terça-feira, 1 de outubro de 2019

GEOGRAFIA E ANARQUISMO


por Amir El Hakim de Paula

Alguns geógrafos, embora com uma carreira brilhante e de grande reconhecimento, ao morrerem tiveram certo silêncio sobre a sua representatividade perante a academia científica. Isso se aplica, pelo menos, aos geógrafos anarquistas, se podemos assim chamar dois eminentes cientistas que conquistaram enorme sucesso enquanto vivos, mas que hoje têm pouquíssimo reconhecimento, sendo, às vezes, citados esparsamente nos cursos de história do pensamento geográfico.

Um deles, Élisée Reclus, um dos principais expoentes daquilo que se chamou de Geografia Social, embora acessasse o cargo de professor apenas no final de sua vida, aparece em alguns periódicos de Geografia contemporânea quase sempre atrelado ao seu envolvimento com as ideias ácratas. [1]

Com importância tão grande para as ciências humanas e naturais quanto para seu companheiro de ideias, é estranha a tênue receptividade de Piotr Kropotkin no Brasil, tendo seus escritos pouca ressonância nos cursos de graduação em Geografia. Nesse sentido, faz se necessário apresentar uma curta biografia desse importante pensador russo.

Piotr Kropotkin nasceu em Moscou no ano de 1842, no seio de uma família nobre (Rurik) que por mais de oitocentos anos governou as terras russas e ucranianas.

De origem abastada, desde tenra idade, recebeu uma extensa formação educacional fortemente influenciada pela cultura francesa. Aos 12 anos entrou no respeitado Corpo de Pajens, escola militar de enorme prestígio entre a nobreza russa.

Depois de formado, Kropotkin seguiu a carreira militar sendo enviado à região do rio Amur, na Sibéria, com a tarefa de liderar um grupo de pesquisadores que teriam a incumbência de cartografar essa região, ainda pouco conhecida do governo russo. Essas pesquisas deram a ele grande reconhecimento da Sociedade Geográfica Russa e lhe renderam uma medalha de ouro pelas descobertas científicas, bem como fizeram com que se tornasse coordenador da área de Geografia Física dessa prestigiada entidade.

Nesse percurso, Kropotkin toma contato com a vida selvagem das áreas mais inóspitas da Sibéria, observando que muito do que aparecia na obra de Charles Darwin [2] não tinha qualquer relação com que encontrava nas taigas dessa região. Uma das questões frequente na obra do naturalista inglês era a chamada “sobrevivência do mais capaz”, transformada em uma lei por aqueles que defendiam abertamente as teorias evolucionárias de viés darwinista. Relacionando suas pesquisas empíricas com aquelas existentes na obra magna darwinista, Kropotkin vai perceber que, ao contrário do que alguns evolucionistas afirmavam, uma “estranha” sociabilidade predominava nas regiões mais geladas do planeta, em vez de uma sobrevivência baseada na vitória do mais capaz. Para o geógrafo russo, o que mais se destacava era a solidariedade entre os animais, principalmente nos indivíduos de uma mesma espécie, que assim conseguiam levar vantagem sobre os seus “inimigos” naturais.

Assim, cabe nessa pesquisa compreendermos de que forma o pensamento de Kropotkin divergia do modelo científico predominante no século XIX, visto que ele defendia abertamente os princípios anarquistas. Além disso, discutiremos como essa metodologia de análise científica influenciou seus escritos geográficos e políticos.

Como forma de um esclarecimento do processo de construção dessas ideias científicas, optamos, no primeiro capítulo, por discutir dois autores que foram basilares para que tanto Kropotkin como Charles Darwin defendessem propostas divergentes nesse importante momento do século XIX: de um lado aquele que, com certeza, poderia ser considerado a maior influência nas ideias que levaram Darwin a chegar ao mote da “sobrevivência do mais capaz”: Robert Malthus; e de outra parte, chegamos ao principal questionador dos postulados malthusianos e também reconhecido pelo próprio geógrafo russo como o pai do anarquismo moderno: William Godwin.

Notas:

1 Veja-se, por exemplo, o caso da revista Herodote, que consagrou uma edição especial ao geógrafo francês com o título de Élisée Reclus, geógrafo libertário. No Brasil, temos a quinquagésima edição doBoletim Paulista de Geografia, na qual Aroldo de Azevedo, mesmo tecendo vários elogios ao trabalho do geógrafo francês, acentuou em diversos momentos a opção revolucionária e anarquista dele.

2 Como demonstram Woodcock e Avakumovic (1978, p.79, tradução nossa) “suas observações sobre a vida animal despertarão consideráveis dúvidas em Kropotkin como em Poliakov a respeito da insistência de Darwin na luta pela vida como um fator de evolução, proporcionando assim os primeiros dados sobre o que Kropotkin elaboraria mais tarde como sua própria teoria da evolução baseada no apoio mútuo”. [“sus observaciones sobre la vida animal despertaron considerables dudas tanto en Kropotkin como en Poliakov respecto a la insistencia de Darwin en la lucha por la vida como factor de evolución, proporcionando así los primeros datos sobre los que Kropotkin elaboraría más tarde como su propia teoría de la evolución basada en el apoyo mutuo”.]

Introdução de “Geografia e anarquismo: a importância do pensamento de Piotr Kropotkin para a ciência”, de Amir El Hakim de Paula, Editora UNESP, Ano: 2019, ISBN: 9788595463356.


Amir El Hakim de Paula possui graduação (1999), mestrado (2005), doutorado (2011) e pós-doutorado (2016) em Geografa pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Tem experiência na área de Geografa, com ênfase em Geografa Humana e ensino de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: história do pensamento geográfico, epistemologia da geografia, anarquismo e educação.


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