Após
uma queda contínua de mais de uma década, a fome voltou a crescer mundialmente,
afetando 815 milhões de pessoas em 2016, ou 11% da população mundial, segundo
nova publicação do relatório anual das Nações Unidas sobre segurança alimentar
e nutrição mundial. Ao mesmo tempo, múltiplas formas de desnutrição ameaçam a
saúde de milhões de pessoas em todo o mundo. O aumento - 38 milhões de pessoas
a mais do que no ano anterior - é em grande parte devido à proliferação de
conflitos armados, das mudanças climáticas e da crise econômica.
De
acordo com o relatório, cerca de 155 milhões de crianças menores de cinco anos
apresentam problemas de crescimento (muito pequenas para a sua idade) e peso
muito abaixo do esperado. Por outro lado, estima-se que 41 milhões de crianças
sofrem de obesidade. A anemia entre as mulheres e a obesidade adulta também é
motivo de preocupação. Essas tendências são uma consequência não só das guerras
e mudanças climáticas, mas também de alterações radicais no hábito alimentar
das pessoas, bem como da desaceleração econômica dos últimos anos.
A fome atingiu algumas partes do Sul do Sudão por vários
meses no início de 2017, e há um alto risco de que ela possa se repetir neste
país, além de aparecer em outros locais afetados por conflitos bélicos, a
saber, o nordeste da Nigéria, a Somália e o Iêmen.
Mas mesmo em regiões pacíficas, secas ou inundações ligadas em
parte ao fenômeno climático do El Niño, bem como a desaceleração econômica
global, também viram a segurança alimentar e a nutrição se deteriorarem.
O
relatório é a primeira avaliação global da ONU sobre segurança alimentar e
nutrição a ser lançada após a adoção da Agenda para o Desenvolvimento
Sustentável de 2030, que visa acabar com a fome e todas as formas de
desnutrição até 2030, como uma prioridade política internacional.
"Na última década, os conflitos armados aumentaram
dramaticamente em número e se tornaram de natureza mais complexa e de difícil
solução", anuncia o prefácio do relatório das entidades envolvidas, como a
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), o Fundo
Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Reino Unido Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa Mundial de Alimentos (PAM) e
a Organização Mundial da Saúde (OMS). Destaca-se que a maior parte das crianças
com insegurança alimentar e desnutridas no mundo estão concentradas em zonas de
guerra.
Isso provocou um sinal vermelho que não pode ser ignorado. Pois,
a fome e todas as formas de desnutrição não serão erradicadas até 2030, a menos
que se enfrentem todos os fatores que prejudicam a segurança alimentar e a
nutrição no mundo. Garantir a paz e a inclusão social é uma condição necessária
para alcançar tal objetivo.
Fome e segurança alimentar: números oficiais
• Número global de pessoas famintas no mundo: 815
milhões, incluindo:
- Na Ásia: 520 milhões
- Na África: 243 milhões
- Na América Latina e no Caribe: 42 milhões
• População
global com fome em termos proporcionais no mundo: 11%
- Ásia: 11,7%
- África: 20% (no leste da África, 33,9%)
- América Latina e Caribe: 6,6%
Desnutrição em todas as suas formas
• Número de crianças com menos de 5 anos de idade
que sofrem de crescimento atrofiado (altura baixa demais para a idade): 155
milhões
Número de pessoas que vivem em países afetados por
diferentes níveis de conflito: 122 milhões
• Crianças com menos de 5 anos afetadas pelo
desperdício (peso muito baixo devido a altura): 52 milhões
• Número de adultos obesos: 641 milhões (13% de
todos os adultos no planeta)
• Crianças com menos de 5 anos com excesso de peso:
41 milhões
• Número de mulheres em idade reprodutiva afetadas
pela anemia: 613 milhões (cerca de 33% do total)
O impacto do conflito
• 815 milhões de pessoas com fome no planeta vivem
em países afetados por conflitos: 489 milhões
• A prevalência de fome nos países afetados por
conflitos é 1,4 - 4,4 pontos percentuais maior que em outros países
• As pessoas que vivem em países afetados por
crises prolongadas são quase 2,5 vezes mais propensas a serem subnutridas do
que as pessoas em outros lugares.
