Centenário da Rebelião de Kronstadt
(1 março de 1921, assembleia dos marinheiros/18 de março de 1921, fim da revolta.)
Tradução: Jean Fecaloma
6. A
repressão
No dia 9 de
março, um dia depois de abortado o assalto à cidadela de Kronstadt, o
líder bolchevique Kamenev, em discurso proferido ao X Congresso do Partido em
Moscou, expôs considerações sobre o impasse militar, que se “arrastava por tempo
demasiado” e não seria resolvido “tão cedo” quanto o esperado (1). O primeiro ataque
revelou-se prematuro, pois as autoridades estavam, por um lado, ansiosas por
sufocar o levante antes que os rebeldes pudessem receber ajuda do exterior e,
por outro, receosas de que a revolta contagiasse o continente com seu exemplo. Os
preparativos para a ofensiva foram organizados de modo atabalhoado e precipitado;
não havia tropas em quantidade suficiente e a operação redundou numa derrota
fragorosa, contabilizando muitas baixas.
Ademais, a situação era
muito preocupante, pois o degelo da primavera tomava proporções cada vez mais
drásticas. O senso de urgência levou o comandante bolchevique Tukhachevsky a
providenciar um segundo ataque, desta vez com um poder de fogo muito maior que
os anteriores. Aeronaves e um grande contingente de artilharia foram deslocados
rapidamente para o teatro de operações. Tropas afluíam de todas as regiões do
país para reforçar o efetivo militar instalado nas duas costas litorâneas que
ladeiam a ilha de Kotlin pelo continente. Praças foram diligentemente
selecionados para evitar que o moral baixo que afetava as tropas resultasse em
um fator de insucesso, como na ocasião da desastrosa ofensiva do dia 8 de março.
Batalhões inteiros de cadetes e a Juventude Comunista chegavam cantando a
“Internacional”, em sinal de fidelidade à revolução. Vinham de cidades tão
remotas como Smolensko, Vitebsk, Riazan e Nizhni Novgorod (2). Destacamentos
seletos de comunistas e unidades especiais da Tcheca juntavam-se às novas forças
de assalto. Regimentos leais ao governo foram transferidos da Ucrânia e da
frente polaca para o golfo. Enfim, engrossaram os pelotões tropas chinesas,
tártaras, baskires e letonas, que certamente não teriam os mesmos escrúpulos
dos grandes russos em atirar contra os insurgentes de Kronstadt. Segundo
comentou um observador, eram os comunistas e os não-russos (inorodtsy) contra o povo (3).
Comandantes tão
experientes quanto Fedko, Uritsky e Dybenko da Academia Militar do Estado-Maior
foram acionados para auxiliar as operações de repressão ao movimento rebelde.
Dybenko, que foi um proeminente bolchevique da tripulação do Petropavlovsk nos tempos da revolução, endereçou
um panfleto a seus “velhos camaradas marinheiros de Kronstadt”. No texto, denunciava
Petrichenko como um “Poltava kulak” [Um kulak da cidade de Poltava, Ucrânia -
N.T.] e aconselhava os rebeldes a baixarem as armas (4). Ao mesmo tempo, o
governo gastou de todo tipo de artifício para convencer as tropas do caráter
contrarrevolucionário da rebelião dos marinheiros. Notícias transmitidas pela
rádio e órgãos de imprensa apresentavam a “Kronstadt Branca”, sublevada por
agentes subordinados aos emigrados e seus cúmplices, as nações Aliadas. “Malgrado
os malditos traidores de Kronstadt - escrevia o redator chefe de um jornal de Petrogrado
-, custe o que custar, Kronstadt será vermelha! (5)
Entrementes, reinava na
antiga capital uma calmaria aterradora, enquanto os últimos preparativos
militares eram providenciados. Para prevenir novos distúrbios na cidade, Zinoviev
ampliava as concessões, prometendo à população, entre outras coisas, o fim do
burocratismo nas instâncias partidária e governamental e a convocatória de uma
assembleia municipal que reunisse apenas operários não filiados ao partido (6).
Em Moscou, o levante era objeto de crescente preocupação. A 10 de março,
Trotsky retornou com um relatório nada animador que foi apresentado a uma
sessão secreta do X Congresso do Partido. Naquela noite, mais de um quarto do
total de convocados para operação, cerca de 300 delegados, apresentou-se como
voluntários. O comparecimento acima da expectativa demonstrava a gravidade com
que o levante era avaliado dez dias após o seu início. Para provar lealdade ao
governo, os membros da Oposição Operária e da Central Democrática marcharam
entre os primeiros que seguiram para o front (7).
Um desses voluntários, um
centralista democrático chamado M. A. Rafail, legou um relato sobre o papel dos
delegados no assalto final à fortaleza. Ao chegarem a Petrogrado, no dia 11 de
março, os voluntários foram distribuídos apressadamente entre as tropas
concentradas ao norte e ao sul de Kronstadt. Entoando a “Internacional”
enquanto marchavam, Rafail e seu grupo foram enviados para Oranienbaum (8). Se
bem que muitos deles tomariam realmente parte dos combates, a tarefa principal
da missão, no entanto, consistia em motivar os soldados e convencê-los a
superar a hesitação em atirar contra rebeldes que seriam, na verdade, inimigos da
revolução. Além disso, os delegados deveriam tranquilizar as tropas, que temiam
atravessar a superfície de água congelada do golfo sem nenhuma proteção. Depois
do desastre do dia 8 de março, os homens estavam aterrorizados ante a perspectiva
de serem abatidos com tiros de metralhadoras em campo aberto ou de se afogarem
nas crateras abertas na crosta de gelo pelos disparos de canhões. Em
contrapartida, a delegação também foi encarregada de dar prosseguimento às
negociações que visavam dissuadir os rebeldes do confronto. Para convencer os
marinheiros de Kronstadt, distribuíram um panfleto cujo conteúdo questionava o
lema dos “sovietes livres”, sugerindo que seu real significado aludia
unicamente ao regresso “da burguesia, dos latifundiários, dos generais, dos almirantes,
dos nobres, dos príncipes e outros parasitas” à sociedade russa. O slogan,
lia-se no texto, não passava de uma cortina de fumaça para “derrubar o poder
soviético - o verdadeiro poder dos explorados - e restaurar o poder dos
exploradores capitalistas”. Concluía com uma indagação: “de que lado está Kronstadt,
dos Guardas Brancos, contra nós, ou do nosso, contra os Guardas Brancos?” (9)
No início, os delegados obtiveram
pouco êxito. O moral das tropas comunistas contrastava com a confiança dos
rebeldes, que não davam mostras de hesitação em momento tão decisivo. Em parte,
a responsabilidade pelo desânimo dos soldados devia-se aos próprios
bolcheviques, que, com grande surpresa do cônsul norte-americano em Viborg, não
haviam “aprendido a lição do quanto era inútil, do ponto de vista estratégico, coordenar
ofensivas de pequeno porte” (10). A 9 de março, foram realizadas novas expedições
que logo retrocederam ao revide rebelde. No dia seguinte, aviões soviéticos
bombardearam a fortaleza. Ao cair da noite, as baterias de artilharia
posicionadas em ambos os lados do continente descarregaram um impiedoso
bombardeio sobre as defesas rebeldes. Logo em seguida, nas primeiras horas do
dia 11, uma outra tentativa frustrada de invasão pela costa sudeste resultou em
pesadas baixas. A ofensiva foi suspensa pelo restante do dia, devido a um denso
nevoeiro que cobriu o golfo da Finlândia, impossibilitando novas operações
militares. Em razão da péssima visibilidade, um piloto comunista que sobrevoava
Oranienbaum em direção a Petrogrado aterrissou acidentalmente em Kronstadt. Ao
perceber o engano, acelerou os motores e conseguiu decolar em meio a intensas
rajadas de metralhadoras. Por sorte, chegou são a salvo em Petrogrado (11).
