Tradução: Jean Fecaloma
Introdução
“Um efêmero e ofuscante
clarão de relâmpago - disse Lênin sobre a rebelião - assim foi Kronstadt,
revelando toda a real situação na Rússia Soviética” (1). Em março de 1921, os marinheiros
da fortaleza naval do Golfo da Finlândia, o “orgulho e glória” da Revolução
Russa, levantaram-se em uma revolta contra o governo bolchevique, que eles
próprios ajudaram a conquistar o poder. Entoando o lema “sovietes livres”,
fundaram uma comuna revolucionária, que perdurou por 16 dias, até que um exército,
enviado pelo governo, atravessou a superfície de água congelada do golfo com a
missão de debelar a rebelião. Depois de uma longa e encarniçada batalha, com perdas
para ambos os lados, os rebeldes foram, enfim, subjugados.
O levante provocou de
imediato uma apaixonada controvérsia que nunca se apaziguou de todo. Por que os
marinheiros se sublevaram? Segundo os bolcheviques, eram agentes de uma
conspiração tramada no oeste da Europa, pela guarda branca, por emigrados
russos e potências aliadas. Já para os entusiastas de Kronstadt, estes
marinheiros foram na verdade mártires revolucionários, que lutavam para
restaurar a autonomia dos sovietes contra a ditadura que se afigurava. Segundo
esta perspectiva, a repressão não foi apenas um ato de extrema brutalidade,
significou também a dessacralização do mito da Rússia Soviética enquanto um “Estado
de trabalhadores e camponeses”. Assim, o governo bolchevique, capaz de reprimir
tão impiedosamente um protesto oriundo das massas populares, abalou a fé de
muitos comunistas estrangeiros, transformando Kronstadt no precursor de muitos
outros eventos que levariam radicais desiludidos a romper com o bolchevismo e reclamar
a pureza original dos ideais aparentemente abandonados. O massacre dos kulaks,
o grande expurgo, o pacto nazi-soviético, a denúncia de Kruschev à era stalinista,
enfim, tudo isso resultou num grande êxodo do partido, no qual simpatizantes e
militantes saíram convencidos de que a revolução fora de fato traída. “O que
conta de forma decisiva - escreveu Louis Fischer, em 1949 - é ‘Kronstadt’.
Antes de ‘Kronstadt’, um ou outro podia vacilar no plano emocional, titubear
intelectualmente ou mesmo contemporizar os fatos para si mesmo e, assim,
recusar-se a enxergar o que estava realmente acontecendo. Eu não tive nada como
‘Kronstadt’ durante muitos anos” (2).
Outros encontraram seu “Kronstadt”,
ainda mais tarde, na rebelião húngara de 1956. Em Budapeste, assim como em Kronstadt,
os rebeldes lutaram para transformar o regime autoritário e burocrático do
Partido Comunista em uma autêntica democracia socialista. Todavia, para os
bolcheviques, a heresia dos revoltosos constituía, eventualmente, uma ameaça
ainda maior que a própria oposição contrária aos princípios socialistas. À
semelhança dos marinheiros da cidade-fortaleza de Kronstadt, a Hungria – e,
depois, a Tchecoslováquia, em 1968 - representou perigo não porque era
contrarrevolucionária, mas por causa de uma concepção de revolução e socialismo
que divergia drasticamente daquela dos líderes soviéticos. Moscou, então,
repetindo 1921, denunciou o levante húngaro como um complô contrarrevolucionário.
A repressão de Budapeste - observou um crítico da política soviética - demonstrou
mais uma vez que os comunistas não se detinham diante de nada para calar a quem
quer que desafiasse a sua autoridade (3).
Mas não deveríamos levar
tão longe tais comparações. Kronstadt e Hungria, separados por um lapso
temporal de 35 anos, ocorridos em diferentes países, envolvendo uma composição
social distinta, não podem nos oferecer senão uma pálida semelhança da
realidade. A Rússia Soviética não era, em 1921, o Leviatã das décadas recentes.
O Estado bolchevique ainda era jovem e periclitante, em meio a rebeliões
domésticas e ameaças de implacáveis inimigos estrangeiros que a todo custo
visavam destituir o governo revolucionário do poder. Ainda mais relevante era o
fato de que, em Kronstadt, os bolcheviques enfrentavam um motim de sua própria
armada, situada em um ponto especialmente estratégico de seu território: o
acesso pelo exterior a Petrogrado. Além disso, temiam que a rebelião de Kronstadt
pudesse acender o pavio de pólvora da insurreição, incendiando as massas
populares e alastrando a chama da insubordinação pelo interior do extenso
território continental da Rússia. Temiam, na pior das hipóteses, que o levante
servisse de trampolim para uma provável invasão internacional antissoviética.
Havia evidências consistentes de que emigrados russos tramavam em benefício
próprio um amotinamento de grupos descontentes. Isso não que dizer, porém, que
uma conspiração branca pudesse desculpar as atrocidades que viriam a ser
cometidas contra os marinheiros. Mas a situação de extrema urgência da ocasião
constituía-se em uma justificativa bastante razoável para os bolcheviques
sufocar a rebelião o quanto antes. Somava-se a tudo isso ainda mais um
agravante: a superfície congelada do Golfo da Finlândia em breve derreteria,
possibilitando aos emigrados a oportunidade para abastecer os rebeldes e enviar
reforços em seu auxílio. Neste caso, a fortaleza ficaria convertida em uma base
inimiga, servindo de entreposto a uma futura intervenção militar. Desconsiderando-se
os motivos óbvios e inerentes a qualquer propaganda de guerra, Lênin e Trotsky
realmente pareciam ter motivos bem fundamentados para intervir numa situação
bastante delicada.
Lamentavelmente, poucos
historiadores ocidentais têm levado em conta a preocupação legítima dos líderes
soviéticos. Já os autores soviéticos, por sua parte, falseiam consideravelmente
os fatos ao tratar os rebeldes como, na melhor das hipóteses, simples incautos
ou, na pior, agentes de uma conspiração branca. O presente estudo, ao
contrário, busca examinar a rebelião através de um panorama objetivo e
imparcial. Para realizá-lo, foi necessário situar Kronstadt num contexto mais
amplo, tanto em seus aspectos políticos como sociais, pois a revolta emerge
como a ponta de um iceberg de uma crise maior, que marcou a transição do
comunismo de guerra à Nova Política Econômica (NEP). Neste sentido, tal
conjuntura foi considerada por Lênin como a mais grave desde a chegada dos
bolcheviques ao poder. É necessário, ademais, identificar os vínculos do levante
de 1921 a larga tradição de rebeliões espontâneas recorrentes em Kronstadt e em
toda a Rússia. Esperamos que, sob este enfoque, lancemos alguma luz sobre as
ações e condutas dos insurgentes.
À parte isso, há um
acúmulo de problemas específicos que requerem cuidadosa análise. Entre os mais
importantes, a composição social da frota, o papel desempenhado pelo
descontentamento nacional, a questão da participação branca na revolta e a
natureza ideológica dos rebeldes. Por suposto, algumas questões ficarão em
aberto, notadamente, as que não podem ser respondidas em definitivo, até que sejam
abertos para exame os arquivos soviéticos pertinentes, fato que provavelmente
não ocorrerá por algum tempo. Entretanto, neste livro, trataremos de oferecer
uma exposição completa da rebelião, à medida que nos permitirem as fontes
disponíveis. Para tanto, utilizamo-nos de um acervo documental procedente de
arquivos no Ocidente e também de publicações soviéticas, frequentemente
descartadas como mera propaganda, mas que, se analisadas com o devido cuidado,
detêm de um inestimável valor ao esclarecerem alguns dos problemas mais
significativos da rebelião.
É importante, sobretudo,
examinar as contradições envolvendo os insurgentes e seus adversários
bolcheviques. Os marinheiros, por um lado, eram revolucionários fanáticos, e,
como revelam episódios de fanatismo ao longo história, desejavam restaurar uma
remota idade de ouro, na qual a pureza de seus ideais não havia sido maculada
pelas exigências do poder. Os bolcheviques, inversamente, vitoriosos em uma
sangrenta guerra civil, não estavam dispostos a tolerar mais nenhum ato de
insubordinação à sua autoridade. Durante o conflito, cada lado reagiu de acordo
com seus próprios interesses e aspirações particulares. Afirmar isto não
significa negar a necessidade de um juízo moral sobre ambos oponentes. Todavia,
Kronstadt apresenta uma situação peculiar, pela qual o historiador pode tanto
simpatizar com os rebeldes, como justificar a ações dos bolcheviques no seu afã
desesperado de submeter a rebelião ao seu controle. Na verdade, ao se reconhecer
a natureza do conflito, compreende-se toda a tragédia que foi Kronstadt.
