terça-feira, 1 de julho de 2025

O Iêmen e a Salvaguarda do Direito Internacional

O Iêmen está agindo de forma responsável para impedir o genocídio, e os EUA estão bombardeando o país por isso (*)

O bloqueio do Iêmen no Mar Vermelho em defesa dos palestinos é totalmente respaldado pelo direito internacional. Mas o país está sendo implacavelmente bombardeado pelos EUA para garantir a impunidade israelense pelo cerco e genocídio contínuos em Gaza.

por CRAIG MOKHIBER

Os EUA estão bombardeando o Iêmen porque o país está agindo, conforme exigido pelo direito internacional, para impedir o genocídio e o cerco ilegal na Palestina.

Esta não é uma opinião editorial. É uma declaração de direito e de fato.

Nenhum desses fatos foi divulgado em reportagens ou comentários de empresas de mídia ocidentais, muito menos em declarações de governos perpetradores como os EUA.

Porque perpetrar um genocídio à vista de todos exige a supressão da verdade e o obscurecimento da lei.

Mas o direito internacional é claro. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) concluiu, e a Assembleia Geral da ONU (AGNU) afirmou, que todos os Estados são obrigados a cortar todo o apoio militar e econômico tanto à ocupação de Gaza e da Cisjordânia pelo regime israelense, incluindo Jerusalém, quanto ao seu ataque genocida à população da Gaza ocupada.

Essas decisões legais estão enraizadas nas regras de mais alto nível do direito internacional (as chamadas obrigações de jus cogens e erga omnes), incluindo a proibição de genocídio, de agressão, da aquisição de território pela força e de atos que violem o direito à autodeterminação.

E essas obrigações vinculam todos os Estados. O Iêmen agiu concretamente para enfrentá-los, impondo um bloqueio a navios destinados a reabastecer o regime israelense no porto de Eilat, no Mar Vermelho, e explicitamente em resposta ao cerco e genocídio impostos por Israel na Palestina.

Em suma, o Iêmen está sendo implacavelmente bombardeado pelos Estados Unidos para garantir a impunidade israelense pela prática contínua de seus crimes internacionais na Palestina.

Ao fazer isso, os próprios EUA violam as decisões legais da Corte Internacional de Justiça e são culpados de dois crimes internacionais: o crime supremo de agressão e o crime de cumplicidade em genocídio.

Os iemenitas, por outro lado, desempenharam o papel de defensores dos direitos humanos e intervenientes humanitários nessa situação.

Claramente, a narrativa de mocinho e bandido do governo americano e de suas subservientes corporações de mídia é uma inversão direta da verdade.

Um chamado internacional à ação

Os alarmes internacionais sobre o genocídio na Palestina começaram a soar em outubro de 2023 e se tornaram cada vez mais altos à medida que o genocídio prosseguia.

Os 193 Estados do mundo responderam de diversas maneiras.

Alguns, incluindo EUA, Reino Unido, Alemanha e outros Estados ocidentais, juntaram-se a Israel na perpetração ativa do genocídio.

Outros, também principalmente Estados ocidentais, optaram pela cumplicidade no genocídio, fornecendo à máquina genocida combustível, peças de reposição, cobertura diplomática e outras necessidades.

Um grande número de Estados de todas as regiões optou por simplesmente permanecer em silêncio e passivos, o que também constitui uma violação de suas obrigações legais internacionais de agir afirmativamente para prevenir e interromper o genocídio e de aplicar o direito internacional humanitário.

Um quarto grupo de Estados se opôs ao regime israelense em declarações públicas e em ações diplomáticas no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU, ou juntando-se a processos contra os perpetradores na CIJ e no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas não fez nada para cortar o apoio material ao regime ofensor ou para defender o povo palestino do ataque dos soldados e colonos israelenses.

Mas há outro grupo, o menor de todos, que tomou medidas concretas para cumprir ativamente suas obrigações perante o direito internacional.

Os principais entre eles foram a África do Sul, que levou Israel a julgamento por genocídio na CIJ, e, muito significativamente, o Iêmen.

O Iêmen (ou seja, a capital e a maior parte da população que estão sob o controle de fato da Ansar Allah, enquanto o sul é controlado por um grupo rival com reconhecimento da ONU), anunciou, em resposta ao genocídio de Israel na Palestina, que bloquearia o transporte marítimo no Mar Vermelho que se dirigia para reabastecer o regime israelense enquanto este continuasse o cerco e o genocídio em Gaza.

Ele utiliza o ponto de estrangulamento de Bab al-Mandab (que significa, apropriadamente, "Portão das Lágrimas"), o estreito entre o Iêmen e o Djibuti, na abertura do Mar Vermelho.

O Iêmen iniciou esse bloqueio parcial e direcionado em novembro de 2023 com a abordagem de um navio israelense e, em seguida, manteve o bloqueio até o anúncio do cessar-fogo mais recente em Gaza, retomando-o somente quando Israel rompeu o cessar-fogo e reinstituiu o cerco ilegal a Gaza.

De fato, os iemenitas provaram a pura intenção humanitária do bloqueio ao interrompê-lo completamente durante o cessar-fogo de janeiro em Gaza e somente ao anunciar sua retomada quando Israel reimpôs o cerco e o ataque em larga escala a Gaza em março.

É claro que os navios que abasteciam o regime poderiam evitar o bloqueio navegando ao redor da África, mas isso significou um aumento considerável nos custos de transporte. Alguns navios com destino a Israel tentaram romper o bloqueio e foram advertidos, abordados, requisitados ou engajados militarmente pelas forças armadas iemenitas (houthis), assim como navios militares ocidentais que atacaram os iemenitas ou enfrentaram o bloqueio.

E o bloqueio funcionou, interrompendo mais de 80% do transporte para o regime israelense, levando à falência o porto israelense de Eilat e reduzindo o abastecimento através de Ashdod (via Canal de Suez), obstruindo significativamente o reabastecimento do regime.

Por sua vez, os EUA iniciaram uma campanha massiva de bombardeios para atacar o Iêmen, o país mais pobre da região, um país que vem bombardeando há mais de duas décadas, violando o direito internacional ao fazê-lo, massacrando civis no processo, agravando a fome, a crise médica, o deslocamento interno, colocando os soldados americanos em risco, arriscando uma guerra regional mais ampla, gastando bilhões de dólares do dinheiro do contribuinte americano no processo e mentindo para seu próprio povo sobre o que está acontecendo, tudo com o único propósito de ajudar o genocídio de Israel na Palestina.

A lei está do lado do Iêmen

O direito internacional está claramente do lado do Iêmen neste caso.

Primeiro, os ataques dos EUA ao Iêmen constituem crime de agressão segundo o direito internacional.

Eles não se enquadram nos rigorosos requisitos de legítima defesa previstos na Carta da ONU, não foram autorizados pela Carta e nem sequer se alega que sejam em defesa das regras de jus cogens, mas sim que visam "proteger o comércio".

Em segundo lugar, tanto a CIJ quanto a Assembleia Geral da ONU consideraram que todos os países são legalmente obrigados a cessar qualquer apoio ao regime de ocupação israelense, a proibir quaisquer produtos dos assentamentos e a cortar todas as relações militares, diplomáticas, econômicas, comerciais, financeiras, de investimento e comerciais com a ocupação israelense.

Afirmaram também que todos os Estados devem respeitar as ordens provisórias da CIJ no caso do genocídio de Israel e respeitar suas obrigações como terceiros Estados, sob a Convenção sobre Genocídio, de agir para prevenir e punir o Genocídio.

