Henri Lefebvre: pensando a práxis (Parte 2)
por Jean Pires de A. Gonçalves
Outro aspecto importante, em
Nietzsche, e também para Lefebvre, é, como já dissemos, a dupla determinação
(não a hegeliana)[2]. O que
significa: Não há dicotomias metafísicas do tipo dentro-fora, mas passagens e relações ilimitadas com os limites,
fronteiras, contornos, marcas ou simetria (ou não) do corpo e sua interação com
o mundo “A flor que não sabe que é flor, que é bela, possui uma simetria de
ordem n” (LEFEBVRE). Vejamos:
Na natureza, inorgânica ou orgânica, as simetrias (segundo um plano ou
eixo), isto é, a existência da bilateralidade ou dualidade, de uma esquerda e
de uma direita, de uma reflexão ou ‘refecção’, ou ainda de uma simetria de
rotação (no espaço) não são propriedades exteriores ao corpo. (LEFEBVRE, Cap.
2, par. 3, p. 2).
O corpo vivente, ao desenvolver-se – modalidades de ocupação do espaço –,
depara-se com alteridade do mundo.
Neste sentido, desde sua forma embrionária, ocorre pela primeira vez uma
relação de oposição interno-externo, “a primeira, a mais decisiva diferença na
história do ser biológico. (Ibidem, par. 11, p. 5). O que não quer dizer
essência e aparência, coisa em si e fenômeno, mas diferença de momentos.
Seja qual for uma dada atividade, esta sempre pressupõe uma relação de dupla
determinação opositiva e contraditória que é vivida antes de ser concebida[3]. O
próprio sentido de abstração (separação, geral) já se opõe ao concreto
(agregado, síntese). Por exemplo, é no andar – como Diógenes, que provava aos sofistas o movimento andando
–, sempre numa única direção e sem alterar o sentido, que se descobre a linha
reta, inventando-a.
Segue-se que para um ser vivo (à maneira da aranha, do marisco etc.) os
lugares fundamentais, os indicativos do espaço, são, portanto, de início
qualificados pelo corpo. O “outro” está lá, diante do Eu (corpo diante de um
outro corpo). Impenetrável, salvo pela violência – ou pelo amor. (...) Mas o
externo é também interno, enquanto que ‘o outro’ é também corpo, carne
vulnerável, simetria acessível. Tardiamente, na espécie humana, os indicativos
se quantificam. A direita e a esquerda, o alto e o baixo, o central e o
periférico (nomeados ou não) provêm do corpo em alto. O que qualifica, parece,
não é somente um gesto, mas o corpo inteiro. (Ibidem, par 7, p. 4).
Neste sentido: (...)
No começo foi o Topos. Antes, bem antes do Logos, no claro-escuro do
vivo, o vivido tem, desde já, sua racionalidade interior; ele produz, bem antes
do espaço pensado e do pensamento do espaço representando a projeção, a
explosão, a imagem e a orientação do corpo. (...) Antes do intelecto analítico
que separa, bem antes do saber, existe inteligência do corpo. (Ibidem, par. 7,
p. 4).
Ou seja, através da atividade
corporal inventa-se, pala abstração, a identidade,
numa inter-relação com o mundo –
caótico, temporal, desordenado, obscuro – em direção ao cosmo – ordenado, espacial, hierarquizado, transparente. Em meio ao
caos, há arestas, fronteiras, ritmos que são pontuados, pautados e organizados
pela abstração. Obscuridades são descriptadas pelo vir-a-ser da consciência, e
daí o infinito é circunscrito no conjunto finito e quantificado numa praxis. “Nesse reino das sombras se
desenvolve tardiamente o reino dos símbolos e signos portadores de uma clareza
fausta e nefasta” (ibidem, Cap. III, par. 41, p. 12). Neste sentido, esta
passagem extraída do livro “Lógica formal/lógica dialética” e transcrita a
seguir é particularmente interessante:
O pensamento tem um poder efetivo: o poder de destacar, de separar do
imenso devir do mundo, da totalidade do devir certos fragmentos, certos
‘objetos’. Tem o poder de discriminar, de separar: de abstrair. Esse poder nada
acrescenta de substancial ou de misterioso ao universo; ao contrário. Existem
menos objetos separados que nos objetos da natureza.
Esse poder nada tem de enigmático. Um poder não é um ‘algo’; e tampouco é
‘nada’. É um ato inseparável do que ele produz. Nossa mão procede assim:
destaca, separa fragmentos do mundo; arranca a concha do rochedo ou a fruta de
sua árvore. Se o pensamento traça linhas fictícias, demarcações teóricas e
abstratas em torno de objetos que ele não separa praticamente, mas sim
teoricamente, essa operação não é ‘substancialmente’ diferente das operações de
nossa mão ou de nossos sentidos (por exemplo: quando nossos olhos ou nosso
ouvido destacam ficticiamente, e somente para nós, uma sensação que se dá num
conjunto).
É essa a significação profunda da prática. (LEFEBVRE, 1995, p. 102).
O sentido de abstração é tomado quase literalmente – em conformidade com seu
radical e sentido original – o de arrancar,
retirar algo de alguma coisa. O abstrato é inicialmente o manusear, o trato
com a terra (matéria), o pegar etc.[4] As
marcas, provocadas pela articulação ou inteligência do corpo, definindo atributos
simétricos (e assimétricos) do espaço, suas fronteiras[5],
do eu-outro, interno-externo, dentro-fora, espaço-tempo, constituem, enfim, uma
fonte de reconhecimento da diversidade infinita e objetiva que já está dada na
abertura do mundo. Como já se disse, as leis da natureza são as leis do espaço.
Assim, um ato que gesticula, risca ou demarca, como o formidável lince quando
arranha o tronco das árvores definindo seu território ou o bivalve que se
desloca por propulsão no fundo do mar, já demonstra uma atividade inerentemente
espacial, ou melhor, indica modalidades espaciais da presença num ambiente. “O
intencional vem tarde, com o cérebro e as mãos” (Ibidem, par. 7, p. 4). Por
isso, o ser humano, na qualidade de ser genérico, apropria-se da natureza humanizando-a (negando a natureza). Muito
antes, porém, quando as mãos se libertam, elas seguram com força ou acariciam,
apanham pedras, galhos, coisas, enfim, aprendem a pegar, soltar, jogar;
manipular objetos etc. Talvez, antes ou depois, apontam.
A mão? Ela não parece menos complexa, menos rica que o olho ou que a
linguagem. Ela apalpa, acaricia, apreende, brutaliza, fere, mata. O tocar
descobre as matérias. Para a ferramenta, separada da natureza e separado dela o
que ela alcança, mas que prolonga à sua maneira o corpo e seus ritmos (o
martelo, repetitivo linear – o torno do oleiro, circular), a mão modifica
materiais. O esforço muscular coloca em ação energias maciças, frequentemente
enormes, em gestos repetitivos, aqueles do trabalho, mas também aqueles dos
jogos. Quanto à pesquisa de uma informação sobre as coisas, pelo contato, a
palpação, a carícia, ela utiliza energias finas. (ibidem, Cap. III, par. 117,
p. 72).
Ora, a produção em sentido amplo, a
produção do ser humano, da consciência, transforma primeiro a matéria –
recorta, molda, abstrai –; processo
às vezes violento. É preciso medir,
com as mãos, com os passos; separar, comparar, contar, montar, construir; na
caverna, na casa, durante a tempestade, na passagem de dentro para fora e
vice-versa; na constituição da comunidade, das fronteiras; nas cidades antigas
quadriculadas, na geometria etc., a relação com a natureza é uma prática
espacial.
Eis um primeiro aspecto, o mais simples, dessa história do espaço que vai
da natureza à abstração. Imaginemos o tempo no qual cada povo chegou a medir o
espaço tendo suas unidades de medida emprestadas das partes do corpo: polegada,
pé, palmo etc. Os espaços de um povo como as durações deviam permanecer
incompreensíveis aos outros. As particularidades naturais do espaço e as
naturezas particulares aos povos interferem. Mas qual inserção do corpo no
espaço assim medida segundo particularidades! A relação do corpo, relação
social de uma importância mal conhecida em seguida, conservou então a
imediatidade que devia se alterar e se perder: o espaço, a maneira de medi-la e
de falar, apresentam aos membros da sociedade uma imagem e um espelho vivo de
seu corpo. (Ibidem, capítulo 2, par. 19, p. 27).
Concluindo, o espaço quantificado ou
tornado categoria a priori tem por
fundamento um qualitativo inerente ao próprio corpo. Assim como a teia da aranha é
o seu outro da aranha. “Segue-se
que para um corpo vivo (à maneira da aranha, do marisco etc.) os lugares
fundamentais, os indicativos do espaço, são, portanto, de início qualificados pelo corpo” (Ibidem, par 7,
p.4). Modalidades concretas de ocupação do espaço, dupla determinação, energias
maciças e finas, “apolíneas e dionisíacas”, nos dizeres de Nietzsche[6].
“Na verdade, em sua relação consigo e seu espaço, o ser vivo emprega os dois
tipos (a não separar, aliás) de energia, as finas e as maciças” (Ibidem, par
20, p. 7). Tal relação implica um ritmo próprio do corpo e da natureza
acessível e assimilado em pontuações ou pautas abstratas. A música, a mais
sublime manifestação humana, é espacial.
Aqui é possível fazer uma analogia. O
som é o efeito produzido pelas vibrações dos corpos materiais e,
consequentemente, das ondas sonoras no órgão da audição. Buzinas, motores,
britadeiras, conversas, etc. são ruídos caóticos e irregulares aqui e ali.
Assim como o canto dos pássaros e da natureza. Já a apropriação desses ruídos,
bem como sua combinação, organização regular (harmonia) ou irregular
(atonalidade), por instrumentos musicais ou pela imitação da voz, é música. A música é constituída por
três elementos: melodia, harmonia e ritmo. São pelas diferenças rítmicas que se
caracterizam várias danças (como a valsa, a catira, o samba etc.), definindo-as
num ou mais gêneros musicais, como as músicas regionais: brasileira, espanhola,
africana, árabe, oriental, etc. Há, portanto, uma sintonia intima da música e
da dança, do vinho e da festa. No culto dionisíaco, quando da chegada da primavera,
na colheita, comemorava-se, cantava, tocava e dançava. Criava-se um estilo. A
música organiza não só os sons, mas também a sociedade; talvez a primeira
apropriação do abstrato, através da demarcação do ritmo e do arranjo sonoro. A
produção do espaço é uma composição musical.
O Espelho
Haveria a coisa-em-si por trás do espelho? Ou como o gato cinza que ao
espiar-se no espelho procura atrás do espelho o outro gato cinza que o
espia à sua frente refletido, mas descobre perplexo que não há nenhum outro
gato atrás do espelho? O espelho é uma superfície doadora de “profundidade”. Na
parede, é uma janela ao contrário. Reflete o interior. O espelho é uma
superfície, “mágica”. Através do espelho, por exemplo, posso ver a minha imagem
como se fosse a minha imagem outra pessoa à minha frente, como se fosse você. Não posso saber como sou
fisicamente – imagem – senão no
espelho. Nesse outro (objeto), descobrimo-nos, conhecemo-nos, reconhecemo-nos,
esclarecemo-nos. Para saber como sou devo me transformar em um outro (você).
Errar, sair de mim através do espelho, e ser-outro de mim mesmo e como outro de
mim mesmo voltar a ser-eu mesmo, reconhecendo-me a minha presença nesta
ausência subjetiva. A minha duplicação no espelho engendra a diferença: eu sou
o outro no espelho e no espelho o outro sou eu. Este sou eu, eu sou esse. Um
espelho colocado na frente de outro espelho multiplica a imagem ao infinito. A
multiplicação, repetida incontáveis vezes, multiplica a menor diferença à maior
diferença, também indefinidamente. Meu lado direito torna-se esquerdo, no
espelho; e, no espelho, o esquerdo, direito: uma diferença, uma contradição!
Talvez descubro como o gato perplexo que não há ninguém atrás do espelho, e que
a multidão, que se repete no jogo de espelho, não passa de uma ilusão de óptica
e que na verdade eu estou sozinho multiplicado ao infinito. O espelho é um
prolongamento de meu corpo, pois me vejo nele; uma abstração, minha imagem
separada de mim mesmo; minha consciência de si (consciência). Então, a multidão
de mim mesmo, ora de frente, ora de costas, que se desdobra no jogo de espelho
é um encontrar-se se perdendo em seu vertiginoso cair na profundidade da
superfície da consciência dobrada. Ao passo que a multiplicação de mim mesmo,
que sou-eu e não-sou-eu, na multidão de pessoas reais não é uma representação
formal de contradições, mas contradições vividas. Pois a imagem do espelho pode
enganar e levar ao erro. (Assim como os ameríndios foram iludidos por sua
própria imagem refletida no fascinante mundo dos espelhos, mais valiosa do que
o ouro). O espelho também pode ser côncavo e ampliar a minha imagem, de modo
hiperbólico, como nos sonhos. Ou pode ser convexo e deixar tudo de cabeça para
baixo. E eu, num estado de alienação profunda, posso acreditar que nesta imagem
– nesse outro – eu sou exatamente eu. Talvez, apenas, a projeção dos nossos Eus. Na verdade, a clareza da superfície
do espelho esconde um mundo obscuro: Eu mesmo-multidão.
