestam certos estudos sociológicos e antropológicos, mas “nostalgia do estilo, por sua ausência e pela procura obstinada que dele empreendemos”. Neste sentido, a noção sociológica de estilo de vida, ethos ou habitus, do gosto e da sensibilidade, que determinam escolhas cotidianas, valores particulares e identitários, da alimentação, habitação, modo de vida etc.; ou folclorista etnográfica, no que diz respeito às maneiras de pensar e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação etc.; ou ainda o conceito geográfico, de vertente la blachiana, de gênero de vida, do uso das técnicas, de um determinado hábito e da apropriação por grupos humanos das possibilidades oferecidas pela natureza etc., de certo modo, não seriam senão perspectivas enviesadas das diversas manifestações humanas que ultrapassam o conceito de cultura, notadamente, no que diz respeito ao da indústria cultural (Escola Frankfurt). Evidentemente, estas noções não são de todo descartadas no estilo. Porém, uma coleção de compêndios culturais não é senão um sintoma da decadência, uma recaída na barbárie (Nietzsche). De certo modo, o conceito de estilo diz respeito a sociedades ainda não estruturadas pelo cotidiano, das instituições, do Estado e da economia; mais precisamente está associado a sociedades rurais. Grosso modo, o tempo cíclico, do natural, das estações do ano, do cultivo e da colheita (vindima), define um tempo concreto e uma ralação vivida integralmente: a incessante oscilação entre a embriaguez dionisíaca e as formas perfeitas da métrica poética. Um modo de vida cria um estilo de vida; vestuário característico, músicas e danças típicas, festas, um estilo arquitetônico, as cidades, os espaços de representação – o sol, as estrelas, as fases da lua, as estações do ano, a poesia, a arte etc. –, a religiosidade, o casamento, enfim, uma prática espacial. A arte não separada da vida. A vida como arte. A grande cultura é a unidade de estilo de expressões da vida, uma obra de arte orgânica e coletiva[21]. Noutras palavras, estilo – um conjunto de qualidades de expressão, na história das belas artes, da música, da literatura, no contexto vivido de um povo etc. Já a racionalidade meticulosa constitutiva do cotidiano esvazia todo o estilo. Neste sentido, reiteramos, o estilo refere-se à produção no sentido amplo; em particular, a produção de obras. No cotidiano, o estilo é estilhaçado em “cultura” (fragmentada, ideológica), ocupando momentos e espaços definidos, reservados a um público alvo (de filisteus da cultura); assim, a produção da arte é voltada à fabricação de produtos culturais, em sentido restrito, econômico! Daí porque a prosa do mundo – o Logos, a palavra enquanto posição de objetividade no conceito – expulsa a poesia, que antes não se separava da prosa nem do vivido[22]. O prosaico, o vulgar, a falta do sublime; o dinheiro é a voz do mundo.

A historicidade do cotidiano devia estabelecer voltando para trás, a fim de mostrar sua formação. Evidentemente sempre foi preciso alimentar-se, vestir-se, habitar, produzir objetos, reproduzir o que o consumo devora. No entanto, até o século XIX, até o capitalismo de concorrência, até o desdobramento desse “mundo da mercadoria”, não tinha chegado reino da cotidianidade, insistimos sobe este ponto decisivo. Está aí um dos paradoxos da história. Houve estilo no seio da miséria e da opressão (direta). Durante os períodos passados houve obras mais que produtos. A obra quase desapareceu, substituída pelo produto (comercializado), enquanto a exploração substituía a opressão violenta. O estilo conferia um sentido aos mínimos objetos, aos atos e atividades, aos gestos, um sentido sensível e não abstrato (cultural) tirado diretamente de um simbolismo. Entre os estilos seria possível distinguir o da crueldade, o do poder, o da sabedoria. Crueldade e poder (os astecas, Roma) deram grandes estilos e grandes civilizações, assim como a sabedoria aristocrática do Egito e da Índia. A ascensão das massas ( que não impede em nada sua exploração), a democracia (mesma observação) acompanham o fim dos grandes estilos, dos símbolos e dos mitos, das obras coletivas: monumentos e festas. Já o homem moderno não passa de um homem de transição, a meio caminho entre o fim do estilo e sua re-criação. Isso obriga opor estilo e cultura, a sublinhar a dissociação da cultura e sua composição. Isso legitima a formulação do projeto revolucionário: recriar um estilo, reanimar a festa, reunir os fragmentos dispersos da cultura numa metamorfose do cotidiano. (Ibidem, p. 45).

Ora, um projeto revolucionário inclui a transformação do cotidiano. Recriar um novo estilo. A produção ampla: produzir um novo ser humano! Claro, não se trata de um retorno a sociedades passadas, à opressão violenta no seio da miséria. Naquelas sociedades, imperava o reino das necessidades, da escassez. As forças descomunais da natureza submetiam as sociedades humanas a um regime econômico de penúria e, às vezes, destruição. Grupos humanos também se digladiavam até dizimarem-se por completo. Claro, também havia momentos de bonança, de festa, do sublime: da colheita e do vinho! Todavia, as condições de produção eram limitadas, determinadas por contingências exteriores. Períodos de fome devastadores, guerras, pestes assolavam o mundo antigo. Na modernidade, o desenvolvimento das forças produtivas, das técnicas e das ciências possibilitou, sem precedentes históricos, um domínio racional da natureza, possibilitando pela primeira vez o mundo da liberdade. Esse extraordinário desenvolvimento material criou as condições para a superação da miséria humana e da dominação da natureza. As bases, enfim, foram lançadas. A sociedade está a um passo do fim das alienações, da possibilidade real da criação do ser humano integral, de uma civilização que tem por fim o ser humano[23]. Por isso a frase: “o homem moderno não passa de um homem de transição, a meio caminho entre o fim do estilo e sua re-criação”. Desta forma, o que estará em jogo é a ênfase da produção em sentido amplo, que na modernidade é reduzida. Vejamos algumas considerações mais detalhadas desse conceito:

A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, de uma parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o espaço sociais), em resumo, a produção “espiritual”, e, de outra parte, a produção material, a fabricação de coisas. Ele designa também a produção do “ser humano” por si mesmo, no decorrer do seu desenvolvimento histórico. Implica a produção das relações sociais. Enfim, tomado em toda a sua amplitude, o termo envolve a reprodução. (Ibidem, p. 37). (...) Na noção de produção se reintroduz o sentido vigoroso do termo produção de sua própria vida pelo ser humano. (Ibidem, p. 39).

Transcreveremos seus aspectos principais: existência social dos seres humanos, o ser genérico; transição da escassez para abundância; crítica das opressões e o domínio dos determinismos pela razão (dialética). Criação de obras: produção espiritual (tempo e espaço social); produção material, fabricação de coisas; produção do ser humano e das relações sociais. Obra: “bem” e liberdade. Reprodução: reprodução biológica; reprodução material dos utensílios necessários à produção, instrumentos técnicos e, ainda, reprodução das relações sociais.

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Enumeremos resumidamente também algumas características do cotidiano: a vigência do neocapitalismo ou capitalismo de organização; deterioração total da atividade criadora (poièsis), que, em última análise, teria capacidade revolucionária; extirpação da consciência da produção em sentido amplo; liquidação do passado; predomínio do niilismo e da barbárie; “o terror substitui o medo: terror diante dos perigos de guerra atômica, diante das ameaças de crise econômica. Não mais o terror da natureza, mas o terror da sociedade, apesar da passagem à racionalidade ideológica e prática” (Ibidem, p. 51). Hoje, o terror do Estado democrático e a resistência fundamentalista; o terror do clima – aquecimento global – e da destruição do meio ambiente provocado pelo desenvolvimento industrial, o esgotamento dos recursos naturais; o terror provocado pela miséria de mais da metade da população no planeta.