Isso inclui a obrigação de todos os terceiros Estados de usar todos os meios à sua disposição para influenciar o Estado que potencialmente comete genocídio e garantir que suas próprias ações não auxiliem ou incitem tais atos.

Como observado acima, essas regras são jus cogens (as normas peremptórias de mais alto nível, das quais não há derrogação) e erga omnes (o que significa que vinculam todos os Estados, incluindo o Iêmen e os Estados Unidos).

Além disso, tanto o Iêmen quanto os EUA são obrigados, pelas Convenções de Genebra de 1949, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance "para garantir o respeito" de suas disposições por outras partes, incluindo Israel.

Embora o Iêmen tenha agido para cumprir essas obrigações, os EUA o criticaram por isso.

Contornando a obstrução dos EUA ao direito internacional

Assim, reconhecendo que os Estados são obrigados a agir individual e coletivamente para impedir o genocídio de Israel e que graves violações do direito internacional (apoio a um regime que perpetra genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e violações graves e sistemáticas dos direitos humanos) estão ocorrendo em ou perto das áreas que controla, o Iêmen agiu para impedir essas violações.

É claro que os defensores dos ataques dos EUA contestarão o direito do Iêmen de intervir, alegando que (1) Ansar Allah no Iêmen não é reconhecido como uma autoridade estatal e (2) o Conselho de Segurança não autorizou o Iêmen a usar a força.

De fato, o Iêmen é um país dividido, com forças concorrentes controlando várias regiões. Embora o país tenha permanecido dividido durante a maior parte de sua história pós-colonial, a crise atual no Iêmen começou com os protestos da Primavera Árabe em 2011. Assim como na Síria, esses protestos foram reprimidos e, posteriormente, se transformaram em uma guerra civil que se arrasta desde pelo menos 2015.

Os efeitos devastadores do conflito foram severamente exacerbados pelos ataques e bloqueios brutais dos EUA e da Arábia Saudita, criando uma situação em que, antes do genocídio palestino atingir seu pico em 2023, o Iêmen foi declarado o pior desastre humanitário do planeta por agências internacionais.

Como resultado, o sul do país é dominado pelo Conselho de Liderança Presidencial, reconhecido pela ONU, que também conta com o apoio do Ocidente e das monarquias do Golfo.

No entanto, o Conselho Político Supremo de Ansar Allah controla a capital e maior cidade, Sanaa, todo o território do norte do Iêmen, 80% da população do país e a região estratégica de Bab al-Mandab.

Assim, dos dois, o Iêmen controlado pelos Houthis é, de fato, a entidade mais poderosa. E é a entidade adjacente a Bab al-Mandab e com a capacidade real de implementar o bloqueio humanitário.

Essa "capacidade de influenciar" sugere uma responsabilidade maior de agir, especialmente em caso de genocídio, como reconhecido pela CIJ. Assim, como existe tanto um dever (maior) de agir quanto uma capacidade de agir, o fato de o país estar dividido não pode ser razoavelmente considerado determinante em um caso em que o genocídio esteja em jogo.

E mesmo que a condição de Estado do Iêmen controlado por Ansar Allah seja negada, atores não estatais, incluindo grupos armados, também são reconhecidos como tendo obrigações perante o direito internacional, principalmente as regras do direito internacional humanitário.

Quanto à falta de autorização do Conselho de Segurança, o Conselho de Segurança da ONU foi totalmente desativado pelos EUA, como parte no conflito, e, como resultado, está totalmente inoperante para os propósitos da situação na Palestina. (Apenas mais um exemplo de como os EUA estão destruindo a ordem jurídica internacional em nome deste regime estrangeiro opressor).

Mas, como o Conselho de Segurança da ONU obtém seu mandato da Carta da ONU, um tratado que é parte do direito internacional, ele está sujeito ao direito internacional, não acima dele. E tanto a proibição do genocídio quanto o direito à autodeterminação são regras de jus cogens e erga omnes. Estes são os mais altos princípios jurídicos internacionais, normas peremptórias, universais e inderrogáveis. O Conselho de Segurança não pode substituir essas regras de direito internacional.

E se a ação do Conselho de Segurança da ONU não pode substituir as normas de jus cogens, então a inação ou omissões do Conselho de Segurança da ONU não podem substituir (ou apagar) as normas de jus cogens, cuja força é contínua em todas as circunstâncias.

Simplificando, as regras de jus cogens e erga omnes do direito internacional não derivam, não podem ser anuladas, nem dependem da autoridade do Conselho de Segurança.

Além disso, neste caso, a comunidade internacional de Estados expressou suas intenções ao adotar a resolução da Assembleia Geral da ONU sobre a implementação das conclusões da CIJ na Palestina.

E esta não foi uma resolução comum, mas sim uma adotada (1) por maioria esmagadora e (2) sob os poderes reforçados de uma sessão especial de emergência convocada sob a chamada resolução "Unidos pela Paz", projetada para superar a obstrução do veto em circunstâncias extraordinárias como estas.

Desnecessário dizer que o Iêmen também tem o direito à autodefesa contra ataques armados dos EUA, assim como todos os países, nos termos do Artigo 51 da Carta da ONU. E os ataques dos EUA ao Iêmen já acontecem há décadas.

Além disso, em relação a algumas de suas ações, o Iêmen poderia argumentar que está aplicando a lei marítima em suas águas territoriais, o que geralmente não requer autorização do Conselho de Segurança da ONU. De fato, a Guarda Costeira dos EUA intercepta, aborda e apreende navios, mesmo em águas internacionais, por mera suspeita de delitos muito menores, incluindo suspeita de tráfico de drogas. E que função mais importante de aplicação da lei marítima poderia haver do que impedir um genocídio?

E, de fato, mesmo que isso fosse contestado sob as regras do direito do mar (o tratado internacional que, aliás, o Iêmen ratificou, mas os EUA se recusam a assinar ou ratificar), os iemenitas estão agindo sob a autoridade do direito internacional, conforme declarado pela CIJ, reforçado pela resolução de implementação da AGNU e codificado em tratados dos quais o Iêmen é parte (incluindo a Convenção sobre o Direito do Mar, a Convenção sobre Genocídio e as Convenções de Genebra).

Ilegalidade ou Estado de Direito

É claro que, se os EUA discordarem, sua solução legal é buscar uma decisão sobre a disputa em um caso contencioso na CIJ ou, alternativamente, convencer a AGNU a solicitar um parecer consultivo da CIJ sobre a questão. Mas não têm o direito legal de declarar guerra ao Iêmen.

E o que está claro na lei é que todos os Estados, incluindo o Iêmen e os EUA, têm o dever de respeitar as decisões da CIJ e suas interpretações autoritativas do direito internacional. Sobre isso, a CIJ já emitiu várias conclusões claras sobre a lei que vincula todos os terceiros Estados, primeiro no parecer consultivo sobre o muro do apartheid de Israel, depois em uma série de medidas provisórias ordenadas no caso de genocídio contra Israel e, finalmente, em seu parecer consultivo que concluiu pelo apartheid israelense e pela ocupação ilegal da Palestina.

Fornecer, facilitar o fornecimento ou não agir para impedir o fornecimento da ocupação da Palestina pelo regime israelense ou do seu genocídio na Palestina são violações graves do direito internacional.

O Iêmen está cumprindo essas obrigações. Os EUA as estão violando.

A liberdade de expressão está sob ataque — especialmente quando se trata da Palestina.

Da censura à voz de estudantes aos assassinatos de jornalistas em Gaza, o custo de dizer a verdade sobre a Palestina nunca foi tão alto. Na Mondoweiss, publicamos reportagens destemidas e análises críticas que outros não mencionarão — porque acreditamos que o público precisa saber a verdade sobre a Palestina.

