Introdução: Desvendando a Fachada de uma Disciplina
Em 1976, o geógrafo francês Yves Lacoste publicou um livro cujo título, explosivo e direto, funcionava como um manifesto e uma denúncia: "A Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra". Esta obra não é apenas um tratado acadêmico; é um libelo contra a geografia tradicional, uma arma desconstrucionista lançada contra o establishment intelectual da época. Lacoste, com a acuidade de um estrategista e a paixão de um polemista, propõe uma revisão radical da função e da história da disciplina geográfica. Ele argumenta que, por trás de uma fachada apolítica e enfadonha, escondia-se um saber estratégico crucial, um poder de dominação e um instrumento de controle territorial utilizado pelas elites políticas, econômicas e militares. A tese central do livro é que a geografia, longe de ser o estudo inocente de rios, capitais e produções agrícolas, foi e continua sendo um conhecimento fundamental para o exercício do poder, em especial para a prática da guerra, em seu sentido mais amplo.
A Geografia dos Estados-Maiores versus a Geografia dos Professores
Lacoste estabelece uma dicotomia crucial para compreender sua crítica: a distinção entre a "Geografia dos Estados-Maiores" e a "Geografia dos Professores". A primeira, como o nome indica, é a geografia prática, precisa e valiosa utilizada por militares, estrategistas e planejadores. É um conhecimento operacional sobre relevo, hidrografia, recursos, populações e redes de comunicação – informações vitais para mobilizar tropas, conquistar territórios, controlar populações ou explorar economicamente uma região. Esta geografia é poder.
Já a "Geografia dos Professores" seria a versão empobrecida, despolitizada e amplamente difundida nas escolas. Lacoste a vê como uma cortina de fumaça, uma forma de ocultar o verdadeiro poder da geografia sob um amontoado de descrições monótonas e nomes para decorar. Esta geografia escolar, segundo ele, não serve para capacitar o cidadão a entender as relações de poder que moldam o espaço, mas sim para torná-lo um sujeito passivo, incapaz de decifrar as estratégias geopolíticas que afetam sua vida. Ao reduzir a disciplina a uma mera enumeração de fatos, a geografia tradicional desarma intelectualmente a população, impedindo-a de perceber como o espaço é um campo de batalha permanente de forças políticas e econômicas.
Uma Arqueologia do Saber Geográfico: A Longa História da Geografia-Militar
Para sustentar sua tese, Lacoste mergulha numa espécie de "arqueologia do saber geográfico". Ele demonstra que a associação entre geografia e guerra não é uma invenção moderna, mas sim a origem mesma da disciplina. Desde os tempos mais remotos, conquistadores e generais foram os primeiros e mais importantes geógrafos. Alexandre, o Grande, levava consigo bematistas (mensuradores de passos) para cartografar os territórios conquistados. O Império Romano produziu o Itinerarium Provinciarum, um manual de estradas essencial para o deslocamento rápido das legiões.
Lacoste destaca figuras como o cartógrafo francês do século XVIII, Jean-Baptiste Bourguignon d'Anville, cujos mapas extremamente precisos eram cobiçados por cortes e exércitos europeus. Ele argumenta que a própria expansão colonial europeia foi um empreendimento profundamente geográfico, dependente de mapas, relatos de exploradores (muitos deles patrocinados por sociedades geográficas com interesses econômicos e estratégicos) e do conhecimento do terreno para dominar e explorar continentes inteiros. A geografia, nesse contexto, foi o braço intelectual do colonialismo.
Do Poder Militar ao Poder Econômico: A Guerra não Declarada
Um dos aspetos mais perspicazes do livro é a ampliação do conceito de "guerra". Lacoste não se restringe ao conflito armado clássico. Ele expande a noção para incluir as lutas econômicas e sociais pelo espaço. A "guerra" também é a luta de classes territorializada, a concorrência econômica entre nações e empresas pelo controle de recursos (petróleo, água, minerais), os processos de segregação urbana e a especulação imobiliária.
Nesta perspectiva, a geografia serve para travar uma guerra econômica permanente. As decisões sobre onde construir uma barragem, uma autoestrada, um bairro de luxo ou um aterro sanitário são decisões geográficas com profundas implicações sociais e políticas. Quem tem o poder de decidir o uso do espaço utiliza um saber geográfico estratégico para manter e ampliar seu domínio. A geografia, portanto, é indispensável para planejar não apenas um cerco militar, mas também um embargo econômico, uma rota comercial hegemônica ou a expulsão de uma comunidade pobre de uma área valorizada.
A Geopolítica e a Crítica ao Determinismo
Lacoste também dirige seus ataques à geopolítica clássica e às suas derivações deterministas, como a teoria do "espaço vital" (Lebensraum), que serviu de justificativa intelectual para a expansão nazista. Ele alerta para os perigos de uma geografia que, ao invés de analisar as relações de poder, se presta a naturalizá-las, apresentando a dominação de certos povos sobre outros como um destino inevitável ditado pelo meio físico ou pela localização. A sua crítica é um antídoto contra visões essencialistas e fatalistas do espaço.
No entanto, é importante notar que Lacoste não condena a geopolítica per se, mas a sua má utilização. Ele defende a necessidade de uma "geopolítica crítica", uma análise das rivalidades de poder sobre os territórios, mas feita de forma transparente e com um olhar voltado para a emancipação, e não para a dominação.
Aspectos Controversos e Legado Duradouro
"A Geografia serve em primeiro lugar para fazer a guerra" não está isento de críticas. Alguns acadêmicos apontam que Lacoste, em seu ímpeto polemista, pode ter simplificado em excesso a história complexa da geografia, ignorando correntes de pensamento que sempre tiveram uma preocupação social e crítica. A dicotomia entre a "geografia dos estados-maiores" e a "dos professores" pode ser demasiado rígida, subestimando o potencial mesmo da geografia escolar para, se bem ensinada, formar cidadãos críticos.
Além disso, a ênfase quase exclusiva na geografia como instrumento de poder pode obscurecer outras dimensões igualmente importantes da disciplina, como sua contribuição para a compreensão cultural, ecológica e humanista do mundo.
Apesar dessas possíveis limitações, o legado do livro é imenso e incontestável. Ele funcionou como um choque de realidade para a geografia francesa e mundial. Foi um texto fundador da geografia crítica e radical, que floresceu nas décadas seguintes. Lacoste conseguiu o que pretendia: politizar a disciplina, tirá-la de uma suposta neutralidade e recolocá-la no centro dos debates sobre poder, conflito e desigualdade.
Conclusão: Um Clássico da Crítica e um Chamado à Ação
Mais de quatro décadas após sua publicação, "A Geografia serve em primeiro lugar para fazer a guerra" permanece um texto vibrante e extremamente relevante. Num mundo marcado por guerras convencionais, conflitos híbridos, guerras comerciais, crises ambientais e profundas desigualdades urbanas, a advertência de Lacoste soa profética.
O livro é um convite permanente a desconfiar dos mapas, a questionar quem os produz e com que intenção. É um apelo para que se leia o espaço não como um palco neutro, mas como o próprio produto e campo de batalha de forças políticas em constante disputa. Lacoste não nos oferece um manual de respostas, mas uma caixa de ferramentas para perguntas incômodas. Ele nos ensina que dominar o saber geográfico não é apenas sobre conhecer o mundo, mas sobre ter o poder de interpretá-lo e, consequentemente, de transformá-lo. A geografia, afinal, é demasiado importante para ser deixada apenas para os generais e os grandes estrategistas; ela deve ser reapropriada como um instrumento de libertação e de crítica por todos aqueles que desejam entender e lutar por um espaço mais justo.