por Amir El Hakim de Paula
Alguns
geógrafos, embora com uma carreira brilhante e de grande reconhecimento, ao
morrerem tiveram certo silêncio sobre a sua representatividade perante a
academia científica. Isso se aplica, pelo menos, aos geógrafos anarquistas, se
podemos assim chamar dois eminentes cientistas que conquistaram enorme sucesso
enquanto vivos, mas que hoje têm pouquíssimo reconhecimento, sendo, às vezes,
citados esparsamente nos cursos de história do pensamento geográfico.
Um
deles, Élisée Reclus, um dos principais expoentes daquilo que se chamou de
Geografia Social, embora acessasse o cargo de professor apenas no final de sua
vida, aparece em alguns periódicos de Geografia contemporânea quase sempre atrelado
ao seu envolvimento com as ideias ácratas. [1]
Com
importância tão grande para as ciências humanas e naturais quanto para seu
companheiro de ideias, é estranha a tênue receptividade de Piotr Kropotkin no
Brasil, tendo seus escritos pouca ressonância nos cursos de graduação em
Geografia. Nesse sentido, faz se necessário apresentar uma curta biografia
desse importante pensador russo.
Piotr
Kropotkin nasceu em Moscou no ano de 1842, no seio de uma família nobre (Rurik)
que por mais de oitocentos anos governou as terras russas e ucranianas.
De
origem abastada, desde tenra idade, recebeu uma extensa formação educacional
fortemente influenciada pela cultura francesa. Aos 12 anos entrou no respeitado
Corpo de Pajens, escola militar de enorme prestígio entre a nobreza russa.
Depois
de formado, Kropotkin seguiu a carreira militar sendo enviado à região do rio
Amur, na Sibéria, com a tarefa de liderar um grupo de pesquisadores que teriam
a incumbência de cartografar essa região, ainda pouco conhecida do governo russo.
Essas pesquisas deram a ele grande reconhecimento da Sociedade Geográfica Russa
e lhe renderam uma medalha de ouro pelas descobertas científicas, bem como
fizeram com que se tornasse coordenador da área de Geografia Física dessa
prestigiada entidade.
Nesse
percurso, Kropotkin toma contato com a vida selvagem das áreas mais inóspitas
da Sibéria, observando que muito do que aparecia na obra de Charles Darwin [2]
não tinha qualquer relação com que encontrava nas taigas dessa região. Uma das
questões frequente na obra do naturalista inglês era a chamada “sobrevivência
do mais capaz”, transformada em uma lei por aqueles que defendiam abertamente
as teorias evolucionárias de viés darwinista. Relacionando suas pesquisas
empíricas com aquelas existentes na obra magna darwinista, Kropotkin vai
perceber que, ao contrário do que alguns evolucionistas afirmavam, uma
“estranha” sociabilidade predominava nas regiões mais geladas do planeta, em
vez de uma sobrevivência baseada na vitória do mais capaz. Para o geógrafo russo,
o que mais se destacava era a solidariedade entre os animais, principalmente
nos indivíduos de uma mesma espécie, que assim conseguiam levar vantagem sobre
os seus “inimigos” naturais.
Assim,
cabe nessa pesquisa compreendermos de que forma o pensamento de Kropotkin
divergia do modelo científico predominante no século XIX, visto que ele
defendia abertamente os princípios anarquistas. Além disso, discutiremos como
essa metodologia de análise científica influenciou seus escritos geográficos e
políticos.
Como
forma de um esclarecimento do processo de construção dessas ideias científicas,
optamos, no primeiro capítulo, por discutir dois autores que foram basilares
para que tanto Kropotkin como Charles Darwin defendessem propostas divergentes
nesse importante momento do século XIX: de um lado aquele que, com certeza,
poderia ser considerado a maior influência nas ideias que levaram Darwin a
chegar ao mote da “sobrevivência do mais capaz”: Robert Malthus; e de outra
parte, chegamos ao principal questionador dos postulados malthusianos e também
reconhecido pelo próprio geógrafo russo como o pai do anarquismo moderno:
William Godwin.
Notas:
1
Veja-se, por exemplo, o caso da revista Herodote, que consagrou uma edição
especial ao geógrafo francês com o título de Élisée Reclus, geógrafo
libertário. No Brasil, temos a quinquagésima edição doBoletim Paulista de
Geografia, na qual Aroldo de Azevedo, mesmo tecendo vários elogios ao trabalho
do geógrafo francês, acentuou em diversos momentos a opção revolucionária e
anarquista dele.
2
Como demonstram Woodcock e Avakumovic (1978, p.79, tradução nossa) “suas
observações sobre a vida animal despertarão consideráveis dúvidas em Kropotkin
como em Poliakov a respeito da insistência de Darwin na luta pela vida como um
fator de evolução, proporcionando assim os primeiros dados sobre o que
Kropotkin elaboraria mais tarde como sua própria teoria da evolução baseada no
apoio mútuo”. [“sus observaciones sobre la vida animal despertaron
considerables dudas tanto en Kropotkin como en Poliakov respecto a la
insistencia de Darwin en la lucha por la vida como factor de evolución,
proporcionando así los primeros datos sobre los que Kropotkin elaboraría más
tarde como su propia teoría de la evolución basada en el apoyo mutuo”.]
Introdução
de “Geografia e anarquismo: a importância do pensamento de Piotr Kropotkin para
a ciência”, de Amir El Hakim de Paula, Editora UNESP, Ano: 2019, ISBN:
9788595463356.
Amir
El Hakim de Paula possui graduação (1999), mestrado (2005), doutorado (2011) e
pós-doutorado (2016) em Geografa pela Universidade de São Paulo (USP).
Atualmente é professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Tem
experiência na área de Geografa, com ênfase em Geografa Humana e ensino de
Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: história do pensamento
geográfico, epistemologia da geografia, anarquismo e educação.
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