1. A crise
do comunismo de guerra
No outono de 1920, a
Rússia Soviética passava por um período inquietante de transição entre a guerra
e a paz. Durante mais de seis anos, o país vivenciou uma contínua agitação, mas,
neste ano, depois de findada a guerra mundial, a fumaça da revolução e da
guerra civil começava lentamente a se dissipar. A 12 de outubro, o governo
soviético firmou um armistício com a Polônia, e, três semanas depois, o último
dos generais brancos, o barão Peter Wrangel, fugiu a bordo de um navio
entregando a vitória aos bolcheviques, em meio a um país destroçado e banhado
de sangue. No sul, Nestor Makhno, o guerrilheiro anarquista, seguia em
liberdade, mas em novembro de 1920, seu exército, outrora temível, dispersou-se
e não representou mais ameaça significativa para o governo de Moscou. Nesse ínterim,
as regiões da Sibéria, da Ucrânia e do Turquestão, além das minas carboníferas
do Donetz e dos campos petrolíferos de Baku, foram recuperados pelos
bolcheviques. Em fevereiro de 1921, um exército bolchevique completou a
conquista do Cáucaso ao capturar a província de Tiflis, ante a capitulação do
governo menchevique na Geórgia. Assim, após três anos de existência precária,
em que o destino da revolução esteve diariamente por um fio, o regime soviético
pôde finalmente jactar-se de exercer um controle absoluto sobre a maior parte
do vasto território russo.
O fim da guerra civil
assinalou uma nova era nas relações internacionais do regime soviético. Os
bolcheviques, abrindo mão do projeto de uma imediata revolução mundial, conseguiram,
enfim, um “momento de respiro”, uma trégua, algo impossível, desde pelo menos
os anos de 1918, quando irrompeu a guerra civil. As potências ocidentais, pela
mesma razão, perderam as esperanças de um colapso do governo de Lênin. No
fundo, tanto um como outro aspiravam ao retorno da normalidade e, a partir daí,
restabelecer as relações já bastante deterioradas pelas hostilidades. De fato,
ao final do ano de 1920, não havia mais razões para que se perpetuassem as
agressões. Levantados os embargos à Rússia e abandonada a campanha de intervenção
armada contra o governo soviético, automaticamente, foram eliminados os
obstáculos mais sérios que opunham o restabelecimento diplomático e a
reabertura do comércio entre os países contendores. Ademais, durante o transcorrer
de um ano, foram consagrados tratados com os vizinhos da Rússia no Báltico – Finlândia,
Estônia, Letônia e Lituânia. Em fevereiro de 1921, pactos de paz e amizade
foram assinados com a Pérsia e o Afeganistão, e um acordo similar com os turcos
estava na ordem do dia para ser concluído. Nesse meio-tempo, emissários
soviéticos, sobretudo, Krasin, em Londres, e Vorovsky, em Roma, negociavam
acordos comerciais com numerosas nações europeias, sob um panorama promissor de
conciliação.
Todavia, em que pesem
todas as condições favoráveis, o inverno de 1920-1921 foi um período
extremamente crítico para a história soviética. Lênin tinha consciência dos
percalços envolvendo uma transição por via pacífica quando, no VIII Congresso
dos Sovietes, em dezembro de 1920, afirmou que uma reconstrução econômica e social
não seria tarefa fácil (1). A despeito do triunfo no campo militar e da
célere estabilização da política externa, os bolcheviques enfrentavam graves
dificuldades internas. A Rússia estava esgotada e arruinada. A guerra civil deixara
cicatrizes abertas em todos os rincões do país. Durante os últimos dois anos, a
taxa de mortalidade havia subido bruscamente. A fome e epidemias faziam milhões
de vítimas, somando-se àqueles que tombaram em combate. Desde o Tempo das
Perturbações, no século XVII, o país não testemunhava tantos sofrimentos e
devastação. A produção agrícola diminuía drasticamente e a indústria e o
transporte entravam em estado de calamidade. A Rússia, segundo palavras de um
contemporâneo, emergiu da guerra civil em uma circunstância de colapso
econômico “sem paralelo na história da humanidade” (2).
Era chegado o momento de
curar as feridas da nação. Para isso, seria necessário uma mudança radical na
orientação da política interna, concomitante aos bem-sucedidos acordos no plano
externo. Sobretudo, isto significava o abandono do “comunismo de guerra”: programa
político feito de improviso visando dar conta dos problemas emergenciais
surgidos durante a guerra civil. Como o próprio nome sugeria, o comunismo de
guerra carregava o duro estigma do recrutamento involuntário e da compulsoriedade.
Ditado pela escassez econômica e necessidade militar, caracterizava-se por uma
centralização extrema dos controles governamentais em todos os setores da vida
social. A pedra angular dessa política residia no confisco de cereais
produzidos pelos camponeses. Com o fim de abastecer as cidades e prover o
Exército Vermelho - que naquela altura contava com uns cinco milhões de homens
-, destacamentos armados enviados ao campo confiscavam o excedente da produção
agrícola. Ainda que houvesse a recomendação expressa para resguardar ao
camponês o suficiente para que este suprisse suas necessidades, frequentemente,
pelotões de requisição apreendiam, à mira de pistola, as sementes destinadas ao
consumo pessoal ou separadas para a semeadura. “A essência do ‘comunismo de guerra’
- admitia Lênin – constituiu na apropriação do excedente agrícola e, às vezes,
não apenas isso, mas também dos cereais de que o camponês necessitava para a
sua alimentação. Assim foi feito para satisfazer as necessidades do exército e
a subsistência dos operários nas fábricas” (3). Ademais, os destacamentos de
alimentação confiscaram também cavalos, forragem, carros e outros utensílios
para uso militar sem qualquer compensação em troca, de modo que os camponeses
careciam de artigos elementares, como açúcar, sal, querosene, sabão, botas, fósforo
e tabaco, ou, ainda, pregos e ferramentas, utilizadas pelos trabalhadores
rurais em reparações corriqueiras.
Quase não há dúvidas de
que a requisição compulsória (chamada em russo prodrazverstka) salvou o regime bolchevique de um desastre. Sem as
políticas do comunismo de guerra, não seria possível a subsistência nem do
exército nem da população urbana, base de sustentação política do governo. Não
obstante, a consequência inevitável das medidas emergenciais redundou no
distanciamento do campesinato em relação ao projeto bolchevique. Forçados pelas
armas a entregar os excedentes da produção agrícola e privados dos artigos de
consumo de extrema necessidade, os aldeões reagiram de um modo nem um pouco
surpreendente. Portanto, quando não topavam com a resistência aberta, os
destacamentos descobriam-se burlados pelas artimanhas e astúcia camponesas. Em
1920, uma autoridade importante estimou que pelo menos um terço do total da
colheita fora armazenado clandestinamente pelos camponeses (4). Ademais, os
camponeses passaram a cultivar apenas o necessário para satisfazer suas próprias
necessidades básicas, de modo que, ao final de 1920, a proporção de hectares de
terras aradas na Rússia Europeia não excedia a três quintas partes da área correspondente
ao ano de 1913, ocasião em que a produção ainda se manteve dentro dos níveis de
normalidade de antes do começo da guerra e da revolução propriamente dita (5).
Supostamente, a queda nos índices foi resultado, em parte, da devastação por
que passou a zona rural nesse período. Por outra parte, a política da prodrazverstka certamente contribuiu em
muito para o declínio catastrófico da produção durante a guerra civil. Em 1921,
a produção agrícola total havia caído a menos da metade das cifras do pré-guerra,
e a soma de cabeças de gado a mais ou menos dois terços do total. Em
particular, produtos básicos, como o linho e a beterraba-sacarina, foram
gravemente afetados, diminuindo em cerca de um quinto a um décimo em relação à
produção em níveis normais (6).