*****
JOSUÉ DE CASTRO
1. O assunto deste livro é bastante delicado e
perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de
nossa civilização. É realmente estranho, chocante, o fato de que, num mundo
como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e de
publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome,
em suas diferentes manifestações. Consultando a bibliografia mundial sobre o
assunto, verifica-se a sua extrema exiguidade. Extrema quando a pomos em
contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito
menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha
e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome — de sua
transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica.
Já outros estudiosos se tinham espantado diante
deste inexplicável vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo
material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal da fome [1],
se surpreendeu com o número insignificante de fichas que conseguiu reunir
acerca deste problema fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol,
interessado no momento noutra ordem de ideias, não se deu ao trabalho de buscar
as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção de nossa cultura em
abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto
estrito de sensação — impulso e instinto que tem servido de força motriz a
evolução da humanidade (Espinosa) — como em seu aspecto mais amplo da
calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo
comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o
mundo — a guerra e as pestes ou epidemias — verificaremos, mais uma vez, que a
menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a
fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se
contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por
esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias
juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências
existentes sobre o assunto [2].
E há mais, a favor deste triste primado da fome
sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela
constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do
terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias. Quais são
os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?
Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o
interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não
cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que,
longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que
regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um
silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os
preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada
civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco
aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a
esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a
fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um
tanto chocante pura uma cultura racionalista como a nossa, que procura por
todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta
humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão como o social, a
nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente
o poder criador dos instintos, tidos como forças desprezíveis. Aí encontramos
uma das imposições da alma coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome
assuntos tabus — impuros e escabrosos — e por isto indignos de serem tocados.
Sobre o problema do sexo, foi mantido um silêncio opressor, até o dia em que um
homem de gênio, num gesto inconveniente e providencial, afirmou, diante do
fingido espanto da ciência e da moral oficiais, que o instinto sexual é uma
força invencível, tão intensa que atinge a consciência e a domina inteiramente.
Freud demonstrou com tal genialidade o primado do instinto, que é essencial,
sobre o racional, que é acessório, no desempenho do comportamento humano, que
não houve remédio senão aceitar-se, mesmo a contragosto, a sua teoria e
deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamente afogar as raízes da
própria vida. Desde então foi possível debater-se em altas vozes o problema do
sexo.
Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis
guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas
quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome,
para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse
de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com
uma peneira aos olhos do mundo.
Ao lado dos preconceitos morais, os interesses
econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o
fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo
econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a
produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se
processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos — dirigidos
e estimulados dentro dos seus interesses econômicos — e não como fatos
intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a dura verdade é que as
mais das vezes esses interesses eram antagônicos.
Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos
conta Réclus [3], nos últimos trinta anos do século passado morreram de
inanição naquele país mais de vinte milhões de habitantes; só no ano de 1877
pereceram de fome cerca de quatro milhões.
E, no entanto, de acordo com a sugestiva observação
de Richard Temple — “enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de
Calcutá continuava a exportar para o estrangeiro quantidades consideráveis de
cereais. Os famintos eram demasiado pobres para comprar o trigo que lhes
salvaria a vida”. É lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres,
Rotterdam e outras grandes praças europeias, que tiravam grandes proventos de
suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores
longínquos desta fome longínqua, a qual, se tomada na devida consideração,
poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios.
Também os governos nazistas que se haviam apoderado
do poder em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a
propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não podiam ver com bons
olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras, aos outros países,
em que extensão a fome participava dos destinos de seus povos. A própria
ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas
materiais, no domínio das forças da natureza, se sentiram humilhadas,
confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condições
de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente silêncio sobre o assunto
faziam-se, consciente ou inconscientemente, cúmplices dos interesses políticos
que procuravam ocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas
envolvidas em caráter permanente no círculo de ferro da fome.