Na cotidianidade, as relações sociais são reproduzidas. O operário reproduz o operário. O capitalista, o capitalista. O escravo, o escravo. O senhor, o senhor etc. O sentido (vazio): tautologia: o lucro reproduz o lucro. Reprodução da base econômica – trabalho e divisão do trabalho –, da estrutura – relações sociais e de propriedade – e da superestrutura – instituições, códigos jurídicos e ideologias. Reprodução das representações no espaço. A vida toda, fragmentada: trabalho, escola, lazeres, férias etc. O repetitivo é privação, reduz à sucessão quantitativa, numérica. A força de trabalho, energia vital, é convertida brutalmente em algum tipo de movimento automático; por exemplo, o apertar um parafuso atrás do outro ou sempre o mesmo botão, na linha de montagem. A linha de montagem extrapola a fábrica, dita o ritmo da divisão do trabalho, da cidade: centro-periferia. Milhares de homens e mulheres uniformizados se amontoam num movimento conturbado, caótico, como num formigueiro; todos exatamente idênticos: o macacão-sujo ou o terno-e-gravata. Assim, a reprodução diária, do cotidiano, apresenta um movimento automático, o do autômato – que se estende à sociedade inteira. A representação da vida no lugar da vida. E a vida cede lugar à representação. O espetáculo. Uma sociedade de robôs, de insetos sem alma: máquinas-vivas.

Nesse contexto, um equilíbrio (feedback) provisório entre a produção e o consumo, estrutura e superestrutura, conhecimento e ideologia se mantêm, talvez, muito frágil, muito tênue. Eis que o repetitivo engendra a diferença! O homogêneo se esfacela em contradições explosivas. O Estado intervém. A polícia.
        
Até que uma destruturação as quebre, as relações sociais inerentes a uma sociedade se mantêm; mas não é por inércia, passivamente. Elas são re-produzidas num movimento complexo. Onde se passa esse movimento, essa produção cujo conceito se desdobra, ou antes se divide, de modo a compreender a ação sobre as coisas e a ação sobre seres humanos, a dominação da natureza e a apropriação da natureza ao e pelo “ser” humano, a práxis a poíesis? Esse movimento não se desenvolve nas altas esferas da sociedade: o Estado, a ciência, a “cultura”. É na vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o centro real da práxis. (Ibidem, p. 37).

Pois bem, simultaneamente à reprodução das relações sociais, reproduzem-se também os antagonismos. A exploração. Contradições. Ironicamente, no seio da sociedade da abundância pelo menos dois terços da humanidade vivem abaixo da linha da pobreza. Ironicamente, apesar do desenvolvimento exponencial da produção material capaz de virtualmente erradicar a fome no planeta, pelo menos metade da população mundial não possui uma alimentação adequada ou passa fome. No cotidiano, reproduz-se a miséria. A miséria do cotidiano. Por traz desse tênue equilíbrio da cotidianidade, há o desequilíbrio estrutural da sociedade capitalista.

Quando as pessoas, numa sociedade assim analisada, não podem mais continuar a viver sua cotidianidade, então começa uma revolução. Enquanto puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem. (Ibidem, p. 34).

As relações de classes, evidentemente, partindo-se dessa lógica, também são reproduzidas. A contradição capital-trabalho é reproduzida. Reproduz-se a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção (propriedade). Reproduz-se a contradição entre produção social e apropriação privada. Reproduz-se a luta de classe, em algum nível, ainda que invertida em barbárie. A exploração é reproduzida mas atenuada pelas ideologias, pelas representações, pelos “lazeres” do cotidiano. Enfim, as relações sociais, suas instituições, seus agentes e estratégias, o Estado, que transfigura num plano abstrato e homogêneo a desigualdade, são reproduzidas cotidianamente (diariamente). Paralelamente, o pulsar incontido da vida. O conflito entre o não-apropriado e o apropriado, que, em última análise, se opera no cotidiano, se mantém sob uma tensão insustentável. “A classe operária mergulha no cotidiano e com isso pode (ou poderia) negá-lo e transformá-lo. A burguesia, esta, faz arrumação do cotidiano e crê que pode escapar dele vivendo graças ao dinheiro perpétuo um ‘domingo da vida’. Mas é uma aspiração vã”. (Ibidem, p. 47). E aqui, o ponto central: o cotidiano é e não é o berço da revolução social. Enquanto reprodução da miséria, o cotidiano fomenta o aparecimento de virtualidades que apontam perspectivas, aberturas e saídas do próprio cotidiano. Todavia, enquanto reprodução da miséria, o cotidiano põe e repõe as categorias que giram a roda social de constrangimentos sistemáticos. É neste sentido que Lefebvre pôde fazer uma crítica dos projetos revolucionários que viam apenas um sentido positivo do cotidiano. A classe operária apenas caiu no equívoco de reafirmar as categorias, como a do trabalho, ao invés de superá-las[24]. O trabalho significa a anulação das potencialidades plenas humanas. É a colossal energia que transforma seres humanos em insetos sem alma: robôs.

A ruptura do cotidiano fazia parte da atividade revolucionária e sobretudo do romantismo revolucionário. Em seguida a revolução traiu a esperança, tornando-se igualmente cotidiana, instituição, burocracia, organização da economia, racionalidade produtivista (no sentido estreito do termo produção). (...) Onde exatamente situava-se a ingenuidade? Essa teoria do cotidiano associava-se talvez a um populismo, a um trabalhismo; ela exaltou a vida do povo, a vida da rua, das pessoas que sabem se divertir, se apaixonar, arriscar, dizer o que sente e o que fazem. Ela implicava ao mesmo tempo a obsessão do proletariado (a riqueza da profissão, do trabalho, dos liames de solidariedade no trabalho) e a obsessão filosófica, dissimulada sob a ambiguidade do “vivido”, sob o artificial e o inautêntico. (Ibidem, p. 44).

É neste sentido, que o fracasso do projeto revolucionário, de suas várias tendências, inclusive a do movimento operário, pode ser compreendido. A revolução socialista, em 1917, não rompeu o cotidiano. Ao contrário, o ratificou pelo Estado. Uma oligarquia (aristocrática) surgiu no seio do socialismo. No socialismo real, a formação de uma casta de tecnocratas e burocratas não escondia, tanto na propaganda política e ideológica, como também na política efetiva, a pretensão de transformar a sociedade numa máquina através de um planejamento cuidadoso. Transformar a alma da sociedade humana no espírito da colmeia. Na divisão do trabalho, cada peça exerce uma função. No entanto, são as classes médias que fornecem os quadros da burocracia estatal, e não o proletariado. 

O papel e a contribuição histórica da classe operária se obscurecem com a sua ideologia. Surge uma nova mistificação: as classes médias não terão mais que uma sombra de poder, mais que uma migalha de riqueza, mas é em torno delas que o cenário se organiza. Seus “valores”, sua “cultura” levam vantagem ou parecem levar porque são “superiores” aos da classe operária. (Ibidem, p. 48).