O espelho?
Esta superfície pura e impura, quase material, quase irreal, fez aparecer
diante do ego sua presença material; ela suscita seu inverso, sua ausência e
sua inerência nesse “outro”. Sua simetria aí se projetando, ele aí descobre e
pode acreditar que “ego” coincide com esse ‘outro’, ao passo que ele o
representa, imagem inversa, onde a esquerda torna-se direita, reflexão que
produz uma diferença extrema, repetição que transforma o corpo do eu num
fantasma obcecante. De modo que o idêntico, e a transparência equivale à
opacidade. (ibidem, Cap. III, par. 30, p. 63).
O espelho é forma. Dupla forma: o real-obscuro; o reflexo-claro. O espelho forma; ilumina, organiza, ordena o caos (mundus): re-presenta. Mas o que era idêntico, reproduzido no espelho, no
entanto, engendra a diferença[7]. O
erro me leva a verdade. A verdade do corpo. O espelho: mentalmente: a repetição; socialmente:
a reprodução. Neste sentido, a forma abstrata demarca um sinal, indicando um
conteúdo, contraditório.
Recapitulemos: O ser humano se
realiza numa forma (representação, essência) alienando-se de seu corpo, através
de suas marcas, símbolos, sinais, na coisa, e conhece de modo operacional e
teórico – abstrato. Constitui uma essência.
Apropria-se do mundo, de forças devastadoras, um turbilhão desordenado,
caótico; transformando-o. Logo, essência que
é estranha pois se realiza como um outro: o idêntico que é na verdade o
diferente. “O espelho é então um objeto entre os objetos, mas diferente de todo
outro objeto: evanescente e fascinante” (Ibidem, par. 33, p. 11). Ora, o espelho é a consciência (consciência-de-si): duplicação da coisa, do objeto,
do “ser”, do “Eu”, pura separação (abstração): imagem. Representação que pode
esconder a verdade: as sensações do corpo, do tato, do ouvido, do gosto. Erro
que, entretanto, conduz a estas mesmas verdades. Metáfora que poderíamos
interpretar e descrevê-la como exteriorização
e estranhamento. Alteridade e
alienação. A atividade humana repete o ser humano não em si mesmo, mas no seu
corpo inorgânico; na natureza que se humaniza e humaniza a natureza.
Desenvolvimento notável. O corpo, ponto de partida, ao se produzir
(alteridade, a simetria: repetição) no espaço (cosmos-mundo), através de
energias duais, finas e maciças (vida, prática), nega a si próprio através da passagem em um outro (o espelho, diluição do corpo, o cogito: espaço abstrato) e se reconhece numa representação, e se
realiza nela como tal. Todavia, esse outro deve ser negado novamente pela praxis,
pois esse outro não é senão uma superfície, seu prolongamento, seu reflexo:
re-apropriação do corpo, do espaço – do corpo inorgânico (natureza). Tal
concepção materialista e dialética leva às últimas consequências uma teoria
heurística (em sentido forte) do conhecimento, do mundus (obscuridade e nebulosidade) e do cosmos (ordem e transparência), da natureza, da vida, da sociedade.
A cidade talvez aparece como a primeira obra humana, extensão do corpo, que
desafia e (em partes) domina a natureza[8].
Embora, Lefebvre não tenha uma concepção continuísta ou evolucionista da
história (hegelianismo e marxismo), não seria exagero evocar aqui, a título de
ilustração, o período grego que os arqueólogos denominam de Geométrico e que
caracterizou uma etapa formadora importantíssima da cultura na Grécia Antiga,
ainda Idade do Ferro[9].
Curiosamente, foi neste período histórico, no qual os gregos ainda não
conheciam a escrita, que surgiram obras-primas, de Homero, que segundo se diz
era cego, e Hesíodo; obras estas que foram transmitidas oralmente por
sucessivas gerações e eternizadas. E o que dizer da matemática grega, que não
era abstrata, mas concreta?[10]
Em termos práticos (praxis), talvez, o novo projeto de
emancipação tem por objetivo, primeiro, sair da história, isto é, abolir o nexo
coerente e transcendental forjado internamente na história (fetiche da
história), e, segundo, produzir um espaço voltado para as diferenças, do corpo
e dos ritmos regidos pelo tempo cíclico e natural, já que o fim da história
(daquela História acumulativa e linear), ou melhor, a pós-história, se revelou num fragoroso fracasso, suscitando novas
contradições e não superando ainda as antigas.
As representações (espelho) tentam
apreender o vir-a-ser, que escapa sempre. As representações só podem capturar
um momento, daí seu sentido metafórico, o que não resulta em inverdade. A
prática social se realiza através das representações. E aqui a praxis engendra a criação. Todavia, o
conhecimento intui e descobre um ritmo do próprio corpo, da natureza; descobre
uma coerência por meio da abstração
racional, congelando-a em meio a ritmos desordenados ou regulares (como a
aurora e o poente, as fases da lua, as estações do ano, a órbita dos planetas
etc.). Mas fracassa ao tentar determinar uma totalidade imediata, singular,
vivida, de modo informal, senão por meio do seu contrário–universal que o
obriga imediata e posteriormente a voltar para o singular, no particular. Neste
sentido, o corpo é negado à enésima potência até chegar à abstração pura: tempo
e espaço (mental). O espaço geométrico, o espaço como categoria do pensamento
(continente), axioma ou definição sem demonstração, intuídas pelo “pensamento
puro”, é um desdobramento de uma prática espacial concreta, no início, muito
simples, como, por exemplo, a construção de uma cerca. Mas adquire um poder próprio,
um sentido organizador das relações sociais. O espaço abstrato, que aparece
como pura objetividade, fetichizado, vazio, como, por exemplo, o território
nacional, é no fundo produto social da atividade humana, que se constitui
historicamente por meio de representações.
Se de fato nossa compreensão e
interpretação forem corretas, a saber, a de problematizar a dupla determinação
nietzschiana, que, nesta perspectiva, não excluiria um viés dialético, então o
conceito de abstração-concreta não é
tão estranho ao pensamento nietzschiano. Pois a abstração ou representação, de
fato, tem um caráter objetivo. Daí a importância da análise do dinheiro e da
mercadoria para se compreender uma sociologia do capitalismo. O mesmo pode ser
dito em relação ao conceito de alienação que, por conseguinte, tem por ponto de
partida o corpo, em sentido nietzschiano. Deste modo, podemos levar às últimas
consequências o estranhamento do próprio corpo identificado por meio de
representações redutoras. Na sociedade atual (mas do que nunca), a imagem
refletida no espelho aparece na figura estranha do autômato. O autômato
– máquina, o Estado, o planejamento social, o cotidiano, o capital, a cidade, o
androide, o replicante – é a reprodução mais fantástica da imagem objetiva do
ser humano no espelho: ele mesmo. É isso que permite Lefebvre escrever esta
passagem surpreendente:
Se o robô se aproxima do homem e se o homem se reconhece nessa imagem
mimética, a espontaneidade do autômato, é porque o homem já era robô. Não o sabia.
Aprende-o. O sistema nervoso e os outros “sistemas” biológicos, fisiológicos?
Sistemas autorreguladores. O corpo vivo? Uma rede de tais sistemas, complexo
sistema homeostático do qual o quadripolo de Ashby oferece simplificado modelo.
O cérebro? Máquina complexa e imperfeita de registrar, combinar, desconjuntar e
ordenar. O pensamento? Uma série de “sim” e “não”, de dicotomias. A ação? Uma
série de decisões estratégicas, em complexo jogo com a “natureza” e os outros
grupos sociais. Se a sociedade pode subsistir, é porque contém sistemas
autorreguladores. É porque já é um sistema homeostático. Nas novas ciências da
informação e das comunicações, a essência combinatória do real, sua estrutura
fundamental, se descobre e se reconhece. A natureza? Nem mesmo existe. Não era,
ela também, senão ilusão e mito. Mais: um resíduo. A mimèsis desvela-se como
essência da praxis; as aparências da aparência ou do parecer caem, as da
poièsis, as da transcendência, da subjetividade e da liberdade subjetiva, da
temporalidade e da história, da natureza enfim. O robô não ameaça o homem pela
excelente razão que o homem individual e social já é robô e que a imagem
ameaçadora do robô faz parte das ilusões. A figura do Golen monstruoso,
indomável, revoltado contra o aprendiz de feiticeiro, não passaria de um mito
da máquina o mito do inumano robótico um mito do homem. As duas entidades, o
autômato e o humano, se encontrariam na mesma categoria: o Cibernântropo!
(LEFEBVRE, 1967, p. 247).
*****
Da alienação ao cotidiano
A citação acima pode ser chocante,
mas é bastante reveladora: um sentido visceral de alienação. Portanto, voltemos
às nossas metáforas: Inúmeros insetos passam por metamorfose antes de atingir a
idade adulta. Os insetos conhecidos por holometábolos,
passam por uma mudança completa e tão radical que não apenas sua aparência se
transforma, como também seus hábitos, meio de vida, alimentação etc. Alguns,
depois de passar anos em estado larval, aprisionados num casulo, ao tornarem-se
um inseto adulto, vivem apenas o tempo necessário para reproduzirem-se, às
vezes, por poucos minutos ou horas, pois muitos deles nem sequer possuem
aparelho digestivo. Cumprida a função de reprodução, morrem logo em seguida e
assim o ciclo vicioso se completa: um
eterno retorno. Sem querer entrar no mérito das interpretações literárias, é
possível fazer algumas digressões aventureiras a respeito de Gregório Samsa,
personagem protagonista de A metamorfose
de Fanz Kafka, que ao acordar pela manhã sente um terrível mal-estar, porque
havia se transformado numa barata. Talvez mesmo, a parábola de Kafka diz do
horror da imagem humana refletida no seu espelho. O problema, novo por sinal, é
que Gregório Samsa não se descobriu transformado de repente num inseto, mas,
talvez, descobriu antes que insetos sonhavam em ser seres humanos. Os insetos,
assim como crustáceos e aracnídeos, são artrópodes, possuem exoesqueleto,
membros articulados; de perto, alguns são seres monstruosos, parecem ter vindo
de outro mundo; outros, entretanto, são de uma beleza sublime, como as
borboletas; ou ainda, como certos coleópteros, têm aparência de tanques
blindados e parecem metálicos; ou têm o aspecto frio de um robô, como o
devastador gafanhoto: máquinas-vivas.
A partir disso, tomemos a liberdade de alterarmos a primeira frase da citação
acima sem mudar em nada o seu sentido: “Se o inseto se aproxima do ser humano e se o ser humano se reconhece
nessa imagem mimética, a espontaneidade do autômato, é porque o ser humano já
era inseto”. Terrível constatação! O
mal-estar de Gregório Samsa, ao tentar se levantar, as dores que sentiu, a voz
gutural incompreensível e incomunicável é na verdade o mal-estar já
compartilhado por todos nós. O mais espantoso é que não é a tese idealista do
primado do pensamento (a consciência
ou planejamento), distinguindo, pelo trabalho, o ser humano das abelhas ou
formigas. Mas, justamente o oposto: a comparação da sociedade humana a um
formigueiro procede, porque o trabalho destitui o ser humano de suas
virtualidades, rebaixando-o a uma existência predeterminada e subordinada ao espírito da colmeia. Se o Homem-de-Lata
ambicionava um coração humano, na história do Mágico de Oz; na modernidade, é a
humanidade que não tem coração. Mas a redução a um único aspecto da existência,
automático e unilateral, sem dúvida, não nega totalmente o humano e a
possibilidade de sua humanidade plena, do projeto de realização de suas
virtualidades inumeráveis a serem ainda produzidas. E este é o “x” do problema:
o ser humano não é uma abelha, mas está a meio caminho de sua plenitude. Por
isso a resistência, o mal-estar, a revolta. Por isso, a representações
cinematográficas do temor de uma rebelião de androides num futuro impreciso,
mas próximo. Por isso o pavor de uma invasão de insetos gigantescos
extraterrestres. Este temor, na verdade, é o medo de si mesmo, de uma
humanidade segregada pelo apartheid
social.
Neste ponto, é possível traçar uma
conexão entre o conceito de incorporação,
ou melhor, de ritmos do corpo (Nietzsche)[11],
e o de alienação (Marx). Ora, a alienação, a do trabalho, impõe um ritmo,
abstrato (tempo do relógio), cumulativo, linear, compatível à lógica do
capital. Já a temporalidade rítmica do corpo é circular, não cumulativa,
concreta, orgânica. Neste sentido, a incorporação, ou, num plano psicológico, a
personificação, das categorias econômicas do capitalismo é uma negação (um
reconhecimento diante do espelho côncavo) do próprio corpo (ego). Uma renúncia
da vida; ou melhor, uma vida de renúncias. Pois, a realização e o
reconhecimento nestas figuras estranhas e reduzidas é o que vai caracterizar a
alienação.
