segunda-feira, 15 de novembro de 2021

A revolta dos marinheiros de Kronstadt, por Maurício Tragtenberg

 A revolta dos marinheiros de Kronstadt

Uma situação semelhante à makhnovitchina é percebida na revolta de Kronstadt. O local era uma fortaleza naval da ilha de Kotlin, no Golfo da Finlândia, cerca de 35 milhas de São Petersburgo. Ainda em 1921, no mês de março, defendendo os soviets livres, Kronstadt explode a última grande revolta revolucionária e contra a ditadura do partido bolchevique, durando16 dias e sendo esmagada pelo Exército Vermelho. O mesmo Exército liderado por Trotsky, que em 1917 afirmaram que os marinheiros da fortaleza naval eram “o orgulho e a glória” da Revolução Russa.

A revolta de Kronstadt está inserida em um contexto mais profundo: a crise do chamado “comunismo de guerra”. Esse modelo de gestão do Estado revolucionário soviético, adotado ao longo da Guerra Civil, foi uma brutal centralização política bolchevique, confiscos e expropriações do Estado sobre os camponeses e operários, sempre priorizando o abastecimento do Exército Vermelho (em nome da Revolução). Porém, uma grave crise se abateu sobre a Rússia e o Comunismo de Guerra parecia não ter mais fim.

No mês de março de 1920, representando o reforço da ditadura leninista, ao longo do IX Congresso do Partido Comunista, na discussão sobre o papel dos sindicatos no comunismo, é deliberado que “os sindicatos devem executar essas tarefas [econômicas e educativas] não mais como força independente organizada à parte, mas no que respeita à máquina principal do mecanismo governamental, guiado pelo Partido Comunista”. Trotsky justifica o fim do sindicalismo não-bolchevique afirmando que “os sindicatos pretendem defender os interesses da classe operária contra o Estado, mas, uma vez que o Estado é ele próprio operário, essa defesa não tem qualquer sentido (1). Tal fala não significa apenas que Trotsky defende abertamente que os trabalhadores não devem possuir mecanismos de defesa na luta de classe. Representa também que os trabalhadores deveriam continuar assistindo ao Estado falir junto com a revolução e o fim da possibilidade de melhorias sobre um novo regime político-econômico que resolveria a crise pela qual passava a Rússia.

Em 1921, a extração mineradora e a produção fabril despencaram para 20% dos níveis de pré-guerra, com muitos itens essenciais tendo um declínio ainda mais drástico, e, no mesmo ano, a extensão das terras cultivadas encolheu para 62% da área anterior à Primeira Guerra Mundial, e a colheita era apenas 37% do normal. Dessa forma, os bolcheviques perdiam o apoio da população, que se tornava mais enfática na demonstração de seu descontentamento com uma ditadura que em nada melhorava a situação do país. O próprio Lenin admitia que “a essência do ‘comunismo de guerra’ consistiu, na realidade, no confisco sobre os camponeses de todos os seus excedentes e às vezes não apenas isso, mas também parte do cereal que este necessitava para sua própria alimentação”. Ele afirma ainda que isso ocorreu para “satisfazer os requerimentos do exército e sustentar os operários” (2). Não sem razão, considerando somente o mês de fevereiro de 1921, pouco antes da sedição de Kronstadt, explodiram 180 revoltas camponesas na Rússia (3).

Dessa forma, inserida nas revoltas de esquerda para acabar com a ditadura bolchevique que estava minando a revolução e (ainda mais sobre a pressão dos exércitos internacionais) a própria Rússia, explode nos navios de guerra Petropavlosk e Sebastopol, em março de 1921, a revolta de Kronstadt, combatendo por soviets livres, nova Assembleia Constituinte, liberdade de expressão para organizações políticas de esquerda e a libertação de seus presos políticos, etc. Basicamente, exigiam mais revolução e menos ditadura.

