segunda-feira, 1 de março de 2021

A Terceira Revolução: a repressão a Kronstadt

Centenário da Rebelião de Kronstadt

(1 março de 1921, assembleia dos marinheiros/18 de março de 1921, fim da revolta.) 

Kronstadt, 1921 - A Rebelião

Tradução: Jean Fecaloma

6. A repressão

No dia 9 de março, um dia depois de abortado o assalto à cidadela de Kronstadt, o líder bolchevique Kamenev, em discurso proferido ao X Congresso do Partido em Moscou, expôs considerações sobre o impasse militar, que se “arrastava por tempo demasiado” e não seria resolvido “tão cedo” quanto o esperado (1). O primeiro ataque revelou-se prematuro, pois as autoridades estavam, por um lado, ansiosas por sufocar o levante antes que os rebeldes pudessem receber ajuda do exterior e, por outro, receosas de que a revolta contagiasse o continente com seu exemplo. Os preparativos para a ofensiva foram organizados de modo atabalhoado e precipitado; não havia tropas em quantidade suficiente e a operação redundou numa derrota fragorosa, contabilizando muitas baixas.

Ademais, a situação era muito preocupante, pois o degelo da primavera tomava proporções cada vez mais drásticas. O senso de urgência levou o comandante bolchevique Tukhachevsky a providenciar um segundo ataque, desta vez com um poder de fogo muito maior que os anteriores. Aeronaves e um grande contingente de artilharia foram deslocados rapidamente para o teatro de operações. Tropas afluíam de todas as regiões do país para reforçar o efetivo militar instalado nas duas costas litorâneas que ladeiam a ilha de Kotlin pelo continente. Praças foram diligentemente selecionados para evitar que o moral baixo que afetava as tropas resultasse em um fator de insucesso, como na ocasião da desastrosa ofensiva do dia 8 de março. Batalhões inteiros de cadetes e a Juventude Comunista chegavam cantando a “Internacional”, em sinal de fidelidade à revolução. Vinham de cidades tão remotas como Smolensko, Vitebsk, Riazan e Nizhni Novgorod (2). Destacamentos seletos de comunistas e unidades especiais da Tcheca juntavam-se às novas forças de assalto. Regimentos leais ao governo foram transferidos da Ucrânia e da frente polaca para o golfo. Enfim, engrossaram os pelotões tropas chinesas, tártaras, baskires e letonas, que certamente não teriam os mesmos escrúpulos dos grandes russos em atirar contra os insurgentes de Kronstadt. Segundo comentou um observador, eram os comunistas e os não-russos (inorodtsy) contra o povo (3).

Comandantes tão experientes quanto Fedko, Uritsky e Dybenko da Academia Militar do Estado-Maior foram acionados para auxiliar as operações de repressão ao movimento rebelde. Dybenko, que foi um proeminente bolchevique da tripulação do Petropavlovsk nos tempos da revolução, endereçou um panfleto a seus “velhos camaradas marinheiros de Kronstadt”. No texto, denunciava Petrichenko como um “Poltava kulak” [Um kulak da cidade de Poltava, Ucrânia - N.T.] e aconselhava os rebeldes a baixarem as armas (4). Ao mesmo tempo, o governo gastou de todo tipo de artifício para convencer as tropas do caráter contrarrevolucionário da rebelião dos marinheiros. Notícias transmitidas pela rádio e órgãos de imprensa apresentavam a “Kronstadt Branca”, sublevada por agentes subordinados aos emigrados e seus cúmplices, as nações Aliadas. “Malgrado os malditos traidores de Kronstadt - escrevia o redator chefe de um jornal de Petrogrado -, custe o que custar, Kronstadt será vermelha! (5)

Entrementes, reinava na antiga capital uma calmaria aterradora, enquanto os últimos preparativos militares eram providenciados. Para prevenir novos distúrbios na cidade, Zinoviev ampliava as concessões, prometendo à população, entre outras coisas, o fim do burocratismo nas instâncias partidária e governamental e a convocatória de uma assembleia municipal que reunisse apenas operários não filiados ao partido (6). Em Moscou, o levante era objeto de crescente preocupação. A 10 de março, Trotsky retornou com um relatório nada animador que foi apresentado a uma sessão secreta do X Congresso do Partido. Naquela noite, mais de um quarto do total de convocados para operação, cerca de 300 delegados, apresentou-se como voluntários. O comparecimento acima da expectativa demonstrava a gravidade com que o levante era avaliado dez dias após o seu início. Para provar lealdade ao governo, os membros da Oposição Operária e da Central Democrática marcharam entre os primeiros que seguiram para o front (7).

Um desses voluntários, um centralista democrático chamado M. A. Rafail, legou um relato sobre o papel dos delegados no assalto final à fortaleza. Ao chegarem a Petrogrado, no dia 11 de março, os voluntários foram distribuídos apressadamente entre as tropas concentradas ao norte e ao sul de Kronstadt. Entoando a “Internacional” enquanto marchavam, Rafail e seu grupo foram enviados para Oranienbaum (8). Se bem que muitos deles tomariam realmente parte dos combates, a tarefa principal da missão, no entanto, consistia em motivar os soldados e convencê-los a superar a hesitação em atirar contra rebeldes que seriam, na verdade, inimigos da revolução. Além disso, os delegados deveriam tranquilizar as tropas, que temiam atravessar a superfície de água congelada do golfo sem nenhuma proteção. Depois do desastre do dia 8 de março, os homens estavam aterrorizados ante a perspectiva de serem abatidos com tiros de metralhadoras em campo aberto ou de se afogarem nas crateras abertas na crosta de gelo pelos disparos de canhões. Em contrapartida, a delegação também foi encarregada de dar prosseguimento às negociações que visavam dissuadir os rebeldes do confronto. Para convencer os marinheiros de Kronstadt, distribuíram um panfleto cujo conteúdo questionava o lema dos “sovietes livres”, sugerindo que seu real significado aludia unicamente ao regresso “da burguesia, dos latifundiários, dos generais, dos almirantes, dos nobres, dos príncipes e outros parasitas” à sociedade russa. O slogan, lia-se no texto, não passava de uma cortina de fumaça para “derrubar o poder soviético - o verdadeiro poder dos explorados - e restaurar o poder dos exploradores capitalistas”. Concluía com uma indagação: “de que lado está Kronstadt, dos Guardas Brancos, contra nós, ou do nosso, contra os Guardas Brancos?” (9)