Há múltiplos sentidos da alienação,
em certo sentido ela deve ser reatualizada em diversos níveis. No nível mais
profundo, o trabalho deve ser convertido constantemente em valor, isto é,
trabalho não-pago, e depois novamente em trabalho. Para tanto, a forma
mercadoria deve se generalizar, ou seja, a produção social deve aparecer
enquanto produção de mercadorias. Neste sentido, todos os membros sociais
figuram formalmente como possuidores de mercadorias, corporificados ora em
trabalhadores, ora em capitalistas. (Evidentemente, não é uma questão de
escolha consciente, mas uma imposição determinada por contingências históricas
e sociais). Assim, de um lado, o dinheiro é convertido em meios de trabalho, condições
objetivas de produção, e, de outro, o trabalho vivo deve se tornar mercadoria,
na figura central do trabalho assalariado.
Graças a isso, é possível descer da esfera da circulação à da produção, por
meio da metamorfose da mercadoria, expressa na fórmula capitalista D-M-D’. O
trabalho vivo aparece como a única mercadoria que, através de seu valor de uso,
produz mais riqueza, na forma também de mercadorias (o dinheiro). Então, o
ciclo tautológico se cumpriu (rotação). Em seguida, repete-se novamente o processo,
infinitamente. É de se lembrar que o conteúdo social desta relação é
determinado pela forma mercadoria, que se manifesta concretamente entre classes
sociais distintas e opostas e em frações ou classes intermediárias. Porém, este
esquema, segundo Lefebvre, explicava de modo suficiente apenas o capitalismo
concorrencial, do século XIX. Numa fase mais complexa do capitalismo – o
neocapitalismo ou capitalismo de organização – não é mais suficiente se deter
na reprodução das categorias econômicas apenas. É preciso reproduzir a
sociedade inteira, o cotidiano. A reprodução
das relações sociais de produção é então o conceito chave para compreensão
não só da reprodução das categorias econômicas como também da cotidianidade,
etc.[12].
Em termos estritamente econômicos há reprodução
da força de trabalho (do trabalho vivo) e reprodução do capital (do trabalho morto). Em termos mais amplos,
há reprodução das relações, da cotidianidade.
Neste sentido, em todas as esferas da vida há reatualização das relações
sociais que se repetem
indefinidamente, de modo automático – tendo em vista o capital enquanto valor
em processo (sujeito automático). Citemos um exemplo de reprodução das
relações, bastante significativo, no nível do cotidiano, para retomar a
metáfora acima: Pode se dizer hoje que vivemos numa época bastante diversa
daquela da era vitoriana ou puritana da Viena de Sigmund Freud. Atualmente,
setores sociais das mais diversas esferas, notadamente os meios de comunicação,
de revistas a programas de televisão, estimulam deliberadamente questões que
envolvem a sexualidade[13].
Tal ênfase ou estimulo bastante permissivo do comportamento sexual em geral, em
nada tem a ver com a revolução sexual proposta nos anos de 1960, nem tampouco é
um fato novo historicamente.
Sem dúvida, se é possível alguma generalização simplista sobre a relação
entre domínio de classe e liberdade sexual, é a de que os dominadores
consideram conveniente estimular a permissividade ou lassidão sexuais entre
seus súditos apenas para conservar seu pensamento afastado do estado de
sujeição que se encontram. Ninguém jamais impôs o puritanismo sexual aos
escravos – ao contrário. As sociedades em que a pobreza é estritamente mantida
em seu lugar estão acostumadas a certas explosões de massa regulares e institucionalizadas
de sexo livre, como os carnavais. De fato, como o sexo é a forma mais barata de
divertimento, bem como a mais intensa (como dizem os napolitanos, a cama é a
ópera do pobre), é politicamente muito vantajoso, sendo iguais os demais
fatores, levar o povo a praticá-lo tanto quanto possível. (HOBSBAWN, 2003, p.
217).
A colocação de Eric Hobsbawn é de
fato muito procedente, mas o problema é talvez ainda mais drástico, pois se
trata no fundo de virar às avessas aquilo que se afirma. A questão central não
se resume apenas na contenção das classes laboriosas. Não é apenas a reprodução
da força de trabalho pura e simplesmente. Vai mais além. Pois, jamais foi tão
moralista, tão repressora. Num certo sentido, a ética protestante do trabalho é
enaltecida aí. Evidentemente, as classes dominantes se beneficiam desses
instrumentos ideológicos, embora também elas se enveredam pelos caminhos dessa
mesma lógica. Tal espetacularização do tema reflete bastante bem o problema da
alienação do qual, na verdade, diz sobre a passividade dos
“espectadores-consumidores” e do esvaziamento brutal do conteúdo de todos os
aspectos da vida, de modo generalizado; ou seja, a impossibilidade da
realização criativa inseparável da condição humana. A forma pura se impõe
completamente para recair em seu contrário, ditando comportamentos que são
repetidos ou reproduzidos automaticamente. O espetáculo engendra um ideal
(suprassensível) que vai muito além da vida real. O resultando é a frustração e
a conversão das pessoas em objetos descartados, que devem satisfazer apenas o
desejo metafísico inspirado por representações inatingíveis. A vida se realiza
completa num outro plano imaginado, enquanto no cotidiano, no fundo, não é
senão a miséria da vida esvaziada que subsiste.
Segundo Lefebvre, a vida cotidiana sempre foi desprezada
pela filosofia, enquanto esfera inapropriada por conceitos filosóficos. Isto é,
na cotidianidade, as pessoas comuns são expatriadas a uma vida imersa em
trivialidades, do dia a dia, da rotina do trabalho, das pequenas coisas, da
vulgaridade monótona de uma existência mesquinha, nos afazeres do lar, na
educação, nos lazeres etc. Aos filósofos, inversamente, cabe-lhes uma
existência mais nobre – e mais digna? –, voltada para a contemplação, a
especulação filosófica, a especialização, as dúvidas existenciais, da teoria,
propriamente dita. Mas, para Lefebvre, justamente por ser um conceito
não-filosófico – irredutível a um sistema – que o cotidiano, enquanto esfera residual, ganha importância filosófica[14].
Pois, a princípio, a vida cotidiana estabelece, enquanto negação (da
filosofia), uma relação de identidade com seu contrário. A negação determinada
de um termo passa necessariamente no seu oposto, no caso o não-cotidiano
(filosófico) ao cotidiano, pelo menos virtualmente. Portanto, como poderia o
filósofo escapar das banalidades da vida, de uma vida igual a todo mundo,
escapar da rotina? Ou, inversamente, como o “simplório”, diante das injustiças,
ou da aspereza da vida, não poderia refletir conceitualmente sobre o mundo e
até contestar o estado vigente das coisas? Segundo Lefebvre, o projeto
filosófico de uma razão dialética, tanto hegeliana como marxista, abarcaria
também o cotidiano. Como já comentamos acima, a historicidade ou a razão
na História, ciência privilegiada, culminaria, para Hegel, no Estado Moderno – encarnação da razão – e, para Marx, no
comunismo (para Lefebvre, há ainda, na obra de Marx, uma pós-história, um mundo habitado por “poetas”). Desnecessário dizer,
como já dissemos, que nenhum desses fins
se realizou, senão como reino das sombras,
isto é, a face escura da teoria. Todavia, tal pretensão racional permitiria
chegar ao cotidiano, na medida que, em Hegel, os filósofos tornar-se-iam
tecnocratas a serviço do Estado, ou melhor, o cidadão-filósofo se identificaria
exatamente com a racionalidade do Estado e nele se realizaria – pressupondo um
mundo habitado por filósofos. Em Marx, o operariado, a classe trabalhadora,
através da praxis, que se dá no
cotidiano, assumiria a condição única de sujeito histórico da transformação
social em direção ao comunismo. O fracasso real de ambos os projetos,
desvelando de um certo modo à ausência de
sentido histórico, deu margens às objeções de Nietzsche e o seu projeto de
ultrapassar o niilismo, através do seu empreendimento de mudar a vida. Ora, também esse projeto nietzschiano visava alcançar
o cotidiano, contrapondo a clareza das aparências apolíneas (platônicas) à sua
dissolução, pelo obscuro e explosivo mundo dionisíaco (a dimensão plena do
corpo, portanto, do “irracional”). Em todos os projetos, buscava-se a superação
entre doxa (opinião, vulgar) e epistème (discurso lógico, científico).
Mas, como vimos também, o projeto nietzschiano, com sua crítica devastadora do
Logos socrático e os valores judaico-cristãos, também malogrou. Vejamos:
Para Hegel é claro: a racionalidade vem da Razão, da Ideia, do Espírito.
Para Marx e o marxismo também é bastante claro: a razão nasce da prática, do
trabalho e de sua organização, da produção e da reflexão inerente à atividade
criadora considerada em toda a sua amplidão. Mas atribuir um sentido (este
sentido) à “história” e à “sociedade” não é também torná-las responsáveis pelas
ausências de sentido, pelas violências sem nome, pelas absurdidades, pelos
impasses?
Descobrimos que a inocência do vir-a-ser pressupõe sua falta de sentido.
A hipótese nietzschiana, isto é, niilismo como etapa e momento, como situação a
superar, não é então eliminada por antecipação. Se aceitarmos a orientação
hegeliana e marxista – a realização do racional pela filosofia –, a análise
crítica do cotidiano decorre daí. Se aceitássemos a hipótese nietzschiana de
uma avaliação, de uma visão em perspectiva de um sentido decretado sobre a falta
de sentido dos fatos, a análise e a transformação do cotidiano aderem a essa
hipótese: é um ato inaugural. (LEFEBVRE, 1991, p. 21)[15].
Todavia, ainda hoje, a crítica do
cotidiano, marcado pela barbárie, não só é possível como urgente e atual. Tal
crítica deve oscilar entre as duas tendências mencionadas e unir aquilo que as
toca: desvelar uma racionalidade (um sentido) inerente ao cotidiano (Hegel e
Marx); ou inventar uma representação racional de um sentido que de alguma forma
organiza e preserva a vida (Nietzsche). Das duas, uma: mudar o mundo. Neste ponto, ganha importância o residual: aquilo que passava
despercebido às grandes narrativas e aos sistemas; logo, o banal, o amor piegas
e vulgar, o não-filosófico, o senso comum ganham um novo sentido para o pensamento-ação.
Seria possível estabelecer um diálogo entre a trajetória
Heráclito-Hegel-Marx e a trajetória que parte do Oriente e termina em
Nietzsche, linha de pensamento da qual Heráclito também faz parte? O cotidiano
seria o lugar desse confronto? Ele conteria o critério que permitisse descobrir
ou o segredo do enigma ou a indicação de uma verdade mais elevada? (Ibidem, p.
25).
Ora, mudar a vida! Revolucionar a
rotina avassaladora, da reprodução diária. Mudar o cotidiano! Os dias se
passam, como o rio heraclitiano, e, no entanto, se repetem as mesmas coisas, a
água sempre tem o mesmo gosto. O despertador que toca irritante sempre no mesmo
horário, de manhã; os mesmos caminhos, a mesma calçada pisada apressada; as
mesmas paisagens e lugares; pontualmente bater o ponto; as horas enfadonhas que
se arrastam longamente vazias no serviço, mas encurtam a vida; o restaurante
self-service, a comida fria, a mosca na sopa, o troco, o dinheiro; as horas que
se arrastam pesadas – distantes de nós – e sem beleza –, perdidas, de que somos
servos. A perplexidade: a multidão indiferente vagando obcecada e
apressadamente em linha reta em direção a pontos incógnitos; sempre correndo,
sempre apressada, na tentativa desesperada de aproveitar o que restou do dia
(talvez na frente da TV: novela, futebol); e de repente o choque, o encontro...
