por Rachel Pacheco
Uma
rede internacional de comitês de solidariedade à resistência curda vem se
estabelecendo no mundo inteiro, impulsionada pela tradição da prática militante
e funcionando basicamente como bureaux de propaganda do programa político de
Rojava. Quem escreve este texto participou ativamente de um destes comitês no
último ano, movida por motivos que atravessam um campo extenso de ideações: de
uma articulação política internacionalista; de uma auto-organização da vida
cotidiana via assembleias de base, de bairro e comunas; da posição das mulheres
nos frontes de batalha e à frente da sociedade em pleno Oriente Médio; das
décadas de guerrilha nas montanhas; da sobrevivência de povos originários sob
impérios de todos os séculos; do cultivo de línguas proibidas e da dança
envolta do fogo; dos mitos da antiga mesopotâmia; da história heróica da
esquerda na Turquia; da resistência feita às novas faces do fascismo; de uma
democracia sem Estado que nasce de um Estado arruinado pela guerra civil; da
noção de que neste tempo presente, em que tudo por toda parte parece avançar
rumo às ruínas, há, em algum lugar do mundo, uma revolução posta em curso.
Mas
Rojava é uma zona de guerra, se encontra toda cercada e só pode ser conhecida
em larga escala via o acesso remoto pela rede mundial de computadores. Assim se
apresenta ao planeta como lugar presente-ausente no domínio global das imagens
difusas: páginas e perfis online põem em circulação uma profusão de fotos de
garotas empunhando suas kalashnikovs fardadas com lindos lenços e tranças,
montagens de paisagens montanhosas sobrepostas ao retrato de Abdullah Öcalan,
vídeos de combatentes peshmergas ostentando cadáveres do Daech, reportagens de
todo o tipo, panfletos, manifestações públicas de apoio... a dita revolução curda
lançada ao mundo sem qualquer discernimento. A maioria do conteúdo é produzida
e promovida por campanhas de propaganda militantes ou diletantes, e mais
demonstram o repertório de um fascínio estético e fé política do que a própria
realidade no terreno, narrada na mesma chave que a ficção. No entanto, nem tudo
o que circula é tosco, e como qualquer acesso a uma realidade remota, entender
Rojava exige uma pesquisa cuidadosa. E mesmo as imagens insólitas revelam algo
de relevante sobre a guerra na era do capital fictício: como a internet se
constitui enquanto base material da guerra civil na Síria. Tal especulação
virtual da tragédia não apenas aquece o mercado de dados da web, como é
responsável por arregimentar boa parte dos contingentes em campo e atrair investimentos.
Level hard de modernização do espetáculo na sociedade do colapso.
De
qualquer modo, Rojava existe. E aparece ao mundo como representação de um outro
possível posto diante do estado de crise em que este se encontra hoje.
Revolucionário ou não, estamos falando de um processo de formação social e
territorial de novo tipo, que emerge noepicentro da guerra mundial da nossa
época. E é claro que, entre o combate a inimigos reais em campo e o ataque à
totalitariedade do Estado ou às abstrações concretas do capital, põem-se
infinitos tipos de conflitos. Também a solidariedade internacional ou as
críticas estrangeiras contêm contradições. As utopias têm sua importância;
assim como tem importância a crítica radical à realidade tal como esta está
dada.
A
emergência histórica de Rojava enquanto região autônoma (autodeclarada
Federação do Norte da Síria), diz respeito a uma territorialidade formada na e
pela guerra. Mas não uma guerra qualquer (sem reduzir “qualquer guerra” a uma
“guerra qualquer”), senão à protagonista dasguerras de reordenamento mundial
desta época. Partir a análise por esta prerrogativa, com base no atual estágio
do desenvolvimento capitalista, atrita com diversas perspectivas sobre a
situação, sobretudo por sabotar concepções clássicas de imperialismo e
revolução. A começar por recusar o modo mais vulgar de se ler uma guerra,
personificando os Estados como sujeitos voluntariosos e plenos de poderes: como
players sobre um tabuleiro de War. Assim a noção de violência cola nas figuras
de Assad, Putin, Obama, Erdogan, Öcalan e os acontecimentos parecem redundar na
vontade/ação de entidades políticas identificadas por siglas genéricas
(ISIS/PKK/AKP/YPG/PYD/...). É óbvio que guerra tem estratégia, e que chefes de
Estado, partidos, organizações, etc, desempenham os papeis que lhes cabem no
jogo, com todo o teatro diplomático envolvido e as negociações por debaixo da
mesa. Mas nem tudo opera nesta escala de cartadas geopolíticas: há uma lógica
abstrata movendo o processo. As ciências políticas que organizam a prática
política em geral não avançam pelo terreno das críticas do valor e da vida
cotidiana. É justamente este o fronte desta crítica.