Ao mesmo tempo, a
requisição forçada de alimentos reacendeu a luta secular na Rússia entre a
população rural e autoridade estatal de base urbana. Lênin compreendera desde muito
cedo que, dado o atraso econômico e social da Rússia, uma aliança tática com o
campesinato tornava-se condição necessária para que o partido pudesse não
apenas conquistar o governo mas consolidar um projeto de poder. Neste sentido,
os bolcheviques deviam, ao menos, tentar manter a neutralidade dos camponeses.
Daí a necessidade, de um lado, da formação de um governo de coalizão, em dezembro
de 1917, contemplando a participação dos socialistas revolucionários de
esquerda (SR) nos assuntos de gestão e, do outro, da eleição para o cargo de presidente
da República Soviética de M. I. Kalinin - um dos poucos bolcheviques de certa
proeminência cujas origens camponesas eram bem conhecidas. Mas para assegurar o
apoio daquele segmento social seria necessário antes transformar em realidade o
velho sonho camponês, a saber, a chernyi
peredel, isto é, uma ampla reforma agrária. Para tanto, os bolcheviques
promulgaram dois decretos, o primeiro, em 26 de outubro de 1917 e, o segundo,
em 19 de fevereiro de 1918, pelos quais se determinava a distribuição imediata
de terras. Tais medidas reverberavam os imprescindíveis anseios populistas e igualitários
da população rural. Assim, adotando um programa agrário feito sob medida às ambições
do campesinato e inspirado nas doutrinas dos socialistas revolucionários (SR), o
jovem governo soviético aboliu toda forma de propriedade privada no campo e ordenou
que a terra fosse repartida igualmente entre aqueles que realmente labutavam com
suas próprias mãos calejadas o solo sem nenhuma garantia formal de contrato de
trabalho (7). Os decretos deram um novo impulso a um processo que havia sido
iniciado pelos próprios agricultores vários meses antes, no verão de 1917. Em
1920, a terra já estava dividida em unidades familiares recobrindo 20 milhões
de pequenas propriedades.
Não é de se admirar,
portanto, que a população rural recebesse com grande entusiasmo a iniciativa dos
bolcheviques, contida tão somente pela costumeira desconfiança perante os éditos
oficiais do Estado. Para o campesinato, a revolução bolchevique significou,
antes de qualquer coisa, a saciedade de sua fome de terra, através da
eliminação da nobreza parasitária e da divisão da propriedade fundiária. Porém,
agora, na condição de pequenos proprietários, os camponeses só queriam que os
deixassem em paz. Entrincheirados pelas cercas ao redor de suas terras,
encaravam com suspeita qualquer intromissão exterior. E esta não tardou a
chegar. Quando a guerra civil se intensificou, as equipes de requisição chegaram
ao campo e, então, os camponeses mudaram rapidamente sua opinião sobre os
bolcheviques, passando a considerá-los mais como inimigos do que benfeitores. As
objeções giravam em torno da ideia de que Lênin e seu partido aboliram a antiga
nobreza feudal, entregando terra ao povo, só para depois cobrar o excedente do
trabalho e o direito de usufruto. Ademais, os camponeses viam com maus olhos as
granjas estatais que as autoridades haviam implementado nas grandes fazendas
expropriadas durante o período da guerra civil. Para os aldeões, uma verdadeira
chernyi peredel significava a divisão
de toda a terra rural. Significava, além
disso, a abolição da “escravidão assalariada”, que também se perpetuava nas
granjas estatais. Como Lênin mesmo disse: “O pensamento camponês conclui que,
se existem grandes fazendas, então o trabalho mediante soldo não desapareceu
realmente” (8).
Como resultado das
políticas emergenciais, muitos camponeses chegaram a pensar que bolcheviques e
comunistas não eram a mesma coisa. Aos primeiros, louvavam-nos por ter
repartido uma dádiva tão preciosa como a terra; enquanto, aos segundos, recriminavam
amargamente - particularmente Trotsky, Zinoviev e outras lideranças, cuja
origem “estrangeira” era bem conhecida -, por estes terem imposto uma nova
forma de escravatura, desta vez, tendo o Estado assumido o lugar da nobreza. “Somos
bolcheviques, não comunistas. Somos a favor dos bolcheviques, porque expulsaram
os senhores feudais; mas não estamos a favor dos comunistas, pois são contra a propriedade
individual da terra” (9). Assim descreveu Lênin, em 1921, sobre a percepção dos
camponeses em torno dos supostos agentes distintos envolvendo o governo. Um ano
mais tarde, a mentalidade camponesa pouco mudou, como demonstra um boletim
policial da província de Smolensko: “Entre os camponeses não há limites para
queixas contra o governo soviético e os comunistas. Na conversa jogada fora, os
camponeses, desde aqueles de rendimento médio até os mais pobres, para não
falar dos kulaks, amaldiçoavam aos quatro cantos o governo: ‘Eles não querem a
nossa liberdade, mas a nossa servidão. Os tempos de Godunov voltaram, época em que os camponeses
estavam presos aos donos da terra. Agora nós [estamos presos] à burguesia judia,
representada por gente como Modkovisk, Aronson etc.” (10).
Todavia, durante a guerra
civil, a maioria dos camponeses continuou tolerando o regime soviético como um
mal menor em meio a uma possível restauração branca. Em que pese a profunda
antipatia dirigida ao partido do governo, os camponeses temiam ainda mais a
volta dos nobres e, por consequência, a perda da terra. Os pelotões de confisco
de alimento encontravam frequentemente muita resistência nas aldeias, que
custavam muitas vidas aos bolcheviques. Entretanto, os camponeses jamais
intentaram realizar uma oposição armada em uma escala suficientemente grande ao
ponto de ameaçar a existência do governo. Com a derrota do exército de Wrangel,
no verão de 1920, a situação mudou rapidamente. Uma vez dissipado o perigo
branco, cresceu além do controle o ressentimento camponês quanto a prodrazverstka e as granjas estatais. Sucessivas
ondas revoltosas varreram toda a Rússia rural. Os distúrbios mais sérios
ocorreram na província de Tambov, na zona média do Volga, na Ucrânia, na região
norte do Cáucaso e no oeste da Sibéria, zonas periféricas nas quais o controle governamental
era relativamente débil e a violência popular registrava recorrências de longa
data (11).
As rebeliões recobraram
rapidamente força no inverno de 1920-1921. Neste período, segundo observou Lênin,
“dezenas e centenas de milhares de soldados dispensados” voltaram para as suas
aldeias de origem e engrossaram as fileiras das guerrilhas (12). No início de
1921, foram desmobilizados cerca de 2.500.000 homens - quase a metade do total
do efetivo militar do Exército Vermelho -, sob uma atmosfera de violência e caos
social que ameaçava toda estrutura do Estado. Tratava-se de uma situação
frequente na Europa nos anos que se sucederam imediatamente a Primeira Guerra
Mundial. A desmobilização militar em grande escala agravou as tensões econômicas
existentes e intensificou o descontentamento popular. Mas, na Rússia, a
situação era particularmente grave. Em quase sete anos de guerra, revolução e
desordem civil, um espírito de ilegalidade difícil de erradicar incutiu nas
massas populares. O povo transtornado e à deriva, por conta da dispersão das
tropas, como bem observou Lênin, agrupou-se em hordas de homens irrequietos,
cuja única ocupação era a guerra e, diante da nova conjuntura, a bandidagem e
rebelião. Para Lênin, esta nova situação era um revival da guerra civil, reencarnada,
no entanto, por uma forma distinta e ainda mais perigosa - mais perigosa porque,
segundo o seu ponto de vista, estava sendo protagonizada não por segmentos
sociais arruinados e anacrônicos, para os quais o tempo histórico havia passado
há muito, senão pelas massas populares propriamente ditas. O espectro de uma
enorme jacquerie, uma nova revolta à la Pugachev, “cega e impiedosa”, na
célebre expressão de Pushkin, parecia acossar o governo justamente num momento
em que as cidades, centros tradicionais de apoio bolchevique, encontravam-se em
uma situação de esgotamento e fragilidade, padecendo também de um profundo
desassossego.