A classe média suporta melhor o cotidiano, porque se beneficia de alguns dotes provenientes da dinâmica social. A miséria da classe média, entretanto, não é sua inerente mediocridade (de estar sempre no meio termo), mas seu conformismo, seu conservadorismo. Por isso, seus valores moralistas e mesquinhos, geralmente ligados ao consumo; e sua questionável liberdade no plano do comportamento (liberalismo), que se tornam universais através do modelo a ser imitado. Seu ideal razoável de “sermos adultos” não é senão hipocrisia que esconde a banalização da violência. Esta mesma classe média que se alia à classe burguesa, aos poderosos. Mas a miséria da classe média e também da burguesia é a ilusão de que o dinheiro pode resolver tudo, inclusive, comprar “momentos” do vir-a-ser. Na ausência de um projeto de transformação social, novo ou revisto, fica difícil imaginar uma possibilidade de emancipação do cotidiano sob tais pressupostos.

Talvez aqui seja o momento para definir o ser humano total. E a resposta é de fato surpreendente. O ser humano total são estas mulheres e homens dos quais topamos todos os dias, ao sair na rua, ao entrar numa padaria, numa escola, num parque etc. É esta gente comum que conversa, brinca, joga dominó; e, às vezes, enche a cara de cachaça ou cerveja e, cambaleando, desaba nas sarjetas. É esta gente do povo, que como nós, passa por situações ridículas ou constrangedoras no dia a dia; e que, apesar de todas as coações, encontram momentos (recônditos) de felicidade (...). Enfim, são estes, o povão, mulheres e homens de todas as idades, o tal do ser humano total (o ser genérico) que tanto enfatizamos aqui. Surpresa? Espanto? Sem dúvida. Mas então qual é o projeto? Libertar-nos. Um projeto que estimule o desenvolvimento e a concretização das potencialidades criadoras (poièsis) de cada um de nós. Este projeto não é tarefa de um único conhecimento especializado, atribuído à educação ou pedagogia, por exemplo; mas da produção total, interdisciplinar e prática. Somente assim, a humanidade poderá escapar da auto-extinção, da catástrofe, e salvar a natureza e o planeta. E se nos for permitido imaginar (sonhar), uma possibilidade, dentre muitas, num futuro distante, daqui a bilhões e bilhões de anos quando o sol se tornar mais brilhante e mais brilhante, e nos obrigue a saltar de planeta em planeta, ou quando esta estrela se transformar numa gigante vermelha devastadora; imaginar uma viagem épica pelas as galáxias, por onde a humanidade, como na arca de Noé, se lançaria à procura de um novo sol! Podemos ainda especular: a construção de ultra-foguetes atômicos acoplados à Terra, capazes de viajar a velocidades inimagináveis, levando nosso planeta e a lua à reboque pelos quatro cantos do multiverso atravessado por buracos de minhoca, que são verdadeiros atalhos e labirintos das múltiplas dimensões que se chocam; ou mesmo, numa outra hipótese, a desintegração instantânea do planeta Terra e sua reintegração na órbita de uma outra estrela, escolhida por acaso por crianças, reunidas numa noite estrelada (...). Enfim, não esperemos que a natureza se encarregue de criar o sobre-humano às custas da nova extinção em massa que se avizinha e marcará o fim da era geológica humana.

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Hoje, somente os proletários, isto é, aqueles que nada têm (os ditos “sem”), são livres o bastante para empenhar esta formidável transformação social; mas o fardo é muitíssimo pesado, exige grandes sacrifícios. Não será demais?

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Como se apresenta o niilismo (enfermidade) hoje? Como fetiche da mercadoria. Ao contrário do que se afirma, o fetiche da mercadoria não tem as mesmas características da religião. Ele não é formador, não estabelece valores ou condutas morais. O fetiche da mercadoria assemelha-se ao niilismo, pois tem como motor a concorrência caótica e sem finalidade da produção, o lucro pelo lucro. Neste contexto, as tais leis da concorrência são consideradas saudáveis, ainda que se constituam socialmente em um imoral darwinismo social. O ser humano é, como vimos, rebaixado à condição de força de trabalho, da mercadoria, da reprodução pura e simples, e submetido às leis da concorrência selvagem, em todos os níveis da vida. Perde-se todas as medidas por causa de dinheiro. Por exemplo, não foram os filósofos, mas as igrejas que mataram Deus e passaram a cultuar sem o menor cerimônia o deus-dinheiro, mesmo que isto a todo custo implique seguir cegamente seu cânone monetário: odiar o próximo. Pois o objetivo é tirar tudo, espoliar o outro. O dinheiro aproxima as pessoas e também as excluem. Os niilistas hoje afirmam a totalidade – absolta – do fetiche moderno e da dissociação, ao qual anularia o caráter transformador de toda e qualquer diferença, declarando que uma reação ou resistência nada mais faz do que afirmar as categorias fetichistas, portanto, tudo é em vão! Como ascetas, renunciam à vida e entregam-se à prática teórica (economicista, abstrata, idealista), para glorificar o todo poderoso sujeito-automático (o capital). Arrogantes, senão resignados, são como escravos que renunciam o mundo e abstêm-se de qualquer iniciativa de mudança (desde que seus interesses não estejam em jogo). Estes fatalistas, indiferentes aos conflitos reais do vivido, insensíveis à dor humana, porque se retiram do mundo, habitando cavernas, esperam um dia o céu desabar em mil pedaços. Estes niilistas nada têm a acrescentar. Não merecem mais consideração, e talvez mesmo, nem a nossa amizade. Ao contrário, os revolucionários ousam lutar, ousam vencer, ousam mudar, porque, caso contrário, amargarão eternamente a mais vil e indigna servidão!

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Representações

Lefebvre é desses pensadores que, desde Hegel e Marx, Schopenhauer e Nietzsche, Georg Simmel e Émile Durkheim, compreendem o conceito de representação enquanto conceito fundamental na dinâmica social. O mundo representado é um espelho, o Véu de Maya, isto é, um nevoeiro de ilusões.

Se introduzimos na exposição de uma noção termos como “opacidade” ou “transparência” (de uma sociedade), podemos se acusados de substituir definições científicas por imagens. Contudo, essas “imagens” se encontram em Marx e possuem para ele e em seu pensamento um alcance científico. São elementos de conhecimento. Transparência quer dizer presença e se distingue da representação, até se opor a ela. (LEFEBVRE, 1968, p. 43).

Segundo Lefebvre,

Em estruturas sociais e modos de produções determinados, as praxis sociais produzem representações. Essas representações aumentam ou diminuem a falta de transparência de uma sociedade. Elas esclarecem com uma falsa transparência, ora mergulham-na na penumbra e nas trevas em nome doutrina ainda mais obscura que a realidade da qual surgiu. A realidade social, isto é, os homens e os grupos humanos em suas interações, produz aparências, que são algo além e diverso de ilusões sem consistência. Elas têm, pois, mais consistência ou, pelo menos, mais coerência que as simples ilusões ou vulgares mentiras. (ibidem, p. 44).