No início, os delegados obtiveram pouco êxito. O moral das tropas comunistas contrastava com a confiança dos rebeldes, que não davam mostras de hesitação em momento tão decisivo. Em parte, a responsabilidade pelo desânimo dos soldados devia-se aos próprios bolcheviques, que, com grande surpresa do cônsul norte-americano em Viborg, não haviam “aprendido a lição do quanto era inútil, do ponto de vista estratégico, coordenar ofensivas de pequeno porte” (10). A 9 de março, foram realizadas novas expedições que logo retrocederam ao revide rebelde. No dia seguinte, aviões soviéticos bombardearam a fortaleza. Ao cair da noite, as baterias de artilharia posicionadas em ambos os lados do continente descarregaram um impiedoso bombardeio sobre as defesas rebeldes. Logo em seguida, nas primeiras horas do dia 11, uma outra tentativa frustrada de invasão pela costa sudeste resultou em pesadas baixas. A ofensiva foi suspensa pelo restante do dia, devido a um denso nevoeiro que cobriu o golfo da Finlândia, impossibilitando novas operações militares. Em razão da péssima visibilidade, um piloto comunista que sobrevoava Oranienbaum em direção a Petrogrado aterrissou acidentalmente em Kronstadt. Ao perceber o engano, acelerou os motores e conseguiu decolar em meio a intensas rajadas de metralhadoras. Por sorte, chegou são a salvo em Petrogrado (11).

Mesmo com tantos reveses, os comandantes soviéticos estavam decididos a suprimir o motim antes da chegada do degelo e, por isso, não aguardaram a finalização dos preparativos militares para dar andamento às operações. A 12 de março, o bombardeio aéreo e o fogo de artilharia foram retomados esporadicamente durante todo o dia sem causar grandes transtornos para as defesas rebeldes. Segundo uma fonte dos emigrados, um avião bolchevique teria sido abatido no golfo da Finlândia por uma bateria antiaérea de Kronstadt (12), sendo a única ocorrência de incidente aéreo registrada durante toda a rebelião. Na manhã seguinte, deram seguimento às manobras dos dias anteriores. Após bombardear a fortaleza, outra incursão com soldados camuflados de branco partiu da costa sul um pouco antes do amanhecer. Novamente, a missão não obteve êxito e retornou debaixo de um poderoso fogo cruzado oriundo dos fortes nos arredores da ilha. Mas os ataques não foram interrompidos. Na manhã do dia 14, novos destacamentos bolcheviques, encobertos pela escuridão da noite, foram engolidos por um furacão de tiros de artilharia e metralhadora, não lhes restando saída senão a fuga com dezenas de mortos e feridos deixados para trás. Não houve mais ataques em pequena escala. Durante as 72 horas seguintes, toda atividade por terra foi suspensa e as operações avançaram apenas por meio de ataques aéreos e bombardeios de artilharia. Finalmente, uma força máxima de assalto passou a ser organizada pelo comando comunista.

Mas as adversidades que os bolcheviques enfrentavam iam além do campo de batalha. Por exemplo, no entroncamento das linhas férreas de Krasnoe Selo, a sudeste de Petrogrado, ferroviários recusavam-se a transportar tropas enviadas para reprimir o levante dos marinheiros de Kronstadt. Em outro caso, um integrante da Juventude Comunista, que vinha de Moscou, notou que o trem em que estava parava sucessivamente ao longo do curto trajeto de Petrogrado a Oranienbaum. O maquinista culpava a má qualidade do combustível pelos consecutivos contratempos. No entanto, voluntários que embarcaram no mesmo trem suspeitavam que a viagem estivesse sendo atrasava de propósito (13). Muito mais sério, todavia, foi um incidente ocorrido no dia 16 de março, à véspera do assalto final. Em Oranienbaum, os fuzileiros da 27ª. Divisão de Omsk, que serviram com distinção na guerra civil contra os brancos, deram início a um motim com o propósito de “ir a Petrogrado e derrotar aqueles judeus”. Tropas leais comandadas por I. F. Fedko, um dos especialistas militares da Academia Militar do Estado-Maior, isolaram rapidamente a base, cercando os quartéis dos amotinados de Omsk e efetuando a prisão de seus líderes. Nem mesmo os fiéis kursanty estavam imunes ao poderoso vírus da decepção: quase na mesma hora do motim de Omsk, uma conspiração antibolchevique tramada pelos cadetes da Escola de Comando de Peterhof foi descoberta e vários de seus oficiais detidos e escoltados para as prisões de Petrogrado (14).

Não obstante os episódios envolvendo casos de deslealdade nas tropas do governo, os dois últimos dias antes do ataque decisivo foram marcados por uma expressiva mudança no moral das forças vermelhas. Boa parte do mérito pela reviravolta coube aos delegados do X Congresso do Partido, munidos de uma nova e poderosa arma: a informação de que, no dia 15 de março, o congresso de Moscou votou pela substituição das requisições forçadas por uma taxa em espécie. Quando Lênin anunciou o novo programa à assembleia, um representante da Sibéria subiu ao púlpito e declarou que “bastaria explicar o decreto a todos os siberianos para que se encerrassem instantaneamente todas as desordens camponesas na região” (15). Os delegados que estavam no front, inteirados da novidade, apressaram-se em comunicá-la ao resto das tropas. O efeito foi notável. De imediato, como recordou um comissário bolchevique, houve uma mudança radical no ânimo dos soldados, a maioria dos quais pertencia a famílias camponesas (16). Era o começo do fim do comunismo de guerra. O anúncio da medida exerceu uma influência decisiva sobre a performance das forças vermelhas na batalha final.