2. Hoje, tendo sido possível realizar com a
aquiescência oficial4 uma série de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes
regiões da terra acerca das condições de nutrição dos povos, e tendo-se
evidenciado, dentro de um critério rigorosamente científico, o fato de que
cerca de dois terços da humanidade vivem num estado permanente de fome, começa
a mudar a atitude do mundo. É claro que para essa mudança de atitude muito tem
contribuído a pressão de fatos inexoráveis. Há a consciência universal de que
atravessamos uma hora decisiva, na qual só reconhecendo os grandes erros de
nossa civilização podemos reencontrar o caminho certo e fazê-la sobreviver à
catástrofe. Desses erros, um dos mais graves é, sem nenhuma dúvida, este de
termos deixado centenas de milhões de indivíduos morrendo à fome num mundo com
capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos
técnicos adequados à realização desse aumento.
Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio
bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oito bilhões, segundo os de
Penk, e onze bilhões, segundo os de Kucszinski; portanto, pelo menos para o
dobro da população atual [5]. A demonstração mais efetiva da mudança radical da
atitude universal, em face do problema, encontra-se na realização da
Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferências
convocadas peias Nações Unidas para tratar de problemas fundamentais à
reconstrução do mundo de após-guerra. Nesta conferência reunida em 1943, e que
deu origem à atual Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas —
a FAO — quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de eminentes técnicos
no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condições reais de
alimentação dos seus respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a
serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos
mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que representam
núcleos de populações subnutridas e famintas, populações que exteriorizam, em
suas características de inferioridade antropológica, em seus alarmantes índices
de mortalidade e em seus quadros nosológicos de carências alimentares —
beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios
endêmicos, anemias, etc. — a penúria orgânica, a fome global ou específica de
um, de vários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutrição
humana.
Para que as medidas projetadas possam atingir o seu
objetivo, faz-se necessário, no entanto, intensificar e ampliar, cada vez mais,
os estudos sobre a alimentação no mundo inteiro; donde a obrigação, em que se
encontram os estudiosos deste problema, de apresentarem os resultados de suas
observações pessoais, como contribuições parciais pura o levantamento do plano
universal de combate à fome, de extermínio ã mais aviltante das calamidades,
uma vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de
que as organizações sociais vigentes se encontram incapazes de satisfazer a
mais fundamental das necessidades humanas — a necessidade de alimentos.
Um dos grandes obstáculos ao planejamento de
soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no
pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de
manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte
dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos
parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre
trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral
limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações.
Foi diante desta situação que resolvemos encarar o
problema sob uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa
obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes
certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as
ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas
manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do método
geográfico, no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver,
permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes
que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e
sociais da vida dos povos. Não o método descritivo dá antiga geografia, mas o
método interpretativo da moderna ciência geográfica, que se corporificou dentro
dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La
Blanche, Criffith Taylor e tantos outros.
Não queremos dizer com isto que o nosso trabalho
seja estritamente uma monografia geográfica da fome, em seu sentido mais
restrito, deixando à margem os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do
problema: mas, que, encarando esses diferentes aspectos, sempre o faremos
orientados pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo
básico é localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos
naturais e culturais que ocorrem à superfície a terra. É dentro desses
princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da
correlação e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenômeno da fome.
Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica,
dentro deste conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das ações e
reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum fenômeno se
presta mais para ponto de referência no estudo ecológico destas correlações
entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o
fenômeno da alimentação — o estudo dos recursos naturais que o meio fornece
para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos
quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades
fundamentais em alimentos. Já Vidal de La Blanche havia afirmado há muito tempo
que “entre as forças que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais
tenazes é a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares
regionais” [6].
Neste ensaio de natureza ecológica tentaremos,
pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a
determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas
naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com
suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar
até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes
grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz
explicativa a inúmeros fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos
por não terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos.
