Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica
por Rosana Pinheiro-Machado
Combater o mito da
genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os "donos de
Foucault" é fundamental para termos uma universidade melhor
A
vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há uma
máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias,
humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que medida nós
mesmos não estamos perpetuando esse modus operandi para sobreviver no sistema?
Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo nos perguntando: estamos
dividindo nossos colegas entre os “fracos” (ou os medíocres) e os “fodas” (“o
cara é bom”).
As
fronteiras entre fracos e 'fodas' começam nas bolsas de iniciação científica da
graduação. No novo status de bolsista, o aluno começa a mudar a sua linguagem.
Sem discernimento, brigas de orientadores são reproduzidas. Há brigas de todos
os tipos: pessoais (aquele casal que se pegava nos anos 1970 e até hoje briga
nos corredores), teóricas (marxistas para cá; weberianos para lá) e disciplinares
(antropólogos que acham sociólogos rasos generalistas, na mesma proporção em
que sociólogos acham antropólogos bichos estranhos que falam de si mesmos).
A
entrada no mestrado, no doutorado e a volta do doutorado sanduíches vão
demarcando novos status, o que se alia a uma fase da vida em que mudar o mundo
já não é tão importante quanto publicar um artigo em revista qualis A1 (que
quase ninguém vai ler).
Na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dizíamos que quando alguém entrava
no mestrado, trocava a mochila por pasta de couro. A linguagem, a vestimenta e
o ethos mudam gradualmente. E essa mudança pode ser positiva, desde que
acompanhada por maior crítica ao sistema e maior autocrítica – e não o
contrário.
A
formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna em que ele
precisa ser um gênio. As consequências dessa postura podem ser trágicas,
desdobrando-se em dois possíveis cenários igualmente predadores: a destruição
do colega e a destruição de si próprio.
O
primeiro cenário engloba vários tipos de pessoas (1) aqueles que migraram para
uma área completamente diferente na pós-graduação; (2) os que retornaram à
academia depois de um longo tempo; (3) os alunos de origem menos privilegiada;
(4) ou que têm a autoestima baixa ou são tímidos. Há uma grande chance destas
pessoas serem trituradas por não dominarem o ethos local e tachadas de
“fracos”.
Os
seminários e as exposições orais são marcados pela performance: coloca-se a mão
no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima, faz-se um silêncio
charmoso acompanhado por um impactante “ãaaahhh”, que geralmente termina com um
“enfim” (que não era, de fato, um “enfim”). Muitos alunos se sentem oprimidos
nesse contexto de pouca objetividade da sala de aula. Eles acreditam na genialidade
daqueles alunos que dominaram a técnica da exposição de conceitos.
Hoje,
como professora, tenho preocupações mais sérias como estes alunos que acreditam
que os colegas são brilhantes. Muitos deles desenvolvem depressão, acreditam em
sua inferioridade, abandonam o curso e não é raro a tentativa de suicídio como
resultado de um ego anulado e destruído em um ambiente de pressão, que deveria
ser construtivo e não destrutivo.
Mas
o opressor, o “foda”, também sofre. Todo aquele que se acha “bom” sabe que, bem
lá no fundo, não é bem assim. Isso pode ser igualmente destrutivo. É comum que
uma pessoa que sustentou seu personagem por muitos anos, chegue na hora de
escrever e bloqueie.
Imagine
a pressão de alguém que acreditou a vida toda que era foda e agora se encontra
frente a frente com seu maior inimigo: a folha em branco do Word. É “a hora do
vâmo vê”. O aluno não consegue escrever, entra em depressão, o que pode
resultar no abandono da tese. Esse aluno também é vítima de um sistema que
reproduziu sem saber; é vítima de seu próprio personagem que lhe impõe uma
pressão interna brutal.
No
fim das contas, não é raro que o “fraco” seja o cavalinho que saiu atrasado e
faça seu trabalho com modéstia e sucesso, ao passo que o “foda” não termine o
trabalho. Ademais, se lermos o TCC, dissertação ou tese do “fraco” e do “foda”,
chegaremos à conclusão de que eles são muito parecidos.
A
gradação entre alunos é muito menor do que se imagina. Gênios são raros.
Enroladores se multiplicam. Soar inteligente é fácil (é apenas uma técnica e
não uma capacidade inata), difícil é ter algo objetivo e relevante socialmente
a dizer.
Ser
simples e objetivo nem sempre é fácil em uma tradição “inspirada” (para não
dizer colonizada) na erudição francesa que, na conjuntura da França, faz todo o
sentido, mas não necessariamente no Brasil, onde somos um país composto
majoritariamente por pessoas despossuídas de capitais diversos.
