sábado, 1 de junho de 2024

Determinismo geográfico: a pátria, um espaço vital natural?


A pátria: um espaço vital natural?

por Shlomo Sand

Em 1966, o antropólogo Robert Ardrey lançou uma pequena bomba sociobiológica que na época causou reverberações surpreendentemente potentes entre um grupo relativamente amplo de leitores. Seu livro The territorial imperative: a personal inquiry into the animal origins of property and nations [O imperativo territorial: uma investigação pessoal sobre as origens animais da propriedade e das nações] [1] teve por objetivo desafiar o modo como pensamos sobre território, fronteiras e espaço vital. Para qualquer um que até então tivesse acreditado que defender uma casa, uma aldeia ou uma pátria fosse produto de interesses conscientes e de desenvolvimento cultural histórico, Ardrey buscou provar que espaço definido e consciência de fronteiras estão profundamente arraigados na biologia e na evolução. Ele sustentou que os humanos têm um impulso instintivo para se apropriar de territórios e defendê-los usando todos os meios necessários, e que esse impulso hereditário dita a maneira pela qual todas as criaturas vivas comportam-se sob diferentes condições.

Após extensas observações de uma variedade de animais, Ardrey chegou à conclusão de que, mesmo que nem todas as espécies sejam territoriais, muitas são. Entre animais de espécies diferentes, o territorialismo é um instinto congênito desenvolvido por meio de mutação e seleção natural. Uma meticulosa pesquisa empírica mostrou que animais territoriais lançam ataques ferozes contra invasores de seu espaço vital, particularmente os da mesma espécie. Conflitos entre machos de uma determinada espécie, que os estudiosos antes viam como reflexo da competição pelas fêmeas, na verdade são disputas brutais pela propriedade. Muito mais surpreendente foi a descoberta de Ardrey de que o controle de território infunde em seus proprietários energias que os forasteiros que tentam penetrá-lo não possuem. Existe entre a maioria das espécies “algum reconhecimento universal de direitos territoriais” que condiciona e orienta todos os sistemas de relações de poder dentro delas.

Por que os animais precisam de território?, pergunta Ardrey. Os dois motivos mais importantes dentre muitos são: (1) animais selecionam áreas específicas onde podem sustentar sua existência material por meio de acesso a comida e água e (2) o território serve como um amortecedor defensivo e proteção contra muitos inimigos predadores. Essas necessidades espaciais primitivas têm raízes no longo processo de desenvolvimento evolutivo e se tornaram parte da herança genética dos “territorialistas”. Essa herança natural produz uma percepção de fronteiras e proporciona a base para rebanhos e cardumes. A necessidade dos animais de defender seu espaço vital impulsiona a socialização coletiva, e o grupo unificado resultante entra em conflito com outros grupos da mesma espécie.

Caso Ardrey tivesse se limitado a um relato do comportamento animal, seu estudo teria atraído muito menos atenção e permanecido tema de debate entre especialistas em etologia, a despeito de sua considerável habilidade retórica e linguagem pitoresca [2]. Entretanto, suas metas teóricas e conclusões foram muito mais ambiciosas. Indo além das premissas empíricas dentro do campo da zoologia, ele também buscou entender as “regras do jogo” do comportamento humano conforme são transmitidas através das gerações. Expor a dimensão territorial do mundo vivo, acreditava ele, nos permitiria entender melhor as nações e os conflitos entre elas ao longo da história. Com base nisso, ele chegou à seguinte conclusão decisiva:

Se defendemos o direito à nossa terra ou a soberania de nosso país, fazemos isso por motivos não diferentes, não menos inatos, não menos inextirpáveis que os animais inferiores. O cachorro que late para você por trás da cerca de seu dono age por um motivo indistinguível daquele que levou o dono a construir a cerca [3].