Confrontando estas duas tendências
(sentido e não-sentido). Sociologicamente, é possível discernir uma
racionalidade imposta e definidora do cotidiano, determinada por abstrações
sociais (representações), passíveis de serem descobertas e descritas; do
emprego racional e coerente do tempo no espaço ao emprego do poder do espaço
sobre o tempo. Neste sentido, no cotidiano, “aí tudo conta, porque tudo é
contado: desde o dinheiro até os minutos. Aí tudo se enumera em metros, quilos,
calorias” (Ibidem, p. 27). Esta racionalidade, em grande parte, respaldada
pelas ciências parcelares[16],
ganha consistência real. Por outro lado, é possível também discernir a completa
falta de sentido no cotidiano (irracionalidade): o fluxo caótico, sem objetivo,
sem direção; a paixão. O cotidiano é por excelência o lócus da vida real, de
sua efervescência. “É no cotidiano que se tem prazer ou sofre. Aqui e agora”
(Ibidem, p. 27). As categorias sociais, daquilo que poderia se denominar de ordem distante, a saber, instituições
regidas por normas corretivas e códigos jurídicos, organizam pela força, no
espaço, aquilo que se denominaria de ordem
próxima, isto é, as relações entre indivíduos, grupo, classes etc.[17]
Mas quanta coisa escapa! Assim sendo, a representação jurídica que visa a
equivalência e permeia todos os contatos e contratos, da carteira de identidade,
de eleitor, ao casamento civil etc., não podem determinar toda a dimensão da
vida cotidiana, pois tudo isso não passa de mais uma superfície. Vejamos: Num
princípio de uma noite quente de primavera, milhares de efêmeras sobrevoam ao
redor de uma luminária pendurada no alto de um poste. Um homem sentado na
calçada observa fascinado a revoada, talvez embriagado, sem dúvida fatigado;
não é sujeito (jurídico) nem objeto (mercadoria), apesar das relações sociais
que o impelem ora como sujeito, ora como objeto. – Vozes de criança ao longe:
“Olha, aleluias! esperanças?” “Cuidado, não deixem elas entrar, elas viram
cupins”, alertam as mulheres – Em meio ao seu cansaço, o homem descobre um
instante para sonhar. Descobre um momento real de apropriação do seu tempo e do seu espaço: o aqui-agora. E talvez: Mudar a vida. Da mesma forma, no
entardecer, em algum lugar da cidade, no parapeito de uma ponte em forma de
arco, um mendigo olha – com brilho nos olhos – as folhas do outono que deslizam
sobre as águas de um riacho e os peixes que parecem olhar para ele e falar, com
o seu abrir-e-fechar incessante de bocas. O que estão tentando dizer? Parecem
avisar, alertar alguma coisa. Mas o quê? Indiferente a tudo, absorto e em
comunhão consigo mesmo, que enigma! O que vai pelos seus pensamentos? Já no
centro da cidade, algumas pessoas dormem na rua, ao relento da fria noite, mas
uma delas está acordada: ela olha para o misterioso céu. Ou ainda, um andarilho
que caminha sob uma madrugada linda, de luar, estrelada, silenciosa, calma e
doce; nem ele ao certo sabe para onde vai o seu caminho, mas se detém para
ouvir um passarinho que na noite canta, com sua flauta serena. O passarinho:
“Que importa a ti? Deves ainda seguir, andar, e nunca, nunca, nunca parar!
Ficas ainda? (...) pobre homem da andança!” (Nietzsche). Para sair dessa
“letargia”, é preciso alçar as instâncias abstratas da sociedade, os fóruns de
representação, seguir os trâmites legais e absorver mentalmente a forma social
por excelência: a da lógica da mercadoria. Não sem dor e sofrimento; não sem
revolta.
Assim, a cotidianidade se define por
um emprego racional e homogêneo do tempo e do espaço, solapando a confusão
indomável e heterogênea da vida. Tempo linear que repete; espaço vazio, e que
arrasta o mundo com ele. Mas para compreender o cotidiano é preciso ainda
atentar para uma distinção crucial. Segundo Lefebvre, quando a historiografia
ou antropologia busca descrever, às vezes, minuciosamente o cotidiano de
sociedades pré-capitalista, na verdade elas descobrem um estilo[18].
Deste modo,
Entre os incas ou os astecas, na Grécia ou em Roma, um estilo
caracterizava os mínimos detalhes: gestos, palavras, instrumentos, objetos
familiares, vestimentas etc. Os objetos usuais, familiares (cotidianos), ainda
não tinham caído na prosa do mundo. E a prosa não se separava da poesia. Nossa
vida cotidiana se caracteriza pela nostalgia do estilo, por sua ausência e pela
procura obstinada que dele empreendemos. (Ibidem, p. 36).
A coleção consagrada à vida cotidiana embaralha e confunde os conceitos
por não se separar a especificidade do cotidiano após a generalização da
economia. Então e assim cresceu a prosa do mundo, invadiu tudo, os textos, o
que se escreve, os objetos como os escritos, chegando a expulsar a poesia para
longe. (Ibidem, p. 36).
Neste ponto cabem várias
considerações. Em primeiro lugar, Lefebvre rejeita a noção de “cultura”, por se
tratar de um fenômeno da modernidade implicado num sistema, sendo impreciso
estendê-la sem reservas a sociedades pré-modernas ou não-capitalistas[19].
O estilo definiria melhor estas
sociedades (civilizações)[20].
Também não haveria sub-estilos na sociedade contemporânea, como atestam certos
estudos sociológicos e antropológicos, mas “nostalgia do estilo, por sua
ausência e pela procura obstinada que dele empreendemos”. Neste sentido, a
noção sociológica de estilo de vida, ethos ou habitus, do gosto e da sensibilidade, que determinam escolhas
cotidianas, valores particulares e identitários, da alimentação, habitação,
modo de vida etc.; ou folclorista etnográfica, no que diz
respeito às maneiras de pensar e agir de um povo, preservadas pela tradição
popular e pela imitação etc.; ou ainda o conceito geográfico, de vertente la
blachiana, de gênero de vida, do uso
das técnicas, de um determinado hábito e da apropriação por grupos humanos das
possibilidades oferecidas pela natureza etc., de certo modo, não seriam senão
perspectivas enviesadas das diversas manifestações humanas que ultrapassam o
conceito de cultura, notadamente, no
que diz respeito ao da indústria cultural
(Escola Frankfurt). Evidentemente, estas noções não são de todo descartadas no estilo. Porém, uma coleção de compêndios
culturais não é senão um sintoma da decadência, uma recaída na barbárie
(Nietzsche). De certo modo, o conceito de estilo diz respeito a sociedades
ainda não estruturadas pelo cotidiano, das instituições, do Estado e da
economia; mais precisamente está associado a sociedades rurais. Grosso modo, o
tempo cíclico, do natural, das estações do ano, do cultivo e da colheita
(vindima), define um tempo concreto e uma ralação vivida integralmente: a
incessante oscilação entre a embriaguez dionisíaca e as formas perfeitas da
métrica poética. Um modo de vida cria
um estilo de vida; vestuário
característico, músicas e danças típicas, festas, um estilo arquitetônico, as
cidades, os espaços de representação – o sol, as estrelas, as fases da lua, as
estações do ano, a poesia, a arte etc. –, a religiosidade, o casamento, enfim,
uma prática espacial. A arte não separada da vida. A vida como arte. A grande
cultura é a unidade de estilo de expressões da vida, uma obra de arte orgânica
e coletiva[21].
Noutras palavras, estilo – um
conjunto de qualidades de expressão, na história das belas artes, da música, da
literatura, no contexto vivido de um povo etc. Já a racionalidade meticulosa
constitutiva do cotidiano esvazia todo o estilo. Neste sentido, reiteramos, o
estilo refere-se à produção no sentido amplo; em particular, a produção de obras. No cotidiano, o estilo é
estilhaçado em “cultura” (fragmentada, ideológica), ocupando momentos e espaços
definidos, reservados a um público alvo (de filisteus da cultura); assim, a produção da arte é voltada à fabricação de
produtos culturais, em sentido restrito, econômico! Daí porque a prosa do
mundo – o Logos, a palavra enquanto posição de objetividade no conceito –
expulsa a poesia, que antes não se separava da prosa nem do vivido[22].
O prosaico, o vulgar, a falta do sublime; o dinheiro é a voz do mundo.
A historicidade do cotidiano devia estabelecer voltando para trás, a fim
de mostrar sua formação. Evidentemente sempre foi preciso alimentar-se,
vestir-se, habitar, produzir objetos, reproduzir o que o consumo devora. No
entanto, até o século XIX, até o capitalismo de concorrência, até o
desdobramento desse “mundo da mercadoria”, não tinha chegado reino da
cotidianidade, insistimos sobe este ponto decisivo. Está aí um dos paradoxos da
história. Houve estilo no seio da miséria e da opressão (direta). Durante os
períodos passados houve obras mais que produtos. A obra quase desapareceu,
substituída pelo produto (comercializado), enquanto a exploração substituía a
opressão violenta. O estilo conferia um sentido aos mínimos objetos, aos atos e
atividades, aos gestos, um sentido sensível e não abstrato (cultural) tirado
diretamente de um simbolismo. Entre os estilos seria possível distinguir o da
crueldade, o do poder, o da sabedoria. Crueldade e poder (os astecas, Roma)
deram grandes estilos e grandes civilizações, assim como a sabedoria
aristocrática do Egito e da Índia. A ascensão das massas ( que não impede em
nada sua exploração), a democracia (mesma observação) acompanham o fim dos
grandes estilos, dos símbolos e dos mitos, das obras coletivas: monumentos e
festas. Já o homem moderno não passa de um homem de transição, a meio caminho
entre o fim do estilo e sua re-criação. Isso obriga opor estilo e cultura, a
sublinhar a dissociação da cultura e sua composição. Isso legitima a formulação
do projeto revolucionário: recriar um estilo, reanimar a festa, reunir os
fragmentos dispersos da cultura numa metamorfose do cotidiano. (Ibidem, p. 45).
Ora, um projeto revolucionário inclui
a transformação do cotidiano. Recriar um novo estilo. A produção ampla: produzir um novo ser humano! Claro, não
se trata de um retorno a sociedades passadas, à opressão violenta no seio da miséria. Naquelas sociedades, imperava
o reino das necessidades, da escassez. As forças descomunais da natureza
submetiam as sociedades humanas a um regime econômico de penúria e, às vezes,
destruição. Grupos humanos também se digladiavam até dizimarem-se por completo.
Claro, também havia momentos de bonança, de festa, do sublime: da colheita e do
vinho! Todavia, as condições de produção eram limitadas, determinadas por
contingências exteriores. Períodos de fome devastadores, guerras, pestes
assolavam o mundo antigo. Na modernidade, o desenvolvimento das forças
produtivas, das técnicas e das ciências possibilitou, sem precedentes
históricos, um domínio racional da natureza, possibilitando pela primeira vez o
mundo da liberdade. Esse extraordinário desenvolvimento material criou as
condições para a superação da miséria humana e da dominação da natureza. As
bases, enfim, foram lançadas. A sociedade está a um passo do fim das
alienações, da possibilidade real da criação do ser humano integral, de uma
civilização que tem por fim o ser humano[23].
Por isso a frase: “o homem moderno não passa de um homem de transição, a meio
caminho entre o fim do estilo e sua re-criação”. Desta forma, o que estará em
jogo é a ênfase da produção em sentido amplo, que na modernidade é reduzida.
Vejamos algumas considerações mais detalhadas desse conceito:
A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, de uma
parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o espaço sociais), em resumo, a
produção “espiritual”, e, de outra parte, a produção material, a fabricação de
coisas. Ele designa também a produção do “ser humano” por si mesmo, no decorrer
do seu desenvolvimento histórico. Implica a produção das relações sociais.
Enfim, tomado em toda a sua amplitude, o termo envolve a reprodução. (Ibidem,
p. 37). (...) Na noção de produção se reintroduz o sentido vigoroso do termo
produção de sua própria vida pelo ser humano. (Ibidem, p. 39).
Transcreveremos seus aspectos principais:
existência social dos seres humanos, o ser genérico; transição da escassez para
abundância; crítica das opressões e o domínio dos determinismos pela razão
(dialética). Criação de obras: produção espiritual (tempo e espaço social);
produção material, fabricação de coisas; produção do ser humano e das relações
sociais. Obra: “bem” e liberdade. Reprodução: reprodução biológica; reprodução
material dos utensílios necessários à produção, instrumentos técnicos e, ainda,
reprodução das relações sociais.
*****
Enumeremos resumidamente também
algumas características do cotidiano: a vigência do neocapitalismo ou
capitalismo de organização; deterioração total da atividade criadora (poièsis), que, em última análise, teria
capacidade revolucionária; extirpação da consciência da produção em sentido
amplo; liquidação do passado; predomínio do niilismo e da barbárie; “o terror
substitui o medo: terror diante dos perigos de guerra atômica, diante das
ameaças de crise econômica. Não mais o terror da natureza, mas o terror da
sociedade, apesar da passagem à racionalidade ideológica e prática” (Ibidem, p.
51). Hoje, o terror do Estado democrático e a resistência fundamentalista; o
terror do clima – aquecimento global – e da destruição do meio ambiente
provocado pelo desenvolvimento industrial, o esgotamento dos recursos naturais;
o terror provocado pela miséria de mais da metade da população no planeta.
Na cotidianidade, as relações sociais
são reproduzidas. O operário reproduz o operário. O capitalista, o capitalista.
O escravo, o escravo. O senhor, o senhor etc. O sentido (vazio): tautologia: o
lucro reproduz o lucro. Reprodução da base econômica – trabalho e divisão do
trabalho –, da estrutura – relações sociais e de propriedade – e da
superestrutura – instituições, códigos jurídicos e ideologias. Reprodução das
representações no espaço. A vida toda, fragmentada: trabalho, escola, lazeres,
férias etc. O repetitivo é privação, reduz à sucessão quantitativa, numérica. A
força de trabalho, energia vital, é convertida brutalmente em algum tipo de
movimento automático; por exemplo, o apertar um parafuso atrás do outro ou
sempre o mesmo botão, na linha de montagem. A linha de montagem extrapola a
fábrica, dita o ritmo da divisão do trabalho, da cidade: centro-periferia. Milhares
de homens e mulheres uniformizados se amontoam num movimento conturbado,
caótico, como num formigueiro; todos exatamente idênticos: o macacão-sujo ou o
terno-e-gravata. Assim, a reprodução diária, do cotidiano, apresenta um
movimento automático, o do autômato – que se estende à sociedade inteira. A
representação da vida no lugar da vida. E a vida cede lugar à representação. O
espetáculo. Uma sociedade de robôs, de insetos sem alma: máquinas-vivas.
