por
Shlomo Sand
Em
1966, o antropólogo Robert Ardrey lançou uma pequena bomba sociobiológica que
na época causou reverberações surpreendentemente potentes entre um grupo
relativamente amplo de leitores. Seu livro The territorial imperative: a
personal inquiry into the animal origins of property and nations [O imperativo
territorial: uma investigação pessoal sobre as origens animais da propriedade e
das nações] [1] teve por objetivo desafiar o modo como pensamos sobre
território, fronteiras e espaço vital. Para qualquer um que até então tivesse
acreditado que defender uma casa, uma aldeia ou uma pátria fosse produto de
interesses conscientes e de desenvolvimento cultural histórico, Ardrey buscou
provar que espaço definido e consciência de fronteiras estão profundamente
arraigados na biologia e na evolução. Ele sustentou que os humanos têm um
impulso instintivo para se apropriar de territórios e defendê-los usando todos
os meios necessários, e que esse impulso hereditário dita a maneira pela qual
todas as criaturas vivas comportam-se sob diferentes condições.
Após
extensas observações de uma variedade de animais, Ardrey chegou à conclusão de
que, mesmo que nem todas as espécies sejam territoriais, muitas são. Entre
animais de espécies diferentes, o territorialismo é um instinto congênito
desenvolvido por meio de mutação e seleção natural. Uma meticulosa pesquisa
empírica mostrou que animais territoriais lançam ataques ferozes contra
invasores de seu espaço vital, particularmente os da mesma espécie. Conflitos
entre machos de uma determinada espécie, que os estudiosos antes viam como
reflexo da competição pelas fêmeas, na verdade são disputas brutais pela
propriedade. Muito mais surpreendente foi a descoberta de Ardrey de que o
controle de território infunde em seus proprietários energias que os
forasteiros que tentam penetrá-lo não possuem. Existe entre a maioria das
espécies “algum reconhecimento universal de direitos territoriais” que
condiciona e orienta todos os sistemas de relações de poder dentro delas.
Por
que os animais precisam de território?, pergunta Ardrey. Os dois motivos mais
importantes dentre muitos são: (1) animais selecionam áreas específicas onde
podem sustentar sua existência material por meio de acesso a comida e água e
(2) o território serve como um amortecedor defensivo e proteção contra muitos
inimigos predadores. Essas necessidades espaciais primitivas têm raízes no
longo processo de desenvolvimento evolutivo e se tornaram parte da herança
genética dos “territorialistas”. Essa herança natural produz uma percepção de
fronteiras e proporciona a base para rebanhos e cardumes. A necessidade dos
animais de defender seu espaço vital impulsiona a socialização coletiva, e o
grupo unificado resultante entra em conflito com outros grupos da mesma
espécie.
Caso
Ardrey tivesse se limitado a um relato do comportamento animal, seu estudo
teria atraído muito menos atenção e permanecido tema de debate entre
especialistas em etologia, a despeito de sua considerável habilidade retórica e
linguagem pitoresca [2]. Entretanto, suas metas teóricas e conclusões foram
muito mais ambiciosas. Indo além das premissas empíricas dentro do campo da
zoologia, ele também buscou entender as “regras do jogo” do comportamento
humano conforme são transmitidas através das gerações. Expor a dimensão
territorial do mundo vivo, acreditava ele, nos permitiria entender melhor as
nações e os conflitos entre elas ao longo da história. Com base nisso, ele
chegou à seguinte conclusão decisiva:
Se
defendemos o direito à nossa terra ou a soberania de nosso país, fazemos isso
por motivos não diferentes, não menos inatos, não menos inextirpáveis que os
animais inferiores. O cachorro que late para você por trás da cerca de seu dono
age por um motivo indistinguível daquele que levou o dono a construir a cerca [3].
As
aspirações territoriais dos seres humanos, então, são manifestações de um
antigo imperativo biológico que molda os aspectos mais básicos do comportamento
humano. Todavia, Ardrey vai ainda mais longe, sustentando “que o vínculo entre
o homem e o chão que ele pisa deve ser mais poderoso que o vínculo dele com a
mulher com quem ele dorme”, asserção que ele respalda com a pergunta retórica:
“Em sua vida, você ouviu falar de quantos homens que morreram pelo país deles?