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* Embora este artigo tenha sido publicado com um lapso de atraso, ao retomarmos as atividades do blog, optamos pela sua publicação pela pertinência do tema. Segue o link do texto original:

MondoweissYemen is acting responsibly to stop genocide and the U.S. is bombing them for it

sábado, 1 de março de 2025

A Grande Barganha: A Rússia e os EUA podem reescrever a história?

por Andrey Kortunov, Doutor em História, Membro da RIAC
por Andrey Kortunov, Doutor em História, Membro da RIAC

Durante anos, as relações russo-americanas pareciam estar em coma irreversível. A diplomacia estava morta, tomada pela hostilidade, sanções e um risco crescente de confronto militar. Muitos insistiam que nada poderia quebrar essa trajetória — Moscou e Washington estavam presos em um curso imutável de conflito.

No entanto, hoje, o ritmo da mudança é espantoso. A recente reunião de alto nível entre autoridades russas e americanas em Riad, seguida pelas últimas declarações de Donald Trump, sugere que nada na geopolítica é predeterminado.

Essa reviravolta nos eventos traz à mente uma cena icônica de Terminator 2, na qual Sarah Connor esculpe “Não há destino” em uma mesa de madeira. Seu filho, John, expande o pensamento: “Não há destino exceto aquele que criamos para nós mesmos.” A mensagem é clara — nosso futuro é moldado por escolhas, não pelo destino.

Durante anos, analistas e políticos tanto na Rússia quanto no Ocidente insistiram que o impasse EUA-Rússia era inevitável. Alguns estrategistas americanos viam a Rússia como um adversário irredimível, enquanto os “turbopatriotas” da Rússia alertavam que qualquer envolvimento com Washington seria uma armadilha. As vozes mais extremas de ambos os lados até sugeriram que o confronto só poderia terminar em catástrofe nuclear.

Mas os eventos que se desenrolam agora sugerem o contrário. Se não há destino senão o que fazemos, então as escolhas diante de Moscou e Washington hoje são de significância histórica.

A ilusão de um Ocidente monolítico

As negociações de Riad já começaram a desmantelar suposições de longa data sobre a suposta unidade do “Ocidente coletivo”. Durante anos, os formuladores de políticas russos acreditaram que a política global era controlada por uma única estrutura de poder “anglo-americana” centralizada, operando perfeitamente de Washington a Bruxelas. A realidade, como a era Trump demonstrou repetidamente, é muito mais fragmentada.

A América de Trump não é a América de Joe Biden. Mesmo dentro de Washington, divisões profundas são evidentes. Enquanto isso, a Europa Ocidental — há muito assumida como inabalavelmente alinhada com os EUA — agora se vê lutando com desacordos internos e ressentimento sobre a pressão americana.

Para a Rússia, essa fragmentação é uma oportunidade. O desmantelamento do consenso transatlântico apresenta aberturas que não existiam nem um ano atrás.

Compromisso vs. Capitulação

Claro, o ceticismo permanece. Os críticos argumentarão que qualquer acordo com Washington é uma armadilha — que os EUA farão grandes promessas apenas para renegá-las mais tarde, como aconteceu no passado. Que, uma vez que a Rússia baixe a guarda, o Ocidente retornará aos seus velhos hábitos de traição e acordos quebrados.

Esta não é uma preocupação infundada. A história ensinou a Rússia a ser cautelosa. Mas a diplomacia não é sobre garantias — é sobre oportunidades. Não existe acordo inabalável em geopolítica. Todo acordo pode ser quebrado, toda promessa pode ser revertida. A verdadeira questão é se a Rússia está preparada para aproveitar o momento em que uma rara oportunidade se apresenta.

E este momento pode ser exatamente isso.

Mesmo que os enviados de Trump — Marco Rubio, Mike Waltz e Steve Witkoff — sejam negociadores habilidosos, é difícil imaginar que eles possuam uma compreensão superior da diplomacia do que figuras como Sergey Lavrov ou Yury Ushakov. A Rússia tem diplomatas experientes que passaram décadas navegando nas complexidades da política de poder global. Se a equipe dos EUA acredita que pode superar Moscou, está muito enganada.

Um momento de oportunidade histórica

O caminho à frente é incerto, e haverá vozes insistindo que a Rússia deve rejeitar qualquer envolvimento com Washington de cara. Mas recusar-se a negociar por medo seria um erro. A Rússia não está na posição em que estava na década de 1990 — ela é mais forte, mais autossuficiente e reconhecida como uma potência global. Desta vez, Moscou entra nas negociações não como um suplicante, mas como um igual.

Oportunidades na diplomacia são raras. É fácil deixá-las escapar; muito mais difícil aproveitá-las. Se a Rússia e os EUA puderem avançar em direção a um compromisso razoável — um que garanta os interesses centrais de Moscou enquanto reduz as tensões — pode ser o momento que remodelará o cenário geopolítico nos próximos anos.

(*) Este artigo foi publicado originalmente pelo  Kommersant e foi traduzido e editado pela equipe da RT.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

A Ciência da Propaganda Antirrussa

 

por Glenn Diesen

"A propaganda envolve apelar para o melhor da natureza humana a fim de convencer o público a fazer o pior da natureza humana"

Propaganda é uma ciência de persuasão que comumente contorna as considerações racionais do indivíduo apelando, em vez disso, à psicologia inconsciente do grupo. A mente consciente tende a ser racional, mas o comportamento e as ações humanas são amplamente moldados pelo inconsciente, instintos primordiais e emoções. O indivíduo racional tem fortes impulsos para se adaptar ao grupo, portanto, a propaganda visa influenciar a psicologia irracional do grupo.

Propaganda como ciência

Sigmund Freud explorou a irracionalidade da “psicologia de grupo” que anula as capacidades racionais e críticas do indivíduo. Freud reconheceu que “o grupo é extraordinariamente crédulo e aberto à influência, não tendo faculdade crítica”. [1] A conformidade com as ideias do grupo é poderosa exatamente porque é inconsciente. Freud definiu a psicologia de grupo como sendo: “preocupada com o homem individual como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas”, que formam uma consciência coletiva de grupo, instinto social, instinto de rebanho ou mentalidade tribal. [2]

O sobrinho de Sigmund Freud, Edward Bernays, construiu sobre o trabalho de seu tio a literatura fundamental sobre propaganda política. Bernays tinha como objetivo manipular a consciência coletiva e a identidade do grupo para controlar os corações e mentes das massas sem que elas percebessem que estavam sendo manipuladas:

“O grupo tem características mentais distintas daquelas do indivíduo, e é motivado por impulsos e emoções que não podem ser explicados com base no que sabemos da psicologia individual. Então a questão surge naturalmente: se entendêssemos os mecanismos e motivações da mentalidade de um grupo, não seria possível controlar e regimentar as massas de acordo com nossa vontade sem que elas saibam?”. [3]

Edward Bernays e Walter Lippman trabalharam em propaganda para a administração Woodrow Wilson. Bernays ajudou a convencer o público americano a se juntar à Primeira Guerra Mundial vendendo a guerra como uma paz perpétua, através de slogans como "guerra para acabar com todas as guerras" e "tornar o mundo seguro para a democracia".

Após a Primeira Guerra Mundial, Bernays usou sua expertise para manipular a opinião pública para fins comerciais com campanhas de marketing. Por exemplo, Bernays liderou uma campanha de marketing convencendo mulheres de que era feminino e emancipador fumar cigarros com a campanha “chama da liberdade”. Bernays pagou mulheres para fumar na Easter Sunday Parade de 1929, para dar respaldo ao princípio da credibilidade da fonte, pois a propaganda é mais eficiente quando as pessoas confiam na fonte e não sabem que é propaganda.