As aspirações territoriais dos seres humanos, então, são manifestações de um antigo imperativo biológico que molda os aspectos mais básicos do comportamento humano. Todavia, Ardrey vai ainda mais longe, sustentando “que o vínculo entre o homem e o chão que ele pisa deve ser mais poderoso que o vínculo dele com a mulher com quem ele dorme”, asserção que ele respalda com a pergunta retórica: “Em sua vida, você ouviu falar de quantos homens que morreram pelo país deles? E de quantos que morreram por uma mulher?” [4].

Essa declaração final não deixa dúvidas sobre a identidade geracional do autor. Como norte-americano nascido em 1908 e, portanto, criança durante a Primeira Guerra Mundial e depois dela, Ardrey estava muitíssimo ciente das baixas de guerra. Como adulto, conheceu muitos membros da geração da Segunda Guerra Mundial e testemunhou as guerras da Coreia e do Vietnã. Escrito no começo da Guerra do Vietnã, o livro dele incorpora aspectos significativos da situação internacional dos anos 1960. O processo de descolonização iniciado na esteira da Segunda Guerra Mundial mais do que duplicou o número de “territórios nacionais” existentes até então. Embora à Primeira Guerra Mundial se sucedesse o estabelecimento de uma onda de novas nações, o processo chegou ao ápice com o surgimento dos Estados do chamado Terceiro Mundo. Além disso, as guerras de libertação nacional travadas em locais como Índia, China, Argélia e Quênia pintaram um quadro de luta generalizada tendo por objetivo a aquisição de territórios nacionais independentes e definidos. No fim do combate, a disseminação do sentimento nacionalista fora das fronteiras do Ocidente dotou o planeta de uma ampla diversidade e o decorou com quase duzentas coloridas bandeiras nacionais.

A imaginação científica da sociobiologia tende a virar a história do avesso. Como o restante das ciências sociais, em última análise, a sociobiologia adapta sua terminologia para adequar-se a subprodutos conceituais de processos sociais e políticos testemunhados por seus profissionais no decorrer de suas vidas. Entretanto, os sociobiologistas, muitas vezes, ignoram que os eventos mais recentes da história em geral fornecem uma melhor explicação para eventos anteriores do que o contrário. Tomando a maior parte de seus termos da experiência social, esses pesquisadores da natureza então adaptam tais termos à tarefa de entender melhor o ambiente vital que estão estudando.

A seguir, direcionam o foco para a sociedade humana e tentam entendê-la melhor usando terminologia e imagens do mundo natural originalmente emprestadas da conceitualização que acompanha e é produzida pelos processos históricos. Considere, por exemplo, como as guerras nacionalistas por território travadas na década de 1940 e os árduos combates por pátrias nacionais ocorridos entre o final dos anos 1940 e 1960 foram considerados catalisadores de processos evolutivos geneticamente arraigados na maioria das criaturas vivas.

A despeito das diferenças significativas entre os dois, o determinismo biológico da sociobiologia ostenta certa semelhança à igualmente famosa abordagem do determinismo geográfico desenvolvida pelo geógrafo e etnógrafo alemão Friedrich Ratzel e, mais tarde, por Karl Haushofer e outros.

Embora Ratzel não tenha cunhado o termo “geopolítica”, ainda assim é considerado um de seus fundadores. Foi também um dos primeiros a incorporar com firmeza uma sofisticada consideração das condições biológicas à geografia política. Ainda que avesso a teorias racistas primárias, acreditava que povos inferiores eram obrigados a sustentar nações civilizadas adiantadas e que por meio de tal contato eles também atingiriam maturidade cultural e espiritual.

Como ex-estudante de zoologia que se tornou um defensor convicto das teorias darwinistas, Ratzel estava convencido de que uma nação era um corpo orgânico cujo desenvolvimento exigia a mudança constante de suas fronteiras territoriais. Assim como a pele de todas as criaturas se expande à medida que elas crescem, as pátrias também se expandiriam e deveriam necessariamente alargar suas fronteiras (embora também pudessem se contrair e até deixar de existir). “Uma nação não se mantém imóvel por gerações no mesmo pedaço de terra”, declarou Ratzel. “Ela deve se expandir, pois está crescendo” [5]. Embora acreditasse que a expansão fosse contingente à atividade cultural, e não necessariamente agressiva, Ratzel foi o primeiro a cunhar a expressão “espaço vital” (lebensraum).