E de quantos que morreram por uma mulher?” [4].
Essa
declaração final não deixa dúvidas sobre a identidade geracional do autor. Como
norte-americano nascido em 1908 e, portanto, criança durante a Primeira Guerra
Mundial e depois dela, Ardrey estava muitíssimo ciente das baixas de guerra.
Como adulto, conheceu muitos membros da geração da Segunda Guerra Mundial e
testemunhou as guerras da Coreia e do Vietnã. Escrito no começo da Guerra do
Vietnã, o livro dele incorpora aspectos significativos da situação
internacional dos anos 1960. O processo de descolonização iniciado na esteira
da Segunda Guerra Mundial mais do que duplicou o número de “territórios
nacionais” existentes até então. Embora à Primeira Guerra Mundial se sucedesse
o estabelecimento de uma onda de novas nações, o processo chegou ao ápice com o
surgimento dos Estados do chamado Terceiro Mundo. Além disso, as guerras de
libertação nacional travadas em locais como Índia, China, Argélia e Quênia
pintaram um quadro de luta generalizada tendo por objetivo a aquisição de
territórios nacionais independentes e definidos. No fim do combate, a
disseminação do sentimento nacionalista fora das fronteiras do Ocidente dotou o
planeta de uma ampla diversidade e o decorou com quase duzentas coloridas
bandeiras nacionais.
A
imaginação científica da sociobiologia tende a virar a história do avesso. Como
o restante das ciências sociais, em última análise, a sociobiologia adapta sua
terminologia para adequar-se a subprodutos conceituais de processos sociais e
políticos testemunhados por seus profissionais no decorrer de suas vidas.
Entretanto, os sociobiologistas, muitas vezes, ignoram que os eventos mais
recentes da história em geral fornecem uma melhor explicação para eventos
anteriores do que o contrário. Tomando a maior parte de seus termos da
experiência social, esses pesquisadores da natureza então adaptam tais termos à
tarefa de entender melhor o ambiente vital que estão estudando.
A
seguir, direcionam o foco para a sociedade humana e tentam entendê-la melhor
usando terminologia e imagens do mundo natural originalmente emprestadas da
conceitualização que acompanha e é produzida pelos processos históricos.
Considere, por exemplo, como as guerras nacionalistas por território travadas
na década de 1940 e os árduos combates por pátrias nacionais ocorridos entre o
final dos anos 1940 e 1960 foram considerados catalisadores de processos
evolutivos geneticamente arraigados na maioria das criaturas vivas.
A
despeito das diferenças significativas entre os dois, o determinismo biológico
da sociobiologia ostenta certa semelhança à igualmente famosa abordagem do
determinismo geográfico desenvolvida pelo geógrafo e etnógrafo alemão Friedrich
Ratzel e, mais tarde, por Karl Haushofer e outros.
Embora
Ratzel não tenha cunhado o termo “geopolítica”, ainda assim é considerado um de
seus fundadores. Foi também um dos primeiros a incorporar com firmeza uma
sofisticada consideração das condições biológicas à geografia política. Ainda
que avesso a teorias racistas primárias, acreditava que povos inferiores eram
obrigados a sustentar nações civilizadas adiantadas e que por meio de tal
contato eles também atingiriam maturidade cultural e espiritual.
Como
ex-estudante de zoologia que se tornou um defensor convicto das teorias
darwinistas, Ratzel estava convencido de que uma nação era um corpo orgânico
cujo desenvolvimento exigia a mudança constante de suas fronteiras
territoriais. Assim como a pele de todas as criaturas se expande à medida que
elas crescem, as pátrias também se expandiriam e deveriam necessariamente
alargar suas fronteiras (embora também pudessem se contrair e até deixar de
existir). “Uma nação não se mantém imóvel por gerações no mesmo pedaço de
terra”, declarou Ratzel. “Ela deve se expandir, pois está crescendo” [5]. Embora
acreditasse que a expansão fosse contingente à atividade cultural, e não
necessariamente agressiva, Ratzel foi o primeiro a cunhar a expressão “espaço
vital” (lebensraum).