Quase ao mesmo tempo, também operava uma mudança no estado de espírito de Kronstadt, só que no sentido inverso. Até meados de março, o moral dos rebeldes mantinha-se em alta, apesar dos inúmeros obstáculos com que se defrontavam até então. “Hoje é o aniversário da queda da autocracia e será a véspera do fim da comissariocracia”, proclamava o Izvestiia de Kronstadt, no dia 12 de março (17). Um carteiro do consulado norte-americano em Viborg, de passagem pela fortaleza naquele dia, constatou “a determinação e o bom humor que predominavam nas guarnições e na população da cidade”. De maneira análoga, um correspondente do partido socialista revolucionário (SR) descreveu a ordem e tranquilidade que prevalecia por toda a cidade, onde as fábricas continuavam a funcionar normalmente. “Almejamos ter iniciado à tarefa colossal de libertação da Rússia”, explicou Petrichenko ao jornalista. “Estamos empenhando todas as nossas forças no intuito de convencer a população de Petrogrado a aderir à nossa causa... Nós construiremos o verdadeiro poder dos sovietes” (18). Kronstadt estava convencida de que sua causa era justa e que, muito em breve, a revolta se alastraria pelo continente. A 11 de março, o Izvestiia lançou um apelo a todo o país para que se unisse à luta contra a opressão bolchevique: “Kronstadt está lutando por todos vocês, que estão famintos, descamisados, por todos os que sentem frio... Camaradas, os kronstadtinos ergueram a bandeira da rebelião, confiando nos milhões de operários e camponeses que responderão ao seu chamado. Não é possível que o amanhã que já chegou aqui, num dia tão brilhante, não ilumine toda a Rússia, a começar por Petrogrado” (19).

Enquanto isso, o Comitê Revolucionário encarregava-se de fortalecer as defesas da ilha contra o ataque iminente. Para dificultar a tarefa da artilharia e dos bombardeios noturnos, o comitê ordenou para que se apagassem as luzes da cidade à noite. Até então, as baixas eram mínimas e forasteiros que visitavam Kronstadt davam conta de poucos feridos e danos menores nas edificações da cidade. Durante todo o dia do 10 de março, segundo confirmações dos próprios rebeldes, foram contabilizados quatorze mortos e quatro feridos (dois marinheiros, um soldado e um civil). No dia 12 de março, o jornal Izvestiia de Kronstadt surpreendia-se com um menino de 15 anos que sofreu ferimentos leves quando patrulhava uma determinada área (nada podia detê-lo, explicava o jornal, pois, no ano passado, seu pai, um simples camponês, foi fuzilado pelos bolcheviques em sua aldeia) (20).

Mas a situação principiou a tomar um rumo adverso. Contrariamente ao que se esperava, Petrogrado não deu provas de que se uniria ao movimento rebelde. Pouquíssimos exemplares do Izvestiia de Kronstadt foram pregados nas paredes das fábricas e somente em uma ocasião um caminhão circulou pelas ruas da cidade distribuindo panfletos rebeldes. A 7 de março, operários da fábrica Arsenal aprovaram a resolução de Kronstadt e enviaram delegados a outras empresas para convocar uma greve geral em apoio aos insurgentes (21). Mas todos os esforços foram nulos. Apaziguada pelas concessões e intimidada pela presença das tropas, a cidade não esboçou qualquer iniciativa em defesa dos rebeldes. Os marinheiros sentiram-se traídos; sentimento que perdurou por muito tempo, mesmo após o fim da rebelião. Os refugiados na Finlândia reclamavam por terem acreditado nos operários de Petrogrado, que realmente pareciam “falar a sério”, e por apostarem que as greves deflagrariam uma revolução completa. De maneira similar, marinheiros capturados que estiveram com Dan na prisão acusaram os operários de se venderem ao governo “por uma libra de carne” (22).

De fato, nenhuma ajuda viria de qualquer parte. Kronstadt permaneceu só e isolada. Ataques aéreos frequentes, intensos bombardeios de canhão, investidas noturnas dos pelotões de ataque bolchevique, que impediam as noites de sono dos marinheiros, além das violentas tempestades de neve, que castigavam as patrulhas rebeldes, obrigadas a percorrer o chão coberto de gelo calçando apenas sandálias por falta de botas, tornaram-se rotineiros. Como se não bastasse, o abastecimento de combustível estava por um fio. Alarmado, o Izvestiia de Kronstadt rogou à população sitiada que economizasse o máximo possível de energia elétrica. Também iam se escasseando as munições. A 11 de março, os rebeldes receberam ordens para não dispararem contra aviões comunistas, desperdiçando inutilmente valiosos cartuchos de fuzis e metralhadoras. Ao mesmo tempo, os “especialistas militares” criticavam os procedimentos da artilharia que atirava indiscriminadamente em alvos distantes e incertos. Para piorar, o número de baixas, ainda que pouco preocupante, aumentava a cada dia. Em meados do mês de março, os estoques de medicamentos chegavam ao fim concomitantemente ao aumentou significativo da taxa de mortalidade. No dia 14 de março, cumpriram-se ritos funerários coletivos no Hospital Naval de Kronstadt. Dois dias depois, enquanto outra cerimônia era realizada na Catedral dos Marinheiros, a artilharia comunista bombardeou a cidade sem cessar. Naquela noite, o moral dos rebeldes despencou ainda mais quando um projétil de 12 polegadas lançado de Krasnaya Gorka atingiu o convés do Sebastopol, matando 14 marinheiros e ferindo outros 36 (23).

Em tais circunstâncias, como bem lembrou um membro do Comitê Revolucionário, era impossível manter o entusiasmo do início (24). Já Berkman observou que a vitalidade da fortaleza rebelde desvanecia com os sucessivos ataques, a falta de alimento e de combustível, as longas noites de insônia passadas em guarda e ao relento (25). Um sentimento de aflição incontido apoderava-se dos insurgentes à medida que se tornava insuportável a espera pelo assalto que se sabia inevitável e próximo. Em razão disso, o clima de suspense e o crescente estado de tensão deixavam a resistência com os nervos à flor da pele. O que mais preocupava os rebeldes, no entanto, era um problema que o autor do Memorando Secreto previu semanas antes do início do conflito: a situação das provisões de Kronstadt. Por quanto tempo haveria ainda de durar as reservas de alimentos necessários para abastecer uma população de 50 mil habitantes isolada do mundo exterior? Ao fim da primeira semana, já não havia como manter a ração diária de 225 gramas de pão e uma lata de conservas. No dia 8 de março, cada pessoa passou a receber uma pequena quantidade de aveia suficiente para quatro dias e, no dia 9, um pouco mais de 100 gramas de uma bolacha preta feita de farinha e batatas desidratadas. No dia seguinte, os metalúrgicos de Kronstadt, condoídos com a situação, ofereceram à comunidade sua cota especial de carne de cavalo enlatada. Apesar de tudo, durante todo o período em que transcorreu a insurreição, não faltou o leite condensado - e, ocasionalmente, uma lata de carne em conserva - a que cada pessoa tinha direito. E, para as crianças, reservou-se sempre um extra de 200 gramas de manteiga. Mas, no dia 15 de março, quase não sobravam mais alimentos enlatados, enquanto que os estoques de farinha estavam vazios e o pão escasseava (26).