Karl Haushofer deu um passo adiante ao desenvolver uma teoria de espaço vital nacional; não por coincidência, seu campo de pesquisa, a geopolítica, tornou-se popular na frustrada Alemanha do período entre as duas guerras mundiais. Essa profissão acadêmica, que teve muitos proponentes na Grã-Bretanha, Estados Unidos e antes ainda na Escandinávia, buscava explicar as relações internacionais de poder com base nos padrões dos processos naturais. A sede de espaço veio a desempenhar um papel central no aparato teórico que tinha por objetivo fornecer uma explicação geral para o agravamento das tensões entre as nações-Estados no século XX.

A lógica geopolítica sustentava que cada nação, em meio à consolidação e crescimento demográficos, necessitava de espaço vital – ou seja, a expansão da terra pátria original. E, como a Alemanha possuía uma área territorial per capita menor que os países vizinhos, tinha o direito nacional e histórico de se expandir além de suas fronteiras. A expansão supostamente ocorreria emdireção à regiões economicamente mais fracas que, quer no presente ou no passado, houvessem sido o lar de uma população “étnica” germânica [6].

A entrada tardia da Alemanha na corrida colonial iniciada no final do século XIX também ofereceu um ambiente apropriado para o florescimento das populares teorias de “espaço vital”. Os alemães sentiam-se frustrados pela divisão dos espólios territoriais das superpotências imperialistas e mais ainda pelos termos do acordo de paz que a nação fora forçada a aceitar no término da Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto, de acordo com as teses mencionadas, a Alemanha tinha que se fortalecer territorialmente, conforme a lei natural que controlava as relações entre as nações ao longo da história. De início, geógrafos não alemães ficaram entusiasmados diante dessa orientação teórica.

Mas, quando a lei natural baseia-se inteiramente em origem étnica e terra, surge aí uma vinculação extremamente volátil entre geopolítica e etnocentrismo. Como resultado, a situação na Alemanha logo explodiu. Haushofer e seus colegas não influenciaram Hitler e seu regime tanto quanto efetivamente serviram a eles, ainda que de forma indireta, fornecendo ao Führer legitimidade ideológica para seu desejo insaciável de conquista. Após a derrota militar dos nazistas, suas teorias foram “cientificamente” erradicadas [7]. As populares teorias de Ardrey também foram esquecidas rapidamente, e, embora as explicações sociobiológicas periodicamente recebessem maior atenção, sua aplicação à evolução das pátrias continuou a se desvanecer. A despeito do apelo da análise de Ardrey, a etologia no fim afastou-se do determinismo estrito que caracterizava a abordagem dele e de alguns de seus colegas quanto ao comportamento territorial [8].

Primeiro, ficou evidente que os primatas desenvolvidos mais próximos dos seres humanos – chimpanzés, gorilas e alguns babuínos – não são “territorialistas” de modo algum, e que o comportamento dos animais em relação a seu ambiente é muito mais variado do que o relato de Ardrey sugeria. Mesmo os pássaros, indiscutivelmente o tipo mais territorial de animal, exibem comportamentos que dependem muito mais das modificações no ambiente ao seu redor do que de impulsos hereditários. Experimentos envolvendo alterações nas condições de vida de animais provaram que o comportamento agressivo pode assumir novas manifestações no rastro de mudanças geobiológicas [9].

Antropólogos com conhecimento histórico mais amplo jamais devem ignorar o fato de que a espécie humana, que pelo que sabemos originou-se no continente africano, floresceu e prosperou devido exatamente a não ter se agarrado ao território familiar, mas migrado e avançado para conquistar o mundo com suas pernas leves e pés ligeiros. Com o passar do tempo, o planeta veio a ser cada vez mais povoado por tribos migrantes de humanos caçadores e coletores que se moviam para a frente sem cessar em busca de novos campos de sustento e praias com pesca mais abundante. Apenas quando a natureza provia suas necessidades básicas os humanos paravam em uma determinada área e a transformavam, em certo grau, em seu lar.