Mesmo com tantos reveses,
os comandantes soviéticos estavam decididos a suprimir o motim antes da chegada
do degelo e, por isso, não aguardaram a finalização dos preparativos militares
para dar andamento às operações. A 12 de março, o bombardeio aéreo e o fogo de
artilharia foram retomados esporadicamente durante todo o dia sem causar
grandes transtornos para as defesas rebeldes. Segundo uma fonte dos emigrados,
um avião bolchevique teria sido abatido no golfo da Finlândia por uma bateria
antiaérea de Kronstadt (12), sendo a única ocorrência de incidente aéreo
registrada durante toda a rebelião. Na manhã seguinte, deram seguimento às
manobras dos dias anteriores. Após bombardear a fortaleza, outra incursão com soldados
camuflados de branco partiu da costa sul um pouco antes do amanhecer.
Novamente, a missão não obteve êxito e retornou debaixo de um poderoso fogo cruzado
oriundo dos fortes nos arredores da ilha. Mas os ataques não foram
interrompidos. Na manhã do dia 14, novos destacamentos bolcheviques, encobertos
pela escuridão da noite, foram engolidos por um furacão de tiros de artilharia
e metralhadora, não lhes restando saída senão a fuga com dezenas de mortos e
feridos deixados para trás. Não houve mais ataques em pequena escala. Durante
as 72 horas seguintes, toda atividade por terra foi suspensa e as operações
avançaram apenas por meio de ataques aéreos e bombardeios de artilharia.
Finalmente, uma força máxima de assalto passou a ser organizada pelo comando
comunista.
Mas as adversidades que os
bolcheviques enfrentavam iam além do campo de batalha. Por exemplo, no entroncamento
das linhas férreas de Krasnoe Selo, a sudeste de Petrogrado, ferroviários
recusavam-se a transportar tropas enviadas para reprimir o levante dos
marinheiros de Kronstadt. Em outro caso, um integrante da Juventude Comunista,
que vinha de Moscou, notou que o trem em que estava parava sucessivamente ao
longo do curto trajeto de Petrogrado a Oranienbaum. O maquinista culpava a má
qualidade do combustível pelos consecutivos contratempos. No entanto, voluntários
que embarcaram no mesmo trem suspeitavam que a viagem estivesse sendo atrasava
de propósito (13). Muito mais sério, todavia, foi um incidente ocorrido no dia
16 de março, à véspera do assalto final. Em Oranienbaum, os fuzileiros da 27ª.
Divisão de Omsk, que serviram com distinção na guerra civil contra os brancos,
deram início a um motim com o propósito de “ir a Petrogrado e derrotar aqueles
judeus”. Tropas leais comandadas por I. F. Fedko, um dos especialistas
militares da Academia Militar do Estado-Maior, isolaram rapidamente a base, cercando
os quartéis dos amotinados de Omsk e efetuando a prisão de seus líderes. Nem
mesmo os fiéis kursanty estavam
imunes ao poderoso vírus da decepção: quase na mesma hora do motim de Omsk, uma
conspiração antibolchevique tramada pelos cadetes da Escola de Comando de
Peterhof foi descoberta e vários de seus oficiais detidos e escoltados para as
prisões de Petrogrado (14).
Não obstante os episódios
envolvendo casos de deslealdade nas tropas do governo, os dois últimos dias
antes do ataque decisivo foram marcados por uma expressiva mudança no moral das
forças vermelhas. Boa parte do mérito pela reviravolta coube aos delegados do X
Congresso do Partido, munidos de uma nova e poderosa arma: a informação de que,
no dia 15 de março, o congresso de Moscou votou pela substituição das
requisições forçadas por uma taxa em espécie. Quando Lênin anunciou o novo programa
à assembleia, um representante da Sibéria subiu ao púlpito e declarou que
“bastaria explicar o decreto a todos os siberianos para que se encerrassem
instantaneamente todas as desordens camponesas na região” (15). Os delegados
que estavam no front, inteirados da novidade, apressaram-se em comunicá-la ao
resto das tropas. O efeito foi notável. De imediato, como recordou um
comissário bolchevique, houve uma mudança radical no ânimo dos soldados, a
maioria dos quais pertencia a famílias camponesas (16). Era o começo do fim do
comunismo de guerra. O anúncio da medida exerceu uma influência decisiva sobre
a performance das forças vermelhas na batalha final.