Bernays usou os mesmos princípios de marketing para objetivos políticos, pois também foi contratado pela United Fruit Company quando o governo da Guatemala introduziu novas leis trabalhistas para proteger os trabalhadores. Bernays convenceu o público americano de que o presidente da Guatemala, embora capitalista e liberal, era um comunista que ameaçava as liberdades básicas. Depois que Bernays mudou a opinião pública americana por meio do logro, o presidente Eisenhower lançou uma intervenção militar para derrubar o governo sob os auspícios da luta contra o comunismo e da defesa da liberdade. Na década de 1920, Joseph Goebbels, que se tornaria o ministro da propaganda nazista, tornou-se um admirador fervoroso de Bernays e imitou suas técnicas de propaganda. Como Bernays reconheceu mais tarde: “eles estavam usando meus livros como base para uma campanha destrutiva contra os judeus da Alemanha”. [4]

À medida que o mundo se tornou mais complexo, o público em geral se tornou mais dependente de atalhos cognitivos que frequentemente dependem de identidades atribuídas para processar questões complexas. As pessoas têm que fazer centenas ou milhares de interpretações e decisões diariamente, e escolhas completamente racionais dependem de uma avaliação extensiva de alternativas e conhecimento de variáveis ​​relevantes. As heurísticas são manipuladas pela construção de estereótipos com base em experiências reais ou fictícias e padrões de comportamento.

A maioria dos principais estudiosos da propaganda reconheceu que as democracias são mais propensas a se envolver em propaganda, pois há uma necessidade maior de administrar as massas quando a soberania reside no povo. A propaganda também é considerada um instrumento da mídia estatal. No entanto, a propaganda depende da credibilidade da fonte, pois a mensagem tem maior influência quando transmitida por meio de uma terceira parte aparentemente benigna. A propaganda americana e britânica foi mais eficaz do que a propaganda soviética durante a Guerra Fria, pois a propaganda ocidental podia ser disseminada por meio de corporações privadas e "organizações não governamentais". A propaganda costumava ser considerada uma profissão até que os alemães lhe deram associações negativas na Primeira Guerra Mundial. Edward Bernays renomeou a propaganda para "relações públicas", distinguindo entre "nossa" boa propaganda e "sua" propaganda maliciosa.

Propaganda anti-russa: o virtuoso “nós” versus o malvado “outro”

Os seres humanos se organizam em grupos como famílias, tribos, nações ou civilizações para produzir significados, garantir segurança e até mesmo a ideia de imortalidade de um grupo. A conformação a um consenso de um grupo é movida por instintos poderosos no sentido de organizar pessoas em torno de crenças, ideias e moralidade comuns, enquanto o grupo também pune o indivíduo que não se conforma com pressupostos de organização. A conformidade do grupo é um instinto de sobrevivência que se fortalece quando este grupo confrontado com um outro grupo diferente e exterior. A "outridade" de um povo é instrumentalizada para exagerar a homogeneidade percebida pelo grupo interno e fortalecer a identidade coletiva e solidariedade, enquanto o grupo externo é retratado e deslegitimado com qualidades diametralmente opostas. Estereótipos são usados ​​para mascarar a razão e a realidade, como a construção da desumanidade do adversário. A propaganda envolve apelar para o melhor da natureza humana a fim de convencer o público a fazer o pior da natureza humana.

A Rússia tem sido retratada há séculos como o "Outro" civilizacional para o Ocidente. O Ocidente e a Rússia têm sido justapostos como Ocidental versus Oriental, Europeu versus Asiático, civilizado versus bárbaro, moderno versus atrasado, liberal versus autocrático e até mesmo bem versus mal. Durante a Guerra Fria, as linhas divisórias ideológicas caíram naturalmente ao lançar o debate como capitalismo versus comunismo, democracia versus totalitarismo e cristianismo versus ateísmo. Após a Guerra Fria, a propaganda antirrussa foi revivida ao interpretar todas as questões políticas por meio do estereótipo binário simplista de democracia versus autoritarismo, que fornece pouco ou nenhum valor heurístico para entender as complexidades das relações. Retratar a Rússia como um outro bárbaro sugere que o Ocidente deve civilizar, conter ou destruir a Rússia para aumentar a segurança. Além disso, uma missão civilizatória ou papel socializador do Ocidente infere que o domínio e a hostilidade são benignos e caridosos, o que reafirma a autoidentificação positiva do Ocidente. Todos os interesses de poder concorrentes são ocultados na linguagem benigna do liberalismo, democracia e direitos humanos.

A russofobia não é um fenômeno transitório, mas provou ser incrivelmente duradouro devido à sua função geopolítica. Ao contrário da germanofobia ou francofobia transitórias que foram associadas a guerras específicas, a russofobia tem uma resistência comparável ao antissemitismo. Dos esforços de Pedro, o Grande, para europeizar a Rússia no início do século XVIII aos esforços semelhantes de Yeltsin para "retornar à Europa" na década de 1990, a Rússia não conseguiu escapar do papel do "Outro". A rejeição do Ocidente a uma arquitetura de segurança europeia inclusiva após a Guerra Fria, em favor da criação de uma nova Europa sem a Rússia, foi amplamente legitimada pela suposta dicotomia duradoura entre o Ocidente e a Rússia.

Walter Lippman observou há mais de um século que a propaganda é boa para a guerra, mas ruim para a paz. A propaganda fortalece a solidariedade interna e auxilia na mobilização de recursos contra um adversário. No entanto, o público rejeitará uma paz viável se acreditar que há uma luta entre o bem e o mal. Lippman argumentou que, para superar a inércia do público em relação ao conflito, “o inimigo tinha que ser retratado como o mal encarnado, como uma maldade absoluta e congênita… Como resultado desse absurdo apaixonado, a opinião pública ficou tão envenenada que o povo não tolerou uma paz viável”. [5]

Esta lição continua verdadeira hoje. Vender a narrativa de uma Rússia perversa e imperialista desencadeando um ataque não provocado a uma democracia próspera justificou alimentar uma guerra por procuração e rejeitar quaisquer negociações. A analogia de Hitler é poderosa, pois a paz requer vitória, enquanto a diplomacia é apaziguamento. Uma paz viável agora é difícil de justificar, pois implica aquele bom compromisso com o mal.

O artigo inclui trechos do meu livro “Russophobia: Propaganda in International Politics”.

[1] Freud, S., 1921. Group Psychology and the Analysis of the Ego [Massenpsychologie und Ich-Analyse], Internationaler Psychoanalytischer Verlag, Viena, p.13.

[2] Freud, S., 1921. Group Psychology and the Analysis of the Ego [Massenpsychologie und Ich-Analyse], Internationaler Psychoanalytischer Verlag, Viena, p.7.

[3] Bernays, E., 1928. Propaganda . Liveright, Nova Iorque, p.47.

[4] Bernays, E., 1965. Biography of an Idea: Memoirs of Public Relations Counsel. Simon e Schuster, Nova York, p.652.

[5] Lippman, W., 1955. The Public Philosophy. Little, Brown & Co., Boston, p.21.

[Muito obrigado a Matthew Alford pela leitura em áudio deste artigo.]

Glenn Diesen é professor de ciência política na Universidade do Sudeste da Noruega (USN), com foco em geoeconomia, política externa russa e integração eurasiana.