A resposta dos bolcheviques veio rápida: repressão brutal! Além de temer perder a hegemonia sobre os rumos da revolução, o Partido Comunista visava impedir que Kronstadt servisse de “plataforma” para mais uma ação do Exército Branco. De fato, muitos dos emigrados russos, que articularam a contrarrevolução de outros países, tentavam encontrar na revolta de Kronstadt uma forma de acabar totalmente com o poder bolchevique e, obviamente, de restaurar o poder nas mãos dos capitalistas. E foi esse o argumento leninista contra a revolta na base naval. Atualmente está fartamente documentado e comprovado que tal ideia era falsa e que, enquanto durou a revolta, não houve qualquer tipo de associação entre os marinheiros de Kronstadt, ou seus líderes, e as forças da contrarrevolução. Fora isso, basta ler as exigências dos marinheiros para constatar que se tratava, sim, de uma enorme mobilização de esquerda.

Sabendo do perigo que poderia representar a vitória da sedição, o Exército Vermelho mobilizou mais de 50 mil soldados. Em 17 de março, Kronstadt rendia-se contabilizando milhares de mortos. No dia seguinte, a imprensa bolchevique comemorava o aniversário de 50 anos da Comuna de Paris, 1871, enaltecendo os rebeldes da capital francesa. Ironias à parte, o fato é que o levante dos marinheiros acabou constituindo-se como a última mobilização antiditatorial na Rússia por algumas décadas. Era o fim do processo revolucionário que se iniciara em 1917.

Posteriormente, Lenin substituiria o Comunismo de Guerra pela Nova Política Econômica (NEP), restituindo a iniciativa privada nos setores agrícolas, industrial e comercial para tentar retirar a Rússia da crise na qual se afogava.

Como slogan, a NEP afirmava dar “um passo atrás para dar dois à frente”... E dessa forma, mas à frente, Stalin se consolidaria no poder, sustentando a situação de que a revolução social na Rússia estava restrita aos desejos clandestinos, aos exilados e fugitivos políticos de esquerda e aos campos de concentração da Sibéria. Demonstrando que se o resultado da revolução de 1917 foi que as aldeias revolucionárias teriam de trilhar novamente o caminho do medo e da clandestinidade, era necessário, então, que se repensassem as formas de luta em combate ao capitalismo (pp. 26-29).

(...)

Enquanto essas discussões se davam no interior do partido, os marinheiros da base naval de Kronstadt, inclusive os que prestavam serviço no encouraçado Potemkin – chamados em 1917, por Trotski, de “a glória da revolução” –, revoltam-se contra o governocentral de Moscou.

A insurreição de Kronstadt iniciou-se a 3 de março de 1921 e terminou a 16 de março do mesmo ano.

A irrupção da revolta de Kronstadt está vinculada à situação do proletariado de Petrogrado. O inverno em Petrogrado nos anos 1920-21 foi particularmente severo, embora sua população tenha diminuído em dois terços. O abastecimento apresenta altos níveis de deficiência, devido ao estado catastrófico dos meios de transporte.

A crise de abastecimento, especialmente em víveres, está ligada também à degenerescência burocrática e à corrupção dos órgãos estatais da área.

A Rússia na época pratica a troca dos produtos industriais, produzidos nas cidades, pelos produtos agrícolas. O sal e o petróleo urbanos eram trocados por alguns quilos de  batatas e um pouco de farinha.

Oficialmente os mercados não existiam, mas na prática eram tolerados. Contudo, por ordem de Zinoviev, no verão de 1920, qualquer traço de comércio teria de desaparecer.

Pequenos armazéns e lojas foram lacrados pelo governo, porém o Estado não tinha possibilidade de abastecer a cidade. Em janeiro de 1921 a Petrokommouna (órgão estatal encarregado do abastecimento da cidade) informava que os trabalhadores da indústria pesada tinham direito a 800 gramas de pão preto e os carteiros entre 400 a 200 gramas. O pão preto era nessa época o alimento essencial do trabalhador russo, mas essas rações oficiais eram irregularmente distribuídas e em quantidades menores que as estipuladas nos papéis.