Nesse contexto, um equilíbrio
(feedback) provisório entre a produção e o consumo, estrutura e superestrutura,
conhecimento e ideologia se mantêm, talvez, muito frágil, muito tênue. Eis que
o repetitivo engendra a diferença! O homogêneo se esfacela em contradições
explosivas. O Estado intervém. A polícia.
Até que uma destruturação as quebre, as relações sociais inerentes a uma
sociedade se mantêm; mas não é por inércia, passivamente. Elas são
re-produzidas num movimento complexo. Onde se passa esse movimento, essa
produção cujo conceito se desdobra, ou antes se divide, de modo a compreender a
ação sobre as coisas e a ação sobre seres humanos, a dominação da natureza e a
apropriação da natureza ao e pelo “ser” humano, a práxis a poíesis? Esse
movimento não se desenvolve nas altas esferas da sociedade: o Estado, a
ciência, a “cultura”. É na vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o
centro real da práxis. (Ibidem, p. 37).
Pois bem, simultaneamente à
reprodução das relações sociais, reproduzem-se também os antagonismos. A
exploração. Contradições. Ironicamente, no seio da sociedade da abundância pelo
menos dois terços da humanidade vivem abaixo da linha da pobreza. Ironicamente,
apesar do desenvolvimento exponencial da produção material capaz de
virtualmente erradicar a fome no planeta, pelo menos metade da população
mundial não possui uma alimentação adequada ou passa fome. No cotidiano,
reproduz-se a miséria. A miséria do cotidiano. Por traz desse tênue equilíbrio
da cotidianidade, há o desequilíbrio estrutural da sociedade capitalista.
Quando as pessoas, numa sociedade assim analisada, não podem mais
continuar a viver sua cotidianidade, então começa uma revolução. Enquanto
puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem. (Ibidem, p.
34).
As relações de classes,
evidentemente, partindo-se dessa lógica, também são reproduzidas. A contradição
capital-trabalho é reproduzida. Reproduz-se a contradição entre as
forças produtivas e as relações sociais de produção (propriedade). Reproduz-se a contradição entre produção
social e apropriação privada. Reproduz-se
a luta de classe, em algum nível, ainda que invertida em barbárie. A
exploração é reproduzida mas atenuada
pelas ideologias, pelas representações, pelos “lazeres” do cotidiano. Enfim, as
relações sociais, suas instituições, seus agentes e estratégias, o Estado, que
transfigura num plano abstrato e homogêneo a desigualdade, são reproduzidas
cotidianamente (diariamente). Paralelamente, o pulsar incontido da vida. O
conflito entre o não-apropriado e o apropriado, que, em última análise, se
opera no cotidiano, se mantém sob uma tensão insustentável. “A classe operária
mergulha no cotidiano e com isso pode (ou poderia) negá-lo e transformá-lo. A
burguesia, esta, faz arrumação do cotidiano e crê que pode escapar dele vivendo
graças ao dinheiro perpétuo um ‘domingo da vida’. Mas é uma aspiração vã”.
(Ibidem, p. 47). E aqui, o ponto central: o cotidiano é e não é o berço da revolução social. Enquanto reprodução da miséria, o cotidiano
fomenta o aparecimento de virtualidades que apontam perspectivas, aberturas e
saídas do próprio cotidiano. Todavia, enquanto reprodução da miséria, o cotidiano põe e repõe as categorias que
giram a roda social de constrangimentos sistemáticos. É neste sentido que
Lefebvre pôde fazer uma crítica dos projetos revolucionários que viam apenas um
sentido positivo do cotidiano. A classe operária apenas caiu no equívoco de
reafirmar as categorias, como a do trabalho,
ao invés de superá-las[24].
O trabalho significa a anulação das potencialidades plenas humanas. É a
colossal energia que transforma seres humanos em insetos sem alma: robôs.
A ruptura do cotidiano fazia parte da atividade revolucionária e
sobretudo do romantismo revolucionário. Em seguida a revolução traiu a
esperança, tornando-se igualmente cotidiana, instituição, burocracia,
organização da economia, racionalidade produtivista (no sentido estreito do
termo produção). (...) Onde exatamente situava-se a ingenuidade? Essa teoria do
cotidiano associava-se talvez a um populismo, a um trabalhismo; ela exaltou a
vida do povo, a vida da rua, das pessoas que sabem se divertir, se apaixonar,
arriscar, dizer o que sente e o que fazem. Ela implicava ao mesmo tempo a
obsessão do proletariado (a riqueza da profissão, do trabalho, dos liames de
solidariedade no trabalho) e a obsessão filosófica, dissimulada sob a
ambiguidade do “vivido”, sob o artificial e o inautêntico. (Ibidem, p. 44).
É neste sentido, que o fracasso do
projeto revolucionário, de suas várias tendências, inclusive a do movimento
operário, pode ser compreendido. A revolução socialista, em 1917, não rompeu o
cotidiano. Ao contrário, o ratificou pelo Estado. Uma oligarquia
(aristocrática) surgiu no seio do socialismo. No socialismo real, a formação de
uma casta de tecnocratas e burocratas não escondia, tanto na propaganda política
e ideológica, como também na política efetiva, a pretensão de transformar a
sociedade numa máquina através de um
planejamento cuidadoso. Transformar a alma da sociedade humana no espírito da colmeia. Na divisão do
trabalho, cada peça exerce uma função. No entanto, são as classes médias que
fornecem os quadros da burocracia estatal, e não o proletariado.
O papel e a contribuição histórica da classe operária se obscurecem com a
sua ideologia. Surge uma nova mistificação: as classes médias não terão mais
que uma sombra de poder, mais que uma migalha de riqueza, mas é em torno delas
que o cenário se organiza. Seus “valores”, sua “cultura” levam vantagem ou
parecem levar porque são “superiores” aos da classe operária. (Ibidem, p. 48).
A classe média suporta melhor o
cotidiano, porque se beneficia de alguns dotes provenientes da dinâmica social.
A miséria da classe média, entretanto, não é sua inerente mediocridade (de
estar sempre no meio termo), mas seu conformismo, seu conservadorismo. Por
isso, seus valores moralistas e mesquinhos, geralmente ligados ao consumo; e
sua questionável liberdade no plano do comportamento (liberalismo), que se
tornam universais através do modelo a
ser imitado. Seu ideal razoável de “sermos adultos” não é senão hipocrisia que
esconde a banalização da violência. Esta mesma classe média que se alia à
classe burguesa, aos poderosos. Mas a miséria da classe média e também da
burguesia é a ilusão de que o dinheiro pode resolver tudo, inclusive, comprar
“momentos” do vir-a-ser. Na ausência
de um projeto de transformação social, novo ou revisto, fica difícil imaginar
uma possibilidade de emancipação do cotidiano sob tais pressupostos.
Talvez aqui seja o momento para definir o ser humano total. E a resposta é de fato surpreendente. O ser
humano total são estas mulheres e homens dos quais topamos todos os dias, ao
sair na rua, ao entrar numa padaria, numa escola, num parque etc. É esta gente
comum que conversa, brinca, joga dominó; e, às vezes, enche a cara de cachaça
ou cerveja e, cambaleando, desaba nas sarjetas. É esta gente do povo, que como
nós, passa por situações ridículas ou constrangedoras no dia a dia; e que,
apesar de todas as coações, encontram momentos (recônditos) de felicidade
(...). Enfim, são estes, o povão, mulheres e homens de todas as idades, o tal
do ser humano total (o ser genérico) que tanto enfatizamos aqui. Surpresa?
Espanto? Sem dúvida. Mas então qual é o projeto? Libertar-nos. Um projeto que
estimule o desenvolvimento e a concretização das potencialidades criadoras (poièsis) de cada um de nós. Este projeto
não é tarefa de um único conhecimento especializado, atribuído à educação ou
pedagogia, por exemplo; mas da produção total, interdisciplinar e prática.
Somente assim, a humanidade poderá escapar da auto-extinção, da catástrofe, e
salvar a natureza e o planeta. E se nos for permitido imaginar (sonhar), uma
possibilidade, dentre muitas, num futuro distante, daqui a bilhões e bilhões de
anos quando o sol se tornar mais brilhante e mais brilhante, e nos obrigue a saltar
de planeta em planeta, ou quando esta estrela se transformar numa gigante
vermelha devastadora; imaginar uma viagem épica pelas as galáxias, por onde a
humanidade, como na arca de Noé, se lançaria à procura de um novo sol! Podemos
ainda especular: a construção de ultra-foguetes atômicos acoplados à Terra,
capazes de viajar a velocidades inimagináveis, levando nosso planeta e a lua à
reboque pelos quatro cantos do multiverso atravessado por buracos de minhoca,
que são verdadeiros atalhos e labirintos das múltiplas dimensões que se chocam;
ou mesmo, numa outra hipótese, a desintegração instantânea do planeta Terra e
sua reintegração na órbita de uma outra estrela, escolhida por acaso por
crianças, reunidas numa noite estrelada (...). Enfim, não esperemos que a
natureza se encarregue de criar o sobre-humano às custas da nova extinção em
massa que se avizinha e marcará o fim da era geológica humana.
*****
Hoje, somente os proletários, isto é,
aqueles que nada têm (os ditos “sem”), são livres o bastante para empenhar esta
formidável transformação social; mas o fardo é muitíssimo pesado, exige grandes
sacrifícios. Não será demais?
*****
Como se apresenta o niilismo
(enfermidade) hoje? Como fetiche da mercadoria. Ao contrário do que se afirma,
o fetiche da mercadoria não tem as mesmas características da religião. Ele não
é formador, não estabelece valores ou condutas morais. O fetiche da mercadoria
assemelha-se ao niilismo, pois tem como motor a concorrência caótica e sem
finalidade da produção, o lucro pelo lucro. Neste contexto, as tais leis da
concorrência são consideradas saudáveis, ainda que se constituam socialmente em
um imoral darwinismo social. O ser humano é, como vimos, rebaixado à condição
de força de trabalho, da mercadoria, da reprodução pura e simples, e submetido
às leis da concorrência selvagem, em todos os níveis da vida. Perde-se todas as
medidas por causa de dinheiro. Por exemplo, não foram os filósofos, mas as
igrejas que mataram Deus e passaram a cultuar sem o menor cerimônia o deus-dinheiro, mesmo que isto a todo
custo implique seguir cegamente seu cânone monetário: odiar o próximo. Pois o objetivo é tirar tudo, espoliar o outro. O
dinheiro aproxima as pessoas e também as excluem. Os niilistas hoje afirmam a
totalidade – absolta – do fetiche moderno e da dissociação, ao qual anularia o
caráter transformador de toda e qualquer diferença, declarando que uma reação
ou resistência nada mais faz do que afirmar as categorias fetichistas,
portanto, tudo é em vão! Como
ascetas, renunciam à vida e entregam-se à prática teórica (economicista,
abstrata, idealista), para glorificar o todo poderoso sujeito-automático (o capital). Arrogantes, senão resignados, são
como escravos que renunciam o mundo e abstêm-se de qualquer iniciativa de
mudança (desde que seus interesses não estejam em jogo). Estes fatalistas,
indiferentes aos conflitos reais do vivido, insensíveis à dor humana, porque se
retiram do mundo, habitando cavernas, esperam um dia o céu desabar em mil
pedaços. Estes niilistas nada têm a acrescentar. Não merecem mais consideração,
e talvez mesmo, nem a nossa amizade. Ao contrário, os revolucionários ousam
lutar, ousam vencer, ousam mudar, porque, caso contrário, amargarão eternamente
a mais vil e indigna servidão!
*****
Representações
Lefebvre é desses pensadores que,
desde Hegel e Marx, Schopenhauer e Nietzsche, Georg Simmel e Émile Durkheim,
compreendem o conceito de representação
enquanto conceito fundamental na dinâmica social. O mundo representado é um espelho, o Véu de Maya, isto é, um nevoeiro de
ilusões.
Se introduzimos na exposição de uma noção termos como “opacidade” ou
“transparência” (de uma sociedade), podemos se acusados de substituir
definições científicas por imagens. Contudo, essas “imagens” se encontram em
Marx e possuem para ele e em seu pensamento um alcance científico. São
elementos de conhecimento. Transparência quer dizer presença e se distingue da
representação, até se opor a ela. (LEFEBVRE, 1968, p. 43).
Segundo Lefebvre,
Em estruturas sociais e modos de produções determinados, as praxis
sociais produzem representações. Essas representações aumentam ou diminuem a
falta de transparência de uma sociedade. Elas esclarecem com uma falsa
transparência, ora mergulham-na na penumbra e nas trevas em nome doutrina ainda
mais obscura que a realidade da qual surgiu. A realidade social, isto é, os
homens e os grupos humanos em suas interações, produz aparências, que são algo
além e diverso de ilusões sem consistência. Elas têm, pois, mais consistência
ou, pelo menos, mais coerência que as simples ilusões ou vulgares mentiras.
(ibidem, p. 44).