É
preciso barrar imediatamente este sistema. A função da universidade não é
anular egos, mas construí-los. Se não dermos um basta a esse modelo a
continuidade desta carreira só piora. Criam-se anti-professores que humilham
alunos em sala de aula, reunião de pesquisa e bancas. Anti-professores coagem
para serem citados e abusam moral (e até sexualmente) de seus subalternos.
Anti-professores
não estimulam o pensamento criativo: por que não Marx e Weber? Anti-professores
acreditam em lattes e têm prazer com a possibilidade de dar um parecer anônimo,
onde a covardia pode rolar às soltas.
O
dono do Foucault
Uma
vez, na graduação, aos 19 anos, eu passei dias lendo um texto de Foucault e me
arrisquei a fazer comparações. Um professor, que era o dono do Foucault, me
disse: “não é assim para citar Foucault”.
Sua
atitude antipedagógica, anti-autônoma e anti-criativa, me fez deixar esse autor
de lado por muitos anos até o dia em que eu tive que assumir a lecture
“Foucault” em meu atual emprego. Corrigindo um ensaio, eu quase disse a um
aluno, que fazia um uso superficial do conceito de discurso, “não é bem
assim...”.
Seria
automático reproduzir os mecanismos que me podaram. É a vingança do oprimido. A
única forma de cortamos isso é por meio da autocrítica constante. É preciso
apontar superficialidade, mas isso deve ser um convite ao aprofundamento.
Esquece-se facilmente que, em uma universidade, o compromisso primordial do
professor é pedagógico com seus alunos, e não narcisista consigo mesmo.
Quais
os valores que imperam na academia? Precisamos menos de enrolação, frases de
efeitos, jogo de palavras, textos longos e desconexos, frases imensas, “donos
de Foucault”. Se quisermos que o conhecimento seja um caminho à autonomia, precisamos
de mais liberdade, criatividade, objetividade, simplicidade, solidariedade e
humildade.
O
dia em que eu entendi que a vida acadêmica é composta por trabalho duro e não
genialidade, eu tirei um peso imenso de mim. Aprendi a me levar menos a sério.
Meus artigos rejeitados e concursos que fiquei entre as últimas colocações não
me doem nem um pouquinho. Quando o valor que impera é a genialidade, cria-se
uma “ilusão autobiográfica” linear e coerente, em que o fracasso é colocado
embaixo do tapete. É preciso desconstruir o tabu que existe em torno da
rejeição.
Como
professora, posso afirmar que o número de alunos que choraram em meu escritório
é maior do que os que se dizem felizes. A vida acadêmica não precisa ser essa
máquina trituradora de pressões múltiplas. Ela pode ser simples, mas isso só
acontece quando abandonamos o mito da genialidade, cortamos as seitas
acadêmicas e construímos alianças colaborativas.
Nós
mesmos criamos a nossa trajetória. Em um mundo em que invejas andam às soltas
em um sistema de aparências, é preciso acreditar na honestidade e na seriedade
que reside em nossas pesquisas.
Transformação
Tudo
depende em quem queremos nos espelhar. A perversidade dos pequenos poderes é
apenas uma parte da história. Minha própria trajetória como aluna foi marcada
por orientadoras e orientadores generosos que me deram liberdade única e nunca
me pediram nada em troca.
Assim
como conheci muitos colegas que se tornaram pessoas amargas (e eternamente em
busca da fama entre meia dúzia), também tive muitos colegas que hoje possuem
uma atitude generosa, engajada e encorajadora em relação aos seus alunos.
Vaidade
pessoal, casos de fraude em concursos e seleções de mestrado e doutorado são
apenas uma parte da história da academia brasileira. Tem outra parte que versa
sobre criatividade e liberdade que nenhum outro lugar do mundo tem igual. E
essa criatividade, somada à colaboração, que precisa ser explorada, e não
podada.
Hoje,
o Brasil tem um dos cenários mais animadores do mundo. Há uma nova geração de
cotistas ou bolsistas Prouni e Fies, que veem a universidade com olhos
críticos, que desafiam a supremacia das camadas médias brancas que se
perpetuavam nas universidades e desconstroem os paradigmas da meritocracia.
Soma-se
a isso o frescor político dos corredores das universidades no pós-junho e o
movimento feminista que só cresce. Uma geração questionadora da autoridade,
cansada dos velhos paradigmas. É para esta geração que eu deixo um apelo: não
troquem o sonho de mudar o mundo pela pasta de couro em cima do muro.
Rosana
Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento
de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford.
Fonte:
CartaCapital
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