Parte da população que possuía família em zona rural fugia da cidade. Esse dado importante desmente a versão oficial das greves operárias em Petrogrado como consequência da presença de camponeses não temperados pela ideologia proletária!

Os trabalhadores da usina de Troubotchni realizam a primeira greve a 24 de fevereiro de 1921. O governo bolchevique envia contra eles destacamentos de cadetes.

Isso não impede que a greve se estenda à usina Baltiski, à usina Laferme, à fábrica de sapatos Skorokhod, às usinas Ademiralteiski, Bormann e Metalicheski, atingindo no dia 28 a usina Putilov, a maior do país.

Enquanto algumas usinas levantam reivindicações econômicas – como normalização do abastecimento à cidade dos produtos das zonas rurais, restabelecimento do mercado, supressão da fiscalização das milícias que se apropriam de alguns quilos de batatas que os trabalhadores conseguiram em troca de produtos manufaturados –, outras formulam reivindicações políticas, como liberdade de imprensa e liberdade dos prisioneiros políticos. Em certas usinas os grevistas cassam a palavra dos bolcheviques.

Resposta do governo: medidas militares para enfrentar essas reivindicações através da constituição de um Comitê de Defesa, que proclama estado de sítio na cidade de Petrogrado. A circulação de pessoas fica proibida após as 23 horas, assim como reuniões, comícios e agrupamentos, em locais abertos ou fechados, sem autorização do comitê.

Infração a essas ordens implica julgamento, com aplicação de leis previstas em tempo de guerra. São mobilizados os membros do partido e os grevistas mais ativos são encarcerados. Os marinheiros de Kronstadt enviam a 26 de fevereiro seus delegados a Petrogrado, para informar-se a respeito das greves. Visitam inúmeras usinas, voltando a Kronstadt no dia 28 do mesmo mês.

Quais foram as reivindicações dos marinheiros de Kronstadt que levaram a base naval a levantar-se contra os bolcheviques?

KRONSTADT: A REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO

Kronstadt, considerando que os sovietes atuais não exprimiam mais a vontade dos operários e camponeses, reivindicava: imediata eleição com voto secreto, com liberdade de desenvolver campanha eleitoral; liberdade de imprensa e palavra para operários e camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda; liberdade de reunião para todos os sindicatos operários e organizações camponesas; liberdade para todos os socialistas prisioneiros políticos, assim como marinheiros e soldados do Exército Vermelho presos durante os movimentos populares; eleição de uma comissão encarregada de examinar os casos dos prisioneiros e dos internados em campos de concentração; supressão de todos os departamentos políticos (em cada unidade fabril, militar e de bairro, o partido possuía um departamento político); nenhum partido deve ter o privilégio da propaganda política e ideológica nem receber nenhuma subvenção governamental; no lugar dos departamentos políticos, formar Comissões de Educação e Cultura financiadas pelo Estado; supressão imediata de todas as barreiras militares; supressão dos destacamentos comunistas de choque em todas as seções militares e da Guarda Comunista nas minas e usinas; se houver necessidade de destacamentos, que sejam nomeados pelos soldados das seções militares; se houver necessidade de guardas, que sejam escolhidos pelos próprios trabalhadores; o camponês deve usufruir sua terra, sem empregar trabalho assalariado.

Os marinheiros de Kronstadt criticavam a formação de uma nova burocracia, a quem chamavam de comissiocracia, e também a estatização dos sindicatos. Inúmeros membros do Partido Bolchevique que residiam em Kronstadt pedem publicamente demissão do partido, aceitando a crítica dos marinheiros ao governo soviético.

Kronstadt mesmo se autodenomina a “Terceira Revolução Russa”. Qual a posição das várias facções políticas russas da época a respeito da rebelião?

Anarquistas – Embora houvesse entre os membros do Comitê Revolucionário marinheiros que se definiam como anarquistas, não se verificou intervenção direta dos anarquistas enquanto grupo ou corrente organizada. A imprensa anarquista não se manifesta a respeito da insurreição e Iarchouk, antigo anarcossindicalista, nada diz a respeito no seu livro sobre a insurreição de 1921.