Ora, como vimos no espelho, isto é, na re-presentação, a superfície do cogito cartesiano ou consciência-de-si suprime o corpo e só se realiza nesta supressão. Este processo metonímico possui efeitos práticos. As representações têm um “poder” de organizar de modo coerente ou coeso as práticas sociais. Representações que, na verdade, podem trazer ainda mais mistificações do que transparência, mas nem por isso são vazias de sentido social. Neste sentido, a forma coerente desligada plenamente de seu conteúdo suscita ilusões, que não são meras ficções, haja vista que podem organizar toda uma realidade concreta e social sob uma determinação lógica (formal). Mas não são categorias da consciência. São, aliás, construções históricas. Por exemplo – para retomarmos a discussão sobre sujeito – o sujeito, reflexo num espelho côncavo dos indivíduos viventes – o sujeito é apenas uma superfície, uma redução dos indivíduos a uma forma: o pensamento racional. O sujeito pode ser uma re-presentação necessária para uma atuação efetiva, no âmbito de instâncias restritas, de ordem pública, jurídica ou política, que dilui praticamente, pela representação, o indivíduo real. Ora, mas, como vimos acima, o corpo, unidade material, carnal, dos indivíduos, não pode ser diminuído plenamente a esta superfície. O sujeito é uma máscara; ilusão oriunda da forma contratual que atenua as diferenças pela equivalência. Por isso, a realização formal das liberdades e direitos individuais implicarem numa inversão concreta manifesta no dever e na ausência total de liberdade. Neste sentido, o direito parte da premissa absurda – hipérbole do sujeito, espelho convexo – de que “a ninguém é dado o direito de desconhecer as leis”. Os códigos legais, entretanto, são um sistema de normas sujeitas à interpretação de um grupo seleto de expertos, e são inacessíveis a grande maioria (muitas vezes composta de analfabetos ou analfabetos funcionais). Esta premissa supõe um mundo habitado por advogados. Ou melhor, um mundo representado por advogados. Até que uma dada situação seja avaliada por alguns peritos das leis, ela não existe, senão como ilegalidade, ou possibilidade de delito. O que está fora dos autos não está no mundo. O que pressupõe e mesmo autoriza que o mundo fora dos autos seja um mundo onde tudo é permitido. À justiça, é incumbido o papel de corrigir os seus excessos. Mas ela não é imparcial. Recordemo-nos da parábola do camponês que procura a justiça mas jamais é atendido porque a justiça foi feita tão somente para ele. É em nome da clareza do sujeito que um mundo obscuro, a penumbra da lei, determina o veredicto das sentenças. E depois de passar pelo exame racional e o aval da “sociedade”, o emprego da violência se justifica plenamente.

Neste sentido, a forma mercadoria é um exemplo notável de forma coerente e hegemônica na sociedade moderna. Não é difícil compreender o conceito de mercadoria. Como já se disse muitas vezes, a mercadoria é valor de troca e valor de uso. Valor de troca quando ela é trocada por outra mercadoria (o dinheiro). Valor de uso quando ela é consumida. A partir disso, a mercadoria vai mediar todas as relações sociais. Os capitalistas compram força de trabalho para ser empregada na produção e vendem produtos do trabalho. Os trabalhadores vendem sua força de trabalho (mercadoria) e compram meios de subsistência para se reproduzirem enquanto trabalhadores. Insistimos nesse ponto. Porém, graças a essa forma cristalina, efetiva-se socialmente uma obscura relação, a exploração do trabalhador, a mais-valia.

A mercadoria, frente à reflexão analítica, é uma forma pura, logo uma transparência. Na realidade prática e vivida ela é, ao contrário, opacidade e causa de opacidade. A própria existência da mercadoria é algo de estranho, tanto mais estranho e singular quanto homens não percebem essa singularidade. (...) Ela possui um caráter místico: somente existe devido aos seres humanos, pesa sobre suas relações e ainda os conduz ao caminho da coisa (abstrata). (ibidem, pp. 44 e 45).

Pois bem, tomemos o que foi dito até agora. Uma capacidade potencial do corpo, o trabalho, engendra um “mundo”. Este “mundo” é uma exteriorização do próprio corpo. É também uma re-presentação: uma instância entre a presença (cidade) e ausência (natureza). A representação é mais potente que a de ideologia, pois não é superestrutura, mas a própria realidade, repleta de significados nem sempre visíveis nem sempre conhecidos. Estas representações projetam-se no solo, no terreno, isto é, no espaço. A representação não é uma ideia, um conceito, uma categoria, ela é real: por exemplo, uma pintura em um quadro; os Girassóis de Van Gogh. O quadro é uma presença; e os girassóis, uma ausência. A obra: talvez, os tormentos de um gênio; quem sabe, por causa do amor não correspondido, de sua Rachel. Não é dispêndio de energia humana que sai e se esvai. É a realidade que é moldada. É o gênio que é não ele-indivíduo, mas a sua obra. 

A forma mercadoria também se realiza socialmente no chão da fábrica, na esteira da linha de montagem; nos trabalhadores trabalhando, nos gestores fiscalizando. Outras representações ordenam e estabelecem lugares onde se efetivam mediações sociais: no balcão de atendimento, nas salas de reunião, nas escolas, etc. Podendo assim o espaço ser encoberto por uma névoa ou o próprio espaço tornar-se uma névoa, que encobre, organiza e estrutura a realidade social e natural. Assim, Lefebvre define a produção do espaço: “O espaço social é múltiplo: abstrato e prático, imediato e mediato” (LEFEBVRE, 2003, Cap. IV, par. 104, p. 26).

Dito isso, é possível discernir três níveis da prática espacial: o vivido, o percebido e o concebido. A prática espacial é então permeada por representações que funcionam como um espelho. Se levarmos em conta o que foi dito até agora, o mundo como uma soma descomunal de forças caóticas, e a prática social enquanto “organizadora” dessas forças – num sentido de apropriação, produção e dominação da natureza – então a cidade aparece, como já foi dito antes, como a primeira grande obra das sociedades humanas em relação à natureza, seu espelho no mundo, segunda natureza. (O campo ainda seria determinado ainda pelas intempéries e contingências da natureza). É neste sentido que Lefebvre pôde formular três grandes etapas históricas: a sociedade agrária (ante-histórica), industrial (histórica) e urbana (pós-histórica)[25]. Ou ainda um desenvolvimento espacial, no Ocidente, que pode ser caracterizado e distinguido em espaço absoluto; espaço histórico-espaço abstrato; e produção do espaço. Grosso modo, interpretamos tais etapas, salvo engano, como mega-estruturas, que se interpenetram, sem se negarem completamente e sem demarcações rígidas, em termos de datas ou evento histórico, e que tentaremos definir da seguinte maneira:

Do espaço absoluto – religioso e político –, só diremos que a ênfase recai sobre o corpo e o vivido, o tempo cíclico, sem distinção entre o público e o privado[26]. A Cidade Antiga e o mundus romano. Tudo é, ao mesmo tempo, simbólico e prático, imediato e abstrato. Seguindo a influência nietzschiana, interpretamos este espaço por excelência – “no início era o Topos” –, ao da Grécia pré-socrática, e ao culto de Dioniso.

Um pouco por toda parte, em todas as sociedades, o espaço absoluto se carrega de sentidos que pelas ameaças, pelas sanções, pelas emoções sempre postas à prova, não se dirigem ao intelecto, mas aos corpos. Esse espaço “vivido” e não concebido, espaço de representação mais que representa do espaço; desde que ele se concebe, seu prestígio se atenua e desaparece. (Ibidem, Cap. IV, par. 21, p. 5).

O espaço histórico tem por fundo o desenvolvimento do comércio, da mercadoria, ou melhor, da generalização das trocas, a invenção de códigos, da lógica e do direito[27]:

O caráter nefasto da mercadoria e a abjeção do dinheiro se manifestam apenas mais tarde. (...). No momento em que nós falamos, a “coisa” trocável, o objeto produzido para a venda, ainda raro, tem uma função libertadora. Ele dessacraliza. (Ibidem, Cap. IV, par. 100, pp. 24 e 25).