Não se deduza daí que, num exagero descabido de
especialista obcecado pela importância de seus problemas, iremos tentar a
criação de qualquer nova teoria alimentar das civilizações, num novo broto
desta escola bissocial de inesgotável fecundidade. Estamos longe desta maneira
de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jornalista mexicano Francisco
Bulnes, que, no fim do século passado, um tanto influenciado pelas ideias das
hierarquias sociais, procurou explicar todas as diferenças entre os grupos
culturais por seus tipos de alimentação: “A humanidade, de acordo com uma
severa classificação econômica, deve ser dividida em três grandes raças — a
raça do trigo, a raça do milho, e a raça do arroz. Qual delas é
indiscutivelmente superior?” Com esta pergunta iniciava Bulnes o
desenvolvimento do seu raciocínio para demonstrar que só a raça do trigo é
capaz de atingir as etapas da alta civilização. No seu livro
extraordinariamente interessante, se anotarmos a época do seu aparecimento no
século passado — El Porvenir de lãs Naciones Hispano-Americanas ante las
Conquistas de Europa y Estados Unidos (1889) — Bulnes revela-se um paciente
investigador e inteligente renovador do panorama mental americano, mas também
um apaixonado de suas próprias ideias, capaz de forçar os argumentos para
demonstrar a mais absurda das teses. No nosso ensaio não pretendemos provar
nada de parecido. Não queremos convencer ninguém de que a fome seja a mola
única da evolução social, nem que sejam os alimentos a única matéria-prima para
fabricação das tintas com que são coloridos os diferentes quadros culturais do
mundo, mas tão somente destacar desses quadros os traços negros da fome e da
miséria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou menos acentuado.
3. Acreditamos que já é tempo de precisar bem o
nosso conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de grandes confusões.
Não constitui objeto deste ensaio o estudo da fome individual, seja em seu
mecanismo fisiológico, já hoje bem conhecido graças aos magistrais trabalhos de
Schiff, Lucciani, Turró, Cannon e outros fisiólogos; seja em seu aspecto
subjetivo de sensação interna, aspecto este que tem servido de material
psicológico para as magníficas criações dos chamados romancistas da fome.
Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos legaram páginas geniais
e heroicas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance Fome — verdadeiro
relatório minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusas sensações
que a fome produziu no espírito do autor; como as de um Panait Istrati, vagando
esfomeado nas luminosas planícies da Romênia; como as de um Felekhov e um
Alexandre Neverov, narrando com dramática intensidade a fome negra da Rússia em
convulsão social; como as de um George Fink, sofrendo fome nos subúrbios
cinzentos e sórdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em
Vinhas da Ira, a epopeia de fome da “família Joad”, através das mais ricas
regiões do país mais rico do mundo — os Estados Unidos da América.
Não é esse tipo excepcional de fome, simples traço
melodramático no emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso
estudo [7].
O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome
coletiva — da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas
humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua
inglesa chamam de starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema
miséria e a contingências excepcionais, como o fenômeno muito mais frequente e
mais grave, em suas consequências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta,
na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus
regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de
fome, apesar de comerem todos os dias.
É principalmente o estudo dessas coletivas fomes
parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o
objetivo nuclear do nosso trabalho.
Nos últimos dez anos após a publicação deste nosso
livro, este conceito já ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se
reconhece a existência desses vários tipos de fome, e se fala sem maior
constrangimento na luta universal contra a fome, na batalha da fome etc.
Deve-se, em grande parte, a implantação destes conceitos, até bem pouco
considerados como revolucionários e heterodoxos, à própria FAO, que, a
princípio discreta e reticente em falar em fome, preferindo em seus relatórios
referir-se à subnutrição dos povos, acabou por aceitar a nomenclatura de fome,
e a usá-la largamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente científicos.
Visamos com a publicação deste ensaio contribuir
com uma parcela infinitesimal para a construção do plano de ressurgimento de
nossa civilização, através da revalorização fisiológica do homem. Poderá, à
primeira vista, parecer uma desmedida pretensão que o autor de um estudo de
categoria tão modesta como este, lhe atribua qualquer interferência — por
mínima que seja — nos destinos universais da humanidade. Encontramos, porém,
uma explicação e uma justificativa para nossa atitude, na afirmativa recente do
filósofo inglês Bertrand Russell de que “nunca houve momento histórico no qual
o concurso do pensamento e da consciência individuais fosse tão necessário e
importante para o mundo como em nossos dias”. E mais ainda “que todo homem,
qualquer homem comum, poderá contribuir para a melhoria do mundo” [8].