Karl
Haushofer deu um passo adiante ao desenvolver uma teoria de espaço vital
nacional; não por coincidência, seu campo de pesquisa, a geopolítica, tornou-se
popular na frustrada Alemanha do período entre as duas guerras mundiais. Essa
profissão acadêmica, que teve muitos proponentes na Grã-Bretanha, Estados
Unidos e antes ainda na Escandinávia, buscava explicar as relações
internacionais de poder com base nos padrões dos processos naturais. A sede de
espaço veio a desempenhar um papel central no aparato teórico que tinha por
objetivo fornecer uma explicação geral para o agravamento das tensões entre as
nações-Estados no século XX.
A
lógica geopolítica sustentava que cada nação, em meio à consolidação e
crescimento demográficos, necessitava de espaço vital – ou seja, a expansão da
terra pátria original. E, como a Alemanha possuía uma área territorial per
capita menor que os países vizinhos, tinha o direito nacional e histórico de se
expandir além de suas fronteiras. A expansão supostamente ocorreria emdireção à
regiões economicamente mais fracas que, quer no presente ou no passado,
houvessem sido o lar de uma população “étnica” germânica [6].
A
entrada tardia da Alemanha na corrida colonial iniciada no final do século XIX
também ofereceu um ambiente apropriado para o florescimento das populares
teorias de “espaço vital”. Os alemães sentiam-se frustrados pela divisão dos
espólios territoriais das superpotências imperialistas e mais ainda pelos
termos do acordo de paz que a nação fora forçada a aceitar no término da
Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto, de acordo com as teses mencionadas, a
Alemanha tinha que se fortalecer territorialmente, conforme a lei natural que
controlava as relações entre as nações ao longo da história. De início,
geógrafos não alemães ficaram entusiasmados diante dessa orientação teórica.
Mas,
quando a lei natural baseia-se inteiramente em origem étnica e terra, surge aí
uma vinculação extremamente volátil entre geopolítica e etnocentrismo. Como
resultado, a situação na Alemanha logo explodiu. Haushofer e seus colegas não
influenciaram Hitler e seu regime tanto quanto efetivamente serviram a eles,
ainda que de forma indireta, fornecendo ao Führer legitimidade ideológica para
seu desejo insaciável de conquista. Após a derrota militar dos nazistas, suas
teorias foram “cientificamente” erradicadas [7]. As populares teorias de Ardrey
também foram esquecidas rapidamente, e, embora as explicações sociobiológicas
periodicamente recebessem maior atenção, sua aplicação à evolução das pátrias
continuou a se desvanecer. A despeito do apelo da análise de Ardrey, a etologia
no fim afastou-se do determinismo estrito que caracterizava a abordagem dele e
de alguns de seus colegas quanto ao comportamento territorial [8].
Primeiro,
ficou evidente que os primatas desenvolvidos mais próximos dos seres humanos –
chimpanzés, gorilas e alguns babuínos – não são “territorialistas” de modo
algum, e que o comportamento dos animais em relação a seu ambiente é muito mais
variado do que o relato de Ardrey sugeria. Mesmo os pássaros, indiscutivelmente
o tipo mais territorial de animal, exibem comportamentos que dependem muito
mais das modificações no ambiente ao seu redor do que de impulsos hereditários.
Experimentos envolvendo alterações nas condições de vida de animais provaram
que o comportamento agressivo pode assumir novas manifestações no rastro de
mudanças geobiológicas [9].
Antropólogos
com conhecimento histórico mais amplo jamais devem ignorar o fato de que a
espécie humana, que pelo que sabemos originou-se no continente africano,
floresceu e prosperou devido exatamente a não ter se agarrado ao território
familiar, mas migrado e avançado para conquistar o mundo com suas pernas leves
e pés ligeiros. Com o passar do tempo, o planeta veio a ser cada vez mais
povoado por tribos migrantes de humanos caçadores e coletores que se moviam para
a frente sem cessar em busca de novos campos de sustento e praias com pesca
mais abundante. Apenas quando a natureza provia suas necessidades básicas os
humanos paravam em uma determinada área e a transformavam, em certo grau, em
seu lar.