O que mais tarde vinculou os humanos à terra de forma estável e permanente não foi uma predisposição biológica para adquirir território permanente, mas o início do cultivo agrícola. A transição do nomadismo para o sedentarismo ocorreu primeiro no solo aluvial deixado pelos rios, que melhorava a terra para agricultura sem o complexo conhecimento humano exigido para se fazer isso. De forma gradual e crescente, o estilo de vida sedentário tornou-se familiar. Foi somente o cultivo da terra que proporcionou a base para o desenvolvimento de civilizações territoriais, lideradas por uma série de sociedades que, com o tempo, emergiram como grandes impérios.

Contudo, os primeiros reinos desse tipo – tais como Mesopotâmia, Egito e China – não desenvolveram uma consciência territorial coletiva compartilhada por todos aqueles que trabalhavam na terra. As fronteiras desses impérios imensos não puderam ser infundidas na consciência popular como limites delineadores do espaço vital de agricultores ou escravos. Em todas as civilizações agrárias, podemos supor que a terra fosse importante para os produtores de alimento. Podemos supor também que tais indivíduos tivessem um apego psicológico à terra que cultivavam. Entretanto, é duvidoso que possuíssem qualquer sentimento de conexão com territórios mais amplos do reino.

Nas civilizações antigas tradicionais, tanto nômades quanto agrícolas, a terra às vezes era concebida como uma deidade feminina responsável pelo nascimento e criação de tudo que vivia sobre ela [10]. Tribos ou aldeias de diferentes continentes julgavam sagrados os trechos da terra que habitavam, mas essa atribuição de status sagrado não apresentava semelhança com o patriotismo moderno. A terra quase sempre era considerada propriedade dos deuses, não dos seres humanos. Em muitos casos, os humanos antigos viam-se como trabalhadores pagos ou arrendatários que usavam a terra de forma temporária e de modo algum como seus proprietários. Por meio de seus agentes religiosos, os deuses (ou Deus, com o surgimento do monoteísmo) concediam a terra a seus seguidores e, quando havia lapsos na obediência ritual, retomavam-na à sua vontade.

NOTAS

[1] The territorial imperative: a personal inquiry into the animal origins of property and nations. Nova York: Atheneum, 1970.

[2] Para mais sobre isso, ver Gorer, Geoffrey. “Ardrey on human nature: animals, nations, imperatives”. In: Montagu, Ashley (org.).

Man and aggression. Londres: Oxford University Press, 1973, pp. 165-7.

[3] Ardrey. Territorial imperative, p. 5.

[4] Ibid., pp. 6-7.

[5] Citado em Murphy, David Thomas. The heroic earth: geopolitical thought in Weimar Germany, 1918-1933. Ohio: Kent State

University Press, 1997, p. 9.

[6] Para mais sobre Haushofer, ver ibid., pp. 106-10.

[7] Levou um bom tempo para a geopolítica recuperar-se de sua experiência sob o domínio nazista, mas na década de 1970 ela já havia sido reintroduzida como um campo de estudo legítimo. Ver Newman, David. “Geopolitics renaissant: territory, sovereignty and the world political map”. In: ____ (org.). Boundaries, territory and postmodernity. Londres: F. Cass, 1999, p. 15.

[8] Ver especificamente o famoso livro de Lorenz, Konrad. On aggression. Londres: Methuen, 1967.

[9] Sobre esse assunto, ver Crook, John Hurrell. “The nature and function of territorial aggression”. In: Montagu, Ashley (org.). Man and aggression, pp. 183-217.

[10] Os exemplos incluem Gaia, a deusa primordial da terra na mitologia grega, e a deusa cananeia Asherah.

FONTE: SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel, Editora Benvirá: São Paulo, 2014.

 

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