O dinheiro e a mercadoria, ainda “in statu nascendi” não forneciam somente uma “cultura”, mas um espaço. (Ibidem, Cap. IV, par. 101, pp. 24 e 25).

No século XIV, esse espaço enfim conhecido e reconhecido, portanto representado como tal, dará lugar a cidades simbólicas: fundadas para o comércio, nas regiões ainda exclusivamente agropastoris, portanto sem comércio. (Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 25).

O espaço que se instaura por diversos meios, violentos ou não, ao longo da Idade Média, se define como um espaço de trocas e de comunicações, portanto de redes. Esta rede é apenas o duplo físico e o espelho da natureza abstrata e contratual que religa os “trocadores” de produtos e de dinheiro. (Ibidem, Cap. IV, par. 103, p. 25).

A passagem do capitalismo comercial ao industrial e a formação do Estado moderno constituem o espaço abstrato. O econômico fará implodir a cidade, que, no entanto, conserva-se como centro. Espaço que tende ao homogêneo sem, contudo, suprimir as contradições.

Do século XII ao XIX, as guerras girarão em torno da acumulação. (Ibidem, Cap. IV, par. 129, p. 31).

A indústria estabelecer-se-á no espaço onde as tradições dos campos terão sido varridas, onde as instituições urbanas terão sido arruinadas pelas guerras (...). Neste espaço se amontoam as riquezas das rapinas e pilhagens. Tal é o espaço industrial estatista. (Ibidem, Cap. IV, par. 130, p. 31).

Resumamos: antes do capitalismo, a violência tem um papel extra-econômico. Com o capitalismo e o mercado mundial, a violência assume um papel econômico na acumulação. (Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 32).

Inspirando-se em Marx, muitos historiadores procuram uma explicação econômica dessas violências; eles projetaram sobre o passado um esquema posterior, aceitável para o período imperialista. (...) Eles não compreenderam bem o pensamento de Marx, a saber, que o histórico domina com suas categorias durante um certo período, depois se subordina ao econômico no século XIX. (Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 32).

Papel da violência na acumulação capitalista, a guerra e os exércitos como forças produtivas. (...) O que a guerra produz? A Europa ocidental, espaço da história, da acumulação, do investimento, base do imperialismo no qual o econômico triunfa. . (Ibidem, Cap. IV, par. 133, p. 32).

Evidentemente, que a ideologia nestes termos ganha muito mais potência, pois, diz respeito a uma prática concreta, aparentemente inócua, mas que qualifica os espaços dando sentidos e significados diversos, além de ordenamento, hierarquia e organizando a prática social, através dos gestos, de símbolos, signos, sinais e abstrações, códigos, instituições, nos monumentos, nas edificações, na fachada, nas construções, nos projetos, na cidade, que têm por fim a segregação.

Portanto, em relação a esta periodização do espaço social, é possível distinguir três níveis articulados que se entrecruzam dialeticamente, descritos abaixo:
        
“a) A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especificados e conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuidade numa reativa coesão. Essa coesão implica, no que concerne ao espaço social e à relação de cada membro de determinada sociedade com o seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance.

“b) As representações do espaço, ligadas às relações de produção, à ‘ordem’ que elas impõem e, desse modo, ligadas aos conhecimentos, aos signos, aos códigos, às relações ‘frontais’

“c) Os espaços de representação, apresentando (com ou sem código) simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que eventualmente se poderia definir não como código do espaço, mas código dos espaços de representações” (LEFEBVRE, 200 , cap. I, pars. 82-84, p. 31). 

A prática espacial ou espaço percebido diz respeito a modos de apropriação pela sociedade da natureza, o que implica produção e reprodução. É o sentido da praxis social, que transforma, ordena e constitui um certo espaço. Determinada organização social, não dissociada de um modo de produção, reflete-se no terreno transcrevendo sentidos e significados percebidos sensivelmente. “a) A prática espacial de uma sociedade secreta seu espaço; ela o põe e o supõe, numa interação dialética: ela o produz lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. Para a análise, a prática espacial de uma sociedade é descoberta decifrando seu espaço” (ibidem, cap. 1, par. 98, p. 34). A prática espacial articula os dois outros níveis: espaços de representação e representação de espaços. Na prática espacial, espaços são representados de diversas formas, reflexos de determinada atividade humana em relação a natureza (caos). Nas sociedades agrárias, há predomínio dos espaços de representação. O sol, a fonte, o poço, a noite, a flor, o caminho, mas também a pintura, escultura, poesia, a prosa. É o lado obscuro, oculto, do corpo propriamente dito. O espaço de representação pertence à esfera do vivido, do imediatamente sensível. O espaço tem um significado social, afetivo, que determina praticas sociais:

Os espaços de representação, ou seja, o espaço vivido através das imagens e símbolos que o acompanham, portanto espaço dos ‘habitantes’, dos ‘usadores’, mas também de certos artistas e talvez dos que descrevem e acreditam somente descrever: os escritores, os filósofos. Trata-se do espaço dominado, portanto, submetido, que a imaginação tenta modificar e apropriar. De modo que esses espaços de representação tenderiam (feitas as mesmas reservas precedentes) para sistemas mais ou menos coerentes de símbolos e signos não verbais. (ibidem, cap. I, pars. 98, 99, 100 e 101, pp. 34 e 35).

As representações de espaços ou o espaço concebido, de modo abstrato e aparentemente vazio, caracteriza de modo geral o espaço histórico e pode sair da prancheta de um arquiteto ou de um urbanista ou de um programa de computador etc. O que não caracteriza uma prática isenta (ingênua) ou imparcial mas, ao contrário, pode significar a segregação das classes sociais. Verdadeira ideologia concreta. Por exemplo, as políticas de reurbanização dos centros das cidades ou projetos arquitetônicos do mesmo teor, que se viabilizam pela execução de projetos, que saem da cabeça de um especialista, imerso num contexto específico do qual nem mesmo ele tem consciência (ou tem), implicam em remanejamentos habitacionais e despejos, às vezes, de comunidades inteiras. Assim, o trator, a ordem judicial, o aparato policial, o sofrimento de famílias jogadas ao relento, estão implícitos num inocente desenho arquitetônico de beleza magnífica, etc.

As representações do espaço, ou seja, o espaço concebido, aquele dos cientistas, dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas ‘retalhadores’ e ‘agenciadores’, de certos artistas próximos da cientificidade, identificando o vivido e o percebido ao concebido (o que perpetua as sábias especulações sobre os Números: o número de ouro, os módulos e ‘canons’). É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam (com algumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um sistema de signos verbais, portanto elaborados intelectualmente. (ibidem, cap. 1, par. 100, p. 34).