Quase ao mesmo tempo, também
operava uma mudança no estado de espírito de Kronstadt, só que no sentido
inverso. Até meados de março, o moral dos rebeldes mantinha-se em alta, apesar
dos inúmeros obstáculos com que se defrontavam até então. “Hoje é o aniversário
da queda da autocracia e será a véspera do fim da comissariocracia”, proclamava
o Izvestiia de Kronstadt, no dia 12
de março (17). Um carteiro do consulado norte-americano em Viborg, de passagem
pela fortaleza naquele dia, constatou “a determinação e o bom humor que
predominavam nas guarnições e na população da cidade”. De maneira análoga, um
correspondente do partido socialista revolucionário (SR) descreveu a ordem e
tranquilidade que prevalecia por toda a cidade, onde as fábricas continuavam a
funcionar normalmente. “Almejamos ter iniciado à tarefa colossal de libertação da
Rússia”, explicou Petrichenko ao jornalista. “Estamos empenhando todas as
nossas forças no intuito de convencer a população de Petrogrado a aderir à
nossa causa... Nós construiremos o verdadeiro poder dos sovietes” (18). Kronstadt
estava convencida de que sua causa era justa e que, muito em breve, a revolta se
alastraria pelo continente. A 11 de março, o Izvestiia lançou um apelo a todo o país para que se unisse à luta contra
a opressão bolchevique: “Kronstadt está lutando por todos vocês, que estão
famintos, descamisados, por todos os que sentem frio... Camaradas, os kronstadtinos
ergueram a bandeira da rebelião, confiando nos milhões de operários e
camponeses que responderão ao seu chamado. Não é possível que o amanhã que já
chegou aqui, num dia tão brilhante, não ilumine toda a Rússia, a começar por
Petrogrado” (19).
Enquanto isso, o Comitê Revolucionário
encarregava-se de fortalecer as defesas da ilha contra o ataque iminente. Para
dificultar a tarefa da artilharia e dos bombardeios noturnos, o comitê ordenou
para que se apagassem as luzes da cidade à noite. Até então, as baixas eram
mínimas e forasteiros que visitavam Kronstadt davam conta de poucos feridos e danos
menores nas edificações da cidade. Durante todo o dia do 10 de março, segundo
confirmações dos próprios rebeldes, foram contabilizados quatorze mortos e quatro
feridos (dois marinheiros, um soldado e um civil). No dia 12 de março, o jornal
Izvestiia de Kronstadt surpreendia-se
com um menino de 15 anos que sofreu ferimentos leves quando patrulhava uma
determinada área (nada podia detê-lo, explicava o jornal, pois, no ano passado,
seu pai, um simples camponês, foi fuzilado pelos bolcheviques em sua aldeia) (20).
Mas a situação principiou
a tomar um rumo adverso. Contrariamente ao que se esperava, Petrogrado não deu
provas de que se uniria ao movimento rebelde. Pouquíssimos exemplares do Izvestiia de Kronstadt foram pregados
nas paredes das fábricas e somente em uma ocasião um caminhão circulou pelas
ruas da cidade distribuindo panfletos rebeldes. A 7 de março, operários da
fábrica Arsenal aprovaram a resolução de Kronstadt e enviaram delegados a
outras empresas para convocar uma greve geral em apoio aos insurgentes (21).
Mas todos os esforços foram nulos. Apaziguada pelas concessões e intimidada
pela presença das tropas, a cidade não esboçou qualquer iniciativa em defesa
dos rebeldes. Os marinheiros sentiram-se traídos; sentimento que perdurou por
muito tempo, mesmo após o fim da rebelião. Os refugiados na Finlândia reclamavam
por terem acreditado nos operários de Petrogrado, que realmente pareciam “falar
a sério”, e por apostarem que as greves deflagrariam uma revolução completa. De
maneira similar, marinheiros capturados que estiveram com Dan na prisão
acusaram os operários de se venderem ao governo “por uma libra de carne” (22).
De fato, nenhuma ajuda viria
de qualquer parte. Kronstadt permaneceu só e isolada. Ataques aéreos frequentes,
intensos bombardeios de canhão, investidas noturnas dos pelotões de ataque
bolchevique, que impediam as noites de sono dos marinheiros, além das violentas
tempestades de neve, que castigavam as patrulhas rebeldes, obrigadas a percorrer
o chão coberto de gelo calçando apenas sandálias por falta de botas,
tornaram-se rotineiros. Como se não bastasse, o abastecimento de combustível
estava por um fio. Alarmado, o Izvestiia
de Kronstadt rogou à população sitiada que economizasse o máximo possível de
energia elétrica. Também iam se escasseando as munições. A 11 de março, os
rebeldes receberam ordens para não dispararem contra aviões comunistas,
desperdiçando inutilmente valiosos cartuchos de fuzis e metralhadoras. Ao mesmo
tempo, os “especialistas militares” criticavam os procedimentos da artilharia
que atirava indiscriminadamente em alvos distantes e incertos. Para piorar, o
número de baixas, ainda que pouco preocupante, aumentava a cada dia. Em meados
do mês de março, os estoques de medicamentos chegavam ao fim concomitantemente
ao aumentou significativo da taxa de mortalidade. No dia 14 de março, cumpriram-se
ritos funerários coletivos no Hospital Naval de Kronstadt. Dois dias depois,
enquanto outra cerimônia era realizada na Catedral dos Marinheiros, a
artilharia comunista bombardeou a cidade sem cessar. Naquela noite, o moral dos
rebeldes despencou ainda mais quando um projétil de 12 polegadas lançado de
Krasnaya Gorka atingiu o convés do Sebastopol, matando 14 marinheiros e ferindo
outros 36 (23).
Em tais circunstâncias,
como bem lembrou um membro do Comitê Revolucionário, era impossível manter o
entusiasmo do início (24). Já Berkman observou que a vitalidade da fortaleza
rebelde desvanecia com os sucessivos ataques, a falta de alimento e de
combustível, as longas noites de insônia passadas em guarda e ao relento (25).
Um sentimento de aflição incontido apoderava-se dos insurgentes à medida que se
tornava insuportável a espera pelo assalto que se sabia inevitável e próximo. Em
razão disso, o clima de suspense e o crescente estado de tensão deixavam a
resistência com os nervos à flor da pele. O que mais preocupava os rebeldes, no
entanto, era um problema que o autor do Memorando Secreto previu semanas antes
do início do conflito: a situação das provisões de Kronstadt. Por quanto tempo
haveria ainda de durar as reservas de alimentos necessários para abastecer uma população
de 50 mil habitantes isolada do mundo exterior? Ao fim da primeira semana, já
não havia como manter a ração diária de 225 gramas de pão e uma lata de
conservas. No dia 8 de março, cada pessoa passou a receber uma pequena
quantidade de aveia suficiente para quatro dias e, no dia 9, um pouco mais de
100 gramas de uma bolacha preta feita de farinha e batatas desidratadas. No dia
seguinte, os metalúrgicos de Kronstadt, condoídos com a situação, ofereceram à comunidade
sua cota especial de carne de cavalo enlatada. Apesar de tudo, durante todo o
período em que transcorreu a insurreição, não faltou o leite condensado - e,
ocasionalmente, uma lata de carne em conserva - a que cada pessoa tinha
direito. E, para as crianças, reservou-se sempre um extra de 200 gramas de
manteiga. Mas, no dia 15 de março, quase não sobravam mais alimentos enlatados,
enquanto que os estoques de farinha estavam vazios e o pão escasseava (26).