As
condições da guerra não são uma constante trans-histórica: não há fundamento
antropológico que dê conta de entender o quê de concreto move o processo. Cada
guerra se determina em particular pelas estruturas sociais dadas a cada lugar e
época, ligadas ao desenvolvimento geral da sociedade. Assim as guerras de hoje
não têm a ver com as guerras entre potências da primeira metade do século XX,
nem com as guerras regionais entre Estados dependentes das duas superpotências
da segunda metade; têm a ver com as circunstâncias desta época marcada pela
queda do Centro Mundial de Trocas, no ataque de atores invisíveis, ato
inaugural do século XXI. Se até quase o fim do século XX as guerras operavam
como motor à explosão do imperialismo para a expansão forçada de fronteiras e
dominação colonial de territórios, incorporando a tudo e todos ao sistema
mundial produtor de mercadorias, esse processo violento ainda avança, pois a
modernização é irreversível, mas agora opera ao revés. Depois de ter forçado a
socialização capitalista até os últimos rincões do planeta, o capital global
entra em crise e deixa zonas imensas em desolação econômica. E o que acontece
nestes lugares de relações sociais monetarizadas mas sem dinheiro? Violência.
Econômica e extra-econômica: Estados desmoronados, deslocamentos forçados,
guerra civil. Com o avanço acelerado da terceira revolução industrial, as
especulações estratosféricas e as crises de hiperacumulação, o poder mundial
não opera mais para incorporar “recursos” à reprodução ampliada do capital
porque tal capacidade se esgotou como se previa, sem ter engendrado sua própria
superação como se esperava. As novas guerras explodem então para a exclusão de
excedentes do sistema. Interessa ao rearranjo do ordenamento mundial
capitalista a destruição de estruturas e o extermínio de gente cuja existência,
do ponto de vista da valorização do capital, corresponde a um entrave.
Enquanto
o capital financeiro transnacional acumulado banca a barbárie, a posição das
velhas potências é permitir a princípio que “eles se matem”; até fornecem
forças e armas para tanto, como se fossem mais guerras de manutenção do status quo. Mas ao deflagrarem a “maior
crise humanitária desde a segunda guerra mundial”, agem para lidar com os
resíduos da catástrofe que produziram alhures. Do controle da barbárie,
passa-se à barbárie do controle: reações nacionalistas, radicalização do
racismo, aumento do policiamento, recrudescimento das fronteiras, agravamento
das condições de vida, genocídio. Não é a toa a situação seja vista como
atualização do fascismo – que agora não opera mais sob o fundamento de expansão
de uma economia nacional pois já não se pode mais explorar produtivamente os
dominados. Diferente de outras épocas, as migrações massivas não se dão mais
pelo imperativo da mobilidade do trabalho, mas da mobilização pela tragédia: as
sagas pessoais de abandono de tudo, das travessias de mares e desertos, são
movidas para que se possa simplesmente continuar a existir. Cada uma dessas
tragédias particulares é quantificada aos milhões enquanto custo de gestão
populacional para os Estados-destino. No fascismo do capital fictício,
refugiados são tratados como commodities humanas escoadas num mercado mundial
em crise. As “saídas” aparecem sempre provisórias, e as tendas improvisadas vão
sendo permanentes; governos estendem o estado de emergência ad eternum. Já não podem prometer nada
senão o parcelamento do colapso a crédito e com juros.
A
guerra civil da Síria expressa radicalmente os conteúdos deste tipo específico
de guerra do colapso da modernização. Foi disparada pela insurgência popular
num contexto de crise, esmagada por um governo que atacou a população
justamente por não poder defender a administração da estrutura estatal. Vista
do chão, acontece mais como um caos generalizado de centenas de milícias que se
enfrentam em coalizões cambiantes, formadas por pequenos poderes armados (de
várias ordens: os comandantes podem ser sheiks, chefes tribais, gangsters,
burgueses, líderes comunitários... os combatentes, em geral proletários),
bancadas pelo capital financeiro estrangeiro, e que, portanto, não são apenas
inimigas no fronte, como também empresas concorrentes na disputa por
investimento. Se no início do “conflito” uma bala de AK47 podia custar até dois
dólares, quanto não custa esta guerra cinco anos depois? Não são os mortos que
contam para os “acordos de paz”. Controlar áreas militarmente implica inclusive
em assumir a gestão dos lugares que se ocupa. Em regiões autônomas em relação
ao Estado (zonas rebeldes, Rojava ou o Califado), os grupos armados têm seus
braços políticos (ou seria o contrário?), já que nessas condições a
administração da ordem social só pode ser feita como posse da violência. Não à
toa, as primeiras instituições civis que se estabelecem em áreas
autoadministradas são a Justiça e a Polícia. Mas no plano das necessidades
radicais, cabe à população em geral dar conta da própria vida. É aí que se
estabelece a autogestão da sobrevivência numa sociedade em ruínas.