O povo tinha fome. Pela ocasião, o soviete de Petrogrado avaliava que “a fome é frequentemente o principal fator de capitulação nas guerras entre os povos” (27). Aos poucos, Kronstadt perdia a esperança de resistir até o degelo da primavera e os líderes rebeldes passaram a reconsiderar a possibilidade de receber ajuda do exterior. Como vimos, nos primeiros dias da revolta, as ofertas de Chernov foram respeitosamente recusadas pela liderança do movimento. Mas quando, a 16 de março, o barão Vilken ofereceu alimentos e remédios em nome da Cruz Vermelha Russa, os rebeldes não estavam em condições de recusar e aceitaram a promessa com imensa gratidão.

Mas, como sabemos também, a ajuda nunca chegou. Com efeito, naquele mesmo dia, 16 de março, Tukhachevsky reagrupou o seu exército para consumar o assalto final ao bastião rebelde. As forças de ataque foram divididas em dois grupos. A unidade maior foi instalada na costa sul do golfo da Finlândia, enquanto a menor iniciava suas operações ao norte da margem costeira da Carélia. Para enfrentar 15 mil rebeldes bem entrincheirados, estima-se um número total de soldados nas tropas comunistas entre 35 mil a 65 mil (28). Mas as cifras reais oscilam provavelmente ao redor de uns 50 mil homens (o dobro do primeiro assalto do dia 8 de março), dos quais uns 35 mil compunham o Grupo do Sul. Alguns dos melhores comandantes bolcheviques foram escalados para liderar a repressão. Muitos haviam se destacado na guerra civil, como Fedko e Dybenko, ambos da Academia Militar do Estado-Maior, e Vitovt Putna, oficial que a pouco assumira o comando da 27ª. Divisão de Omsk, após a malfadada tentativa de motim. Apesar das incessantes acusações do governo, de que a rebelião de Kronstadt era obra de uma conspiração de generais da Guarda Branca, a verdade é que os oficiais czaristas desempenharam um papel muito mais importante para as forças bolcheviques. Os comandantes E. S. Kazansky e A. I. Sediakin, assim como os seus superiores, Tukhachevsky e S. S. Kamenev (que não tinha nenhum parentesco com o L. B. Kamenev, um dos líderes do Partido Comunista) serviram como oficiais no Exército Imperial.

Os recrutas sentiram-se, então, mais confiantes. O reforço numérico das tropas incorporadas, a indiscutível qualidade do alto oficialato empregado para comandar a operação, sem esquecer, é claro, da injeção de ânimo aplicada pelos incansáveis delegados do partido, colaboraram em muito para elevar o moral das tropas. “Há três anos, temos sofrido com a fome, a falta de combustível e outras calamidades do gênero. E agora esta traição! Façamos picadinho desses traidores!” (29) Mensagens assim eram marteladas incessantemente pela máquina de propaganda soviética, mas agora repercutia positivamente na disposição dos soldados, tomados por um ímpeto de vingança contra os marinheiros de Kronstadt. Os soldados iniciaram a operação vestidos de casaca branca e botas de inverno; estavam equipados com abundante munição e tesouras especiais para cortar o arame farpado que protegia os fortes e baterias da ilha. Como forma de aplacar qualquer tipo de insatisfação em torno da comida, cada soldado recebeu ração de pão suficiente para dois dias e duas latas de carne em conserva. Todavia, um comandante do Grupo do Norte, querendo elevar o psicológico de suas tropas, enfiou os pés pelas mãos ao advertir seus homens para não comerem antes de entrar em combate, pois as feridas eram bem mais difíceis de curar com o estômago cheio (30).

O plano de Tukhachevsky previa um prolongado bombardeio seguido por um assalto de infantaria a partir de três rotas distintas e divididas entre o Grupo do Norte, que partiria do extremo norte da ilha de Kotlin, e o Grupo do Sul, que sairia das extremidades sul e leste. Às 14 horas, do dia 16 de março, as tropas legalistas desfecharam um bombardeio que perdurou o dia todo. Projéteis caíram próximo ao cemitério, onde se prestava homenagem aos rebeldes que pereceram em combate. Os fortes, as baterias e os dois encouraçados replicaram com pesados tiros de barragem. Durante o fogo cruzado, um projétil estourou no convés do Sebastopol. Apesar de não provocar danos maiores na embarcação, o incidente matou ou feriu uns 50 tripulantes. Para evitar que o Petropavlovsk também fosse atingido, a tripulação liberou uma cortina de fumaça que encobriu todo o navio. Entretanto, no dia seguinte, uma bomba acertou o Petropavlovsk, matando cinco homens e ferindo sete (31). Além dos intensos disparos costeiros, a força aérea cruzou o golfo e bombardeou a fortaleza e a rede de defesa da ilha. Todavia, o bombardeio combinado por terra e ar não provocou estragos consideráveis, tampouco muitas baixas. Mas o abatimento psicológico foi grande, deprimindo ainda mais o estado de ânimo dos insurgentes.

Ao cair da noite, o bombardeio cessou. Atentos ao padrão da ofensiva da semana anterior, os rebeldes esperavam a mesma regularidade do ataque seguinte e os homens tomaram seus postos de costume. Muitos deles estavam exaustos, porque nos últimos dois ou três dias sequer tiveram tempo para um simples cochilo. Porém, nada acontecia. Apenas um silêncio absoluto imperava noite adentro. Fachos de luz dos refletores dos fortes e navios de Kronstadt rastreavam para lá e para cá a paisagem glacial a procura de algum sinal de movimentação. Finalmente, às 3 horas da manhã, do dia 17, as tropas inimigas avançaram, valendo-se da escuridão e de um denso nevoeiro que desabou sobre o golfo. O Grupo do Norte, composto em grande parte por cadetes militares da região de Petrogrado, partiu de Sestroretsk e Lisy Nos em duas colunas com o objetivo de efetuar um ataque em dois flancos, respectivos aos fortes Totleben e Krasnoarmeets e aos sete fortes numerados entre a ilha de Kotlin e a costa da Carélia. Encabeçando as colunas, marchavam voluntários da tropa de choque encarregada de limpar o terreno para o derradeiro ataque. Para não serem detectados, os oficiais deviam transmitir as ordens por cochichos e conversas estavam expressamente proibidas. A comunicação também devia se realizar por meio de minuciosos sinais luminosos que foram devidamente planejados com antecedência. Ademais, era proibido fumar.