O povo tinha fome. Pela
ocasião, o soviete de Petrogrado avaliava que “a fome é frequentemente o
principal fator de capitulação nas guerras entre os povos” (27). Aos poucos, Kronstadt
perdia a esperança de resistir até o degelo da primavera e os líderes rebeldes
passaram a reconsiderar a possibilidade de receber ajuda do exterior. Como
vimos, nos primeiros dias da revolta, as ofertas de Chernov foram
respeitosamente recusadas pela liderança do movimento. Mas quando, a 16 de março,
o barão Vilken ofereceu alimentos e remédios em nome da Cruz Vermelha Russa, os
rebeldes não estavam em condições de recusar e aceitaram a promessa com imensa
gratidão.
Mas, como sabemos também,
a ajuda nunca chegou. Com efeito, naquele mesmo dia, 16 de março, Tukhachevsky
reagrupou o seu exército para consumar o assalto final ao bastião rebelde.
As forças de ataque foram divididas em dois grupos. A unidade maior foi
instalada na costa sul do golfo da Finlândia, enquanto a menor iniciava suas
operações ao norte da margem costeira da Carélia. Para enfrentar 15 mil
rebeldes bem entrincheirados, estima-se um número total de soldados nas tropas
comunistas entre 35 mil a 65 mil (28). Mas as cifras reais oscilam
provavelmente ao redor de uns 50 mil homens (o dobro do primeiro assalto do dia
8 de março), dos quais uns 35 mil compunham o Grupo do Sul. Alguns dos melhores
comandantes bolcheviques foram escalados para liderar a repressão. Muitos
haviam se destacado na guerra civil, como Fedko e Dybenko, ambos da Academia
Militar do Estado-Maior, e Vitovt Putna, oficial que a pouco assumira o comando
da 27ª. Divisão de Omsk, após a malfadada tentativa de motim. Apesar das
incessantes acusações do governo, de que a rebelião de Kronstadt era obra de
uma conspiração de generais da Guarda Branca, a verdade é que os oficiais
czaristas desempenharam um papel muito mais importante para as forças
bolcheviques. Os comandantes E. S. Kazansky e A. I. Sediakin, assim como os
seus superiores, Tukhachevsky e S. S. Kamenev (que não tinha nenhum
parentesco com o L. B. Kamenev, um dos líderes do Partido Comunista) serviram
como oficiais no Exército Imperial.
Os recrutas sentiram-se,
então, mais confiantes. O reforço numérico das tropas incorporadas, a
indiscutível qualidade do alto oficialato empregado para comandar a operação,
sem esquecer, é claro, da injeção de ânimo aplicada pelos incansáveis delegados
do partido, colaboraram em muito para elevar o moral das tropas. “Há três anos,
temos sofrido com a fome, a falta de combustível e outras calamidades do
gênero. E agora esta traição! Façamos picadinho desses traidores!” (29)
Mensagens assim eram marteladas incessantemente pela máquina de propaganda
soviética, mas agora repercutia positivamente na disposição dos soldados,
tomados por um ímpeto de vingança contra os marinheiros de Kronstadt. Os
soldados iniciaram a operação vestidos de casaca branca e botas de inverno;
estavam equipados com abundante munição e tesouras especiais para cortar o
arame farpado que protegia os fortes e baterias da ilha. Como forma de aplacar
qualquer tipo de insatisfação em torno da comida, cada soldado recebeu ração de
pão suficiente para dois dias e duas latas de carne em conserva. Todavia, um
comandante do Grupo do Norte, querendo elevar o psicológico de suas tropas,
enfiou os pés pelas mãos ao advertir seus homens para não comerem antes de
entrar em combate, pois as feridas eram bem mais difíceis de curar com o
estômago cheio (30).
O plano de Tukhachevsky
previa um prolongado bombardeio seguido por um assalto de infantaria a partir
de três rotas distintas e divididas entre o Grupo do Norte, que partiria do
extremo norte da ilha de Kotlin, e o Grupo do Sul, que sairia das extremidades
sul e leste. Às 14 horas, do dia 16 de março, as tropas legalistas desfecharam
um bombardeio que perdurou o dia todo. Projéteis caíram próximo ao cemitério,
onde se prestava homenagem aos rebeldes que pereceram em combate. Os fortes, as
baterias e os dois encouraçados replicaram com pesados tiros de barragem.
Durante o fogo cruzado, um projétil estourou no convés do Sebastopol. Apesar de não provocar danos maiores na embarcação, o
incidente matou ou feriu uns 50 tripulantes. Para evitar que o Petropavlovsk também fosse atingido, a
tripulação liberou uma cortina de fumaça que encobriu todo o navio. Entretanto,
no dia seguinte, uma bomba acertou o Petropavlovsk,
matando cinco homens e ferindo sete (31). Além dos intensos disparos costeiros,
a força aérea cruzou o golfo e bombardeou a fortaleza e a rede de defesa da
ilha. Todavia, o bombardeio combinado por terra e ar não provocou estragos
consideráveis, tampouco muitas baixas. Mas o abatimento psicológico foi grande,
deprimindo ainda mais o estado de ânimo dos insurgentes.
Ao cair da noite, o
bombardeio cessou. Atentos ao padrão da ofensiva da semana anterior, os rebeldes
esperavam a mesma regularidade do ataque seguinte e os homens tomaram seus
postos de costume. Muitos deles estavam exaustos, porque nos últimos dois ou
três dias sequer tiveram tempo para um simples cochilo. Porém, nada acontecia.
Apenas um silêncio absoluto imperava noite adentro. Fachos de luz dos
refletores dos fortes e navios de Kronstadt rastreavam para lá e para cá a
paisagem glacial a procura de algum sinal de movimentação. Finalmente, às 3 horas
da manhã, do dia 17, as tropas inimigas avançaram, valendo-se da escuridão e de
um denso nevoeiro que desabou sobre o golfo. O Grupo do Norte, composto em
grande parte por cadetes militares da região de Petrogrado, partiu de
Sestroretsk e Lisy Nos em duas colunas com o objetivo de efetuar um ataque em
dois flancos, respectivos aos fortes Totleben e Krasnoarmeets e aos sete fortes
numerados entre a ilha de Kotlin e a costa da Carélia. Encabeçando as colunas, marchavam
voluntários da tropa de choque encarregada de limpar o terreno para o derradeiro
ataque. Para não serem detectados, os oficiais deviam transmitir as ordens por
cochichos e conversas estavam expressamente proibidas. A comunicação também
devia se realizar por meio de minuciosos sinais luminosos que foram devidamente
planejados com antecedência. Ademais, era proibido fumar.
