No
Brasil, está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição. Seus
representantes preferem Silas Malafaia a Immanuel Kant. Os ataques miram o
próprio esclarecimento.
por Philipp Lichterbeck
É
sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple algo de
perspectivas diferentes. Quem deixa o Brasil nos dias de hoje deve se
preocupar. O país está caminhando rumo ao passado.
No
Brasil, pode ser que isso seja algo menos perceptível, porque as pessoas estão
expostas ao moinho cotidiano de informações. Mas, de fora, estas formam um
mosaico assustador. Atualmente, estou em viagem pelo Caribe – e o Brasil que se
vê a partir daqui é de dar medo.
Na
história, já houve momentos frequentes de regresso. Jared Diamond os descreve
bem em seu livro Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso.
Motivos que contribuem para o fracasso são, entre outros, destruição do meio
ambiente, negação de fatos, fanatismo religioso. Assim como nos tempos da
Inquisição, quando o conhecimento em si já era suficiente para tornar alguém
suspeito de blasfêmia.
No
Brasil atual, não se grita “herege!”, mas “comunismo!”. É a acusação com a qual
se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos
menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos
humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O
pensamento crítico em si: comunismo!
Tudo
isso são conquistas que não são questionadas em sociedades progressistas. O
Brasil de hoje não as quer mais.
Porém,
a própria acusação de comunismo é um anacronismo. Como se hoje houvesse um
forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro
não deve mais questionar, ele precisa obedecer: “Brasil acima de tudo, Deus
acima de todos”.
Está
na moda um anti-intelectualismo horrendo, “alimentado pela falsa noção de que a
democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu
conhecimento”, segundo dizia o escritor Isaac Asimov. Ouvi uma anedota de um
pai brasileiro que tirou o filho da escola porque não queria que ele aprendesse
sobre o cubismo. O pai alegou que o filho não precisa saber nada sobre Cuba, que
isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é verdade. O pior é que
bem que poderia ser.
A
essência da ciência é o discernimento. Mas os novos inquisidores amam vídeos
com títulos como “Feliciano destrói argumentos e bancada LGBT”. Destruir, acabar,
detonar, desmoralizar – são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se
engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento.
Os
inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem
mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques
Rousseau, querem Olavo de Carvalho. Não querem Chico Mendes, querem a “musa do
veneno” (imagino que seja para ingerir ainda mais agrotóxicos).
Dá
para imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de fanático como
exemplo: para o nada. Os sinais de alerta estão acesos em toda parte.
O
desmatamento da Floresta Amazônica teve neste ano o seu maior aumento em uma
década: 8 mil quilômetros quadrados foram destruídos entre 2017 e 2018. Mas
consórcios de mineradoras e o agronegócio pressionam por uma maior abertura da
floresta.
Jair
Bolsonaro quer realizar seus desejos. O próximo presidente não acredita que a
seca crescente no Sudeste do Brasil poderia ter algo a ver com a ausência de
formação de nuvens sobre as áreas desmatadas. E ele não acredita nas mudanças
climáticas. Para ele, ambientalistas são subversivos.
Existe
um consenso entre os cientistas conhecedores do assunto no mundo inteiro: dizem
que a Terra está se aquecendo drasticamente por causa das emissões de dióxido
de carbono do ser humano e que isso terá consequências catastróficas. Mas
Bolsonaro, igual a Trump, prefere não ouvi-los. Prefere ignorar o problema.
Para
o próximo ministro brasileiro do Exterior, Ernesto Araújo, o aquecimento global
é até um complô marxista internacional. Ele age como se tivesse alguma noção de
pesquisas sobre o clima. É exatamente esse o problema: a ignorância no Brasil
de hoje conta mais do que o conhecimento. O Brasil prefere acreditar num
diplomata de terceira categoria do que no Instituto Potsdam de Pesquisa sobre o
Impacto Climático, que estuda seriamente o tema há trinta anos.
Araújo,
aliás, também diz que o sexo entre heterossexuais ou comer carne vermelha são
comportamentos que estão sendo “criminalizados”. Ele fala sério. Ao mesmo
tempo, o Tinder bomba no Brasil. E, segundo o IBGE, há 220 milhões de cabeças
de gado nos pastos do país. Mas não importa. O extremista Araújo não se
interessa por fatos, mas pela disseminação de crenças. Para Jared Diamond, isso
é um comportamento caraterístico de sociedades que fracassam.
Obviamente,
está claríssimo que a restrição do pensamento começa na escola. Por isso, os
novos inquisidores se concentram especialmente nela. A “Escola Sem Partido”
tenta fazer exatamente isso. Leandro Karnal, uma das cabeças mais inteligentes
do Brasil, com razão descreve a ideia como “asneira sem tamanho”.
A
Escola Sem Partido foi idealizada por pessoas sem noção de pedagogia, formação
e educação. Eles querem reprimir o conhecimento e a discussão.
Karl
Marx é ensinado em qualquer faculdade de economia séria do mundo, porque ele
foi um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo. E o fez de uma
forma genial. Mas os novos inquisidores do Brasil não querem Marx. Acham que o
contato com a obra dele transformaria qualquer estudante em marxista convicto.
Acreditam que o próprio saber é nocivo – igual aos inquisidores. E, como bons
inquisidores, exortam à denúncia de mestres e professores. A obra 1984, de
George Orwell, está se tornando realidade no Brasil em 2018.
É
possível estender longamente a lista com exemplos do regresso do país: a
influência cada vez maior das igrejas evangélicas, que fazem negócios com a
credulidade e a esperança de pessoas pobres.
A
demonização das artes (exposições nunca abrem por medo dos extremistas, e
artistas como Wagner Schwartz são ameaçados de morte por uma performance que
foi um sucesso na Europa). Há uma negação paranoica de modelos alternativos de
família. Existe a tentativa de reescrever a história e transformar torturadores
em heróis. Há a tentativa de introduzir o criacionismo. Tomás de Torquemada* em
vez de Charles Darwin.
E,
como se fosse uma sátira, no Brasil de 2018 há a homenagem a um pseudocientista
na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, que defende a teoria de que a
Terra seria plana, ou “convexa”, e não redonda. A moção de congratulação
concedida ao pesquisador foi proposta pelo presidente da AL e aprovada por
unanimidade pelos parlamentares.
Brasil,
um país do passado.
Fonte:
Deutsche Welle
Sobre
o autor: Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando
se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com
reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais
Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no
Twitter em @Lichterbeck_Rio.
(A
Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo
independente em 30 idiomas).
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