Entre novembro de 1920 e
março de 1921, houve um crescimento exponencial de revoltas no campo. Só em
fevereiro de 1921, às vésperas da rebelião de Kronstadt, a Tcheca registrou
cento e dezoito distúrbios camponeses em diversas regiões do país (13). No oeste
da Sibéria, a maré de rebeliões assolou quase toda a região de Tiumen e boa
parte das províncias vizinhas de Cheliabinsk, Orenburg e Omsk. As vias
ferroviárias da transiberiana foram seriamente obstruídas, agravando a escassez
de alimentos já bastante crítica nas grandes cidades da Rússia europeia. Na
zona média do Volga, de onde Stenka Razin e Pugachev haviam recrutado o grosso
de seus seguidores, bandoleiros armados - camponeses, veteranos do exército,
desertores - vagavam pelo campo em busca de comida ou alguma oportunidade para
um botim. Apenas uma tênue linha separava a criminalidade da rebelião social.
Em outras paragens, homens desesperados armavam emboscadas com o intuito de
pilhar os destacamentos de requisição e lutavam selvagemente contra todos
aqueles que ousavam detê-los. Os confrontos mais sérios ocorreram, talvez, na
fértil província de Tambov, foco de revoltas camponesas desde pelo menos o
século XVII. Tendo à frente o caudilho e ex-socialista revolucionário A. S.
Antonov, cujos talentos como guerrilheiro lhe renderam a reputação de um Robin
Hood e cujos feitos poderiam competir com os de Nestor Makhno, um conflito de
grandes proporções escapou de todo controle por mais de um ano, até que o
experiente comandante vermelho Mikhail Tukhachevsky - que há pouco sufocara a
revolta dos marinheiros de Kronstadt - foi enviado com um grande exército e
reprimiu exitosamente a rebelião (14).
A ocorrência de
insurreições camponesas durante o inverno de 1920-1921 surpreende pelo elevado
número de homens que ingressaram nas fileiras rebeldes. No auge de seu
movimento, Antonov contava com uns 50.000 cobatentes; enquanto que em um único
distrito do oeste da Sibéria, as guerrilhas, de acordo com fontes que
provavelmente não exageraram, somavam cerca de 60.000 homens (15). Camponeses
simplórios, mas armados com machados, paus, forquilhas e até rifles e pistolas,
travavam verdadeiras batalhas campais contra os batalhões regulares do
exército. Movidos por um profundo desespero, estes homens rústicos
exprimiam uma bravura notável em combate, ao ponto de causar um efeito de deserção
em massa nas tropas governamentais – aliás, muitos soldados compartilhavam das mesmas
origens sociais e hábitos guerrilheiros. Sob tais circunstâncias, as unidades
especiais da Tcheka e os cadetes da escola de oficiais comunistas, cuja
lealdade estava à prova de qualquer suspeita, bateram muitas vezes em retirada.
Mas, por carecer de armas modernas e organização efetiva, os grupos dispersos
de camponeses não puderam enfrentar as experientes forças vermelhas. Ademais,
os insurgentes não possuíam nenhum programa alternativo coerente às medidas do
governo, embora seus slogans fossem os mesmos em toda a parte: “abaixo a
requisição”, “fora os destacamentos de confisco de alimentos”, “não entreguem
seus excedentes”, “abaixo os comunistas e os judeus”. Assim sendo, compartilhavam
do mesmo ódio às cidades, de onde provinham os comissários e destacamentos de
requisição, e, claro, ao governo, que enviava esses forasteiros. A população de
Tambov, conforme observou um comandante militar bolchevique dessa província, considerava
a autoridade soviética uma força tirânica indiferente à vida do povo e da qual
brotavam “comissários e funcionários de requisição”. Não é surpreendente,
portanto, que um dos grupos rebeldes de Tambov estabeleceu como objetivo principal
da revolta “a derrocada do governo comunista bolchevique, que tem reduzido o
país à pobreza, à devastação e à desgraça" (16).
Embora a resistência
violenta e a sonegação fossem as armas mais contundentes empregadas pela
maioria camponesa, muitos outros se utilizavam de um meio mais tradicional de
protesto, tipicamente russo: as humildes petições endereçadas ao governo
central. Entre novembro de 1920 e março de 1921, as autoridades de Moscou foram
bombardeadas por milhares de requerimentos em caráter de urgência que provinham
de todas as partes do país. As cartas em uníssono invocavam o fim das políticas
coercitivas do comunismo de guerra. Os suplicantes argumentavam que, em virtude
da derrota dos brancos, as requisições forçadas de cereais careciam de
justificativas. Em seu lugar, os camponeses propunham uma taxa fixa sobre a
produção e o direito de livre dispor dos excedentes da produção. Para aumentar
o rendimento, demandavam, ainda, como incentivo, um maior fornecimento de bens
de consumo à população agrária (17).
Não obstante esses apelos
insistentes, as reivindicações camponesas encontraram ouvidos moucos nos círculos
administrativos do regime soviético. O pequeno proprietário de terra era considerado,
em grande medida, um tipo pequeno burguês incurável, que, após obter a posse de
um torrão de terra, logo deixava de apoiar a revolução. Mais do que tudo, os
bolcheviques temiam um enraizamento do capitalismo nos aldeamentos russos.
Sempre atentos aos paralelos históricos, recordavam os episódios envolvendo os
camponeses de 1848. Naquela ocasião, o campesinato serviu de baluarte à reação
conservadora na Europa ocidental. Portanto, o governo bolchevique evitava
qualquer concessão que, por ventura, pudesse fortalecer a independência dos camponeses
proprietários. Ademais, para muitos bolcheviques, o sistema do comunismo de guerra,
com sua direção estatal e econômica centralizadora, imprimia as insígnias
inerentes da sociedade socialista que tanto sonhavam. Por isso, não estavam
dispostos a abandoná-lo para restabelecer o livre mercado ou fortalecer um
campesinato recalcitrante.
Um enérgico defensor do
comunismo de guerra foi Valerian Osinsky (cujo nome verdadeiro era Obolensky).
Líder do grupo Centralismo Democrático da ala esquerda, dentro do Partido Comunista,
Osinsky expressou sua posição em uma série de influentes artigos publicados na
segunda metade dos anos de 1920. Rechaçando qualquer concessão referente à fixação
de uma taxa em espécie ou mesmo à reabertura do livre comércio, exigia, ao
contrário, maior intervenção estatal na economia rural. A única solução para a
crise agrária, escreveu Osinsky, reside na “obrigatoriedade da organização
massiva da produção”, sob a direção e o controle de encarregados do governo (18).
Propunha a formação de “comitês de plantio” em cada localidade, com a missão
principal de aumentar a produção através da ampliação da área de cultivo. Os
novos comitês regulamentariam também o uso dos equipamentos necessários, os
métodos de plantação, a criação de gado e outras questões relativas à
maior eficiência da produção. Osinsky sugeriu também a estocagem das sementes
num banco comum de grãos, bem como sua distribuição, que também ficaria a cargo
do governo. Por último, idealizava um sistema de exploração socializada, no
qual todas as pequenas propriedades seriam coletivizadas e o trabalho realizado
sobre uma base global.
As recomendações de
Osinsky não significavam meramente a conservação do comunismo de guerra, mas a
possibilidade de sua expansão a todas as fases da vida rural. Portanto, longe
de pacificar, suas propostas alarmaram ainda mais os camponeses. E estes não
tardaram a se fazer escutar pela ocasião do VIII Congresso dos Sovietes,
realizado em Moscou, em dezembro de 1920. Evidentemente, o plano de Osinsky
ocupou lugar de destaque nos debates. Muito embora a maioria comunista
aprovasse por uma grande margem de votos as propostas de Osinsky, o
descontentamento camponês encontrou voz nas admoestações dos mencheviques e
socialistas revolucionários (SR), que, no entanto, faziam sua última aparição
de relevo no cenário político nacional. Feodor Dan e David Dallin, pelos
mencheviques, e V. K. Volsky e I. N. Steinberg, pelos socialistas revolucionários
(SR) de direita e de esquerda, respectivamente, foram unânimes em condenar as
políticas de “crise” do comunismo de guerra. Exigiam a imediata substituição
das requisições de alimentos por uma taxa fixa em espécie e a liberdade de
comércio dos excedentes que ultrapassassem as obrigações estipuladas aos
camponeses pelo Estado. Qualquer medida baseada na compulsoriedade, argumentava
Dan, só poderá resultar numa redução da área cultivada e, por conseguinte, na
diminuição da já escassa produção de grãos. A manutenção do uso da força,
dizia, ampliará ainda mais o abismo entre as cidades e o campo, levando
consequentemente o campesinato a se bandear para o lado contrarrevolucionário.