Aqui é necessário fazer uma observação. Para Nietzsche, não existe verdade, ou melhor, a verdade, isto é, o caos sem sentido e objetivo, o niilismo, é tão insuportável que num dado momento o filósofo alemão acreditou que a arte – de certa forma, o erro – poderia tornar a vida mais tolerável e num outro momento defendeu um niilismo ativo, isto é, um dionisíaco dizer sim à vida (o niilismo passivo diria não). E para Lefebvre, o que é a verdade? Segundo nossa interpretação, a verdade é o obscuro, o corpo e suas pulsões, que se opõem à transparência (erro). Ora, seguindo o método dialético, de Hegel a Marx, do erro como um momento da verdade, e mesmo das concepções de Nietzsche, sobre o erro como verdade, Lefebvre desenvolveu sua perspectiva metodológica e dialética[28]. Neste sentido, quanto mais transparente um determinado fenômeno – a forma: o mundo da mercadoria –, mais falso é, e, por outro lado, mais obscuro o mundo por detrás. Todavia, essa falsidade é um momento da verdade. Diz respeito a um conteúdo concreto. Momento necessário para se chegar a uma verdade mais completa. Noutras palavras, a forma pura clama por um conteúdo; ela mesma uma abstração do corpo. Deste modo, o conhecimento deve apreender o movimento que vai do erro à verdade e vice-versa. Como vimos, através da prática a análise destaca/separa da realidade uma forma, coerente: a identidade. A identidade é uma redução ao nada (A é A): o “ser” – “é” – termo genérico que diz respeito a tudo e por isso é vazio de determinações. Este nada, enquanto forma, é o poder do negativo (análise), do abstrato: organiza, estrutura, isola. Todavia, esse nada conhecido não informa mais do que nada, ou seja, exige um conteúdo (contradição) que a análise inicialmente isolou. Este conteúdo concreto nega a negação da identidade; ao retorna-se ao concreto. Ou seja, a identidade implica a diferença por ela mesma gerada, indicada. Através da diferença, a contradição é reabilitada no seio da própria lógica formal, todavia, já é dialética, pois a diferença se descobre no conteúdo. A verdade é sempre provisória e está sujeita ao devir.

Neste sentido, o conceito de representação não é simplesmente negativo, diz sobre um conteúdo e uma prática social, passível de serem descobertos e conhecidos através de e pelas representações, a partir de um movimento dialético. Neste sentido, a representação pode ser um referencial a ser superado pela praxis revolucionária e a razão dialética na produção de um novo espaço.

É a partir da praxis revolucionária consciente que o pensamento e a ação se articulam dialeticamente, e que o conhecimento “reflete” a praxis, isto é, se constitui como reflexão sobre a praxis. Até essa data, o conhecimento tinha por princípio não “refletir” o real, isto é, a práxis, porém transpô-lo, mutilá-lo, misturá-lo às ilusões; tinha por princípio ser uma ideologia. (LEFEBRE, 1968, pp. 62 e 63).

*****

Retomando o que foi dito até agora, o fracasso de uma ciência da História, que criava um abismo entre a razão na história e a praxis revolucionária, sugere uma saída da história (o que não quer dizer que não haverá história, devir, dialética) pela sociedade urbana. É possível, a partir daí, sondar novas possibilidades categoriais. A coerência formal, por exemplo, de um projeto urbanístico impecável, elaborado por uma equipe de especialistas, arquitetos, urbanistas, geógrafos, engenheiros, advogados etc., implica numa ação efetiva sobre um conteúdo social (por exemplo, a reurbanização do centro ou de algum bairro de uma cidade). A coerência formal do projeto urbano, uma representação de espaço, tenta plasmar uma homogeneidade do pensamento racional (formal) numa realidade dada. Resulta que esta representação posta em prática arrasa as diferenças reais, seus conteúdos. O espaço abstrato, elaborado, planejado, não pode se implantar sem engendrar diferenças novas e resistências[29]; pois o espaço homogêneo visa refletir artificialmente (como num espelho) o espaço diferencial, que, paradoxalmente, é ocultado, omitido e suprimido. Desde Platão, a alienação do corpo dá lugar ao mundo das ideias. No capitalismo, o espaço abstrato se realiza, de modo fetichista, como produção de coisas no espaço. Porém, na sociedade urbana, há uma possibilidade da produção de um novo espaço, tendo por referencial os ritmos do corpo e o tempo cíclico. Neste sentido, as representações ganham um novo sentido; por exemplo, a poesia deixa de ser um ofício de alguns seletos escritores e se generaliza na rua, através da criação pelo vivido, poièsis (nada a ver com o grafite, instituição da pichação; esta sim, mais próxima da verdadeira arte). Portanto, a prática espacial torna-se revolucionária quando: desloca a produção do espaço para seu ponto de partida: o corpo.

Assim, a produção do espaço como saída da história, na sociedade urbana, envolve um projeto revolucionário similar ao que nos séculos XIX e XX se concebia pelo termo socialismo. Tendo em vista sempre a produção num sentido amplo, e todas as implicações que já foram mencionadas, como o fim do trabalho e das alienações etc. O retorno ao corpo e a apropriação sintonizada aos ritmos da natureza põem fim a representações surgidas de práticas limitadas à produção em sentido restrito: a propriedade privada e o Estado. Na sociedade urbana ou no “urbano”, já se encontram latentes todas estas virtualidades. Portanto, é no urbano e no cotidiano que foi lançado a semente da transformação.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


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A alienação do trabalho

A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)