O
Confederalismo Democrático (modelo autogestionário que corresponde ao estatuto
revolucionário de Rojava), que basicamente organiza a gestão política em níveis
escalares partindo da base e exige “máxima representatividade” da população,
proporciona a uma sociedade sob condições críticas de reprodução – com a
capacidade produtiva praticamente arruinada e desequipada de toda
infraestrutura estatal –, não apenas um funcionamento relativamente eficiente
para a manutenção do território, como rearranja de modo bastante relevante a
ordem social existente. É evidente também que, por toda parte onde a guerra se
estabelece, a ordem social existente necessariamente se rearranja de maneira relevante.
Mas diferente do modo praticamente selvagem como a autogestão da sobrevivência
se estabelece em outras partes da Síria (como comparar ao monstro Estado
Islâmico?), o modelo em vigor em Rojava foi montado pelo partido a partir de um
repertório extenso de gestões da esquerda no último século, compondo num único
mecanismo uma miscelânea de elementos do anarquismo e do socialismo tanto
quanto da social democracia e da antiga ordem feudal, tem forte influência do
movimento feminista ocidental, incorpora novas modas capitalistas como a
“economia solidária”, além de tentar introduzir técnicas “mais ecológicas” para
a produção em geral (enquanto queima petróleo pra produzir energia, etc.). Aos
que adoram os consensos da esquerda, esse soa um modelo quase idílico,
contemplado como pura ideologia. Aos que apontam afoitos as incongruências
entre o projeto e sua prática, bem... o atrito que existe entre um modelo
programado de sociedade e a práxis inevitavelmente conflituosa da
sociabilidade, este não é um problema exclusivo dos “mals revolucionários
curdos”, mas da “política” como esfera especializada administradora do
cotidiano. O verdadeiro problema da máquina democrática não-estatal montada em
Rojava está neste fundamento, e não nas especificidades do seu “bom” ou “mal”
funcionamento, que não passam de contingências das contradições incondicionais
da política. Como economia, a declaração de autonomia de um território não
significa sua autonomização do planeta. Dado o grau da devastação do terreno,
as trocas precisam ser negociadas para garantir o mínimo abastecimento: velha
“economia de guerra”. E não há troca que se faça sem a mediação do dinheiro.
Que Rojava esteja assentada sobre uma bacia de petróleo pode ser sorte ou azar
para uns ou outros, o ponto é que comercializam porque precisam. Sabe-se que a
manutenção da propriedade privada é uma questão de embate nos conselhos, e é
uma discussão importante de ser feita não só do ponto de vista das teorias
socialistas que baseiam o projeto revolucionário, mas porque repercutem
imediatamente nas determinações práticas da vida. Mas também é importante
lembrar que mesmo as alternativas cooperativistas ainda são categoricamente
capitalistas. Então para reiterar o óbvio, é impossível abolir a forma
mercadoria no contexto de Rojava – mas isso também nunca esteve exatamente no
programa.

Certamente,
as vangloriadas vitórias das forças curdas e a consequente conquista
territorial para a autodeclarada Federação do Norte da Síria têm a ver com a
história de organização política militar do PKK e às décadas de guerrilha
contra os exércitos dos Estados nacionais que dominam o Curdistão – repertório
estratégico bastante avançado, aliás, considerando a conjuntura desta guerra
confusa. Também é claro que o sucesso das campanhas não se deve só a uma
“cultura de inteligência bélica curda” ou ao armamento soviético recuperado do
Afeganistão, como ao forte suporte norte-americano e ao apoio de outros países.
Apontar tal posição tática e diplomática como incoerente para uma “luta
verdadeiramente revolucionária” é uma crítica comum feita ao PYD/YPG/YPJ, mas
não passa de um argumento cínico na medida em que ignora o quadro de
necessidades extremas para uma defesa possível naquele contexto, e exige ao
outro, que no limite luta pela sobrevivência, que resista à guerra numa posição
livre de contradições. Chamar atenção para as execuções e coerções
historicamente promovidas pelo movimento curdo é importante porque flagra a
“incoerência dos princípios revolucionários” como condição violenta do processo.
Mas as insistentes acusações de “violação aos direitos humanos” aos partidos
revolucionários curdos não parecem dialetizar a violência inerente ao
Estado-capital-patriarcado, mas afirmar a ideologia burguesa da não-violência
que reitera tal ordem, reivindicando seu código moral.
Sem
botar sobre Rojava o peso teórico do termo revolucionário, dá ao menos para ver
seu processo como estamentário: no sentido de organização da sociedade civil
posta em direção à consolidação de um novo tipo de estrutura social geral.