Em caráter pessoal, anarquistas como Emma Goldman e Ale-xandre Berkman se propuseram a ser os mediadores entre os marinheiros e os bolcheviques; só a proposta de mediação já mostra a escassa participação anarquista na rebelião.

Quanto aos sovietes, na revolução ucraniana Makhno já lutava por sovietes livres.

A posição de Kronstadt de confiar aos sindicatos tarefas importantes não é idéia exclusivamente anarquista, pois os socialistas revolucionários de esquerda e os membros da Oposição Operária também a defendiam. Ela traduzia o consenso daqueles que pretendiam salvar a Revolução pela democracia operária, opondo-se à ditadura do partido único.

Mencheviques – Sempre tiveram escassa influência sobre os marinheiros. Embora tivessem número razoável de deputados no soviete de Kronstadt, seu nível de popularidade era baixo, enquanto os anarquistas, com três deputados somente, gozavam de muito maior aceitação entre os marinheiros (em 1917, numerosos anarquistas não distinguiam claramente suas diferenças com o bolchevismo, vendo em Lenin um marxista-bakuninista).

Embora hostis aos bolcheviques, os mencheviques nunca pregaram a revolução violenta contra o governo. Tentam agir como oposição legal nos sovietes e no movimento sindical. Esperavam eles que o término da guerra civil levasse o regime soviético a rumos democráticos.

Socialistas revolucionários de direita – Através de seu líder Viktor Tchernov, apoiava Kronstadt e fazia crítica à ditadura bolchevique, receitando como remédio aos males dos trabalhadores a convocação de uma Assembleia Constituinte. Criticavam acremente os bolcheviques de sobreporem os sovietes à Constituinte e até mesmo de fechá-la.

Socialistas revolucionários de esquerda – Apoiavam inteiramente as reivindicações de Kronstadt, enunciadas anteriormente. No seu jornal oficial, negavam terminantemente qualquer participação na insurreição.

Lenin – Liga a insurreição de Kronstadt ao elemento camponês, pressionando o governo soviético. Denuncia a presença em Kronstadt de mencheviques, socialistas revolucionários e outros antibolcheviques. Atribui a direção da rebelião a um general czarista, Koslovski. Acusa Kronstadt de receber recursos do capital financeiro internacional, como tentativa de deslocamento do poder em proveito dos empresários urbanos e agrários. A argumentação de Trotski caminha no mesmo sentido que a de Lenin.

Porém, após Trotski ter sido exilado por Stalin, no México escreve seu último livro – foi assassinado no meio de sua redação por um agente da polícia secreta de Stalin –, intitulado Stalin, onde confessa que a repressão bolchevique a Kronstadt fora uma necessidade trágica; o mesmo vale para Makhno e outros revolucionários, que, segundo ele, tinham boas intenções mas agiram erradamente.

No real, o proletariado russo perdera o controle das fábricas, dirigidas por delegados do Estado, a insurreição camponesa autogestionária da Ucrânia, que derrotara os generais Denikin e Wrangel, foi contida pelo Exército Vermelho, e a insurreição de Kronstadt, que definia um programa de objetivos socialistas e libertários, foi selvagemente reprimida pelo bolchevismo. A repressão fora dirigida pelo general Tukatchevski, posteriormente fuzilado como “traidor” da Revolução por Stalin, nos célebres processos de Moscou (1936-38). Diga-se de passagem, nesses processos Stalin fuzilara todo o Comitê Central de Lenin (pp. 122-127).

(1) AVRON, Henry. A Revolta de Kronstadt. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 4.

(2) AVRICH, Paul. Kronstadt, 1921. Buenos Aires: Utopia Libertaria, 2006, 15.

(3) Ibidem, p. 19.

TRAGTENBERG, Maurício. A revolução Russa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2007.

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