Às 5 horas da manhã, a coluna da ala esquerda, formada por cinco batalhões que partiram de Lisy Nos em direção à extrema periferia de Kronstadt, deteve-se ante os fortes 5 e 6, que se avultavam ameaçadores. Os homens receberam ordens para que se deitassem; em seguida, avançaram lentamente, rastejando-se pela camada de gelo. A água que sobejava a superfície congelada do golfo encharcava seus casacos brancos. Quando já haviam alcançado a cerca e rompiam o arame farpado, foram surpreendidos pela iluminação dos refletores dos fortes rebeldes, que, de tão intensa, “a noite virou dia”, conforme recordava um soldado sobrevivente. No forte 6, ouviram-se gritos para que os invasores se rendessem. “Somos amigos. Somos a favor do poder dos sovietes. Não queremos atirar em vocês” (32). Ignorando os apelos, os kursanty precipitaram-se até os fortes empunhando baionetas e granadas. Ante a saraivada de tiros mortíferas das metralhadoras, deram meia-volta e fugiram contando inúmeras perdas. Mas, após sucessivas investidas, finalmente os cadetes atravessaram as defesas rebeldes aos gritos de “hurra!” A partir daí, travou-se uma batalha feroz entre as forças inimigas até que os dois fortes foram conquistados pelas tropas invasoras.

Durante a manhã, o nevoeiro se dissipou e o 17 de março resplandeceu bonito e ensolarado. Sem poder contar com a proteção da noite, as tropas comunistas arriscaram-se num ataque rápido aos demais fortes de Kronstadt. O embate foi marcado pela rivalidade de dois grupos que lutavam com uma obstinação que ultrapassava as raias do fanatismo e que resultou em muitas perdas de vidas. O bombardeio da artilharia rebelde rompia a camada de gelo formando pequenos lagos que logo se convertiam em tumbas de dezenas de soldados inimigos. Em um dos batalhões comunistas, segundo relatou S. P. Uritsky, comandante da Academia Militar do Estado-Maior, não sobrou mais que 18 sobreviventes (33). Mas a resistência rebelde foi paulatinamente sendo vencida. No meio da tarde, todos os fortes numerados foram derrotados e os kursanty avançaram até o noroeste da muralha que cercava a cidade de Kronstadt. Enquanto isso, a coluna da direita, composta por duas companhias, tentava inutilmente tomar o forte Totleben. Embora esgotados, os rebeldes lutavam com um desespero selvagem, obrigando os pelotões comunistas a retrocederam muitas vezes. As baixas multiplicavam-se generosa e indiscriminadamente. Entretanto, os insistentes ataques de infantaria conseguiram inutilizar os grandes canhões do forte. Em compensação, as metralhadoras e granadas dos rebeldes cobraram um pesado tributo às tropas comunistas. Sem se dar conta, um grupo de cadetes entrou em um campo minado e, quando as bombas explodiram, muitos deles se afogaram nas cavidades abertas na crosta de gelo. Finalmente, as tropas invasoras penetraram o forte onde se travou um terrível combate corpo a corpo pelo resto do dia. Até a uma da manhã, do dia 18, o forte Totleben não havia se rendido, mas não resistiu por muito mais tempo e, quando caiu, Krasnoarmeets, o forte vizinho, também se entregou.

Enquanto isso, o Grupo do Sul lançou um ataque pelas regiões sul e leste da cidade. Um efetivo numeroso, municiados com metralhadoras e artilharia leve, deixou Oranienbaum às 4 da manhã do dia 17, cerca de uma hora depois da saída do Grupo do Norte, e avançou dividindo-se em três colunas até o porto militar de Kronstadt. Uma quarta coluna foi enviada ao Portão de Petrogrado, que, como vimos, era o ponto de estrada mais vulnerável da cidade. Ainda estava escuro quando as unidades da 79ª. Brigada de Infantaria aproximaram-se dos canhões que defendiam o porto. Do outro lado, refletores lançavam feixes de luz à procura de soldados inimigos, mas a escuridão e a névoa ocultavam as tropas camufladas. Ao desembarcar no extremo sul da cidade, tropas de choque comunistas dominaram rapidamente as equipes de atiradores das baterias externas. Então, ao apertarem o passo em direção dos baluartes rebeldes da periferia, foram recepcionados por um intenso fogo de barragem. Nuvens de neve subiam em consequência dos milhares de tiros que ricocheteavam e granadas que explodiam no gelo. Embrenhando-se para dentro de um furacão mortal de rajadas de balas, os destacamentos comunistas revelaram uma coragem extraordinária; ainda que o desespero empurrava-os para frente, em partes, pelo efeito de palavras de ânimo ou ameaças da retaguarda. Não é surpreendente, todavia, que alguns homens foram acometidos por crises de pânico e se recusaram a prosseguir. Quando dois soldados, dominados pelo terror, esconderam-se dentro de uma barcaça encalhada no gelo, o comandante do pelotão sacou a pistola e matou os rapazes ali mesmo; em seguida, deu ordens para que os demais seguissem adiante (34). Mas a batalha foi decidida quando vários caminhões carregados de combatentes rebeldes entraram em cena e armaram um contra-ataque fulminante sem dar chance de reação aos comunistas, que foram forçados a recuar. Durante o confronto, foram mortos ou feridos mais da metade dos homens da 79ª. Brigada, incluindo alguns delegados do X Congresso do Partido (35).