Do mesmo modo, Volsky exortava para o governo estimular a formação voluntária
de cooperativas e abandonar o sistema de granjas estatais. Dallin, por sua vez,
ao mencionar os comitês de plantio de Osinsky, advertia que qualquer novo
instrumento de coerção somente agravaria ainda mais a crise (19).
Outras objeções às
políticas agrícolas foram formuladas pelos próprios camponeses em uma sessão a
portas fechadas dos delegados rurais do congresso. Lênin esteve presente e
enviou notas ao Comitê Central do Partido e ao Conselho de Comissários o Povo -
que são de enorme interesse. A oposição ao projeto de Osinsky era unânime e
contundente, como mostram as anotações de Lênin. Com um desprezo não
dissimulado, um camponês da Sibéria - região profundamente afetada pelas
rebeliões camponesas - denunciou os comitês de plantio e a intervenção do
Estado nos assuntos das aldeias: “Osinsky não conhece a Sibéria. Eu tenho
plantado lá por mais de 38 anos; mas Osinsky não sabe nada”. Outros delegados
atacaram os esforços do governo para coletivizar a agricultura. Todavia, os ânimos
exaltavam-se quanto vinha à baila o tema do confisco de cereais mediante o uso
de força pelos destacamentos armados, os quais, determinados a cumprir ordens arbitrárias,
não faziam nenhuma distinção entre o camponês ocioso daquele que trabalhava com
afinco. A quantidade de cereais confiscada foi tão grande, relatou um dos
delegados, que, agora, nem seres humanos nem animais terão o que comer. Um
camponês de Tula protestou, dizendo que, devido aos excessos de operações de confisco,
pelo menos dez províncias férteis da Rússia Central (incluindo a sua própria)
não teriam mais grãos para a próximo plantio. Para elevar a produção de
alimentos, arrematou um delegado de Perm, temos que nos libertar deste flagelo
da requisição compulsória.
Os oradores protestavam
um após o outro; reclamavam que recebiam apenas uma pequena compensação por sua
produção e, às vezes, não recebiam nada. “Se querem que plantemos - declarou um
camponês da província de Misk – então que nos ofereçam sal e ferro, somente sal
e ferro. Dito isso, não preciso dizer mais nada”. Necessitamos de cavalos,
rodas, ancinho; replicavam em coro outras vozes. Ofereçam-nos amparo para
reparar nossas ferramentas e galpões ou moeda para contratar ferreiro e
carpinteiro. Um delegado da província de Kostroma expressou uma opinião
compartilhada por todos quando ponderou: “Os camponeses precisam de incentivos,
caso contrário, não trabalharão. É possível serrar madeira debaixo do açoite,
mas não é possível cultivar debaixo do açoite”. “Como proporcionar incentivos?
- perguntava um camponês de Novgorod -. É muito simples, é só estipular uma
porcentagem fixa de requisição de grão e de gado” (20).
O próprio Lênin não era
de modo algum insensível à situação por que passava o campesinato. Quando foi
informado, por exemplo, de que camponeses de um determinado distrito foram
submetidos a confiscos abusivos e privados dos grãos necessários para plantar,
interveio pessoalmente em socorrê-los (21). Em novembro de 1920, Lênin
considerara a possibilidade de “transformar as requisições de alimentos em uma
taxa fixa em espécie” (22) - que era precisamente o que os aldeões pleiteavam.
Mas, naquele momento, rejeitou tal proposta por julgá-la prematura. Com efeito,
o perigo de uma retomada da guerra civil, disse Lênin, ao VIII Congresso dos
Sovietes, ainda não se dissipou completamente. Na ocasião, as negociações
relativas à assinatura de um pacto de paz com a Polônia ainda estavam em vias
de conclusão e o exército de Wrangel, abastecido na vizinha Turquia pelos
franceses, preparava-se para uma ofensiva assim que se vislumbrasse a primeira
oportunidade. Obviamente, nesta conjuntura, seria demasiadamente temerária uma
transição econômica pressupondo por base um programa de tempos de paz (23). Anteriormente,
Lênin havia ilustrado a situação peculiar da Rússia com uma fábula folclórica
típica. Falando a uma assembleia de representantes rurais da província de
Moscou, em outubro de 1920, Lênin admitiu (com gritos de aprovação por parte do
auditório) o pesado fardo da contribuição compulsória sobre os ombros do
camponês combalido, situação que agravava a cisão entre cidade e campo, entre
operários e camponeses. Mas se o carneiro e o bode brigavam, perguntou Lênin,
aludindo ao proletário e ao camponês, devemos acaso permitir que o lince da
contrarrevolução devore a ambos? (24)
Assim, a despeito das
hesitações cada vez mais profundas, Lênin manteve em vigor a política do
comunismo de guerra. Em dezembro de 1920, no VIII Congresso dos Sovietes, Lênin
chancelou o projeto de Osinsky, criando um banco público de sementes e lançando
uma campanha de plantio na primavera seguinte. O congresso aprovou ainda
outra resolução determinando “um grande plano estatal de plantio obrigatório”
sob a direção geral do Comissariado da Agricultura. Foram criados comitês de
plantio em cada província, distrito e município, com função administrativa
sobre toda mão de obra e ampliação da área cultivada (25). Mas, para Lênin,
pelo menos até aquele momento, não era exequível qualquer tentativa de coletivizar
a agricultura. O líder bolchevique já não acreditava mais na possibilidade do
socialismo ser alcançado em um futuro próximo. A Rússia, segundo afirmou ao
VIII Congresso dos Sovietes, continuava um país de pequenos camponeses; e os
camponeses “não são socialistas”. Assim sendo, construir o futuro da Rússia
sobre esse terreno, seria o mesmo que lançar fundações na areia movediça. Mesmo
fechado o Sukharevka (famoso mercado
negro de Moscou), seu espírito vivia no coração de todo pequeno proprietário
russo. “Enquanto o país estiver povoado por pequenos camponeses - disse Lênin
-, o capitalismo encontrará na Rússia uma base econômica mais sólida que o
comunismo”. Mas se a transição ao socialismo for longa e difícil, acrescentava,
então não há razão para suprimir as forças capitalistas do campo. Assim, a
compulsoriedade seguirá sendo a palavra de ordem da política agrícola
bolchevique (26).
A situação nas cidades,
até então o bastião do apoio bolchevique, no entanto, era em muitos aspectos
pior que a do campo. Seis anos de distúrbios haviam aniquilado a economia
industrial da nação e, muito embora as estatísticas variassem em muitos
detalhes, o cenário era quase de colapso total (27). Em fins de 1920, a
produção industrial total havia baixado ao redor de um quinto dos níveis de
1913. O abastecimento de petróleo e matérias-primas alcançou um estado
particularmente crítico. Ainda que na primavera e no outono de 1920 os campos
petrolíferos de Baku e a mina carbonífera do Donetz retomassem a todo vapor a
produção, o prejuízo era enorme e de difícil recuperação. Muitas minas estavam
inundadas e outros empreendimentos em curso, completamente destruídos. A
produção total de carvão da Rússia, em fins de 1920, era só de um quarto em
relação aos níveis do pré-guerra, e a de petróleo não passava de um terço. Pior
ainda, a produção de ferro fundido baixara a menos de 3% dos níveis de 1913 e a
de cobre permanecia quase parada. Por falta de insumos, os principais centros
industriais do país viram-se forçados a reduzir a produção drasticamente.
Muitas fábricas grandes só puderam funcionar parcialmente e a força de trabalho
empregada diminuiu a uma fração do que havia sido quatro ou cinco anos antes.
Alguns setores importantes da indústria pesada chegaram a parar por completo. E,
nas empresas de bens de consumo, a produção total diminuiu a menos de um quarto
dos níveis do pré-guerra. A manufatura de calçado caiu a um décimo do normal e,
apenas em vinte plantas têxteis, as máquinas seguiam funcionando.