Enquanto momento histórico, o processo de formação move a sociedade pela
virtualidade, apontando várias formas possíveis que vão se instituindo ou não.
Se antes parecia impossível um território estabelecido sem fronteiras rígidas
ou uma arquitetura política sem Estado, é porque a forma Estado passou por
estamento e se consolidou historicamente como forma absoluta da sociedade
moderna. Mas com a modernização em colapso, vemos algo aí surgindo, e não
parece nada impertinente às contingências concretas do contexto. Em Rojava como
em diversas outras “territorialidades” contemporâneas, a auto-organização
social numa porção de território não destitui imediatamente a existência do
Estado que o domina, mas o prescinde enquanto mecanismo gestionário. Isso não
necessariamente aponta para a superação histórica do Estado, como querem os
entusiastas revolucionários do século retrasado, talvez seja simplesmente outra
forma tornada possível dada a plasticidade da ordem mundial sob crise, e os
imperativos de rearranjo do sistema global capitalista. De qualquer modo, a
condição insanamente negativa de um processo de formação social conduzido sob a
barbárie só pode destituir a ideia positivista de revolução realizada por um
sujeito consciente (seja povo, classe, gênero) que domina um processo social
como objeto inerte, ideia que não escapa à velha Razão iluminista que fundou o
Estado moderno e anima o capitalismo há séculos. Neste ponto, pode-se dizer que
quase todo o debate sobre o status verdadeiro ou falso da revolução de Rojava
entre anarco-apologetas e críticos marxistas cínicos continua acontecendo no
plano do pensamento cartesiano, e reitera uma ideia fetichista de revolução. E
no limite, este também se demonstra um falso problema: pois as formulações
abstratas do que é ou não revolução desconsidera as implicações concretas do
ela representa para quem move (contraditoriamente) o processo.
Em
Guerra e Paz no Curdistão, Öcalan elabora uma tese da história que identifica a
cultura curda e com um ethos revolucionário. Baseado nos trabalhos acadêmicos
de intelectuais de esquerda da Turquia nos anos 70, comprometidos com a
construção política de uma identidade nacional curda, defende que a etnia curda
seria autóctone da região mesopotâmica e responsável pela revolução neolítica;
e que os povos da montanhas (etimologicamente os kurtis) seriam essencialmente
guerrilheiros dada a conformação do território. Por mais que apareça como
ontologia, este “espírito revolucionário” curdo diz respeito à história
concreta das tradições de resistência das populações curdas, quer dizer, de
seus modos de sobrevivência passados geração a geração durante séculos de
guerra e dominação. A jinealogia, ciência específica das mulheres desenvolvida
pelas mulheres curdas, também se estabelece para naturalizar o lugar que estas
vêm conquistando socialmente ao longo de uma luta muito dura. No limite, esta
cosmogonia construída como identidade revolucionária curda torna a história
materialista mística: os mortos do passado reascendem nos vivos a esperança
quando estes se encontram em perigo. Por isso, a representação de Rojava como
revolução pode ser ideológica, mas é real. É real porque desdobra de uma
realidade concreta ao mesmo tempo em que concretiza esta realidade: pois
impulsiona a ação. A revolução enquanto representação comum de um outro devir
possível imprime sentido ao processo vivido; a esperança e a desesperança não
são só virtualidades: elas mobilizam a cada um em particular em direções que
produzem ativamente a história, mesmo que não possam dominar totalmente o
processo social que põem em curso.
Nas
notas preparatórias para as teses sobre o conceito de história, escritas na
época em que o fascismo triunfava, Benjamin escreveu: “Marx diz que as
revoluções são as locomotivas da história. Mas talvez não seja bem assim. É
possível que as revoluções sejam, para a humanidade que viaja nesse trem, o
gesto de puxar o freio de emergência”. Se o único progresso lógico possível é o
da expansão exponencial da barbárie, a revolução que se encontra em Rojava está
precisamente no combate deste avanço, como tentativa de ampliar o campo dos
possíveis em direção a outro devir. Enquanto o colapso avançar em escala
global, o essencial da solidariedade internacional às lutas radicais pela
sobrevivência não está em fazer a defesa de um modelo político, mas em mover-se
em direção ao encontro com o outro; sem exigir-lhe um papel heróico ou acusá-lo
moralmente por suas contradições. O movimento que buscamos se dá sentido de
entender os modos particulares como a violência do reordenamento capitalista se
expressa em cada lugar, e assim pensar nas possibilidades da práxis como
violências capazes de combater a violência da totalidade em crise. Por isso é
preciso manter a revolução como representação no campo dos possíveis – para nos
mover enquanto ainda não formos mortos.
“Solo
la violencia de lo viviente es revolucionária”. Berxwedan Jiyan ê.