Na extrema zona leste da cidade, o cenário era mais animador para as forças do governo. Momentos antes do nascer do sol, a 32ª. Brigada de Infantaria, secundada pelos 95º. e 96º. Regimentos de Infantaria, conseguiu abrir uma brecha na muralha ao norte do Portão de Petrogrado e, mediante violento combate, penetrou no interior da cidade. Paralelamente, a 187ª. Brigada de Infantaria, comandada por Fedko e tendo à frente a tropa de choque dos cadetes militares, conseguiu forçar uma entrada no Portão de Petrogrado, sendo seguida de perto pelas 167ª. e 80ª. Brigadas. Até aqui, as tropas do governo já haviam sofrido pesadas baixas, porém, uma vez dentro das muralhas, conforme as palavras de um contemporâneo, “abriram-se as portas do inferno” (36). Os soldados invasores foram recebidos por um enxame de tiros de metralhadoras e rifles que pareciam disparar de todas as janelas e do alto dos telhados. Nas calçadas, poças de sangue empapavam o chão coberto pela neve, enquanto mortos e feridos abarrotavam as ruas da cidade. Cada espaço era milimetricamente disputado: rua a rua, casa a casa. Apesar de tudo, nem o derramamento de sangue fatricida nem a queda da maioria dos fortes ou a feroz batalha dentro da cidade compeliram os rebeldes a uma desforra em cima dos prisioneiros comunistas. Próximo ao Portão de Petrogrado, uma patrulha de resgate do governo correu para chegar ao cárcere e, rompendo uma das janelas, armas foram entregues aos prisioneiros que se libertaram e uniram-se ao combate (37).

Durante todo o dia, as forças beligerantes enfrentaram-se sem trégua. De acordo com alguns relatos, as mulheres de Kronstadt tomaram parte da luta, levando munições aos rebeldes e retirando os feridos debaixo do fogo cruzado para transportá-los aos postos de primeiros socorros do hospital da cidade (38). Às 16 horas, os insurgentes lançaram uma contraofensiva repentina que estremeceu o avanço das tropas bolchevique que por pouco não recuaram das posições alcançadas para fora da cidade. Mas neste momento crítico, o 27º. Regimento de Cavalaria e um destacamento de voluntários do partido de Petrogrado chegaram para salvar o dia. Momentos antes do pôr do sol, a artilharia de Oranienbaum invadiu a cidade e abriu fogo contra os rebeldes. À medida que a batalha tornava-se mais encarniçada, homens de ambos os lados caíam feridos ou porque sofriam de exaustão. Nas primeiras horas da noite, os kursanty do Grupo do Norte introduziram-se na cidade pela região nordeste e dominaram o quartel general da fortaleza, fazendo muitos prisioneiros. Ato contínuo, estabeleceram contato com o Grupo do Sul, que naquele momento já havia aberto caminho entre o Portão de Petrogrado e o centro da cidade. À meia-noite, a luta arrefeceu. Os últimos fortes caíram um a um. A vitória estava à vista.

A 5 de março, ou seja, muitos dias antes do derramamento de sangue que arrasaria a cidadela de Kronstadt, o Comitê de Defesa de Petrogrado alertou os insurgentes de que no último minuto os líderes do motim - “os Kozlovskys e Petrichenkos” - abandonariam a cidade e fugiriam para Finlândia (39). Previsão que se cumpriu a risca. Na noite de 17 de março, quando tudo se revelou perdido, onze membros do comitê revolucionário (inclusive, Petrichenko) escaparam para Terijoki. (Valk, Pavlov e Perepelkin foram feitos prisioneiros durante a batalha e Vershinin, como vimos acima, já havia sido capturado na ocasião do primeiro assalto do dia 8 de março). Kozlovski, Solovianov e outros “especialistas militares”, que colaboravam com os rebeldes, também conseguiram fugir. Um pouco antes da meia-noite, cerca de 800 refugiados, incluindo a maior parte da liderança do movimento insurgente, aportaram nas praias da Finlândia. Por serem os mais visados, em uma eventual captura, os líderes rebeldes só não foram os primeiros a deixar a ilha porque um grupo de marinheiros dos fortes numerados evadiu-se antes para o litoral da Carélia. Mas, sem dúvida, a perspectiva de execução sumária pesou na decisão de abandonar Kronstadt. De qualquer maneira, a fuga da liderança teve o efeito de um sinal verde para um êxodo em massa que despovoou a ilha de Kotlin e suas fortificações. Durante as vinte e quatro horas que se seguiram, uma corrente interminável de refugiados, em sua maioria marinheiros, atravessaram as fronteiras da Finlândia. No total, cerca de 8.000 homens, ou seja, mais da metade das forças rebeldes, fugiram de Kronstadt. Mais ou menos uns quatrocentos cavalos, que se desgarraram em meio ao horror do combate, foram domados sobre as águas congeladas do golfo e uns 2.500 fuzis abandonados próximo à costa litorânea foram recolhidos pelos guardas de fronteira finlandeses (40).

Tem sido observado que o bombardeio comunista, ainda que suspenso por 11 dias, provocou poucos danos na defesa de Kronstadt. Mas, em seu último gesto de desacato, os marinheiros em retirada danificaram a culatra dos canhões dos fortes e baterias e destruíram também dínamos, refletores, metralhadoras e demais equipamentos militares. Quando os comunistas ocuparam os fortes do norte, quase não sobraram armas em condição de uso (41). Na noite de 17 de março, os comandantes do Petropavlovsk e Sebastopol deram instruções às respectivas tripulações para que dinamitassem os navios no momento do desembarque. Mas os homens, ao tomarem conhecimento da fuga dos líderes rebeldes, não executaram as ordens. Num movimento inverso, prenderam os oficiais e enviaram mensagens ao comando soviético comunicando que estavam prontos a se renderem. Às 23h50, o quartel-general comunista de Kronstadt encaminhou a seguinte mensagem ao Comitê de Defesa de Petrogrado: “O covil contrarrevolucionário do Petropavlovsk e do Sebastopol está enfim liquidado. Simpatizantes da autoridade soviética assumiram o controle das embarcações e foram encerradas todas as atividades militares a bordo do Petropavlovsk e Sebastopol. Providências têm sido tomadas com a devida urgência para que os oficiais em fuga para a Finlândia sejam detidos” (42). Durante as primeiras horas do dia 18 de março, destacamentos kursanty ocuparam os dois encouraçados. Enquanto isso, salvo uns poucos focos isolados de resistência, os rebeldes capitularam, de modo que ao meio-dia os fortes e barcos e quase toda a cidade estavam nas mãos do governo. À tarde, os últimos redutos rebeldes foram vencidos e não se ouviu mais o estrepitar dos canhões de Kronstadt.