Somavam-se a esta
situação desastrosa dois fatores adicionais: os efeitos asfixiantes do recente
bloqueio internacional e a desorganização do sistema de transportes do país. O
bloqueio imposto depois do Tratado de Brest-Litovsk, de 1918, seria levantado apenas
no ano de 1920. Mas o comércio interno não se reavivou senão no ano seguinte,
muito embora em pequena escala. Como resultado, a Rússia Soviética descobriu-se
privada de uma equipe técnica, maquinárias e matérias-primas, que tanto
necessitava e de cuja falta obstava a rápida recuperação do parque industrial.
Para piorar, em pouco tempo, os meios de transporte ficaram gravemente
danificados. Em boa parte do país os trilhos foram arrancados e as pontes
destruídas pelos exércitos em retirada. Trotsky, ao informar-se sobre a situação
dos transportes durante o VIII Congresso dos Sovietes, observara que mais da
metade das locomotivas na Rússia estava descarrilada e a produção de motores
havia caído a 15 por cento da cifra correspondente aos anos de 1913 (28). Pelo
fato do fornecimento de petróleo ser intermitente, os ferroviários viram-se
obrigados a abastecer os trens com lenha, o que resultou num maior número de
avarias e interrupções do serviço. As vias de acesso estavam quase todas
deterioradas e, em alguns distritos, a paralisia era total.
A falência do sistema
ferroviário interrompeu a entrega de produtos alimentícios às cidades famintas.
As provisões chegaram a ser tão escassa, que os operários e outros habitantes das
cidades tiveram de se contentar com uma porção de ração digna de fome. As
pequenas quantidades de alimentos disponíveis eram distribuídas de acordo com
um sistema ordenado conforme níveis de preferência, idealizado originalmente
para favorecer aos trabalhadores das indústrias bélicas, mas que se perpetuou
mesmo após o fim da guerra civil. Assim, no início de 1921, os trabalhadores
das siderúrgicas de Petrogrado e altos fornos (goriachie tsekhi) recebiam uma ração diária de 800 gramas de pão
preto, enquanto que os demais, que trabalhavam em tarefas excepcionalmente
pesadas (udarniki), recebiam 600
gramas. Às categorias consideradas menores, porém, a cota não passava de 400
ou, às vezes, 200 gramas apenas (29). Assim, as medidas de racionamento da
escassez constituíam-se sobre uma base extremamente desigual. Segundo nossas
fontes, a dieta dos trabalhadores do transporte correspondia a uma média de 700
a 1000 calorias por dia (30), cifras muito abaixo do mínimo necessário relativo
a uma jornada diária de trabalho.
A crise alimentícia nas
cidades piorou muito com fechamento do mercado regular durante o período da
guerra civil. Sob o sistema do comunismo de guerra, o comércio privado foi
abolido e a troca de mercadorias entre cidade e campo praticamente deixou de
existir. Em seu lugar, surgiu rapidamente um mercado negro. Um enxame de vendedores
ambulantes contrabandeava, de aldeia em aldeia, comprando pão e vegetais para
vendê-los ou trocá-los com os esfomeados habitantes das cidades. Em fins de
1920, o comércio ilegal chegara a proporções tais que suplantou em larga medida
os canais oficiais de distribuição de produtos de consumo. Ao mesmo tempo, a
inflação alcançou níveis vertiginosos. Somente no decorrer do ano 1920, o preço
do pão aumentou mais de dez vezes (31). O governo soviético, para cobrir
gastos administrativos, passou a imprimir dinheiro em ritmo frenético e, como
resultado da política inflacionária, o rubro de ouro, que, em 1917, valia sete
rubros e 85 kopecks, alcançou em três anos 10000 rubros (32). No final de 1920,
de acordo com estimativas oficiais, o salário real dos trabalhadores fabris de Petrogrado
desvalorizou 8,6% em relação aos níveis do pré-guerra (33). À medida que a
moeda se desvalorizava, os operários recebiam uma proporção cada vez maior de
salário em espécie. A ração de comida (payok),
que o governo entregava aos operários, chegou a constituir o núcleo do salário,
ao qual se agregava sapatos e vestimentas, e, às vezes, algumas ferramentas,
que eram trocadas naturalmente por comida.
Portanto, os operários
raramente recebiam o necessário para alimentar a si mesmos e suas famílias. Habitantes
das cidades abandonavam suas casas formando ondas migratórias que rumavam para
as zonas rurais à procura de alimentos. Entre outubro de 1917 e agosto de 1920
(período em que se retomou o censo), a população de Petrogrado, de quase
2.500.000 habitantes, decresceu a mais ou menos 750000, ou seja, uma redução de
quase dois terços. Durante o mesmo período, Moscou perdeu quase a metade de
seus habitantes, enquanto a população urbana de toda a Rússia declinava
aproximadamente a um terço do total. Uma boa parte dos migrantes compunha de trabalhadores
industriais que retornavam às suas aldeias de origem, onde retomavam seu antigo
modo de vida camponês. Em agosto de 1920, por exemplo, apenas um terço dos 300.000
operários de Petrogrado permaneceu na cidade e a redução total do contingente de
operário em toda a Rússia excedeu os cinquenta por cento (34). Parte deste
dramático declínio foi supostamente atribuído à alta taxa de mortalidade no front e, parcialmente, à grande
quantidade de pessoas que voltavam às suas aldeias para serem beneficiadas pela
reforma agrária. A desarticulação da indústria e a falta de combustível e
vestimentas contribuíram também para o êxodo urbano. A maioria das pessoas saía
em busca de comida, especialmente durante os anos de 1919 e 1920, quando o
abastecimento das cidades se aproximava rapidamente aos níveis de fome.
Mesmo aqueles operários
que permaneceram nas cidades mantiveram vínculos com as suas aldeias de origem,
realizando viagens periódicas atrás de alimento, fugindo de epidemias ou para
ajudar na colheita. É bastante irônico que isso ocorria justamente no momento
em que o país deveria alcançar um caráter majoritariamente urbano e industrial,
tal como previam os cânones ideológicos do partido bolchevique. Mas em lugar
disso, os efeitos da redistribuição de terras e da guerra civil transformaram a
Rússia novamente na primitiva sociedade agrária da qual só em tempos recentes deixara
para trás. Para o regime soviético, que governava em nome do proletariado industrial,
tal situação imprevista acarretava perigosas consequências. Não apenas o êxodo
urbano desintegrava a base social pela qual se sustentava a autoridade
bolchevique. Contatos estabelecidos entre camponeses e operários também colaboravam
em muito para aumentar as tensões populares existentes. As frequentes queixas
dos camponeses acabavam por provocar fortes reações entre os forasteiros da
cidade, que puderam ver com seus próprios olhos os impactos desastrosos
produzidos pelo comunismo de guerra nas zonas rurais. A insatisfação mútua
rapidamente se espalhou para os seus primos plebeus que integravam o exército e
a marinha. O resultado foi uma onda crescente de distúrbios rurais, industriais
e militares, que, em março de 1921, alcançaria um clímax explosivo na rebelião
de Kronstadt.
Enquanto isso, a situação
das cidades e dos pequenos vilarejos continuava se deteriorando. No início de
1921, toda a estrutura urbana estava em vias de um grande desmonte. Devido à crise
de abastecimento de combustível, as oficinas, as vivendas e as agências de
serviço não dispunham mais de aquecimento para atravessar os severos meses do
inverno. Rumores circulavam sobre casos de pessoas que morriam congeladas por
falta de calefação em suas casas, num momento em que não se podiam comprar casacos
e botas em qualquer parte. O tifo e a cólera varreram as cidades. Ainda assim a
alimentação continuou sendo o problema mais grave das áreas urbanas, apesar do
grande déficit populacional, pois o abastecimento nunca era suficiente. Neste
contexto, os operários enfraquecidos fisicamente tornavam-se passíveis de uma
desmoralização sem precedentes. Em fins de 1920, a produtividade média registrou
uma queda de um terço da taxa de 1913 (35). Impulsionados pelo frio e a fome,
os homens abandonavam as máquinas durante dias inteiros para coletar lenha e
víveres no cinturão campestre ao redor da cidade. Viajavam a pé ou em vagões de
trem por quilômetros, carregando consigo objetos pessoais e instrumentos que
roubavam das fábricas para trocá-los por qualquer coisa que pudesse matar a
fome. O governo fez de todo o possível para coibir o tráfico ilegal envolvendo
utensílios fabris. Destacamentos de estrada (zagraditel'nye otriady) bloqueavam as vias e vigiavam os acessos à cidade
para apreender os preciosos sacos de alimentos que os “especuladores” levavam
para as suas famílias. Nisso, a brutalidade dos destacamentos tornara-se
notória em todo o país e, por conseguinte, os comissariados de Moscou viram-se
inundados por petições denunciando os métodos arbitrários que eram aplicados (36).