Às 5 horas da manhã, a
coluna da ala esquerda, formada por cinco batalhões que partiram de Lisy Nos em
direção à extrema periferia de Kronstadt, deteve-se ante os fortes 5 e 6, que
se avultavam ameaçadores. Os homens receberam ordens para que se deitassem; em
seguida, avançaram lentamente, rastejando-se pela camada de gelo. A água que
sobejava a superfície congelada do golfo encharcava seus casacos brancos.
Quando já haviam alcançado a cerca e rompiam o arame farpado, foram surpreendidos
pela iluminação dos refletores dos fortes rebeldes, que, de tão intensa, “a
noite virou dia”, conforme recordava um soldado sobrevivente. No forte 6, ouviram-se
gritos para que os invasores se rendessem. “Somos amigos. Somos a favor do poder
dos sovietes. Não queremos atirar em vocês” (32). Ignorando os apelos, os kursanty precipitaram-se até os fortes
empunhando baionetas e granadas. Ante a saraivada de tiros mortíferas das
metralhadoras, deram meia-volta e fugiram contando inúmeras perdas. Mas, após sucessivas
investidas, finalmente os cadetes atravessaram as defesas rebeldes aos gritos
de “hurra!” A partir daí, travou-se uma batalha feroz entre as forças inimigas
até que os dois fortes foram conquistados pelas tropas invasoras.
Durante a manhã, o
nevoeiro se dissipou e o 17 de março resplandeceu bonito e ensolarado. Sem
poder contar com a proteção da noite, as tropas comunistas arriscaram-se num
ataque rápido aos demais fortes de Kronstadt. O embate foi marcado pela
rivalidade de dois grupos que lutavam com uma obstinação que ultrapassava as
raias do fanatismo e que resultou em muitas perdas de vidas. O bombardeio da
artilharia rebelde rompia a camada de gelo formando pequenos lagos que logo se
convertiam em tumbas de dezenas de soldados inimigos. Em um dos batalhões
comunistas, segundo relatou S. P. Uritsky, comandante da Academia Militar do
Estado-Maior, não sobrou mais que 18 sobreviventes (33). Mas a resistência
rebelde foi paulatinamente sendo vencida. No meio da tarde, todos os fortes
numerados foram derrotados e os kursanty
avançaram até o noroeste da muralha que cercava a cidade de Kronstadt. Enquanto
isso, a coluna da direita, composta por duas companhias, tentava inutilmente
tomar o forte Totleben. Embora esgotados, os rebeldes lutavam com um desespero
selvagem, obrigando os pelotões comunistas a retrocederam muitas vezes. As baixas
multiplicavam-se generosa e indiscriminadamente. Entretanto, os insistentes
ataques de infantaria conseguiram inutilizar os grandes canhões do forte. Em
compensação, as metralhadoras e granadas dos rebeldes cobraram um pesado
tributo às tropas comunistas. Sem se dar conta, um grupo de cadetes entrou em
um campo minado e, quando as bombas explodiram, muitos deles se afogaram nas
cavidades abertas na crosta de gelo. Finalmente, as tropas invasoras penetraram
o forte onde se travou um terrível combate corpo a corpo pelo resto do dia. Até
a uma da manhã, do dia 18, o forte Totleben não havia se rendido, mas não
resistiu por muito mais tempo e, quando caiu, Krasnoarmeets, o forte vizinho,
também se entregou.
Enquanto isso, o Grupo do
Sul lançou um ataque pelas regiões sul e leste da cidade. Um efetivo numeroso,
municiados com metralhadoras e artilharia leve, deixou Oranienbaum às 4 da
manhã do dia 17, cerca de uma hora depois da saída do Grupo do Norte, e avançou
dividindo-se em três colunas até o porto militar de Kronstadt. Uma quarta
coluna foi enviada ao Portão de Petrogrado, que, como vimos, era o ponto de
estrada mais vulnerável da cidade. Ainda estava escuro quando as unidades da
79ª. Brigada de Infantaria aproximaram-se dos canhões que defendiam o porto. Do
outro lado, refletores lançavam feixes de luz à procura de soldados inimigos,
mas a escuridão e a névoa ocultavam as tropas camufladas. Ao desembarcar no
extremo sul da cidade, tropas de choque comunistas dominaram rapidamente as
equipes de atiradores das baterias externas. Então, ao apertarem o passo em
direção dos baluartes rebeldes da periferia, foram recepcionados por um intenso
fogo de barragem. Nuvens de neve subiam em consequência dos milhares de tiros
que ricocheteavam e granadas que explodiam no gelo. Embrenhando-se para dentro
de um furacão mortal de rajadas de balas, os destacamentos comunistas revelaram
uma coragem extraordinária; ainda que o desespero empurrava-os para frente, em
partes, pelo efeito de palavras de ânimo ou ameaças da retaguarda. Não é
surpreendente, todavia, que alguns homens foram acometidos por crises de pânico
e se recusaram a prosseguir. Quando dois soldados, dominados pelo terror,
esconderam-se dentro de uma barcaça encalhada no gelo, o comandante do pelotão
sacou a pistola e matou os rapazes ali mesmo; em seguida, deu ordens para que
os demais seguissem adiante (34). Mas a batalha foi decidida quando vários caminhões
carregados de combatentes rebeldes entraram em cena e armaram um contra-ataque
fulminante sem dar chance de reação aos comunistas, que foram forçados a
recuar. Durante o confronto, foram mortos ou feridos mais da metade dos homens
da 79ª. Brigada, incluindo alguns delegados do X Congresso do Partido (35).
Na extrema zona leste da
cidade, o cenário era mais animador para as forças do governo. Momentos antes do
nascer do sol, a 32ª. Brigada de Infantaria, secundada pelos 95º. e 96º.
Regimentos de Infantaria, conseguiu abrir uma brecha na muralha ao norte do
Portão de Petrogrado e, mediante violento combate, penetrou no interior da
cidade. Paralelamente, a 187ª. Brigada de Infantaria, comandada por Fedko e
tendo à frente a tropa de choque dos cadetes militares, conseguiu forçar uma
entrada no Portão de Petrogrado, sendo seguida de perto pelas 167ª. e 80ª.