Ora, como vimos no espelho, isto é,
na re-presentação, a superfície do cogito
cartesiano ou consciência-de-si suprime o corpo e só se realiza nesta
supressão. Este processo metonímico possui efeitos práticos. As representações
têm um “poder” de organizar de modo coerente ou coeso as práticas sociais.
Representações que, na verdade, podem trazer ainda mais mistificações do que
transparência, mas nem por isso são vazias de sentido social. Neste sentido, a
forma coerente desligada plenamente de seu conteúdo suscita ilusões, que não
são meras ficções, haja vista que podem organizar toda uma realidade concreta e
social sob uma determinação lógica (formal). Mas não são categorias da
consciência. São, aliás, construções históricas. Por exemplo – para retomarmos
a discussão sobre sujeito – o
sujeito, reflexo num espelho côncavo
dos indivíduos viventes – o sujeito é apenas uma superfície, uma redução dos
indivíduos a uma forma: o pensamento racional. O sujeito pode ser uma
re-presentação necessária para uma atuação efetiva, no âmbito de instâncias
restritas, de ordem pública, jurídica ou política, que dilui praticamente, pela
representação, o indivíduo real. Ora, mas, como vimos acima, o corpo, unidade
material, carnal, dos indivíduos, não pode ser diminuído plenamente a esta
superfície. O sujeito é uma máscara;
ilusão oriunda da forma contratual que atenua as diferenças pela equivalência.
Por isso, a realização formal das liberdades e direitos individuais implicarem
numa inversão concreta manifesta no dever e na ausência total de liberdade.
Neste sentido, o direito parte da premissa absurda – hipérbole do sujeito,
espelho convexo – de que “a ninguém é dado o direito de desconhecer as leis”.
Os códigos legais, entretanto, são um sistema de normas sujeitas à
interpretação de um grupo seleto de expertos, e são inacessíveis a grande
maioria (muitas vezes composta de analfabetos ou analfabetos funcionais). Esta
premissa supõe um mundo habitado por advogados. Ou melhor, um mundo representado por advogados. Até que uma
dada situação seja avaliada por alguns peritos das leis, ela não existe, senão
como ilegalidade, ou possibilidade de delito. O que está fora dos autos não está no mundo. O que pressupõe e mesmo
autoriza que o mundo fora dos autos seja um mundo onde tudo é permitido. À
justiça, é incumbido o papel de corrigir os seus excessos. Mas ela não é
imparcial. Recordemo-nos da parábola do camponês que procura a justiça mas
jamais é atendido porque a justiça foi feita tão somente para ele. É em nome da
clareza do sujeito que um mundo obscuro, a penumbra da lei, determina o
veredicto das sentenças. E depois de passar pelo exame racional e o aval da
“sociedade”, o emprego da violência se justifica plenamente.
Neste sentido, a forma mercadoria é
um exemplo notável de forma coerente e hegemônica na sociedade moderna. Não é
difícil compreender o conceito de mercadoria. Como já se disse muitas vezes, a
mercadoria é valor de troca e valor de uso. Valor de troca quando ela é trocada
por outra mercadoria (o dinheiro). Valor de uso quando ela é consumida. A
partir disso, a mercadoria vai mediar todas as relações sociais. Os
capitalistas compram força de
trabalho para ser empregada na produção e vendem
produtos do trabalho. Os trabalhadores vendem sua força de trabalho
(mercadoria) e compram meios de subsistência para se reproduzirem enquanto
trabalhadores. Insistimos nesse ponto. Porém, graças a essa forma cristalina,
efetiva-se socialmente uma obscura relação, a exploração do trabalhador, a
mais-valia.
A mercadoria, frente à reflexão analítica, é uma forma pura, logo uma
transparência. Na realidade prática e vivida ela é, ao contrário, opacidade e
causa de opacidade. A própria existência da mercadoria é algo de estranho,
tanto mais estranho e singular quanto homens não percebem essa singularidade.
(...) Ela possui um caráter místico: somente existe devido aos seres humanos,
pesa sobre suas relações e ainda os conduz ao caminho da coisa (abstrata).
(ibidem, pp. 44 e 45).
Pois bem, tomemos o que foi dito até
agora. Uma capacidade potencial do corpo, o trabalho, engendra um “mundo”. Este
“mundo” é uma exteriorização do próprio corpo. É também uma re-presentação: uma
instância entre a presença (cidade) e ausência (natureza). A representação é
mais potente que a de ideologia, pois não é superestrutura, mas a própria
realidade, repleta de significados nem sempre visíveis nem sempre conhecidos.
Estas representações projetam-se no
solo, no terreno, isto é, no espaço.
A representação não é uma ideia, um conceito, uma categoria, ela é real: por
exemplo, uma pintura em um quadro; os Girassóis
de Van Gogh. O quadro é uma presença; e os girassóis, uma ausência. A obra:
talvez, os tormentos de um gênio; quem sabe, por causa do amor não
correspondido, de sua Rachel. Não é dispêndio de energia humana que sai e se
esvai. É a realidade que é moldada. É o gênio que é não ele-indivíduo, mas a
sua obra.
A forma mercadoria também se realiza
socialmente no chão da fábrica, na
esteira da linha de montagem; nos trabalhadores trabalhando, nos gestores
fiscalizando. Outras representações ordenam e estabelecem lugares onde se
efetivam mediações sociais: no balcão de atendimento, nas salas de reunião, nas
escolas, etc. Podendo assim o espaço ser encoberto por uma névoa ou o próprio
espaço tornar-se uma névoa, que encobre, organiza e estrutura a realidade
social e natural. Assim, Lefebvre define a produção do espaço: “O espaço social
é múltiplo: abstrato e prático, imediato e mediato” (LEFEBVRE, 2003, Cap. IV,
par. 104, p. 26).
Dito isso, é possível discernir três
níveis da prática espacial: o vivido,
o percebido e o concebido. A prática espacial é então permeada por representações
que funcionam como um espelho. Se levarmos em conta o que foi dito até agora, o
mundo como uma soma descomunal de forças caóticas, e a prática social enquanto
“organizadora” dessas forças – num sentido de apropriação, produção e dominação da natureza – então a cidade
aparece, como já foi dito antes, como a primeira grande obra das sociedades humanas em relação à natureza, seu espelho no
mundo, segunda natureza. (O campo
ainda seria determinado ainda pelas intempéries e contingências da natureza). É
neste sentido que Lefebvre pôde formular três grandes etapas históricas: a sociedade agrária (ante-histórica), industrial (histórica) e urbana (pós-histórica)[25].
Ou ainda um desenvolvimento espacial, no Ocidente, que pode ser caracterizado e
distinguido em espaço absoluto; espaço histórico-espaço abstrato; e produção do espaço. Grosso modo,
interpretamos tais etapas, salvo engano, como mega-estruturas, que se
interpenetram, sem se negarem completamente e sem demarcações rígidas, em
termos de datas ou evento histórico, e que tentaremos definir da seguinte
maneira:
Do espaço absoluto – religioso e político –,
só diremos que a ênfase recai sobre o corpo e o vivido, o tempo cíclico, sem
distinção entre o público e o privado[26].
A Cidade Antiga e o mundus romano.
Tudo é, ao mesmo tempo, simbólico e prático, imediato e abstrato. Seguindo a
influência nietzschiana, interpretamos este espaço por excelência – “no início
era o Topos” –, ao da Grécia pré-socrática, e ao culto de Dioniso.
Um pouco por toda parte, em todas as sociedades, o espaço absoluto se
carrega de sentidos que pelas ameaças, pelas sanções, pelas emoções sempre
postas à prova, não se dirigem ao intelecto, mas aos corpos. Esse espaço
“vivido” e não concebido, espaço de representação mais que representa do
espaço; desde que ele se concebe, seu prestígio se atenua e desaparece.
(Ibidem, Cap. IV, par. 21, p. 5).
O espaço histórico tem por fundo o
desenvolvimento do comércio, da mercadoria, ou melhor, da generalização das
trocas, a invenção de códigos, da lógica e do direito[27]:
O caráter nefasto da mercadoria e a abjeção do dinheiro se manifestam
apenas mais tarde. (...). No momento em que nós falamos, a “coisa” trocável, o
objeto produzido para a venda, ainda raro, tem uma função libertadora. Ele dessacraliza.
(Ibidem, Cap. IV, par. 100, pp. 24 e 25).
O dinheiro e a mercadoria, ainda “in statu nascendi” não forneciam
somente uma “cultura”, mas um espaço. (Ibidem, Cap. IV, par. 101, pp. 24 e 25).
No século XIV, esse espaço enfim conhecido e reconhecido, portanto
representado como tal, dará lugar a cidades simbólicas: fundadas para o
comércio, nas regiões ainda exclusivamente agropastoris, portanto sem comércio.
(Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 25).
O espaço que se instaura por diversos meios, violentos ou não, ao longo
da Idade Média, se define como um espaço de trocas e de comunicações, portanto
de redes. Esta rede é apenas o duplo físico e o espelho da natureza abstrata e
contratual que religa os “trocadores” de produtos e de dinheiro. (Ibidem, Cap.
IV, par. 103, p. 25).
A passagem do capitalismo comercial
ao industrial e a formação do Estado moderno constituem o espaço abstrato. O econômico fará implodir a cidade, que, no
entanto, conserva-se como centro. Espaço que tende ao homogêneo sem, contudo,
suprimir as contradições.
Do século XII ao XIX, as guerras girarão em torno da acumulação. (Ibidem,
Cap. IV, par. 129, p. 31).
A indústria estabelecer-se-á no espaço onde as tradições dos campos terão
sido varridas, onde as instituições urbanas terão sido arruinadas pelas guerras
(...). Neste espaço se amontoam as riquezas das rapinas e pilhagens. Tal é o
espaço industrial estatista. (Ibidem, Cap. IV, par. 130, p. 31).
Resumamos: antes do capitalismo, a violência tem um papel
extra-econômico. Com o capitalismo e o mercado mundial, a violência assume um
papel econômico na acumulação. (Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 32).
Inspirando-se em Marx, muitos historiadores procuram uma explicação
econômica dessas violências; eles projetaram sobre o passado um esquema
posterior, aceitável para o período imperialista. (...) Eles não compreenderam
bem o pensamento de Marx, a saber, que o histórico domina com suas categorias
durante um certo período, depois se subordina ao econômico no século XIX.
(Ibidem, Cap. IV, par. 102, p. 32).
Papel da violência na acumulação capitalista, a guerra e os exércitos
como forças produtivas. (...) O que a guerra produz? A Europa ocidental, espaço
da história, da acumulação, do investimento, base do imperialismo no qual o
econômico triunfa. . (Ibidem, Cap. IV, par. 133, p. 32).
Evidentemente, que a ideologia nestes
termos ganha muito mais potência, pois, diz respeito a uma prática concreta,
aparentemente inócua, mas que qualifica os espaços dando sentidos e
significados diversos, além de ordenamento, hierarquia e organizando a prática
social, através dos gestos, de símbolos, signos, sinais e abstrações, códigos,
instituições, nos monumentos, nas edificações, na fachada, nas construções, nos
projetos, na cidade, que têm por fim a segregação.
Portanto, em relação a esta
periodização do espaço social, é possível distinguir três níveis articulados
que se entrecruzam dialeticamente, descritos abaixo:
“a) A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares
especificados e conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que
assegura a continuidade numa reativa coesão. Essa coesão implica, no que
concerne ao espaço social e à relação de cada membro de determinada sociedade
com o seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance.
“b) As representações do espaço, ligadas às relações de produção, à
‘ordem’ que elas impõem e, desse modo, ligadas aos conhecimentos, aos signos,
aos códigos, às relações ‘frontais’
“c) Os espaços de representação, apresentando (com ou sem código)
simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida
social, mas também à arte, que eventualmente se poderia definir não como código
do espaço, mas código dos espaços de representações” (LEFEBVRE, 200 , cap. I, pars.
82-84, p. 31).
A prática espacial ou espaço percebido diz respeito a modos de
apropriação pela sociedade da natureza, o que implica produção e reprodução. É
o sentido da praxis social, que
transforma, ordena e constitui um certo espaço. Determinada organização social, não dissociada de um
modo de produção, reflete-se no terreno
transcrevendo sentidos e significados percebidos sensivelmente. “a) A prática espacial de uma sociedade
secreta seu espaço; ela o põe e o supõe, numa interação dialética: ela o produz
lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. Para a análise, a
prática espacial de uma sociedade é descoberta decifrando seu espaço” (ibidem,
cap. 1, par. 98, p. 34). A prática espacial articula os dois outros níveis:
espaços de representação e representação de espaços. Na prática espacial,
espaços são representados de diversas
formas, reflexos de determinada atividade humana em relação a natureza (caos).