Outra demanda comum da
classe trabalhadora referia-se à crescente arregimentação do trabalho sob o
sistema do comunismo de guerra. Trotsky, o comissário de guerra, estava por trás
dessas medidas. Encorajado pela rápida e improvisada formação do Exército Vermelho
sob seu comando, Trotsky tratou de empregar métodos similares de disciplina
militar na organização da cambaleante economia industrial. Em janeiro de
1920, o Conselho de Comissários do Povo decretou, em grande medida por sua
inspiração, a obrigatoriedade da jornada de trabalho a toda população ativa; ao
mesmo tempo em que se autorizou o serviço civil obrigatório a todo militar da
reserva. À medida que se aproximava o fim da guerra civil, batalhões inteiros
de soldados do Exército Vermelho, ao invés de receberem baixas nos quartéis,
foram mantidos enquanto “exército de trabalho”, incumbido das tarefas relativas
à resolução da crise de transporte e combustível, bem como salvar a indústria
do colapso iminente. Mil veteranos foram empregados no corte de madeira, ensacamento
de carvão nas minas e reparo das vias férreas; enquanto outros milhares foram
encarregados de realizar o trabalho pesado nas grandes fábricas urbanas.
Paralelamente, para elevar a produção industrial a patamares produtivos,
realizaram-se providências para reforçar a disciplina da força de trabalho
civil e, assim, reduzir furtos e evitar a ociosidade. Todavia, os resultados
foram desanimadores. Como era de se esperar, o recrudescimento da disciplina e
a presença de tropas nas fábricas provocaram um forte ressentimento entre os
operários. Nas reuniões de fábricas e de sindicato multiplicavam-se as objeções
furiosas contra a “militarização do trabalho”. Por seu turno, uma vez terminada
a guerra, os soldados ansiavam por voltar às suas casas. Para muitos russos, a
“militarização do trabalho” parecia algo injustificável no momento mesmo em que
o governo trabalhava para ampliá-la. Os líderes mencheviques compararam a arregimentação
à escravidão do Egito, quando os faraós utilizaram o trabalho forçado para construir
as grandes pirâmides. Insistiam que a compulsoriedade do trabalho não lograria
êxito na produtividade industrial, assim como não alcançou na agricultura.
Estes argumentos defendidos pela oposição obtinham uma ressonância muito positiva
entre os operários das indústrias, cuja desilusão com os bolcheviques e o seu
programa de comunismo de guerra transformava-se em frequentes manifestações
contra o regime, algo que alarmava demais os espias do governo.
A “militarização do
trabalho” foi parte de um esforço mais amplo para impor o controle central
sobre a crise econômica da nação. Durante os anos de 1917 e 1918, os trabalhadores
industriais colocaram em prática o slogan sindicalista de “controle operário”
(38). O que significava dizer que os assuntos ligados à esfera do trabalho, como
contratação e demissão, ajuste salarial, jornada de trabalho e atividades
administrativas em geral, seriam de responsabilidade exclusiva dos comitês
locais de fábrica e oficinas. Assim sendo, em algumas empresas foram demitidos
diretores, engenheiros e capatazes impopulares. No lugar deles, comissões de
trabalhadores assumiram a direção da produção. Os resultados foram, amiúde,
desastrosos. No verão de 1918, quadros administrativos qualificados quase haviam
desaparecido da indústria russa e o país encontrava-se à beira da bancarrota. Os
bolcheviques, que, em 1917, encorajavam o controle operário como um meio de
minar o governo provisório, viram-se obrigados a interferir para não serem
tragados pela mesma maré que arrastou seus predecessores. Assim, a partir de
junho de 1918, as grandes fábricas foram nacionalizadas e o controle operário
gradualmente abandonado em favor de uma direção monocrática e uma rígida
disciplina de trabalho. Em novembro de 1920, de cada cinco grandes empresas,
quatro estavam sob a administração de um único gestor e a nacionalização fora
estendida à maioria das pequenas fábricas e oficinas (39). Sempre que possível,
os “especialistas burgueses” retornavam a seus antigos cargos de supervisão
técnica. Antes de findar o ano, a razão de empregados burocráticos em relação à
de trabalhadores manuais chegava aproximadamente ao dobro de 1917 (40). Uma
nova burocracia surgia recomposta por um grupo heterogêneo formado por
funcionários veteranos e novatos inexperientes. Todavia, apesar das diferenças
que os anos de formação representavam, estes funcionários compartilhavam em
comum de interesses particulares que nada tinham a ver com a vida dos operários.
Para operários,
entretanto, a reabilitação do inimigo de classe no comando da fábrica
significou uma verdadeira traição aos ideais da revolução. O sonho de
democracia proletária, realizado momentaneamente em 1917, era lhes arrebatado e
substituído por métodos capitalistas coercitivos e burocráticos. Realmente, os
bolcheviques instauraram uma “disciplina férrea” sobre o chão de fábrica,
através do odioso “sistema Taylor”, supervisionado e imposto à força pelos
destacamentos armados, que seguiam a risca o comando de diretores e capatazes. Uma
gestão empresarial assim, de cima para baixo, determinada por um governo que se
pretendia governar em nome dos trabalhadores e que, por isso, despertou-lhes tanta
confiança, descia pela goela do operário como um gole de uma bebida amarga. Não
é de se estranhar, portanto, que durante o inverno de 1920-1921, período no
qual a desorganização econômica e social alcançou um ponto crítico, as lamentações
corriqueiras dos trabalhadores não puderam mais ser silenciadas nem por meio de
ameaças de expulsão ou perda de ração. Nas reuniões de fábricas, oradores
denunciavam em tom colérico a militarização e burocratização da indústria.
Criticavam as comodidades e os privilégios dos quais gozavam os funcionários
bolcheviques. E a cada denúncia, arrancavam gritos indignados de apoio dos
operários reunidos em assembleia. Os comunistas, afirmavam aqueles, sempre obtêm
os melhores trabalhos, nunca parecem ter fome ou frio, já nós... Sob essa atmosfera
carregada de insatisfação, despontavam, aqui e ali, sentimentos de
antissemitismo e anti-intelectualismo cada vez mais frequentes. Aventou-se a
ideia de que os bolcheviques pertenciam a uma raça estrangeira de intelectuais
judeus que havia traído o povo russo e contaminado a pureza da revolução.
O crescente sentimento de
desilusão do operariado coincidiu com um período de agudas controvérsias dentro
do Partido Comunista. Tendências opositoras às políticas do comunismo de guerra
tornaram-se cada vez mais participativas. A controvérsia perdurou pelos meses
de dezembro de 1920 até março de 1921. Durante o X Congresso do Partido -
ocasião em que estourava a rebelião de Kronstadt -, atingiu seu ápice na
questão do papel dos sindicatos na sociedade soviética (41). Três posições
antagônicas disputavam hegemonia nas prolongadas e turbulentas sessões.
Trotsky, inspirado pela militarização da mão-de-obra trabalhadora, formulada
quando de sua atuação como comissário de guerra, defendia a subordinação total
dos sindicatos ao Estado, que deveria ser a única entidade dotada de
prerrogativas para designar e dispensar funcionários sindicais. Faziam-lhe
ferrenha oposição os membros da Oposição Operária, grupo composto em grande
parte por operários e ex-operários leais ao proletariado (sobretudo, Alexander
Shliapnikov e Yuri Lutovionov). Estes se opunham aos rumos do regime soviético,
que ia em direção a um novo burocratismo dominado por uma minoria não
proletária. Assim, Shliapnikov, Lutovionov, Alexandra Kollontai e simpatizantes
rejeitavam a militarização da força de trabalho e a administração monocrática das
fábricas. Exigiam não só a total independência dos sindicatos, como também a
transferência da gerência industrial da esfera estatal para o controle dos
sindicatos e comitês locais de fábrica, organizados, segundo eles, por um
Congresso Pan-Russo de produtores. O partido, insistiam os membros da Oposição
Operária, não deveria permitir que a autonomia criadora dos trabalhadores fosse
“mutilada pela máquina burocrática estatal, reduzida a uma mentalidade amesquinhada
pela rotina e que tanto caracteriza o sistema burguês capitalista de produção e
gestão” (42).