Brigadas. Até aqui, as tropas do governo já haviam sofrido pesadas baixas,
porém, uma vez dentro das muralhas, conforme as palavras de um contemporâneo,
“abriram-se as portas do inferno” (36). Os soldados invasores foram recebidos
por um enxame de tiros de metralhadoras e rifles que pareciam disparar de todas
as janelas e do alto dos telhados. Nas calçadas, poças de sangue empapavam o
chão coberto pela neve, enquanto mortos e feridos abarrotavam as ruas da cidade.
Cada espaço era milimetricamente disputado: rua a rua, casa a casa. Apesar de
tudo, nem o derramamento de sangue fatricida nem a queda da maioria dos fortes
ou a feroz batalha dentro da cidade compeliram os rebeldes a uma desforra em
cima dos prisioneiros comunistas. Próximo ao Portão de Petrogrado, uma patrulha
de resgate do governo correu para chegar ao cárcere e, rompendo uma das janelas,
armas foram entregues aos prisioneiros que se libertaram e uniram-se ao combate
(37).
Durante todo o dia, as
forças beligerantes enfrentaram-se sem trégua. De acordo com alguns relatos, as
mulheres de Kronstadt tomaram parte da luta, levando munições aos rebeldes e
retirando os feridos debaixo do fogo cruzado para transportá-los aos postos de
primeiros socorros do hospital da cidade (38). Às 16 horas, os insurgentes
lançaram uma contraofensiva repentina que estremeceu o avanço das tropas bolchevique
que por pouco não recuaram das posições alcançadas para fora da cidade. Mas
neste momento crítico, o 27º. Regimento de Cavalaria e um destacamento de
voluntários do partido de Petrogrado chegaram para salvar o dia. Momentos antes
do pôr do sol, a artilharia de Oranienbaum invadiu a cidade e abriu fogo contra
os rebeldes. À medida que a batalha tornava-se mais encarniçada, homens de
ambos os lados caíam feridos ou porque sofriam de exaustão. Nas primeiras horas
da noite, os kursanty do Grupo do
Norte introduziram-se na cidade pela região nordeste e dominaram o quartel
general da fortaleza, fazendo muitos prisioneiros. Ato contínuo, estabeleceram
contato com o Grupo do Sul, que naquele momento já havia aberto caminho entre o
Portão de Petrogrado e o centro da cidade. À meia-noite, a luta arrefeceu. Os
últimos fortes caíram um a um. A vitória estava à vista.
A 5 de março, ou seja,
muitos dias antes do derramamento de sangue que arrasaria a cidadela de Kronstadt,
o Comitê de Defesa de Petrogrado alertou os insurgentes de que no último minuto
os líderes do motim - “os Kozlovskys e Petrichenkos” - abandonariam a cidade e
fugiriam para Finlândia (39). Previsão que se cumpriu a risca. Na noite de 17
de março, quando tudo se revelou perdido, onze membros do comitê revolucionário
(inclusive, Petrichenko) escaparam para Terijoki. (Valk, Pavlov e Perepelkin foram
feitos prisioneiros durante a batalha e Vershinin, como vimos acima, já havia
sido capturado na ocasião do primeiro assalto do dia 8 de março). Kozlovski,
Solovianov e outros “especialistas militares”, que colaboravam com os rebeldes,
também conseguiram fugir. Um pouco antes da meia-noite, cerca de 800
refugiados, incluindo a maior parte da liderança do movimento insurgente,
aportaram nas praias da Finlândia. Por serem os mais visados, em uma eventual
captura, os líderes rebeldes só não foram os primeiros a deixar a ilha porque
um grupo de marinheiros dos fortes numerados evadiu-se antes para o litoral da
Carélia. Mas, sem dúvida, a perspectiva de execução sumária pesou na decisão de
abandonar Kronstadt. De qualquer maneira, a fuga da liderança teve o efeito de
um sinal verde para um êxodo em massa que despovoou a ilha de Kotlin e suas
fortificações. Durante as vinte e quatro horas que se seguiram, uma corrente
interminável de refugiados, em sua maioria marinheiros, atravessaram as
fronteiras da Finlândia. No total, cerca de 8.000 homens, ou seja, mais da metade
das forças rebeldes, fugiram de Kronstadt. Mais ou menos uns quatrocentos
cavalos, que se desgarraram em meio ao horror do combate, foram domados sobre
as águas congeladas do golfo e uns 2.500 fuzis abandonados próximo à costa litorânea
foram recolhidos pelos guardas de fronteira finlandeses (40).
Tem sido observado que o
bombardeio comunista, ainda que suspenso por 11 dias, provocou poucos danos na
defesa de Kronstadt. Mas, em seu último gesto de desacato, os marinheiros em
retirada danificaram a culatra dos canhões dos fortes e baterias e destruíram
também dínamos, refletores, metralhadoras e demais equipamentos militares. Quando
os comunistas ocuparam os fortes do norte, quase não sobraram armas em condição
de uso (41). Na noite de 17 de março, os comandantes do Petropavlovsk e Sebastopol
deram instruções às respectivas tripulações para que dinamitassem os navios no
momento do desembarque. Mas os homens, ao tomarem conhecimento da fuga dos líderes
rebeldes, não executaram as ordens. Num movimento inverso, prenderam os
oficiais e enviaram mensagens ao comando soviético comunicando que estavam prontos
a se renderem. Às 23h50, o quartel-general comunista de Kronstadt encaminhou a
seguinte mensagem ao Comitê de Defesa de Petrogrado: “O covil
contrarrevolucionário do Petropavlovsk
e do Sebastopol está enfim liquidado.
Simpatizantes da autoridade soviética assumiram o controle das embarcações e foram
encerradas todas as atividades militares a bordo do Petropavlovsk e Sebastopol.
Providências têm sido tomadas com a devida urgência para que os oficiais em
fuga para a Finlândia sejam detidos” (42). Durante as primeiras horas do dia 18
de março, destacamentos kursanty
ocuparam os dois encouraçados. Enquanto isso, salvo uns poucos focos isolados
de resistência, os rebeldes capitularam, de modo que ao meio-dia os fortes e
barcos e quase toda a cidade estavam nas mãos do governo. À tarde, os últimos
redutos rebeldes foram vencidos e não se ouviu mais o estrepitar dos canhões de
Kronstadt.
Por sua ferocidade, a
batalha de Kronstadt igualou-se aos episódios mais sangrentos da guerra civil.