Nas sociedades agrárias, há predomínio dos espaços de representação. O sol, a fonte, o poço, a noite, a flor, o
caminho, mas também a pintura, escultura, poesia, a prosa. É o lado
obscuro, oculto, do corpo propriamente dito. O espaço de representação pertence
à esfera do vivido, do imediatamente
sensível. O espaço tem um significado social, afetivo, que determina praticas
sociais:
Os espaços de representação, ou seja, o espaço vivido através das imagens
e símbolos que o acompanham, portanto espaço dos ‘habitantes’, dos ‘usadores’,
mas também de certos artistas e talvez dos que descrevem e acreditam somente
descrever: os escritores, os filósofos. Trata-se do espaço dominado, portanto,
submetido, que a imaginação tenta modificar e apropriar. De modo que esses
espaços de representação tenderiam (feitas as mesmas reservas precedentes) para
sistemas mais ou menos coerentes de símbolos e signos não verbais. (ibidem,
cap. I, pars. 98, 99, 100 e 101, pp. 34 e 35).
As representações de espaços ou o
espaço concebido, de modo abstrato e aparentemente vazio, caracteriza de modo
geral o espaço histórico e pode sair da prancheta de um arquiteto ou de um
urbanista ou de um programa de computador etc. O que não caracteriza uma
prática isenta (ingênua) ou imparcial mas, ao contrário, pode significar a
segregação das classes sociais. Verdadeira ideologia
concreta. Por exemplo, as políticas de reurbanização dos centros das
cidades ou projetos arquitetônicos do mesmo teor, que se viabilizam pela
execução de projetos, que saem da cabeça de um especialista, imerso num
contexto específico do qual nem mesmo ele tem consciência (ou tem), implicam em
remanejamentos habitacionais e despejos, às vezes, de comunidades inteiras.
Assim, o trator, a ordem judicial, o aparato policial, o sofrimento de famílias
jogadas ao relento, estão implícitos num inocente desenho arquitetônico de
beleza magnífica, etc.
As representações do espaço, ou seja, o espaço concebido, aquele dos
cientistas, dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas ‘retalhadores’
e ‘agenciadores’, de certos artistas próximos da cientificidade, identificando
o vivido e o percebido ao concebido (o que perpetua as sábias especulações
sobre os Números: o número de ouro, os módulos e ‘canons’). É o espaço
dominante numa sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço
tenderiam (com algumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um
sistema de signos verbais, portanto elaborados intelectualmente. (ibidem, cap.
1, par. 100, p. 34).
Aqui é necessário fazer uma
observação. Para Nietzsche, não existe verdade,
ou melhor, a verdade, isto é, o caos sem sentido e objetivo, o niilismo, é tão
insuportável que num dado momento o filósofo alemão acreditou que a arte – de
certa forma, o erro – poderia tornar
a vida mais tolerável e num outro momento defendeu um niilismo ativo, isto é, um dionisíaco dizer sim à vida (o niilismo
passivo diria não). E para
Lefebvre, o que é a verdade? Segundo nossa interpretação, a verdade é o obscuro, o corpo e suas
pulsões, que se opõem à transparência (erro). Ora, seguindo o método dialético,
de Hegel a Marx, do erro como um momento da verdade, e mesmo das concepções de
Nietzsche, sobre o erro como verdade, Lefebvre desenvolveu sua perspectiva
metodológica e dialética[28].
Neste sentido, quanto mais transparente um determinado fenômeno – a forma: o
mundo da mercadoria –, mais falso é, e, por outro lado, mais obscuro o mundo
por detrás. Todavia, essa falsidade é um momento da verdade. Diz respeito a um
conteúdo concreto. Momento necessário para se chegar a uma verdade mais
completa. Noutras palavras, a forma pura clama por um conteúdo; ela mesma uma
abstração do corpo. Deste modo, o conhecimento deve apreender o movimento que
vai do erro à verdade e vice-versa. Como vimos, através da prática a análise
destaca/separa da realidade uma forma, coerente: a identidade. A identidade é uma redução ao nada (A é A): o “ser” – “é” – termo genérico que diz respeito a
tudo e por isso é vazio de determinações. Este nada, enquanto forma, é o poder do negativo (análise), do abstrato: organiza, estrutura, isola.
Todavia, esse nada conhecido não informa mais do que nada, ou seja, exige um conteúdo (contradição) que a análise
inicialmente isolou. Este conteúdo concreto nega
a negação da identidade; ao retorna-se ao concreto. Ou seja, a identidade
implica a diferença por ela mesma gerada, indicada. Através da diferença, a
contradição é reabilitada no seio da própria lógica formal, todavia, já é
dialética, pois a diferença se descobre no conteúdo. A verdade é sempre
provisória e está sujeita ao devir.
Neste sentido, o conceito de
representação não é simplesmente negativo, diz sobre um conteúdo e uma prática
social, passível de serem descobertos e conhecidos através de e pelas
representações, a partir de um movimento dialético. Neste sentido, a
representação pode ser um referencial a ser superado pela praxis revolucionária e a razão dialética na produção de um novo
espaço.
É a partir da praxis revolucionária consciente que o pensamento e a ação
se articulam dialeticamente, e que o conhecimento “reflete” a praxis, isto é,
se constitui como reflexão sobre a praxis. Até essa data, o conhecimento tinha
por princípio não “refletir” o real, isto é, a práxis, porém transpô-lo,
mutilá-lo, misturá-lo às ilusões; tinha por princípio ser uma ideologia.
(LEFEBRE, 1968, pp. 62 e 63).
*****
Retomando o que foi dito até agora, o
fracasso de uma ciência da História, que criava um abismo entre a razão na
história e a praxis revolucionária,
sugere uma saída da história (o que não quer dizer que não haverá história,
devir, dialética) pela sociedade urbana. É possível, a partir daí, sondar novas
possibilidades categoriais. A coerência formal, por exemplo, de um projeto
urbanístico impecável, elaborado por uma equipe de especialistas, arquitetos,
urbanistas, geógrafos, engenheiros, advogados etc., implica numa ação efetiva
sobre um conteúdo social (por exemplo, a reurbanização do centro ou de algum
bairro de uma cidade). A coerência formal do projeto urbano, uma representação
de espaço, tenta plasmar uma homogeneidade do pensamento racional (formal) numa
realidade dada. Resulta que esta representação posta em prática arrasa as
diferenças reais, seus conteúdos. O espaço abstrato, elaborado, planejado, não
pode se implantar sem engendrar diferenças novas e resistências[29];
pois o espaço homogêneo visa refletir artificialmente (como num espelho) o
espaço diferencial, que, paradoxalmente, é ocultado, omitido e suprimido. Desde
Platão, a alienação do corpo dá lugar ao mundo das ideias. No capitalismo, o
espaço abstrato se realiza, de modo fetichista, como produção de coisas no espaço. Porém, na sociedade urbana, há uma
possibilidade da produção de um novo espaço, tendo por referencial os ritmos do
corpo e o tempo cíclico. Neste sentido, as representações ganham um novo
sentido; por exemplo, a poesia deixa de ser um ofício de alguns seletos
escritores e se generaliza na rua, através da criação pelo vivido, poièsis (nada a ver com o grafite, instituição da pichação; esta
sim, mais próxima da verdadeira arte). Portanto, a prática espacial torna-se
revolucionária quando: desloca a produção do espaço para seu ponto de partida: o corpo.
Assim, a produção do espaço como
saída da história, na sociedade urbana, envolve um projeto revolucionário
similar ao que nos séculos XIX e XX se concebia pelo termo socialismo. Tendo em vista sempre a produção num sentido amplo, e
todas as implicações que já foram mencionadas, como o fim do trabalho e das
alienações etc. O retorno ao corpo e a apropriação sintonizada aos ritmos da
natureza põem fim a representações surgidas de práticas limitadas à produção em
sentido restrito: a propriedade privada e o Estado. Na sociedade urbana ou no
“urbano”, já se encontram latentes todas estas virtualidades. Portanto, é no urbano e no cotidiano que foi lançado a
semente da transformação.
Fonte: Fragmento da tese
de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia,
FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de
Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar
bibliografia diretamente na tese.
A produção do espaço:de Henri Lefebvre à Geografia – parte 1; A produção do espaço: de Henri Lefebvre àGeografia – parte 3 (1/7/18); A produção do espaço: de Henri Lefebvre à Geografia –parte 4 (15/7/18); Henri Lefebre: arte e crítica da vida cotidiana; Fragmentos do "Fim da história"
A alienação do trabalho
A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)
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[1]
Ultrapassagem de todas as formas, jogo de aparências, confusão entre o ilusório
e o real, a alteridade de Dioniso depende também do fato, através da epifania,
todas as categorias ressaltadas, todas as oposições nítidas, que dão coerência
à nossa visão do mundo, em vez de permanecem distintas e exclusivas, se
chamarem, se fundirem, passarem umas às outras. (...) O longínquo e o próximo,
o além e o aqui: com sua presença Dioniso transfigura este mundo, em vez de
arrancar as pessoas dele. (...) Assim como o vinho, Dioniso é duplo: terrível
ao extremo, infinitamente doce. Sua presença, intrusão estupefaciente do Outro
no mundo humano, pode assumir duas formas, manifestar-se segundo duas vias: ou
a união bem-aventurada com ele, em plena natureza, em que todo constrangimento
foi ultrapassado, a evasão fora dos limites do cotidiano e de si próprio.
(VERNANT e VIDAL-NAQUET, 2008, pp. 349 e 350).
[2] O
conflito dos contrários vivifica a criação enquanto conflito vivido, não enquanto meramente pensado, de sorte que este conflito
criador difere das contradições dialéticas hegelianas. Embora se trate ainda e
sempre de contradições e de antagonismos (...), a essência e o sentido destas
contradições alterou-se radicalmente; são contradições que não se pensam, mas
se vivem; ocorrem entre “momentos” do “vivido”, e o pensado, ou antes, a representação, só depois sobrevém. Situa-se na
luta de dois mundos: o sonho e a embriaguez. Ao reino de Apolo compete a bela
aparência, surpreendente mas apaziguadora, do sonho em que os sofrimentos se
tornam jogos de sombras e de luzes. Ao reino de Dionísio cabe a embriaguez em
que o indivíduo perde os seus limites e que destrói o frágil principium individuationis, de modo que
a subjetividade se eclipsa na dança, na orgia, na crueldade e na volúpia. O
sonho e a embriaguez (Apolo e Dionísio) opõem-se como os sexos – conflito e
desejo. (LEFEBVRE, 1976).
[3]
(...) Nietzsche critica as dicotomias metafísicas como interior/exterior,
anterior/posterior, causa/efeito, mostrando que somente depois de se ter a
consciência de uma sensação é procurado
uma causa exterior responsável por tal sensação, o que equivale a dizer
que aquilo que concebemos como anterior é, na verdade, posterior na consciência.
Isso se deve ao fato de que a consciência é guiada por convenções lingüísticas,
que a conduzem a essa inversão de polaridades binárias. (ITAPARICA, 1998, p.
63).
[4]
Por isso, imediatamente em sua práxis, os sentidos
se tornaram teoréticos. (...) Vê-se
como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e
sofrimento perdem a sua oposição apenas quando no estado social e, por causa
disso, a sua existência enquanto tais oposições; vê-se como a própria resolução
das oposições teóricas só é possível
de um modo prático, só pela energia
prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma
tarefa do conhecimento, mas uma tarefa vital que a filosofia não pode resolver,
precisamente porque a tomou apenas
como tarefa teórica. (MARX, 2008, pp. 109-111).
[5]
Para Nietzsche, a simetria é dada
pelo ser humano, em sua faculdade de regular, legislar, regrar a natureza.
[6]
Somente Nietzsche manteve o primado do espaço e a problematização da
espacialidade: repetição, circularidade, simultaneidade do que aparece diverso
no tempo e nasce de tempos diversos. No devir, mas contra o fluxo do tempo,
toda forma definida luta para se estabelecer, para se manter, quer ela dependa
do físico, do mental, do social. (Ibidem, cap. I, par 49, p. 24).
[7] En
el libro tercero de las Enéadas, leemos
que la materia es irreal: es mera y hueca pasividad que recibe las formas
universales como recibiría un espejo; éstas la agitan y la pueblan sin
alterarla. Su plenitud es precisamente la de un espejo, que simula estar lleno
y está vacío; es un fantasma que ni siquera desaparece, porque no tiene ni la
capacidade de césar. Lo fundamental son las formas. (BORGES, 1969, p. 17).
[8]
Como é sabido, bem mais de vinte séculos antes do esplendor grego já floresciam
civilizações extremamente complexas na região da Ásia Menor, que possuíam
escrita, conhecimento matemático e cidades fantásticas que chegavam mesmo à
dimensão de metrópoles: “No centro do distrito de templos erguia-se o marco
característico de todas as grandes cidades da Mesopotâmia: a pirâmide escalonada
ou zikkurat. Das montanhas-templo da
Antiguidade, amontoadas artificialmente, desenvolveram-se aquelas possantes
construções de terraços, a mais íngreme e mais famosa se tornou a Torre de
Babel. A zikkurat era a única
construção que se projetava acima das muralhas da cidade. Visíveis a grande
distância, anunciava por toda a parte entre o Eufrates e o Tigre: Aqui seres
humanos superavam a natureza, aqui criam com seus tijolos e seu orgulho, algo
que nunca existiu antes: a cidade” (SCHNEIDER, p. 32).