Já Lênin e seus
partidários - a terceira posição, que constituía a grande maioria do partido -
trataram de minimizar a sua discordância tanto em relação à proposta de Trotsky
como ao programa sindicalista da Oposição Operária. Conciliavam pelo entendimento
de que os sindicatos não podiam realmente ser absorvidos pelo aparato estatal,
mas nem tampouco tomar o controle das indústrias. Assim, de um lado, o sindicalismo
deveria assegurar uma boa dose de autonomia real por meio de eleições internas
e da livre decisão sobre os problemas trabalhistas. Por outro, o governo
seguiria mantendo em suas mãos as rédeas da economia. Lênin tinha a expectativa
de que sua mediação pudesse de fato unir as duas tendências divergentes. Estava
profundamente perturbado com a divisão, que ameaçava quebrar a frágil unidade
partidária em um momento tão crítico como aquele da recente história soviética.
“Devemos ter a coragem de olhar a amarga verdade”, disse o líder bolchevique no
momento mais acirrado da controvérsia, em janeiro de 1921. “O partido está
doente. O partido treme de febre”; a menos que se curem suas feridas, “de forma
rápida e radical”, advertia Lênin, correremos o risco de “uma cisão inevitável”,
que poderá ser fatal para a revolução (43).
Os debates dentro do
Partido Comunista refletiam as crescentes tensões da sociedade russa em seu
conjunto, à medida que avançava o inverno. Durante os três anos anteriores, o
povo empenhou-se numa luta desesperada para preservar os frutos da revolução e conquistar
a liberdade e uma vida confortável. Com efeito, uma vez derrotado o inimigo, o
governo deveria abandonar imediatamente os rigores da disciplina militar e,
deste modo, o sistema do comunismo de guerra se transformaria em pouco tempo numa
lembrança longínqua de uma época muito dolorosa que entrara para a história. Nada
disso ocorreu, porém. A guerra foi vencida, mas não se abandonou as políticas
do comunismo de guerra, que sequer foram mitigadas. Meses após a vitória sobre
Wrangel, o governo não deu sinais de que as liberdades mais elementares seriam
restabelecidas, fossem econômicas, fossem políticas. A política bolchevique
seguiu orientada pela compulsoriedade e por um rigoroso controle social, que
resultou num rápido descontentamento popular. Um sentimento de desapontamento refletia
o âmago da crise. Ainda que o comunismo de guerra tivesse servido ao seu propósito,
salvando o exército da derrota e as cidades da fome, a compulsoriedade, nas
atuais circunstâncias, já não tinha razão de ser. O comunismo de guerra devia
ser encarado como um expediente temporário, um paliativo para enfrentar a
situação de emergência causada pela guerra civil. Em época de paz, tornava-se num
tremendo fracasso, um fardo que o povo não podia mais tolerar.
Não obstante, os
bolcheviques não estavam dispostos a abrir mão deste recurso, como tampouco renunciar
as políticas de represália à oposição. Para justificar medidas impopulares, o
partido insistia no perigo de uma reação contrarrevolucionária iminente. Dada à
situação dramática em que o país se encontrava, isolado, cercado e acossado por
poderosos inimigos externos, sempre à espreita e prontos para uma invasão ao
menor sinal de cisão interna, os argumentos pareciam razoáveis. Mas a cada
passo em direção a um programa repressivo, ainda que ditado pela urgência econômica
ou política, as pretensões democráticas e igualitárias do governo ficavam cada
vez mais distantes. Vozes se levantavam contra os bolcheviques, acusando-os de
trair os ideais da revolução. Para Alexander Berkman, líder anarquista que
havia apoiado o regime soviético durante a guerra civil, os bolcheviques haviam
abjurado os lemas de 1917 e pisoteado nas mais profundas esperanças populares. Em
todos os lugares, reina a injustiça, escreveu Berkman, em 1921, desculpada
sempre por uma suposta necessidade, que, na verdade, só serve para encobrir a
traição, a mentira e a opressão. Os bolcheviques, prosseguia o anarquista, a
despeito de governarem em nome dos operários e camponeses, estão destruindo a
liberdade e a confiança do povo, atributos pelos quais dependem o
desenvolvimento e a sobrevivência da revolução (44).
A opinião de Beckman era
amplamente compartilhada por outros campos da esquerda, que, como os anarquistas,
foram relegados ao ostracismo, após a vitória bolchevique. Com um discurso
inflamado e bastante ousado, pela ocasião do VIII Congresso dos Sovietes, o
líder menchevique Feodor Dan denunciou a supressão da liberdade popular, que
levaria o declínio de todo o sistema dos sovietes, não permanecendo este senão
como uma mera fachada de uma ditadura unipartidária. A liberdade de expressão e
de reunião foi proibida, alertava Dan, cidadãos foram presos ou desterrados sem
julgamento e execuções políticas são aplicadas em larga escala. O líder menchevique
prosseguiu ainda condenando as perseguições como atos terroristas e exigiu a
imediata restauração das liberdades políticas e civis através de novas eleições
para os sovietes regionais. O apelo de Dan encontrou eco no discurso proferido pelo
proeminente socialista revolucionário (SR) de esquerda, I. N. Steinberg. Antigo
comissário de justiça do governo soviético, Steinberg reivindicava o
restabelecimento da “democracia soviética” com ampla autonomia e autogestão em
nível local.
Na verdade, as demandas
apresentadas pela oposição repetiam a antigo adágio leninista de “todo o poder
aos sovietes”, que agora se voltava contra os bolcheviques. Até mesmo nas
fileiras do Partido Comunista surgiam críticos. O Centralismo Democrático
defendia a concessão de maior poder aos sovietes como o único remédio para a
excessiva concentração de autoridade política cumulada pelos bolcheviques
durante a guerra civil. Porém, tais invocações não se limitavam a um punhado de
intelectuais radicais. Durante os meses de inverno, a ira popular irrompeu-se numa
frente ampla que reunia marinheiros, soldados, camponeses e operários, ansiosos
por resgatar a anárquica liberdade de 1917. Mobilizados em torno da restauração
da estabilidade social e pelo fim do derramamento de sangue e da privação econômica,
entre outras aspirações, um tanto contraditórias, impuseram aos bolcheviques
uma das mais sérias crises internas desde a tomada do poder. Em março de 1921,
o regime soviético esteve na iminência de ser varrido por uma onda avassaladora
de revoltas camponeses, distúrbios operários e insubordinação militar, que iria
culminar no levante de Kronstadt.
A fome e a penúria,
sobretudo, acabaram por criar uma atmosfera de crise e seria fácil criticar os
bolcheviques por não terem feito nada para apaziguar o descontentamento
simplesmente abandonando o sistema do comunismo de guerra. Não obstante, os
bolcheviques necessitavam, não menos que os governos europeus, de tempo para
avaliar a situação. A transição do estado de guerra para a paz, como bem disse Lênin,
ao VIII Congresso dos Sovietes, não era algo simples. Ninguém estava seguro de
como proceder em dadas circunstâncias, não havia precedentes, e sequer existia um
plano estratégico para conter a onda de revoltas. Desde o instante em que os
bolcheviques tomaram o poder, suas políticas tiveram um caráter experimental e
de improviso. Passados mais de três anos, tateava-se no escuro, em meio a
discussões sobre medidas eficazes. Em novembro de 1920, alguns líderes do
partido, incluindo Lênin, começaram a considerar a possibilidade de afrouxar as
políticas do comunismo de guerra. Naquele momento, porém, estava longe de ser
evidente que uma rápida reorientação nas medidas emergenciais seria necessário
para se evitar uma convulsão social maior - como ficaria claro somente dois ou três
meses mais tarde.
Ainda subjaz o fato de
que um relaxamento nos assuntos domésticos sobreviria tarde demais. Obsecados
pela mentalidade da guerra e não dispostos a abandonar o programa baseado nos
preceitos ideológicos do partido, os bolcheviques abraçaram as políticas do
comunismo de guerra e não as abandonaram até fevereiro de 1921. Quando Lênin avançou
tardiamente na direção da Nova Política Econômica (NEP), a tragédia de Kronstadt
estava consumada.
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