Publicado originalmente no Substack de Glenn Diesen.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A Revolução Russa e os Anarquistas


A ânsia de destruir é também o impulso de criar”. Bakunin escreveu estas palavras em 1842, e os anarquistas russos ansiaram sempre por uma revolução social que varresse a ordem czarista e inaugurasse o advento do milênio que seria destituído de Estado. Em fevereiro de 1917, este sonho, há muito acalentado, parecia finalmente tornar-se realidade. Quando a rebelião irrompeu em Petrogrado e reduziu a monarquia a pó, os anarquistas saudaram-na jubilosamente como a sublevação espontânea das massas que Bakunin tinha previsto cerca de setenta e cinco anos antes. A revolução convenceu-os de que a Idade do Ouro havia chegado e que deviam se lançar à tarefa de eliminar o que restava do Estado e transferir as terras e as fábricas para o controle do povo.

Em questão de semanas, foram criadas federações anarquistas em Petrogrado e Moscou, com o objetivo de transformar as capitais irmanadas em comunas igualitárias, tendo por base um modelo idealizado e consagrado pela lenda que os anarquistas faziam da Comuna de Paris de 1871. “Da Revolução Social à Comuna Anarquista” eram suas palavras de ordem – uma revolução destinada a demover o governo e a propriedade, as prisões e os quartéis, o dinheiro e os lucros, para posteriormente inaugurar uma sociedade sem Estado, fundada na cooperação voluntária de indivíduos livres. “Salve a anarquia! Parasitas, governantes e sacerdotes enganadores, tremerão!” [1]

À medida que a revolução ganhava impulso, o movimento espalhava-se rapidamente para outras cidades e vilas. Na maioria dos locais, os grupos anarquistas enquadravam-se em três categorias: anarquistas comunistas, anarcossindicalistas e anarquistas individualistas. Os anarcocomunistas, inspirandos em Bakunin e Kropotkin, imaginaram uma federação livre de comunidades na qual cada membro seria recompensado de acordo com suas necessidades. Projetando o advento do milênio num espelho romântico, que refletia uma Rússia pré-industrial de comunas agrícolas e cooperativas artesanais, eles viam pouca utilidade na indústria de grande escala ou nas organizações laborais burocráticas. Na turbulência que se seguiu à Revolução de Fevereiro, seus militantes confiscaram uma série de residências privadas - as mais importantes foram a dacha de P. P. Durnovo, em Petrogrado, e o antigo Clube dos Mercadores em Moscou (rebatizado de Casa da Anarquia) – para transformá-las em sede de suas comunas igualitárias.

Os anarcossindicalistas, por outro lado, depositaram suas esperanças nos comitês de fábrica como células da futura sociedade libertária. A perspectiva de um novo mundo centrado na produção industrial não os repelia em nada. Na verdade, por vezes exibiam uma devoção quase futurista ao culto da máquina. A admiração deles era a mesma dos ocidentalizadores pelo progresso tecnológico, em contraste com a era irrecuperável que talvez nunca tivesse existido manifesta no anseio eslavófilo dos anarquistas comunistas. No entanto, os sindicalistas não cederam a uma adoração acrítica da produção em massa. Profundamente influenciados por Bakunin e Kropotkin, anteciparam o perigo que a tecnocracia industrial significava ao desenvolvimento de uma sociedade descentralizada em organizações laborais nas quais os trabalhadores pudessem verdadeiramente ser donos do seu próprio destino. Com o seu slogan de “trabalhadores no controle”, os sindicalistas passaram a exercer uma influência nos comitês de fábrica bastante desproporcional ao seu pequeno número. Mas pelo fato de repudiaram um aparelho partidário centralizado dominante, nunca estiveram em posição de liderar a classe trabalhadora em grande escala. No final, coube aos bolcheviques, que estavam equipados não só com uma organização partidária eficaz, mas também com uma vontade consciente de poder que faltava aos sindicalistas, conquistar a lealdade dos trabalhadores industriais nos comitês de fábrica e nos sindicatos.

Os anarquistas individualistas rejeitaram tanto a questão comunal agrário-camponesa quanto a possibilidade de ficarem presos às engrenagens e alavancas de uma máquina industrial centralizada. Suspeitam das comunas dos anarquistas comunistas como das organizações operárias dos sindicalistas. Acreditavam que apenas indivíduos desorganizados estavam a salvo da coerção e da dominação, o que lhes permitiriam permanecer fiéis aos ideais do anarquismo. Seguindo o exemplo de Nietzsche e Max Stirner, exaltavam o “Eu” individual acima das reivindicações coletivas e, em alguns casos, exibiram um estilo distintamente aristocrático de pensamento e ação. O anarco-individualismo atraiu um pequeno séquito de artistas e intelectuais boêmios e, ocasionalmente, bandidos solitários que encontraram expressão para sua exclusão social na violência e no crime, transformando o assassinato em uma forma última de autoafirmação e fuga definitiva do tecido discriminatório da sociedade organizada. Aqui e ali, pelo contrário, grupos tolstoianos pregavam o evangelho da não violência cristã e, embora tivessem poucos laços com os anarquistas revolucionários, o seu impacto moral no movimento foi considerável.

Para todos os grupos anarquistas – anarquistas comunistas, anarcossindicalistas, individualistas – as grandes esperanças despertadas pela Revolução de Fevereiro rapidamente se transformaram em amarga decepção. A monarquia foi derrubada e, ainda assim, o Estado permaneceu de pé. O que aconteceu em fevereiro? perguntou um jornal anarquista em Rostov-on-Don. “Nada de especial. No lugar de Nicolau, o Sanguinário, subiu ao trono Kerensky, um novo Sanguinário” [2]. Os anarquistas não poderiam descansar até que o Governo Provisório, tal como o seu antecessor czarista, fosse também derrubado. Em pouco tempo, encontraram um ponto em comum com os seus adversários ideológicos, os bolcheviques, o outro grupo radical na Rússia que pressionava pela destruição imediata do Estado “burguês”.

A intensa hostilidade sentida pelos anarquistas em relação a Lenin dissipou-se rapidamente à medida que 1917 avançava. Impressionados por uma série de declarações ultrarradicais que Lenin vinha fazendo desde o seu regresso à Rússia, alguns anarquistas passaram a acreditar que o líder bolchevique tinha tirado a sua camisa de força do marxismo e vestido uma nova teoria da revolução, bastante semelhante à dos anarquistas. As Teses de Abril de Lenin, por exemplo, continham uma série de proposições iconoclastas que os pensadores anarquistas há muito acalentavam: a transformação da guerra “imperialista predatória” numa luta revolucionária contra a ordem capitalista; a renúncia ao governo parlamentar em favor de um regime de sovietes inspirado na Comuna de Paris; a abolição da polícia, do exército e da burocracia; o nivelamento dos salários [3]. Embora a preocupação de Lenin com a tomada do poder tenha feito com que alguns hesitassem, não foram poucos os anarquistas que consideraram as suas opiniões suficientemente harmoniosas com as suas, para servirem de base para uma possível cooperação. Quaisquer que fossem as suspeitas que ainda nutriam, foram, por ora, colocadas de lado. O apelo de Lenin por “uma ruptura e uma revolução mil vezes mais poderosa que a de fevereiro” [4] tinha um tom distintamente bakuninista e era precisamente o que a maioria dos anarquistas queria ouvir. Na verdade, um líder anarquista em Petrogrado estava convencido de que Lenin pretendia inaugurar o anarquismo quando propôs “definhar o Estado” no momento em que o controle estatal passasse para as mãos dos revolucionários [5].