[1] Ultrapassagem de todas as formas, jogo de aparências, confusão entre o ilusório e o real, a alteridade de Dioniso depende também do fato, através da epifania, todas as categorias ressaltadas, todas as oposições nítidas, que dão coerência à nossa visão do mundo, em vez de permanecem distintas e exclusivas, se chamarem, se fundirem, passarem umas às outras. (...) O longínquo e o próximo, o além e o aqui: com sua presença Dioniso transfigura este mundo, em vez de arrancar as pessoas dele. (...) Assim como o vinho, Dioniso é duplo: terrível ao extremo, infinitamente doce. Sua presença, intrusão estupefaciente do Outro no mundo humano, pode assumir duas formas, manifestar-se segundo duas vias: ou a união bem-aventurada com ele, em plena natureza, em que todo constrangimento foi ultrapassado, a evasão fora dos limites do cotidiano e de si próprio. (VERNANT e VIDAL-NAQUET, 2008, pp. 349 e 350).
[2] O conflito dos contrários vivifica a criação enquanto conflito vivido, não enquanto meramente pensado, de sorte que este conflito criador difere das contradições dialéticas hegelianas. Embora se trate ainda e sempre de contradições e de antagonismos (...), a essência e o sentido destas contradições alterou-se radicalmente; são contradições que não se pensam, mas se vivem; ocorrem entre “momentos” do “vivido”, e o pensado, ou antes, a representação, só depois sobrevém. Situa-se na luta de dois mundos: o sonho e a embriaguez. Ao reino de Apolo compete a bela aparência, surpreendente mas apaziguadora, do sonho em que os sofrimentos se tornam jogos de sombras e de luzes. Ao reino de Dionísio cabe a embriaguez em que o indivíduo perde os seus limites e que destrói o frágil principium individuationis, de modo que a subjetividade se eclipsa na dança, na orgia, na crueldade e na volúpia. O sonho e a embriaguez (Apolo e Dionísio) opõem-se como os sexos – conflito e desejo. (LEFEBVRE, 1976).
[3] (...) Nietzsche critica as dicotomias metafísicas como interior/exterior, anterior/posterior, causa/efeito, mostrando que somente depois de se ter a consciência de uma sensação é procurado  uma causa exterior responsável por tal sensação, o que equivale a dizer que aquilo que concebemos como anterior é, na verdade, posterior na consciência. Isso se deve ao fato de que a consciência é guiada por convenções lingüísticas, que a conduzem a essa inversão de polaridades binárias. (ITAPARICA, 1998, p. 63).
[4] Por isso, imediatamente em sua práxis, os sentidos se tornaram teoréticos. (...) Vê-se como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e sofrimento perdem a sua oposição apenas quando no estado social e, por causa disso, a sua existência enquanto tais oposições; vê-se como a própria resolução das oposições teóricas só é possível de um modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma tarefa vital que a filosofia não pode resolver, precisamente porque a tomou apenas como tarefa teórica. (MARX, 2008, pp. 109-111).
[5] Para Nietzsche, a simetria é dada pelo ser humano, em sua faculdade de regular, legislar, regrar a natureza.
[6] Somente Nietzsche manteve o primado do espaço e a problematização da espacialidade: repetição, circularidade, simultaneidade do que aparece diverso no tempo e nasce de tempos diversos. No devir, mas contra o fluxo do tempo, toda forma definida luta para se estabelecer, para se manter, quer ela dependa do físico, do mental, do social. (Ibidem, cap. I, par 49, p. 24).
[7] En el libro tercero de las Enéadas, leemos que la materia es irreal: es mera y hueca pasividad que recibe las formas universales como recibiría un espejo; éstas la agitan y la pueblan sin alterarla. Su plenitud es precisamente la de un espejo, que simula estar lleno y está vacío; es un fantasma que ni siquera desaparece, porque no tiene ni la capacidade de césar. Lo fundamental son las formas. (BORGES, 1969, p. 17).
[8] Como é sabido, bem mais de vinte séculos antes do esplendor grego já floresciam civilizações extremamente complexas na região da Ásia Menor, que possuíam escrita, conhecimento matemático e cidades fantásticas que chegavam mesmo à dimensão de metrópoles: “No centro do distrito de templos erguia-se o marco característico de todas as grandes cidades da Mesopotâmia: a pirâmide escalonada ou zikkurat. Das montanhas-templo da Antiguidade, amontoadas artificialmente, desenvolveram-se aquelas possantes construções de terraços, a mais íngreme e mais famosa se tornou a Torre de Babel. A zikkurat era a única construção que se projetava acima das muralhas da cidade. Visíveis a grande distância, anunciava por toda a parte entre o Eufrates e o Tigre: Aqui seres humanos superavam a natureza, aqui criam com seus tijolos e seu orgulho, algo que nunca existiu antes: a cidade” (SCHNEIDER, p. 32). 
[9] Cerca do ano de 900 a.C. surge o estilo geométrico. A anatomia das formas torna-se mais afilada e melhor definida; o delineamento das áreas decorativas revela-se mais exato e o repertório original é revisto. Os semicírculos desaparecem; os círculos passam a ser mais raros e o meandro, contínuo, traçado com finos e paralelos (tipo que parece ter-se desenvolvido em Atenas). Este ideal, austero e quase matemático, resistiu por todo o século IX. No século VIII os pintores manifestam tendência para multiplicar os campos de ornamento até quase cobrirem a maior parte do vaso, quebrando as cintas contínuas em estreitas barras e enriquecendo os antigos ornamentos ou inventando novos, abstratos. A novidade mais importante foi a introdução de figuras, convertidas em silhuetas meio abstratas. (COOK, 1966, p. 46).
[10] Aliás, os números (em grego, arithmós, “número”) não têm nada de abstrato. O 1 representava o ponto, a menor referência no espaço; o 2, a linha, isto é, a ligação mínima entre dois pontos; o 3, o triângulo, ou a primeira figura geométrica fechada, a primeira área ou superfície, que resulta da união de 2 + 1, isto é, de uma linha mais um ponto fora dela; finalmente, o 4 é o sólido, reunião da figura de um triângulo com um ponto repetido fora dele, uma pirâmide (ou, como dizemos hoje, um prisma). Do 1 ao 4 temos a constituição dos pontos, das superfícies, das áreas e dos sólidos, todas as dimensões da nossa geometria. (WATANABE, 1995, p. 109).
[11] Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa –, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum meio! Isso vale a eternidade! (Nietzsche, O eterno retorno, textos de 1881).
[12] A reprodução das relações sociais se confunde, assim, brutalmente com a reprodução biológica, ela mesma concebida de uma maneira tão simples quanto grosseira. Na prática espacial, a reprodução das relações sociais predomina. A representação do espaço, ligada ao saber como ao poder, reserva apenas um lugar mínimo aos espaços de representação, reduzidos às obras, às imagens, às lembranças, onde o conteúdo afastado (sensorial, sensual, sexual) aflora apenas o simbolismo. (LEFEBVRE, Cap. 2, par. 127, p. 42).
[13] Várias revistas, normalmente voltadas ao público feminino, inundam sem nenhuma censura a questão da sexualidade. Por exemplo, só para ter uma ideia, apenas no site do programa de televisão Fantástico - “revista eletrônica da família brasileira”, como afirma seu slogan – exibido pela Rede Globo em horário nobre, aos domingos – “http://fatastico.globo.com” – pode-se constatar inúmeras reportagens sobre o tema que foram exibidas pela TV, num período de seis anos (14/09/08 – 29/09/02), algo que seria impensável há 50 anos atrás. Vejamos, a título de curiosidade, alguns temas dessas reportagens: “Sexo ecologicamente responsável” (14/09/08); “Fidelidade pode ter fundo genético” (07/09/08); “Jovens católicos e o sexo” (06/05/07); “Viagra para mulheres” (15/10/06); “Sexo para depressão?” (13/08/06); “Sexo ainda um tabu?” (21/03/04); “Teste da dependência de sexo” (16/11/03); “Sexo compulsivo” (02/11/03); “Sexo X stress: quem ganha esta batalha?” (31/08/03); “Sexo padrão” (04/05/03); “Supermercado do sexo” (29/09/02); “Quociente Sexual – versão masculina e feminina – QS-M e QS-F” (07/11/08), etc.
[14] Nosso projeto aqui não é o de organizar um diálogo ao sabor e ao modo dos diálogos entre os filósofos e os não filósofos. Não se trata de dar razão ao vulgo contra a filosofia. Trata-se de superar essa contradição, mostrando que o que escapa ao filósofo e assume o aspecto do homem ordinário, (cotidiano) não é por isso menos precioso. O resíduo irredutível a partir da atitude filosofante (suspensão do cotidiano) merece que a meditação dele se ocupe. (LEFEBVRE, 1967, p. 116).
[15] Aqui a citação é de “A vida cotidiana no mundo moderno”, em português, edição de 1991. Nas referências bibliográficas registrei a edição do espanhol, quando li no mestrado. Corrigirei em breve.