O
que mais tarde vinculou os humanos à terra de forma estável e permanente não
foi uma predisposição biológica para adquirir território permanente, mas o
início do cultivo agrícola. A transição do nomadismo para o sedentarismo
ocorreu primeiro no solo aluvial deixado pelos rios, que melhorava a terra para
agricultura sem o complexo conhecimento humano exigido para se fazer isso. De
forma gradual e crescente, o estilo de vida sedentário tornou-se familiar. Foi
somente o cultivo da terra que proporcionou a base para o desenvolvimento de
civilizações territoriais, lideradas por uma série de sociedades que, com o
tempo, emergiram como grandes impérios.
Contudo,
os primeiros reinos desse tipo – tais como Mesopotâmia, Egito e China – não
desenvolveram uma consciência territorial coletiva compartilhada por todos
aqueles que trabalhavam na terra. As fronteiras desses impérios imensos não
puderam ser infundidas na consciência popular como limites delineadores do
espaço vital de agricultores ou escravos. Em todas as civilizações agrárias,
podemos supor que a terra fosse importante para os produtores de alimento.
Podemos supor também que tais indivíduos tivessem um apego psicológico à terra
que cultivavam. Entretanto, é duvidoso que possuíssem qualquer sentimento de
conexão com territórios mais amplos do reino.
Nas
civilizações antigas tradicionais, tanto nômades quanto agrícolas, a terra às
vezes era concebida como uma deidade feminina responsável pelo nascimento e
criação de tudo que vivia sobre ela [10]. Tribos ou aldeias de diferentes continentes
julgavam sagrados os trechos da terra que habitavam, mas essa atribuição de
status sagrado não apresentava semelhança com o patriotismo moderno. A terra
quase sempre era considerada propriedade dos deuses, não dos seres humanos. Em muitos
casos, os humanos antigos viam-se como trabalhadores pagos ou arrendatários que
usavam a terra de forma temporária e de modo algum como seus proprietários. Por
meio de seus agentes religiosos, os deuses (ou Deus, com o surgimento do
monoteísmo) concediam a terra a seus seguidores e, quando havia lapsos na
obediência ritual, retomavam-na à sua vontade.
NOTAS
[1]
The territorial imperative: a personal inquiry into the animal origins of
property and nations. Nova York: Atheneum, 1970.
[2]
Para mais sobre isso, ver Gorer, Geoffrey. “Ardrey on human nature: animals,
nations, imperatives”. In: Montagu, Ashley (org.).
Man
and aggression. Londres: Oxford University Press, 1973, pp. 165-7.
[3]
Ardrey. Territorial imperative, p. 5.
[4]
Ibid., pp. 6-7.
[5]
Citado em Murphy, David Thomas. The heroic earth: geopolitical thought in
Weimar Germany, 1918-1933. Ohio: Kent State
University
Press, 1997, p. 9.
[6]
Para mais sobre Haushofer, ver ibid., pp. 106-10.
[7]
Levou um bom tempo para a geopolítica recuperar-se de sua experiência sob o
domínio nazista, mas na década de 1970 ela já havia sido reintroduzida como um
campo de estudo legítimo. Ver Newman, David. “Geopolitics renaissant:
territory, sovereignty and the world political map”. In: ____ (org.). Boundaries,
territory and postmodernity. Londres: F. Cass, 1999, p. 15.
[8]
Ver especificamente o famoso livro de Lorenz, Konrad. On aggression. Londres:
Methuen, 1967.
[9]
Sobre esse assunto, ver Crook, John Hurrell. “The nature and function of
territorial aggression”. In: Montagu, Ashley (org.). Man and aggression, pp.
183-217.
[10]
Os exemplos incluem Gaia, a deusa primordial da terra na mitologia grega, e a
deusa cananeia Asherah.
FONTE:
SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel,
Editora Benvirá: São Paulo, 2014.
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