É com esta
mesma crença na obra de cooperação de cada um, de coparticipação ativa na busca
de um mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua
expressão universal, mostrando com que intensidade e em que extensão o fenômeno
se manifesta nas diferentes coletividades humanas.
4. De fato, o conhecimento exato da situação
alimentar dos povos, dos recursos de que poderão dispor para satisfazer suas
necessidades de nutrição, é absolutamente indispensável para que se leve a bom
termo a revolução social que se processa com incrível velocidade nos dias em
que vivemos. Revolução que, segundo se vislumbra pelas transformações já
processadas, está criando universalmente um novo sistema de vida política, que
poderemos chamar, como sugere Julian Huxley [9], a era do homem social, em
contraposição a essa outra era que terminou com a Segunda Guerra Mundial, a era
do homem econômico. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era é uma
focalização muito mais intensa do homem biológico como entidade concreta e a
prioridade concedida aos problemas humanos sobre os problemas de categoria
estritamente econômica no sentido da clássica economia do lucro. Realmente,
enquanto até a última guerra a nossa civilização ocidental, em seu exagero de
economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-se
morbidamente em conquistar pela técnica todas as forças naturais, pondo todo o
seu interesse nos problemas de exploração econômica e de produção de riqueza,
vislumbra-se hoje o estabelecimento de formas políticas dispostas a sacrificar
os interesses do lucro pelos interesses reais das coletividades. É a tentativa
cada vez mais promissora de pôr o dinheiro a serviço do homem e não o homem
escravo do dinheiro. De dirigir a produção de forma a satisfazer as necessidades
dos grupos humanos e não deixar o homem matando-se estupidamente para
satisfazer os insaciáveis lucros da produção.
Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a
tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende
ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros
grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta
escabrosa era do homem econômico.
Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso
que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, é
bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de
calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada
atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada
pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas,
pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos
vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o sociólogo Sorokin pinta com
as seguintes palavras: “vivemos e agimos numa era de grandes calamidades. A
guerra, a revolução, a fome e a peste cavalgam novamente em nosso planeta.
Novamente elas cobram seu mortífero tributo à humanidade sofredora. Novamente
elas influenciam cada momento da nossa existência: nossa mentalidade e nossa
conduta, nossa vida social e nossos processos culturais” [10].
Devemos confessar honestamente que não nos foi
possível fugir na elaboração do nosso trabalho a tão dominadora influência.
5. Várias foram as razões que nos levaram a
planejar a realização desta obra em mais de um volume. A primeira delas é a
desmedida extensão do seu campo de observação, abrangendo todos os continentes,
investigando as condições de vida nos mais variados recantos da superfície da
terra. Por mais impressionista que seja o retrato que tentamos pintar de cada
uma das regiões estudadas, não é possível sintetizar os seus traços
característicos atém de certos limites. A segunda razão se fundamenta na
evidência de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as condições são as
mais favoráveis à sua execução, leva vários anos para ser completado e a
paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tanto
antiquadas certas indicações bibliográficas e certos aspectos de atualidade do
problema em suas manifestações regionais.
Considerando que o Brasil constituiu o nosso laboratório
natural de observação sobre o problema a cujo estudo nos dedicamos há mais de
vinte e cinco anos, achamos de toda a conveniência concentrarmo-nos de início
na análise do fenômeno da fome no nosso país, de sua influência como fator
biológico na formação e evolução dos nossos grupos humanos. Estudando o
fenômeno da fome no nosso meio, daremos um balanço geral das influências de
categoria biológica que têm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura
e de nossa civilização.