[16] Os cientistas e as ciências parcelares: “(...) desdenham os fatos cotidianos como se não fossem dignos de conhecimento: os móveis, os objetos e o mundo dos objetos, os empregos do tempo, as banalidades, os anúncios nos jornais.eles se juntam aos filósofos, cheios de desprezo pela Alltäglichkeit” (LEFEBVRE, 1991, p. 33).
[17] A ordem distante se institui neste nível “superior”, isto é, nesse nível dotado de poderes. Ela se impõe. Abstrata, formal, supra-sensível e transcendente na aparência, não é concebida fora das ideologias (religiosas, políticas). Comporta princípios morais e jurídicos. Esta ordem distante se projeta na realidade prático-sensível. Torna-se visível ao se inscrever nela. Na ordem próxima, e através dessa ordem, ela persuade, o que completa seu poder coator. Ela se torna evidente através e na imediatez. (LEFEBVRE, 2009, p. 52).
[18] Nas sociedades antigas, comia-se, bebia-se, trabalhava-se; havia casas, ruas, praças, móveis, objetos úteis, instrumentos e outras coisas. No entanto, não havia cotidianidade. Na unidade da ética e da estética, da prática e do conhecimento, num estilo, a sobreposição atual do cotidiano e da “cultura” (alta, média, baixa) não tinha nem razão nem sentido. Hoje, a importância da cotidianidade, a sua gestação e a sua consolidação, a sua monotonia na satisfação, tudo isto significa que ela escapa à história. A historicidade afasta-se. (...) Submetido, consolidado por um materlamento incessante, nivelado, o cotidiano torna-se o solo que suporta o edifício das instituições e a instituição suprema: o Estado. As instituições ordenam o cotidiano e recontam-no: estruturam-no. Já nada há de comum entre este edifício e as obras da história. (LEFEBVRE, Fim da história, 1971, p. 206).
[19] As “culturas”, como se diz na sociologia e na etnografia contemporâneas (aplicando a outras sociedades um termo que assumiu na modernidade sentido preciso, o que não ocorre sem mal-entendidos e sem anacronismos), as “culturas” transfiguram a vida; seus “sistemas” concretos estendiam-se até o cotidiano. Mais exatamente, não eram sistemas, culturas no sentido atual (em que a “cultura” se torna uma informação e, aliás, se dispersa ao disseminar-se). Foram estilos de vida, de obras, de civilizações. (LEFEBVRE, 1967, p. 170).
[20] Tal concepção novamente é de lavra nietzschiana. “Nietzsche desconhece a palavra ‘ideologia’ e não emprega o conceito. Quando escreve ‘cultura’ podemos interpretar como ‘ideologia’. Distingue todavia a grande e verdadeira cultura das dos filistinos. A grande cultura consiste num estilo” (LEFEBVRE, Fim da história, p. 95). Nas Intempestivas ou, como também é traduzida, Considerações extemporâneas, de Nietzsche, Lefebvre transcreve: “La primera Inactual (Esp.) da una definición de la cultura: ‘Es ante todo la unidad de estilo artístico en todas las manifestaciones vitales de un pueblo’. La cultura no es, pues, uma colección de ideas abstractas, de suma de conocimientos, sino una manera de vivir: un sentimiento y un estilo de vida” (LEFEBVRE, 1993, p. 82).
[21] Ele passa da embriaguez como a tonalidade afetiva estética fundamental para a beleza como o elemento determinante; a partir da beleza como o elemento normativo, ele retorna para o que retira dela a medida, para a criação e recepção da obra; a partir desse ponto, ele avança uma vez mais até o ponto no qual e com o qual o que é determinante se apresenta, até a forma. Por fim, tentamos conceber a unidade da relação recíproca entre embriaguez, entre criação, recepção e forma como sendo o grande estilo. Nele, a essência da arte torna-se real. (HAIDEGGER, 2007, p. 126).
[22] “Ora, ao compor a República, Platão produz uma obra que, ao contrário, pretende convidar-nos a inventar, a criar uma cidade-estado inteira, como diríamos hoje, a partir do nada. Sócrates diz, no próprio diálogo, que ela será inventada em palavras, a partir do discurso, én lógois” (WATANABE, 1996, p. 34). Nesta República, Sócrates vai propor a expulsão dos poetas da cidade.
[23] Pensamos que num futuro não muito distante poderão ser sintetizados em laboratórios todos os tipos de nutrientes encontrados nos alimentos ou ainda com emprego da tecnologia associada a células-troncos poderão ser gerados, também em laboratório, provisões de proteína semelhante à carne, com o mesmo sabor ou até melhor. Neste resgate da Idade de Ouro, as fazendas de gado e os frigoríficos seriam abolidos da face da Terra para sempre.
[24] Essa crítica é feita a pelo menos 30 anos antes de Kurz, como se lê na citação que se seguirá.
[25] a) Período agrário: vitalidade densa, dura e espontânea; o desejo, mal definido e não diferenciado, mas forte; b) Período industrial: mutação do desejo em necessidades classificadas e catalogadas, manipuladas, submetidas a uma prática homogeneizada em contradição a diversidade, donde um profundo mal-estar; c) Período urbano: restituição do desejo, reposição da realidade e da separação das necessidades (esquema naturalista), não aquém do individualismo (esquema naturalista), mas para além, ou seja, reconhecimento da diversidade (da diferença) dos desejos na unidade do desejo. A “corporeidadede” suplanta simultaneamente a ontologia e a história! (LEFEBVRE, Fim da história, 1971, pp. 286 e 287).
[26] As sociedades ante-históricas (o que não coincide nem com as sociedades ditas arcaicas, ou pré-históricas, ou sem escrita). Nestas sociedades, um conjunto de símbolos traduzem particularidades originais e designações, que os distinguem. Assim, o sol, a fonte, o poço, a noite, a flor, o caminho, etc. Estes símbolos não formam um sistema, ou seja um grupo ou conjunto coerente de termos estritamente dependentes uns dos outros. Contudo não estão isolados. Compõem uma espécie de grelha inicial, de topologia fundamental, ligada ao período agrário, à vida camponesa, aos ciclos da natureza. Esta grelha exprime simultaneamente a “natureza” e a vida humana, a ordem cósmica e a ordem social, as paixões e ações, os sentimentos e os pensamentos. A este título, ela fornece uma primeira decifração do “ser” (natural, originário e original); alguns falariam até dum “código do ser” (e duma descodificação). A esteúltimo, portanto, os símbolos têm uma longa duração, e não perderam o seu sentido no decurso do período histórico. Ao lado do conjunto simbólico inicial existem subcódigos, o da magia e o da religião, da família, da honra, etc. A continuidade domina e o tempo cai fora da consciência, fora do pensamento nascente. (Ibidem, pp. 268 e 269).
[27] As sociedades históricas desembaraçam-se dos símbolos e rupturas. Por meio, portanto, da descontinuidade. A filosofia e a sua associada, a história, atribuem a si próprias um papel considerável, que rivaliza com as grandes ações guerreiras e as lutas revolucionárias. O tempo vem ao centro da consciência, torna-se referencial a todos os níveis (econômico, estético, moral, etc.). É um tempo homogêneo. Há tendência para a constituição dum código geral (o da troca contratual: de bens, de mercadorias, de pessoas). Tendência portanto para a identificação. Todavia constituem-se e instituem-se (contribuem para modelar e consolidar instituições) subsistemas de decisões, de condutas, de “valores”. Este período e a prática correspondente (industrial) devastam a natureza e as particularidades naturais, e isto do mesmo em toda a parte, tendendo assim para a homogeneidade, resultado duma história unitária. A natureza, destruída, desaparece até exigir ser re-produzida (incluindo o ar, a água, a luz). Esta destruição da natureza, assim como a contradição entre a homogeneização e as diversidades, atinge o seu paroxismo aquando da saída da história, período de transição. (Ibidem, p. 269).
[28] À oposição formal e estéril de verdadeiro e falso, convém substituir uma concepção mais flexível. Verdade e erro estão em interação dialética. Convertem-se um no outro. Transformam-se. É por isso que podemos conquistar novas verdades e tender para a verdade objetiva, através de verdades parciais e aproximativas, através dos erros momentâneos. (LEVEBVRE, 1995, p. 97).
[29] Na nossa dissertação de mestrado Ocupar e resistir: problemas da habitação no centro pós-moderno (SP) (2006), cogitamos a hipótese do m2 (espaço concebido), como a medida mínima espacial correspondendo a um valor em relação à paisagem (espaço percebido), enquanto mercadoria – valor de uso e valor de troca. Faltava um terceiro termo, que pudemos identificar pelo lugar: o habitar, os espaços de representação (o espaço vivido): resistência!



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