Assim aconteceu que, durante os oito meses que separaram as duas revoluções de 1917, tanto anarquistas como bolcheviques concentraram todos os seus esforços sobre o mesmo objetivo: a destruição do governo provisório. Embora persistisse um certo grau de cautela em ambos os lados, um anarquista proeminente observou que na maioria das questões vitais existia “um paralelismo perfeito” entre os dois grupos [6]. Os seus slogans – “Abaixo a guerra! Abaixo o governo provisório! Trabalhadores no controle das fábricas! A terra para os camponeses!” – uniram outrora antagonistas sob um propósito comum. Quando um conferencista marxista disse a uma plateia de trabalhadores fabris em Petrogrado que os anarquistas estavam perturbando a solidariedade do trabalhador russo, um ouvinte irado gritou: “Já chega! Os anarquistas são nossos amigos!” Uma segunda voz, porém, foi ouvida murmurando: “Deus nos salve desses amigos!” [7]

Embora os anarquistas e os bolcheviques estivessem unidos na sua determinação de derrubar o governo provisório, surgiu uma discórdia entre eles quanto à questão do momento certo para isso. Durante a primavera e o verão de 1917, os militantes anarquistas comunistas na capital e em Kronstadt pressionaram por um levante imediato, enquanto o comitê bolchevique de Petrogrado argumentava que o momento ainda não estava maduro, que uma rebelião indisciplinada dos anarquistas e das bases bolcheviques poderia ser facilmente esmagada, causando danos irreparáveis ao partido e à revolução. Os anarcocomunistas, no entanto, não tinham qualquer interesse em contemporizar com qualquer grupo político, incluindo os bolcheviques. Impacientes pelo advento do milênio, avançaram com os seus planos para uma insurreição armada. Os agitadores anarquistas exortaram o povo à revolta sem mais demora, assegurando-lhe que não era necessário nenhum apoio de organizações políticas, “pois a Revolução de Fevereiro também ocorreu sem a liderança de um partido” [8].

Os anarquistas não tiveram que esperar muito. Em 3 de julho, multidões de soldados, marinheiros de Kronstadt e trabalhadores irromperam em uma rebelião aberta na capital, exigindo que o soviete de Petrogrado assumisse o poder (embora os anarquistas entre eles estivessem mais interessados em destruir o Estado do que em transferir as rédeas da autoridade para o soviéticos). O soviete de Petrogrado, contudo, recusou-se a apoiar a insurgência extemporânea e, após alguns dias de distúrbios esporádicos, os desordeiros foram enfim reprimidos. Seria um exagero chamar as Jornadas de Julho de uma “criação anarquista”, como fez um orador numa conferência anarquista em 1918 [9]. Por outro lado, o papel dos anarquistas não deve ser minimizado. Juntamente com os militantes da base bolchevique e os radicais apartidários, agiram como moscas, incitando os soldados, os marinheiros e os trabalhadores a uma revolta de antemão abortada.

Na sequência das Jornadas de Julho, os receios do comitê bolchevique concretizaram-se em parte, pois os líderes do partido foram presos ou forçados a esconder-se. Os bolcheviques, porém, estavam longe de ser esmagados. Na verdade, em outubro eles eram suficientemente fortes para lançar a sua insurreição bem sucedida contra o regime de Kerensky, uma insurreição na qual os anarquistas estavam mais uma vez entre os participantes mais entusiásticos. (Havia pelo menos quatro membros anarquistas do Comitê Militar Revolucionário, dominado pelos bolcheviques, que arquitetou o golpe de Estado de 25 de outubro). Esquecendo-se das pregações de Bakunin e Kropotkin contra os golpes políticos, os anarquistas participaram da tomada de poder, apoiados na crença de que o poder uma vez capturado seria de algum modo eliminado.

Porém, mal se passou um dia, antes que eles pudessem reconsiderar tal ideia. Em 26 de outubro, quando os bolcheviques proclamaram um “governo soviético” e criaram um Conselho Central de Comissários do Povo (Sovnarkom), composto exclusivamente por membros do seu próprio partido, os anarquistas recordaram das advertências de Bakunin e Kropotkin, de que a “ditadura do proletariado” significaria na verdade “a ditadura do partido socialdemocrata” [10]. Imediatamente começaram a protestar, argumentando que um tipo de concentração do poder político como esse destruiria a revolução social iniciada em fevereiro. O sucesso da revolução, insistiram, dependia da descentralização da autoridade política e econômica. Portanto, oss sovietes e os comitês de fábrica deveriam continuar a ser unidades descentralizadas, livres do domínio dos chefes do partido ou dos chamados comissários do povo. Caso contrário, se algum grupo político tentar convertê-los em instrumentos de coerção, o povo deve estar pronto para pegar em armas mais uma vez [11].

Os círculos anarquistas em Petrogrado logo estavam fervilhando de conversas de “uma terceira e última etapa da revolução”, uma luta final entre “o poder socialdemocrata e o espírito criativo das massas, entre os sistemas autoritários e libertários, entre o princípio marxista e o princípio anarquista” [12]. Havia murmúrios ameaçadores entre os marinheiros de Kronstadt no sentido de que, se o novo Sovnarkom ousasse trair a revolução, os canhões que tomaram o Palácio de Inverno também tomariam o Smolny (sede do governo bolchevique). “Onde a autoridade começa, a revolução acaba!” [13]

As queixas dos anarquistas acumularam-se rapidamente. Em 2 de novembro, o novo governo publicou uma Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia, que afirmava o “direito inalienável” de cada nacionalidade de expressar a sua autodeterminação através do estabelecimento de um Estado independente; o que representava um retrocesso em relação ao ideal internacionalista e apátrida. Na primavera de 1918, uma nova polícia política, a Tcheka, foi criada; a terra foi nacionalizada; os comitês de fábrica foram subordinados a uma autoridade; os sindicatos controlados pelo Estado – em suma, um “Estado-comissário” havia sido erguido, “a úlcera do nosso tempo”, como a Associação Anarquista Comunista de Kharkov o descreveu amargamente [14]. De acordo com um panfleto anarquista anônimo desse período, a concentração de autoridade nas mãos do Sovnarkom, da Tcheka e do Vesenkha (Conselho Econômico Supremo) havia cortado toda a esperança de uma Rússia livre: “O bolchevismo, dia após dia, passo a passo, prova que o poder do Estado possui características inalienáveis; pode mudar o seu rótulo, a sua “teoria” e os seus servidores, mas, em essência, apenas permanece o mesmo poder e despotismo sob novas formas” [15].

A Comuna de Paris, outrora invocada como a sociedade ideal para substituir o governo provisório, tornou-se agora a resposta anarquista à ditadura de Lenin. Os trabalhadores industriais foram instruídos a “rejeitar as palavras, ordens e decretos dos comissários” e criar suas próprias comunas libertárias segundo o modelo de 1871 [16]. Ao mesmo tempo, os anarquistas fomentavam igual desprezo pelo “fetichismo parlamentar” dos cadetes, socialistas revolucionários e mencheviques. Não menos simbólico foi o fato de que, em janeiro de 1918, a Assembleia Constituinte foi encerrada em um único dia por um destacamento liderado por um marinheiro anarquista de Kronstadt, Anatolii Zhelezniakov [17].