Por sua ferocidade, a batalha de Kronstadt igualou-se aos episódios mais sangrentos da guerra civil. As perdas foram grandes para ambas as partes; mas para os comunistas, forçados a atacar em campo aberto, contra combatentes fortemente entrincheirados, o preço foi muito maior a pagar. Entre os dias 3 e 21 de março, segundo o relatório oficial de saúde, mais de 4.000 feridos foram internados nos hospitais de Petrogrado. Destes, 527 vieram a óbito no leito hospitalar. Estas cifras não incluem o grande número de vítimas que pereceu na batalha. Depois da luta havia tantos mortos espalhados pela superfície de gelo que forçou o governo finlandês a pedir para Moscou a retirada dos corpos que, com a chegada do degelo, poderiam ser arrastados pela maré até a terra firme e acarretar riscos para a saúde do país (43). Uma estimativa de fontes oficiais calcula, por baixo, um total de baixas em torno de 700 comunistas e 2.500 feridos. Entretanto, segundo o testemunho de um bolchevique que atuou no Forte de Número 6, esses números foram subestimados. Outro cálculo eleva a perdas comunistas para 25.000, entre mortos e feridos. Todavia, segundo o bem informado cônsul norte-americano em Viborg, Harold Quarton, as baixas soviéticas totais chegaram próximas aos 10.000 mil homens. Tal estimativa parece bastante razoável, caso se considere todos os mortos, feridos e desaparecidos (44). Cerca de quinze delegados do X Congresso do Partido perderam suas vidas durante a campanha. A 24 de março, houve um enterro coletivo com honras militares realizado em Petrogrado (45).

As baixas rebeldes foram menores, mas de modo algum insignificantes. Nenhum dado disponível é confiável, mas um relatório contabiliza 600 mortos, 1.000 feridos e cerca de 2.500 prisioneiros (46). Entre os mortos, não foram poucos os que foram massacrados quando o conflito estava em vias de terminar. Uma vez dentro da fortaleza, a sanha por vingança tomou conta das tropas comunistas, que perpetraram uma verdadeira orgia de sangue. O ódio acumulado durante o assalto pode ser expresso pelo arrependimento de um soldado que lamentava o uso de aviões para metralhar rebeldes que fugiam em campo aberto para a Finlândia. Mas o número de vítimas poderia ter sido bem maior. Tanto Trotsky como S. S. Kamenev, seu comandante em chefe, já haviam aprovado o uso de armas químicas contra os rebeldes. Se a resistência tivesse perdurado por mais algum tempo, teria avançado um plano idealizado pelos cadetes da Escola Superior Militar de Química de atacar Kronstadt com bombas de gás tóxico lançadas por balões [No original: “...a plan to launch a gas attack with shells and balloons” - N.T] (47).

A notícia da repressão repercutiu rapidamente, provocando diferentes reações entre os mais diversos setores. Na Europa ocidental, os expatriados russos sentiram-se desolados. Lamentaram os insucessos da tentativa de ajuda aos rebeldes e denunciavam a Grã-Bretanha por ter firmado um acordo comercial com os bolcheviques bem no auge do conflito armado. Todavia, um jornal dos emigrados assumiu uma posição bem menos desesperadora. Em um editorial intitulado “As lições de Kronstadt”, declarava que a luta pela libertação da Rússia não cessaria até que a vitória final fosse alcançada. Igualmente, o professor Grimm escreveu a um colega que, se uma nova revolta irrompesse em Petrogrado, eles não poderiam ser pegos outra vez desprevenidos (48).

Na Rússia, os bolcheviques festejavam o triunfo tão duramente conquistado. Mas em meio à euforia havia uma nota de pesar aos “equivocados camaradas marinheiros”. No geral, os estrangeiros comunistas comungavam dessa alegria amarga e mantiveram seu apoio ao regime por mais incerto o rumo que a revolução parecia estar tomando. Afinal, a Rússia bolchevique, ponderavam, era o primeiro estado socialista da história. Apesar de todas as suas deficiências, era o primeiro país em que latifundiários e burguesia haviam sido despojados do poder que lhes estava profundamente incrustado. Em sua opinião, objeções de outra ordem eram de importância secundária. Mas alguns comunistas estrangeiros, como Victor Serge, sentiam-se profundamente consternados. Para os anarquistas, como Emma Goldman e Alexander Berkman, a repressão a Kronstadt teve um efeito devastador. Na noite de 17 de março, recordava Goldman, em suas memórias, quando cessou de trovejar os canhões, a bonança que se abateu sobre Petrogrado era mais assustadora que os ininterruptos estrondos dos dias anteriores. Durante os momentos finais de Kronstadt, Berkman, para quem “o último fio que prendia minha fé aos bolcheviques acaba de arrebentar”, vagou sem esperança pelas ruas da cidade; enquanto Goldman, prostrada em seu quarto de hotel, experimentava uma insuportável agonia, “uma inexplicável fatiga que inundava cada parte do meu ser”. Sentada à janela, Goldman encarava Petrogrado, que lhe parecia agora, envolta na escuridão, “uma entidade fantasmagórica”, coberta por um fúnebre manto negro e pontilhada pelo cintilar das lâmpadas amarelas, “velando a cidade à noite”. Na manhã seguinte, 18 de março, os jornais de Petrogrado traziam grandes manchetes comemorativas do quinquagésimo aniversário da Comuna de Paris. As bandas de música tocavam marchas militares e os comunistas desfilavam pelas ruas cantando a “Internacional”. “Sua melodia - observava Goldman -, que uma vez soara tão jubilosa aos meus ouvidos, parece agora um triste réquiem em memória à esperança em chamas da humanidade”. Berkman fez uma ácida anotação em seu diário: “Os vitoriosos celebram o aniversário da Comuna de 1871. Quanta ironia, agora Trotsky e Zinoviev manifestam todo o seu repúdio a Thiers e Galliefet, os responsáveis pelo massacre dos rebeldes de Paris” (49).