As perdas foram grandes para ambas as partes; mas para os comunistas, forçados
a atacar em campo aberto, contra combatentes fortemente entrincheirados, o
preço foi muito maior a pagar. Entre os dias 3 e 21 de março, segundo o
relatório oficial de saúde, mais de 4.000 feridos foram internados nos
hospitais de Petrogrado. Destes, 527 vieram a óbito no leito hospitalar. Estas
cifras não incluem o grande número de vítimas que pereceu na batalha. Depois da
luta havia tantos mortos espalhados pela superfície de gelo que forçou o governo
finlandês a pedir para Moscou a retirada dos corpos que, com a chegada do
degelo, poderiam ser arrastados pela maré até a terra firme e acarretar riscos
para a saúde do país (43). Uma estimativa de fontes oficiais calcula, por
baixo, um total de baixas em torno de 700 comunistas e 2.500 feridos. Entretanto,
segundo o testemunho de um bolchevique que atuou no Forte de Número 6, esses
números foram subestimados. Outro cálculo eleva a perdas comunistas para 25.000,
entre mortos e feridos. Todavia, segundo o bem informado cônsul norte-americano
em Viborg, Harold Quarton, as baixas soviéticas totais chegaram próximas aos
10.000 mil homens. Tal estimativa parece bastante razoável, caso se considere
todos os mortos, feridos e desaparecidos (44). Cerca de quinze delegados do X
Congresso do Partido perderam suas vidas durante a campanha. A 24 de março,
houve um enterro coletivo com honras militares realizado em Petrogrado (45).
As baixas rebeldes foram
menores, mas de modo algum insignificantes. Nenhum dado disponível é confiável,
mas um relatório contabiliza 600 mortos, 1.000 feridos e cerca de 2.500
prisioneiros (46). Entre os mortos, não foram poucos os que foram massacrados
quando o conflito estava em vias de terminar. Uma vez dentro da fortaleza, a
sanha por vingança tomou conta das tropas comunistas, que perpetraram uma
verdadeira orgia de sangue. O ódio acumulado durante o assalto pode ser
expresso pelo arrependimento de um soldado que lamentava o uso de aviões para
metralhar rebeldes que fugiam em campo aberto para a Finlândia. Mas o número de
vítimas poderia ter sido bem maior. Tanto Trotsky como S. S. Kamenev, seu comandante
em chefe, já haviam aprovado o uso de armas químicas contra os rebeldes. Se a
resistência tivesse perdurado por mais algum tempo, teria avançado um plano idealizado
pelos cadetes da Escola Superior Militar de Química de atacar Kronstadt com
bombas de gás tóxico lançadas por balões [No original: “...a plan to launch a
gas attack with shells and balloons” - N.T] (47).
A notícia da repressão
repercutiu rapidamente, provocando diferentes reações entre os mais diversos
setores. Na Europa ocidental, os expatriados russos sentiram-se desolados.
Lamentaram os insucessos da tentativa de ajuda aos rebeldes e denunciavam a
Grã-Bretanha por ter firmado um acordo comercial com os bolcheviques bem no
auge do conflito armado. Todavia, um jornal dos emigrados assumiu uma posição
bem menos desesperadora. Em um editorial intitulado “As lições de Kronstadt”,
declarava que a luta pela libertação da Rússia não cessaria até que a vitória
final fosse alcançada. Igualmente, o professor Grimm escreveu a um colega que,
se uma nova revolta irrompesse em Petrogrado, eles não poderiam ser pegos outra
vez desprevenidos (48).
Na Rússia, os bolcheviques
festejavam o triunfo tão duramente conquistado. Mas em meio à euforia havia uma
nota de pesar aos “equivocados camaradas marinheiros”. No geral, os estrangeiros
comunistas comungavam dessa alegria amarga e mantiveram seu apoio ao regime por
mais incerto o rumo que a revolução parecia estar tomando. Afinal, a Rússia
bolchevique, ponderavam, era o primeiro estado socialista da história. Apesar
de todas as suas deficiências, era o primeiro país em que latifundiários e burguesia
haviam sido despojados do poder que lhes estava profundamente incrustado. Em
sua opinião, objeções de outra ordem eram de importância secundária. Mas alguns
comunistas estrangeiros, como Victor Serge, sentiam-se profundamente consternados.
Para os anarquistas, como Emma Goldman e Alexander Berkman, a repressão a Kronstadt
teve um efeito devastador. Na noite de 17 de março, recordava Goldman, em suas
memórias, quando cessou de trovejar os canhões, a bonança que se abateu sobre Petrogrado
era mais assustadora que os ininterruptos estrondos dos dias anteriores. Durante
os momentos finais de Kronstadt, Berkman, para quem “o último fio que prendia
minha fé aos bolcheviques acaba de arrebentar”, vagou sem esperança pelas ruas
da cidade; enquanto Goldman, prostrada em seu quarto de hotel, experimentava uma
insuportável agonia, “uma inexplicável fatiga que inundava cada parte do meu
ser”. Sentada à janela, Goldman encarava Petrogrado, que lhe parecia agora,
envolta na escuridão, “uma entidade fantasmagórica”, coberta por um fúnebre
manto negro e pontilhada pelo cintilar das lâmpadas amarelas, “velando a cidade
à noite”. Na manhã seguinte, 18 de março, os jornais de Petrogrado traziam
grandes manchetes comemorativas do quinquagésimo aniversário da Comuna de
Paris. As bandas de música tocavam marchas militares e os comunistas desfilavam
pelas ruas cantando a “Internacional”. “Sua melodia - observava Goldman -, que
uma vez soara tão jubilosa aos meus ouvidos, parece agora um triste réquiem em
memória à esperança em chamas da humanidade”. Berkman fez uma ácida anotação em
seu diário: “Os vitoriosos celebram o aniversário da Comuna de 1871. Quanta ironia,
agora Trotsky e Zinoviev manifestam todo o seu repúdio a Thiers e Galliefet, os
responsáveis pelo massacre dos rebeldes de Paris” (49).
Enquanto isso, em Kronstadt,
os bolcheviques fizeram todo o possível para esconder os rastros do levante.