A torrente de invectivas contra o governo soviético atingiu o auge em fevereiro de 1918, quando os bolcheviques retomaram as negociações de paz com os alemães em Brest-Litovsk. Os anarquistas juntaram-se a outros “internacionalistas” dos SRs de esquerda, internacionalistas mencheviques, comunistas – para protestar contra qualquer acomodação com o “imperialismo” alemão. Os anarquistas responderam que os exércitos profissionais se encontravam obsoletos em qualquer caso, que a defesa da revolução era agora a missão das massas populares organizadas em destacamentos partidários, um líder anarquista-comunista, Aleksandr Ge, pronunciou-se veementemente contra a conclusão do tratado de paz: “Os anarquistas comunistas conclamam o terror e a guerra partidária em duas frentes. É melhor morrer pela revolução socialista mundial do que viver sob a tutela de um acordo com o imperialismo alemão” [18]. Os anarcocomunistas e os seus camaradas sindicalistas argumentavam que bandos de guerrilheiros, organizados espontaneamente nas localidades, iriam perseguir e desmoralizar os invasores, acabando por destruí-los, tal como o exército de Napoleão foi derrocado em 1812. Volin, um líder sindicalista, esboçou esta estratégia em termos vívidos: “A tarefa toda é aguentar, resistir, para não ceder; lutar, para travar uma guerra partidária implacável – aqui, ali e em todo lugar. Avançar ou recuar, para destruir, atormentar, assediar, atacar o inimigo [19].

Mas os apelos dos anarquistas caíram em ouvidos moucos. O tratado de Brest-Litovsk, ainda mais duro do que Ge e Volin temiam, foi assinado pela delegação bolchevique em 3 de março de 1918. Lenin insistiu que o acordo, por mais severo que fosse, proporcionava um período de respiro desesperadamente necessário que permitiria a seu partido a consolidação da revolução e depois levá-la adiante. Para os anarquistas indignados, contudo, o tratado foi uma capitulação humilhante às forças da reação, uma traição à revolução mundial. Foi de fato uma “paz obscena”, disseram eles, ecoando as palavras do próprio Lenin [20]. Quando o Quarto Congresso dos Sovietes se reuniu em 14 de março para ratificar o tratado, Aleksandr Ge e os seus colegas delegados anarquistas (eram 14 no total) votaram com a oposição [21].

A disputa sobre o tratado de Brest-Litovsk trouxe à tona o crescente distanciamento entre anarquistas e o partido bolchevique. Com a derrubada do Governo Provisório em outubro de 1917, o casamento de conveniência atingiu a sua meta. Na primavera de 1918, a maioria dos anarquistas tinha ficado suficientemente desiludida com Lenin para procurar uma ruptura completa, enquanto os bolcheviques, por sua vez, começaram a contemplar a supressão dos seus antigos aliados, que tinham sobrevivido à sua utilidade e cujas críticas incessantes eram um incômodo ao novo regime, que não se podia mais tolerar. Além disso, os anarquistas, para além dos seus irritantes ataques verbais, começavam a apresentar um perigo mais tangível. Em parte, na preparação da antecipada guerra de guerrilha contra os alemães e, em parte, para desencorajar manobras hostis por parte do governo soviético, os clubes anarquistas locais vinham organizando destacamentos de “Guardas Negros” (a bandeira preta era o emblema anarquista), armados com rifles, pistolas e granadas.

Uma ruptura aberta ocorreu em abril de 1918, quando a Tcheka lançou uma campanha para remover as células anarquistas mais perigosas de Moscou e Petrogrado. Em protesto, os anarquistas denunciaram os bolcheviques como uma casta de intelectuais egoístas que traíram as massas e a revolução. O poder político, declararam, sempre corrompe aqueles que o exercem, roubando a liberdade do povo. Mas se a Idade do Ouro estava escapando de seu alcance, os anarquistas recusavam-se a se desesperar. Agarraram-se tenazmente à crença de que, em última análise, a sua visão de uma utopia sem Estado triunfaria. “Continuemos a lutar”, proclamaram, “e o nosso lema será: A Revolução está morta! Viva a Revolução” [22].

Paul Avrich, Os Anarquistas na Revolução Russa. In: Russian Review, Volume 26, Edição 4 (10/1967), 341-350.

Tradução: Jean Fecaloma

Notas

[1] Volnyi Kronshtadt, 12 de outubro de 1917, p. 4.

[2] Anarkhist (Rostov), 22 de outubro de 1917, p. 3.

[3] V. I. Lenin, Sochineniya, 2º final., 31 vols., Moscou, 1931-35, XX, 76-83.

[4] Leninskii sbornik, 35 vols., Moscou, 1924-45, IV, 290.

[5] Bertram D. Wolfe, Introdução a John Reed, Ten Days That Shook the World, Nova York, 1960, p. xxxi.

[6] Voline, La Révolution inconnue (1917-1921), Paris, 1943, p. 185.

[7] Novaya Zhizn, 15 de novembro de 1917, p. 1.

[8] Leon Trotsky, The History of the Russian Revolution (13 vols. in 1). Ann Arbor, 1957, II, 82.

[9] Burevestnik, 11 de abril de 1918, p. 2.

[10] Svobodnaia Kommuna, 2 de outubro de 1917, p. 2.

[11] Golos Truda, 3 de novembro de 1917, p. 1.

[12] Voline, La Révolution inconnue, pp.

[13] Ibid., pág. 200; Golos Truda, 4 de novembro de 1917, p. 1.

[14] Bezolastie, março de 1918, p. 1.

[15] Velikii opyt (np, 1918).

[16] Burevestnik, 9 de abril de 1918, p. 2.

[17] Voline, La Révolution inconnue, p. 211.

[18] Pravda, 25 de fevereiro de 1918, p. 2.

[19] Volin, Revoluutsiya i anarkhizm, Kharkov, 1919, p. 127.

[20] Diktatura Bolchevique v svete anarkhizma, Paris, 1928, p. 10.

[21] Izvestiya VTSIK, 17 de março de 1918, p. 2; Lenin, Sochineniya, XXII, 618.

[22] G. P. Maximoff, The Guillotine at Work, Chicago, 1940, p. 23.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O grande Outubro da Ucrânia

 Anarquista

Por Nestor Makhno

O mês de Outubro de 1917 é uma grande etapa histórica da Revolução Russa. Esta etapa consiste na tomada de consciência dos trabalhadores - das cidades e do campo - dos seus direitos de controlar as suas próprias vidas e o seu patrimônio social e econômico: o cultivo da terra, as habitações, as fábricas, as minas de carvão, os transportes e, enfim, a instrução, que servia outrora para destituir os nossos antepassados de todos esses bens.

Entretanto, do nosso ponto de vista, dar a Outubro todo o conteúdo da Revolução Russa seria afastar-se muito da realidade. A Revolução Russa foi preparada durante os meses que precederam Outubro, período no qual os camponeses e os operários se apoderaram do mais importante. A Revolução de Fevereiro pôde servir de símbolo para os trabalhadores da sua libertação ulterior do jugo econômico e político aos quais estavam submetidos. Constataram, sem hesitar, que a Revolução de Fevereiro tomou na sua evolução, a forma degenerada de um produto da burguesia liberal e, como tal, foi incapaz de se colocar na via da ação social. Os trabalhadores ultrapassaram imediatamente os limites instaurados pela Revolução de Fevereiro, e puseram-se a romper às claras todos os elos com o seu aspecto pseudorrevolucionário e os seus objetivos.

Esta ação revestiu dois aspectos na Ucrânia: no momento em que o proletariado das cidades, devido à fraca influência exercida sobre ele pelos anarquistas, por um lado, e a falta de informação, por outro, sobre as posições reais e os problemas internos dos partidos, considerava que colocar os bolcheviques no poder era o dever mais importante na luta iniciada para o desenvolvimento da revolução, a fim de substituir a coligação dos socialistas- revolucionários de direita e da burguesia.