Buscando essa valorização dos fatores de categoria
biológica, não quer dizer que desprezemos a importância dos fatores de natureza
cultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tanto
deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegável. O que
tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata da pressão modeladora de forças
econômicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre ò homem e sobre o grupo
humano, em última análise, através de um mecanismo biológico: através da
deficiência alimentar que a monocultura impõe, através da fome que o latifúndio
gera, e assim por diante. Não defenderemos, pois, nenhuma primazia na
interpretação da evolução social brasileira. Nem o primado do biológico sobre o
cultural, nem o do cultural sobre o biológico. O que pretendemos é pôr ao
alcance da análise sociológica certos elementos do mecanismo biológico de
ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do país [11].
Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa
sondagem definitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria: raça,
clima, meio biótico, etc., que constituem a base orgânica da estrutura social
dos nossos grupos humanos.
Estudando, porém, os recursos e os hábitos
alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração
todos esses fatores ecológicos que participam ativamente na interação do
elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros. Caracterizando o tipo de
alimentação e os variados tipos de fome que tem sofrido a nossa gente, estamos
certos de que faremos refletir nessas características biológicas, com maior
exatidão do que através do estudo de quaisquer outras manifestações de natureza
ecológica, o grau de adaptação e ajustamento dos diferentes grupos regionais de
nossas populações às variadas zonas geográficas do país. E são exatamente as
expressões dessas variadas formas de adaptação que dão relevo à fisionomia
cultural de uma nação. É por isso que julgamos ser este volume, até certo
ponto, uma tentativa de interpretação biológica de determinados aspectos da
formação e da evolução histórico-sociais brasileiras.
O nosso projeto inicial era escrever vários volumes
sobre o fenômeno da fome universal — um volume sobre cada continente assolado
por este flagelo social. A marcha dos trabalhos, a repercussão internacional
que provocou o primeiro volume acerca do Brasil e a necessidade um tanto
urgente de apresentar um panorama universal da matéria nesta hora grave do
mundo, em que a humanidade se confronta com dois trágicos problemas — o da guerra
e do medo da guerra e o da fome e do medo da fome — todos estes fatores em
conjunto alteraram o nosso plano inicial. Chegamos, pois, à conclusão de que,
após apreciar regionalmente o problema da fome no Brasil, seria útil apresentar
o panorama do mundo em conjunto, dentro do mesmo método de estudo, embora sem a
mesma riqueza de detalhes que um trabalho de categoria universal não poderia
comportar. Assim, escrevemos e publicamos a nossa Geopolítica da Fome, que
dentro do nosso esquema geral constituiu a segunda parte do nosso estudo do
problema da fome em sua significação biológica, econômica e social.
NOTAS:
1. Marañon. Gregorio, “La Regulación Hormonal del
Hambre”, in Estudios de Endocrinología,
1938.
2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World,
1878.
3 Réclus. Elisée, Nouvelle Géographie Universelle,
1875-94.
4 Desde 1928 a Liga das Nações inscreveu o problema
da alimentação no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o
patrocínio de sua Organização de Higiene, estudos detalhados em diferentes países
e dando publicidade a uma série de valiosos relatórios sobre o assunto.
5 Ferenczi, Imre, L’Optimum Synthétique du
Peuplement, 1938.
6 Blanche, Vidal de La, Príncipes de Géographie
Humaine, 1922.
7 Sobre os aspectos fisiológicos da fome. consulte-se
a obra recente de Masseyeff. René. La Faim, 1956.
8 Russell, Bertrand, Essais Sceptiques, Paris.
9 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.
10 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in
Calamity, 1942.
11 Sobre a participação do biológico no mecanismo
social consulte-se a série de interessantes estudos reunidos pelo eminente
antropólogo R. Redfield, no livro Leveis of Integracion in Biological and
Social Systems (1942). De grande valia para uma orientação firme nesse campo
cientifico é também a obra de G. F. Gause — The Struggle for Exis-tence (1934).
Alexander Lipschütz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el
Problema Racial en lãs Américas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicação bem
orientada dos mais modernos conceitos de sociologia, na análise do biológico e
do social na organização dos diferentes grupos de população deste continente.
(Prefácio de “Geografia da Fome).
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