Pavel Dybenko foi nomeado comandante da fortaleza, investido de poderes
absolutos para realizar expurgos de elementos dissidentes e calar ideias
subversivas. Para auxiliar o novo comandante, no lugar do soviete de Kronstadt,
foi instaurada uma revtroika,
composta por três dos mais leais líderes bolcheviques de Kronstadt: Vasiliev,
Bregman e Gribov. Aos 18 de março, começou a circular na cidade um novo jornal,
Kronstadt Vermelho. Os barcos de
guerra Petropavlovsk e Sebastopol foram rebatizados com os
nomes de Marat e Comuna de Paris, enquanto que a Praça da Âncora passou a se chamar
Praça da Revolução. Novamente, reiniciou-se a inscrição partidária e, durante o
processo, 350 filiados foram expulsos ou não compareceram à convocatória do
partido. Uma “operação cirúrgica”, segundo as palavras de um autor, foi
colocada em prática na Marinha Soviética: os marinheiros suspeitos foram
separados e transferidos para as bases do Mar Negro, Cáspio e Aral, ou para a flotilha
do Rio Amur, no Extremo Oriente. Paralelamente, em todas as unidades navais
foram realizadas purgas para remoção de elementos suspeitos de serem Ivanmory - mais ou menos uns 15.000 (50).
Os soldados do Exército Vermelho, que participaram do assalto final, foram
também dispensados para localidades remotas de todo o país. Somente um mês mais
tarde, Tukhachevsky foi outra vez designado para comandar uma expedição
punitiva contra os guerrilheiros de Antonov, na região de Tambov (51).
Finalmente, resta-nos
esclarecer o paradeiro dos sobreviventes de Kronstadt. Nenhum dos rebeldes
capturados foi submetido a julgamento público. Dos mais de dois mil detidos durante
a luta, somente treze foram denunciados de liderar o motim e julgados a portas
fechadas. Para endossar a tese da acusação, acerca da conspiração contrarrevolucionária,
a imprensa soviética publicava repetidas vezes os antecedentes dos réus: cinco
ex-oficiais navais eram nobres de nascimento, outro era um ex-padre e sete eram
camponeses (52). Os nomes dos acusados não eram conhecidos, nenhum deles
aparecia como “especialista militar” ou pertencia ao Comitê Revolucionário -
dos quais Valk, Pavlov, Perepelkin e Vershinin estavam mantidos sob
custódia. No dia 20 de março, os treze “chefes” do levante foram julgados e
condenados à pena de morte.
Com relação aos demais
prisioneiros, já foi dito que centenas foram executados em Kronstadt. Os que
restaram foram conduzidos pela Tcheca para prisões no continente. Em Petrogrado,
os cárceres ficaram lotados e, durante um período de vários meses, centenas de
rebeldes foram tirados de suas celas e fuzilados. Entre eles, Perepelkin, o
qual Feodor Dan travou conhecimento enquanto faziam exercícios no pátio da
prisão. Antes de ser executado, redigiu uma exposição detalhada sobre a
revolta. Dan nunca soube que fim levou o manuscrito (53). Outros foram enviados
a campos de concentração, tais como a notória prisão Salovki, no Mar Branco. Condenados
a trabalhos forçados, para muitos resultou numa sentença de morte lenta pela fome,
fadiga e doenças (54). Em alguns casos, as famílias dos insurgentes padeceram
do mesmo destino. A esposa e os dois filhos de Kozlovski, feitos reféns no
início de março, foram enviados para um campo de concentração e somente à sua
filha de 11 anos foi concedido o perdão (55).
E o que foi feito dos rebeldes
que fugiram para a Finlândia? Cerca dos oito mil que escaparam foram internados
em campos de refugiados em Terijoki, Viborg e Ino. Quase todos os fugitivos eram
marinheiros e soldados, mas dentre eles se encontravam alguns civis - homens,
mulheres e crianças (56). A Cruz Vermelha Norte-Americana e Britânica
proporcionaram-lhes alimento e vestuário. Alguns foram empregados na construção
de estradas e outras obras públicas. No entanto, a vida nos campos era penosa,
deprimente e de difícil adaptação. Aos refugiados, não se permitia, a
princípio, nenhum contato com a população local. Enquanto o governo finlandês recorria
à Liga das Nações para realocar os refugiados para outros países, os bolcheviques
exigiam a repatriação dos foragidos e a devolução de todas as armas
apreendidas. Atraídos pela promessa de anistia, alguns retornaram à Rússia, onde
foram presos e levados a campos de concentração. Entre maio e junho, muitos
deles passaram por uma breve estadia na mesma prisão em que Dan estava preso. Depois
lhes foi reservado uma morte prematura nos campos de trabalho forçado (57).
Ainda assim, nem a melancolia
nem a decepção pela derrota abalaram o prestígio de Petrichenko, que continuou
sendo respeitado pelos seus camaradas. Seu maior erro, diziam, foi poupar os
líderes comunistas do fuzilamento. Mas o próprio Petrichenko não se
arrependia de sua decisão. Admitiu, entretanto, a um jornalista norte-americano
em Terijoki, que a rebelião havia sido prematura e mal organizada. “Fomos derrotados
- disse - mas o movimento não se extinguirá, porque surgiu do povo... Existem
milhões como eu na Rússia, que não são reacionários brancos nem assassinos
vermelhos. Esta gente simples haverá de derrotar os bolcheviques” (58). Pouco
se sabe da vida de Petrichenko no exílio. Uma coleção soviética de documentos e
memórias relativos ao levante de Kronstadt contém uma carta, datada de 17 de
novembro de 1923, que se pretende do líder rebelde a um amigo que residia na
Rússia. Na correspondência, Petrichenko não só reconhece seus erros como chega
a confessar que vem solicitando para que seja readmitido à sua pátria (59).
Todavia, a carta é de autenticidade duvidosa. Um artigo publicado por
Petrichenko num jornal socialista revolucionário (SR), em dezembro de 1925, não
parece demonstrar um pingo de arrependimento e segue sustentando o caráter
espontâneo da rebelião, que é definida como um movimento de libertação contra a
ditadura do Partido Comunista, ou melhor, dos seus líderes (60).
Sobre a vida de Petrichenko
no exílio, a história soviética oficial da Guerra Civil registra de modo
equivocado uma curta passagem do líder rebelde pela Finlândia com destino à
Tchecoslováquia, onde teria se estabelecido. A verdade é que ele permaneceu na
Finlândia por quase 25 anos. Como consequência da derrota, como vimos acima, Petrichenko
aceitou colaborar com os círculos de emigrados da Europa ocidental, com os
quais compartilhava o desejo de libertar a Rússia do domínio bolchevique. Mais
tarde, todavia, uniu-se a grupos pró-sovéticos na Finlândia. Durante a Segunda
Guerra Mundial, suas atividades indispuseram-no com as autoridades finlandesas que,
em 1945, o repatriaram. Na Rússia, foi prontamente preso e, um ou dois anos
depois, morreu em um campo de prisioneiros (61).
Nenhum comentário:
Postar um comentário