Durante esse tempo, no campo, em particular na parte zaporogue da Ucrânia, lá onde a autocracia nunca pôde abolir inteiramente o espírito livre, o campesinato trabalhador revolucionário considerava como o seu dever mais imperativo e importante o fato de empregar a ação revolucionária direta para se libertar o mais rápido possível dos pomestchikis e dos kulaks [1], estimando que esta emancipação facilitaria a vitória contra a coligação político-social-burguesa.

É por isso que os camponeses começaram, na Ucrânia, a sua ofensiva, ao confiscar as armas dos burgueses (a marcha do general Kornilov sobre Petrogrado em muito contribuiu para isto, em Agosto de 1917), recusando pagar, em seguida, a segunda parcela anual de impostos sobre a terra aos proprietários e kulaks.

Essa terra, que os agentes da coligação se esforçavam, com zelo, para retirar das mãos dos camponeses, para conservá-la nas mãos dos proprietários, com o pretexto de que o governo devia observar o status quo até à decisão da Assembleia Constituinte.

Os camponeses puseram-se, então, a expropriar diretamente os pomestchikis, kulaks, dos mosteiros e das terras do Estado, assim como do gado, instituindo, sempre diretamente, comitês locais de gestão desses bens, para a sua repartição entre os diferentes vilarejos e comunas.

Um anarquismo instintivo transparecia em todas as intenções dos camponeses da Ucrânia naquele momento, exprimindo um ódio não dissimulado por toda a autoridade estatal, acompanhada de uma aspiração a dela se libertar. Esta aspiração era muito forte entre os camponeses. Consistia, em substância, em libertar-se das instituições da polícia, do juiz enviado do centro pela burguesia, e assim por diante. Essa aspiração exprimiase, na prática, em muitas regiões da Ucrânia. Há inúmeros exemplos testemunhando de que maneira os camponeses das províncias de Ekaterinoslav, de uma parte de Tavripol e de Kherson, de Poltava e Kharkov expulsaram a polícia dos vilarejos, ou, então, retiraram-lhe o direito de prender, sem antes se dirigir aos comitês de camponeses e às assembleias dos vilarejos; os polícias estavam reduzidos a representar o papel de mensageiros das decisões tomadas... O mesmo ocorria com os juízes.

Os próprios camponeses julgavam todos os delitos, durante as assembleias ou reuniões, privando de todo o direito de jurisdição os juízes enviados pela autoridade central. Os juízes caíam, às vezes, em tal desgraça junto aos camponeses que, amiúde, eram obrigados a fugir e a esconder-se.

Tal comportamento dos camponeses para com os seus direitos individuais e sociais obrigou-os naturalmente a temer que a palavra de ordem “Todo o poder aos sovietes” se transformasse num poder de Estado: estes temores não se manifestavam, talvez, tão claramente no proletariado das cidades, que estava mais sobre influência dos socialdemocratas e dos bolcheviques.

Para os camponeses, o poder dos sovietes locais significava transformar esses órgãos em unidades territoriais autônomas, sobre a base do agrupamento revolucionário e autogestionário socioeconômico dos trabalhadores, na via da construção de uma nova sociedade. Assim compreendendo esta palavra de ordem, os camponeses fizeram-na sua, aplicaram-na, desenvolveram-na e defenderam-na contra os ataques dos socialistas revolucionários de direita, dos cadetes e da contrarrevolução monarquista.

Outubro ainda não havia ocorrido quando os camponeses, em inúmeras regiões, recusaram-se a pagar os impostos de arrendamento aos pomestchikis e aos kulaks, confiscaram-lhes as terras e o gado, em nome das suas coletividades, enviaram, em seguida, delegados ao proletariado das cidades para se entender com ele quanto ao controle das fábricas, empresas, etc., e estabelecer elos fraternos a fim de construírem, juntos, a nova e livre sociedade dos trabalhadores.

Naquele momento, a aplicação prática das ideias do “Grande Outubro” não tinha sido adotada pelos seus inimigos, e era muito criticada nos grupos, organizações, partidos, e seus comitês centrais. Desse modo, o Grande Outubro, na sua designação cronológica oficial, aparece aos camponeses revolucionários da Ucrânia como uma etapa já alcançada.

Durante as Jornadas de Outubro, o proletariado de Petrogrado, Moscou e outras grandes cidades, assim como os soldados e camponeses se avizinhavam destas cidades, sob a influência dos anarquistas, dos bolcheviques e dos socialistas revolucionários de esquerda, regularizaram e expressaram politicamente com maior precisão o motivo que levou os camponeses revolucionários de inúmeras regiões da Ucrânia a lutar ativamente, já a partir do mês de agosto, em condições muito favoráveis do ponto de vista do proletariado urbano.

As repercussões da vontade proletária de Outubro chegaram à Ucrânia com um mês e meio de atraso. Ela manifestou-se, inicialmente, por apelos de delegados e partidos, em seguida, por decretos do Soviete dos Comissários do Povo, em relação aos quais os camponeses ucranianos se conduziram com desconfiança, não tendo participado na sua designação.

Grupos de guardas vermelhos apareceram em seguida, vindos em parte da Rússia, atacando, em todos os lugares, os nós de comunicação e as cidades, para expulsar as tropas contrarrevolucionárias dos cossacos da Rada central ucraniana, tão contaminada pelo chauvinismo que não pôde ver nem compreender com quem e a que se aparentava a população trabalhadora ucraniana, nem o seu espírito revolucionário manifestado no combate pela sua independência social e política.

Ao fazer esta análise do Grande Outubro, no seu 10º aniversário, devemos ressaltar que o que fazíamos na Ucrânia, nos campos, integrou-se perfeitamente, ao fim de dois meses, às ações dos trabalhadores revolucionários de Petrogrado, de Moscou e das outras grandes cidades.

Tanto estimamos a fé revolucionária e o orgulho manifestado pelos camponeses ucranianos antes de Outubro, como celebramos, também, e nos inclinamos diante das ideias, da vontade e da energia manifestadas pelos operários, camponeses e soldados russos durante as Jornadas de Outubro.

É verdade que, ao tratar do passado, não é possível passar ao lado do presente, ligado de um modo ou de outro a Outubro.

Não podemos deixar de exprimir uma profunda dor moral pelo fato de, após dez anos, as ideias que encontraram a sua expressão em Outubro serem achincalhadas por aqueles, que em seu nome, chegaram ao poder e dirigem a partir daí a Rússia.

Nós exprimimos a nossa solidariedade entristecida por todos aqueles que lutaram conosco pelo triunfo de Outubro, e que apodrecem atualmente nas prisões e nos campos de concentração, cujos sofrimentos, sob a tortura e a fome, chegam até nós, e obrigam-nos a sentir, em vez de alegria pelo 10ª aniversário do grande Outubro, uma profunda aflição.

Por dever revolucionário, elevamos mais uma vez a nossa voz para além das fronteiras da URSS: devolvam a liberdade aos filhos de Outubro, devolvam-lhes os seus direitos de se organizar e propagar as suas ideias.

Sem liberdade e sem direitos para os trabalhadores e para os militantes revolucionários, a URSS asfixia-se e mata tudo aquilo que tem de melhor nela. Os seus inimigos alegram-se com isso, e preparam-se em todos os lugares do mundo, com a ajuda de todos os meios possíveis, para esmagar a Revolução e a URSS com ela.

Notas

1 Pomestchikis: grandes proprietários de terras; kulaks: ricos fazendeiros.

2 Rada: Assembleia Constituinte dos deputados na Ucrânia em 1918.

Referência

Texto extraído de Os Anarquistas na Revolução Russa, outubro de 1927. Organizado por Alexandre Skirda. Retirado da Revista Libertárias nº 1, Outubro/Novembro de 1997, São Paulo. Tradução: Plínio A. Coêlho.