[9] Cerca
do ano de 900 a.C. surge o estilo geométrico. A anatomia das formas torna-se
mais afilada e melhor definida; o delineamento das áreas decorativas revela-se
mais exato e o repertório original é revisto. Os semicírculos desaparecem; os
círculos passam a ser mais raros e o meandro, contínuo, traçado com finos e
paralelos (tipo que parece ter-se desenvolvido em Atenas). Este ideal, austero
e quase matemático, resistiu por todo o século IX. No século VIII os pintores
manifestam tendência para multiplicar os campos de ornamento até quase cobrirem
a maior parte do vaso, quebrando as cintas contínuas em estreitas barras e
enriquecendo os antigos ornamentos ou inventando novos, abstratos. A novidade
mais importante foi a introdução de figuras, convertidas em silhuetas meio
abstratas. (COOK, 1966, p. 46).
[10]
Aliás, os números (em grego, arithmós,
“número”) não têm nada de abstrato. O 1 representava o ponto, a menor
referência no espaço; o 2, a linha, isto é, a ligação mínima entre dois pontos;
o 3, o triângulo, ou a primeira figura geométrica fechada, a primeira área ou
superfície, que resulta da união de 2 + 1, isto é, de uma linha mais um ponto
fora dela; finalmente, o 4 é o sólido, reunião da figura de um triângulo com um
ponto repetido fora dele, uma pirâmide (ou, como dizemos hoje, um prisma). Do 1
ao 4 temos a constituição dos pontos, das superfícies, das áreas e dos sólidos,
todas as dimensões da nossa geometria. (WATANABE, 1995, p. 109).
[11]
Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa –, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o
mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto
sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o
mais alto sentimento, que obedeça. Mas
que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não
receie nenhum meio! Isso vale a eternidade! (Nietzsche, O eterno retorno, textos de 1881).
[12] A
reprodução das relações sociais se confunde, assim, brutalmente com a reprodução
biológica, ela mesma concebida de uma maneira tão simples quanto grosseira. Na
prática espacial, a reprodução das relações sociais predomina. A representação
do espaço, ligada ao saber como ao poder, reserva apenas um lugar mínimo aos
espaços de representação, reduzidos às obras, às imagens, às lembranças, onde o
conteúdo afastado (sensorial, sensual, sexual) aflora apenas o simbolismo.
(LEFEBVRE, Cap. 2, par. 127, p. 42).
[13]
Várias revistas, normalmente voltadas ao público feminino, inundam sem nenhuma
censura a questão da sexualidade. Por exemplo, só para ter uma ideia, apenas no
site do programa de televisão Fantástico
- “revista eletrônica da família brasileira”, como afirma seu slogan – exibido pela Rede Globo em horário nobre, aos
domingos – “http://fatastico.globo.com”
– pode-se constatar inúmeras reportagens sobre o tema que foram exibidas pela
TV, num período de seis anos (14/09/08 – 29/09/02), algo que seria impensável
há 50 anos atrás. Vejamos, a título de curiosidade, alguns temas dessas
reportagens: “Sexo ecologicamente responsável” (14/09/08); “Fidelidade pode ter
fundo genético” (07/09/08); “Jovens católicos e o sexo” (06/05/07); “Viagra
para mulheres” (15/10/06); “Sexo para depressão?” (13/08/06); “Sexo ainda um
tabu?” (21/03/04); “Teste da dependência de sexo” (16/11/03); “Sexo compulsivo”
(02/11/03); “Sexo X stress: quem ganha esta batalha?” (31/08/03); “Sexo padrão”
(04/05/03); “Supermercado do sexo” (29/09/02); “Quociente Sexual – versão
masculina e feminina – QS-M e QS-F” (07/11/08), etc.
[14]
Nosso projeto aqui não é o de organizar um diálogo ao sabor e ao modo dos
diálogos entre os filósofos e os não filósofos. Não se trata de dar razão ao
vulgo contra a filosofia. Trata-se de superar
essa contradição, mostrando que o que escapa ao filósofo e assume o aspecto do
homem ordinário, (cotidiano) não é por isso menos precioso. O resíduo irredutível a partir da atitude
filosofante (suspensão do cotidiano) merece que a meditação dele se ocupe.
(LEFEBVRE, 1967, p. 116).
[15]
Aqui a citação é de “A vida cotidiana no mundo moderno”, em português, edição
de 1991. Nas referências bibliográficas registrei a edição do espanhol, quando
li no mestrado. Corrigirei em breve.
[16]
Os cientistas e as ciências parcelares: “(...) desdenham os fatos cotidianos
como se não fossem dignos de conhecimento: os móveis, os objetos e o mundo dos
objetos, os empregos do tempo, as banalidades, os anúncios nos jornais.eles se
juntam aos filósofos, cheios de desprezo pela Alltäglichkeit” (LEFEBVRE, 1991, p. 33).
[17] A
ordem distante se institui neste nível “superior”, isto é, nesse nível dotado
de poderes. Ela se impõe. Abstrata, formal, supra-sensível e transcendente na
aparência, não é concebida fora das ideologias (religiosas, políticas).
Comporta princípios morais e jurídicos. Esta ordem distante se projeta na
realidade prático-sensível. Torna-se visível ao se inscrever nela. Na ordem
próxima, e através dessa ordem, ela persuade, o que completa seu poder coator.
Ela se torna evidente através e na imediatez. (LEFEBVRE, 2009, p. 52).
[18]
Nas sociedades antigas, comia-se, bebia-se, trabalhava-se; havia casas, ruas,
praças, móveis, objetos úteis, instrumentos e outras coisas. No entanto, não
havia cotidianidade. Na unidade da ética e da estética, da prática e do
conhecimento, num estilo, a
sobreposição atual do cotidiano e da “cultura” (alta, média, baixa) não tinha
nem razão nem sentido. Hoje, a importância da cotidianidade, a sua gestação e a
sua consolidação, a sua monotonia na satisfação, tudo isto significa que ela
escapa à história. A historicidade afasta-se. (...) Submetido, consolidado por
um materlamento incessante, nivelado, o cotidiano torna-se o solo que suporta o
edifício das instituições e a instituição suprema: o Estado. As instituições
ordenam o cotidiano e recontam-no: estruturam-no. Já nada há de comum entre
este edifício e as obras da história. (LEFEBVRE, Fim da história, 1971, p.
206).
[19]
As “culturas”, como se diz na sociologia e na etnografia contemporâneas
(aplicando a outras sociedades um termo que assumiu na modernidade sentido
preciso, o que não ocorre sem mal-entendidos e sem anacronismos), as “culturas”
transfiguram a vida; seus “sistemas” concretos estendiam-se até o cotidiano.
Mais exatamente, não eram sistemas, culturas no sentido atual (em que a
“cultura” se torna uma informação e, aliás, se dispersa ao disseminar-se).
Foram estilos de vida, de obras, de
civilizações. (LEFEBVRE, 1967, p. 170).
[20]
Tal concepção novamente é de lavra nietzschiana. “Nietzsche desconhece a
palavra ‘ideologia’ e não emprega o conceito. Quando escreve ‘cultura’ podemos
interpretar como ‘ideologia’. Distingue todavia a grande e verdadeira cultura
das dos filistinos. A grande cultura consiste num estilo” (LEFEBVRE, Fim da história, p. 95). Nas Intempestivas ou, como também é
traduzida, Considerações extemporâneas,
de Nietzsche, Lefebvre transcreve: “La primera Inactual (Esp.) da una
definición de la cultura: ‘Es ante todo la unidad de estilo artístico en todas
las manifestaciones vitales de un pueblo’. La cultura no es, pues, uma
colección de ideas abstractas, de suma de conocimientos, sino una manera de
vivir: un sentimiento y un estilo de vida” (LEFEBVRE, 1993, p. 82).
[21]
Ele passa da embriaguez como a tonalidade afetiva estética fundamental para a
beleza como o elemento determinante; a partir da beleza como o elemento
normativo, ele retorna para o que retira dela a medida, para a criação e
recepção da obra; a partir desse ponto, ele avança uma vez mais até o ponto no
qual e com o qual o que é determinante se apresenta, até a forma. Por fim,
tentamos conceber a unidade da relação recíproca entre embriaguez, entre
criação, recepção e forma como sendo o grande estilo. Nele, a essência da arte
torna-se real. (HAIDEGGER, 2007, p. 126).
[22]
“Ora, ao compor a República, Platão
produz uma obra que, ao contrário, pretende convidar-nos a inventar, a criar
uma cidade-estado inteira, como diríamos hoje, a partir do nada. Sócrates diz,
no próprio diálogo, que ela será inventada em palavras, a partir do discurso, én lógois” (WATANABE, 1996, p. 34).
Nesta República, Sócrates vai propor
a expulsão dos poetas da cidade.
[23]
Pensamos que num futuro não muito distante poderão ser sintetizados em
laboratórios todos os tipos de nutrientes encontrados nos alimentos ou ainda
com emprego da tecnologia associada a células-troncos poderão ser gerados,
também em laboratório, provisões de proteína semelhante à carne, com o mesmo
sabor ou até melhor. Neste resgate da Idade de Ouro, as fazendas de gado e os
frigoríficos seriam abolidos da face da Terra para sempre.
[24]
Essa crítica é feita a pelo menos 30 anos antes de Kurz, como se lê na citação
que se seguirá.
[25]
a) Período agrário: vitalidade densa,
dura e espontânea; o desejo, mal definido e não diferenciado, mas forte; b) Período industrial: mutação do desejo em
necessidades classificadas e catalogadas, manipuladas, submetidas a uma prática
homogeneizada em contradição a diversidade, donde um profundo mal-estar; c) Período urbano: restituição do desejo,
reposição da realidade e da separação das necessidades (esquema naturalista),
não aquém do individualismo (esquema naturalista), mas para além, ou seja,
reconhecimento da diversidade (da diferença) dos desejos na unidade do desejo.
A “corporeidadede” suplanta simultaneamente a ontologia e a história!
(LEFEBVRE, Fim da história, 1971, pp.
286 e 287).
[26]
As sociedades ante-históricas (o que
não coincide nem com as sociedades ditas arcaicas, ou pré-históricas, ou sem
escrita). Nestas sociedades, um conjunto de símbolos traduzem particularidades
originais e designações, que os distinguem. Assim, o sol, a fonte, o poço, a
noite, a flor, o caminho, etc. Estes símbolos não formam um sistema, ou seja um
grupo ou conjunto coerente de termos estritamente dependentes uns dos outros.
Contudo não estão isolados. Compõem uma espécie de grelha inicial, de topologia
fundamental, ligada ao período agrário, à vida camponesa, aos ciclos da
natureza. Esta grelha exprime simultaneamente a “natureza” e a vida humana, a
ordem cósmica e a ordem social, as paixões e ações, os sentimentos e os
pensamentos. A este título, ela fornece uma primeira decifração do “ser”
(natural, originário e original); alguns falariam até dum “código do ser” (e
duma descodificação). A esteúltimo, portanto, os símbolos têm uma longa
duração, e não perderam o seu sentido no decurso do período histórico. Ao lado
do conjunto simbólico inicial existem subcódigos, o da magia e o da religião,
da família, da honra, etc. A continuidade domina e o tempo cai fora da
consciência, fora do pensamento nascente. (Ibidem, pp. 268 e 269).
[27]
As sociedades históricas
desembaraçam-se dos símbolos e rupturas. Por meio, portanto, da
descontinuidade. A filosofia e a sua associada, a história, atribuem a si
próprias um papel considerável, que rivaliza com as grandes ações guerreiras e
as lutas revolucionárias. O tempo vem ao centro da consciência, torna-se referencial
a todos os níveis (econômico, estético, moral, etc.). É um tempo homogêneo. Há
tendência para a constituição dum código geral (o da troca contratual: de bens,
de mercadorias, de pessoas). Tendência portanto para a identificação. Todavia
constituem-se e instituem-se (contribuem para modelar e consolidar
instituições) subsistemas de decisões, de condutas, de “valores”. Este período
e a prática correspondente (industrial) devastam a natureza e as
particularidades naturais, e isto do mesmo em toda a parte, tendendo assim para
a homogeneidade, resultado duma história unitária. A natureza, destruída,
desaparece até exigir ser re-produzida (incluindo o ar, a água, a luz). Esta
destruição da natureza, assim como a contradição entre a homogeneização e as diversidades,
atinge o seu paroxismo aquando da saída da história, período de transição.
(Ibidem, p. 269).
[28] À
oposição formal e estéril de verdadeiro e falso, convém substituir uma
concepção mais flexível. Verdade e erro estão em interação dialética. Convertem-se um no outro. Transformam-se. É por isso que
podemos conquistar novas verdades e tender para a verdade objetiva, através de
verdades parciais e aproximativas, através dos erros momentâneos. (LEVEBVRE,
1995, p. 97).
[29]
Na nossa dissertação de mestrado Ocupar e
resistir: problemas da habitação no centro pós-moderno (SP) (2006),
cogitamos a hipótese do m2 (espaço concebido), como a medida mínima espacial
correspondendo a um valor em relação à paisagem (espaço percebido), enquanto
mercadoria – valor de uso e valor de troca. Faltava um terceiro termo, que pudemos identificar pelo lugar: o habitar, os espaços de representação (o
espaço vivido): resistência!
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