Enquanto isso, em Kronstadt, os bolcheviques fizeram todo o possível para esconder os rastros do levante. Pavel Dybenko foi nomeado comandante da fortaleza, investido de poderes absolutos para realizar expurgos de elementos dissidentes e calar ideias subversivas. Para auxiliar o novo comandante, no lugar do soviete de Kronstadt, foi instaurada uma revtroika, composta por três dos mais leais líderes bolcheviques de Kronstadt: Vasiliev, Bregman e Gribov. Aos 18 de março, começou a circular na cidade um novo jornal, Kronstadt Vermelho. Os barcos de guerra Petropavlovsk e Sebastopol foram rebatizados com os nomes de Marat e Comuna de Paris, enquanto que a Praça da Âncora passou a se chamar Praça da Revolução. Novamente, reiniciou-se a inscrição partidária e, durante o processo, 350 filiados foram expulsos ou não compareceram à convocatória do partido. Uma “operação cirúrgica”, segundo as palavras de um autor, foi colocada em prática na Marinha Soviética: os marinheiros suspeitos foram separados e transferidos para as bases do Mar Negro, Cáspio e Aral, ou para a flotilha do Rio Amur, no Extremo Oriente. Paralelamente, em todas as unidades navais foram realizadas purgas para remoção de elementos suspeitos de serem Ivanmory - mais ou menos uns 15.000 (50). Os soldados do Exército Vermelho, que participaram do assalto final, foram também dispensados para localidades remotas de todo o país. Somente um mês mais tarde, Tukhachevsky foi outra vez designado para comandar uma expedição punitiva contra os guerrilheiros de Antonov, na região de Tambov (51).

Finalmente, resta-nos esclarecer o paradeiro dos sobreviventes de Kronstadt. Nenhum dos rebeldes capturados foi submetido a julgamento público. Dos mais de dois mil detidos durante a luta, somente treze foram denunciados de liderar o motim e julgados a portas fechadas. Para endossar a tese da acusação, acerca da conspiração contrarrevolucionária, a imprensa soviética publicava repetidas vezes os antecedentes dos réus: cinco ex-oficiais navais eram nobres de nascimento, outro era um ex-padre e sete eram camponeses (52). Os nomes dos acusados não eram conhecidos, nenhum deles aparecia como “especialista militar” ou pertencia ao Comitê Revolucionário - dos quais Valk, Pavlov, Perepelkin e Vershinin estavam mantidos sob custódia. No dia 20 de março, os treze “chefes” do levante foram julgados e condenados à pena de morte.

Com relação aos demais prisioneiros, já foi dito que centenas foram executados em Kronstadt. Os que restaram foram conduzidos pela Tcheca para prisões no continente. Em Petrogrado, os cárceres ficaram lotados e, durante um período de vários meses, centenas de rebeldes foram tirados de suas celas e fuzilados. Entre eles, Perepelkin, o qual Feodor Dan travou conhecimento enquanto faziam exercícios no pátio da prisão. Antes de ser executado, redigiu uma exposição detalhada sobre a revolta. Dan nunca soube que fim levou o manuscrito (53). Outros foram enviados a campos de concentração, tais como a notória prisão Salovki, no Mar Branco. Condenados a trabalhos forçados, para muitos resultou numa sentença de morte lenta pela fome, fadiga e doenças (54). Em alguns casos, as famílias dos insurgentes padeceram do mesmo destino. A esposa e os dois filhos de Kozlovski, feitos reféns no início de março, foram enviados para um campo de concentração e somente à sua filha de 11 anos foi concedido o perdão (55).

E o que foi feito dos rebeldes que fugiram para a Finlândia? Cerca dos oito mil que escaparam foram internados em campos de refugiados em Terijoki, Viborg e Ino. Quase todos os fugitivos eram marinheiros e soldados, mas dentre eles se encontravam alguns civis - homens, mulheres e crianças (56). A Cruz Vermelha Norte-Americana e Britânica proporcionaram-lhes alimento e vestuário. Alguns foram empregados na construção de estradas e outras obras públicas. No entanto, a vida nos campos era penosa, deprimente e de difícil adaptação. Aos refugiados, não se permitia, a princípio, nenhum contato com a população local. Enquanto o governo finlandês recorria à Liga das Nações para realocar os refugiados para outros países, os bolcheviques exigiam a repatriação dos foragidos e a devolução de todas as armas apreendidas. Atraídos pela promessa de anistia, alguns retornaram à Rússia, onde foram presos e levados a campos de concentração. Entre maio e junho, muitos deles passaram por uma breve estadia na mesma prisão em que Dan estava preso. Depois lhes foi reservado uma morte prematura nos campos de trabalho forçado (57).

Ainda assim, nem a melancolia nem a decepção pela derrota abalaram o prestígio de Petrichenko, que continuou sendo respeitado pelos seus camaradas. Seu maior erro, diziam, foi poupar os líderes comunistas do fuzilamento. Mas o próprio Petrichenko não se arrependia de sua decisão. Admitiu, entretanto, a um jornalista norte-americano em Terijoki, que a rebelião havia sido prematura e mal organizada. “Fomos derrotados - disse - mas o movimento não se extinguirá, porque surgiu do povo... Existem milhões como eu na Rússia, que não são reacionários brancos nem assassinos vermelhos. Esta gente simples haverá de derrotar os bolcheviques” (58). Pouco se sabe da vida de Petrichenko no exílio. Uma coleção soviética de documentos e memórias relativos ao levante de Kronstadt contém uma carta, datada de 17 de novembro de 1923, que se pretende do líder rebelde a um amigo que residia na Rússia. Na correspondência, Petrichenko não só reconhece seus erros como chega a confessar que vem solicitando para que seja readmitido à sua pátria (59). Todavia, a carta é de autenticidade duvidosa. Um artigo publicado por Petrichenko num jornal socialista revolucionário (SR), em dezembro de 1925, não parece demonstrar um pingo de arrependimento e segue sustentando o caráter espontâneo da rebelião, que é definida como um movimento de libertação contra a ditadura do Partido Comunista, ou melhor, dos seus líderes (60).

Sobre a vida de Petrichenko no exílio, a história soviética oficial da Guerra Civil registra de modo equivocado uma curta passagem do líder rebelde pela Finlândia com destino à Tchecoslováquia, onde teria se estabelecido. A verdade é que ele permaneceu na Finlândia por quase 25 anos. Como consequência da derrota, como vimos acima, Petrichenko aceitou colaborar com os círculos de emigrados da Europa ocidental, com os quais compartilhava o desejo de libertar a Rússia do domínio bolchevique. Mais tarde, todavia, uniu-se a grupos pró-sovéticos na Finlândia. Durante a Segunda Guerra Mundial, suas atividades indispuseram-no com as autoridades finlandesas que, em 1945, o repatriaram. Na Rússia, foi prontamente preso e, um ou dois anos depois, morreu em um campo de prisioneiros (61).

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