Uma situação semelhante
à makhnovitchina é percebida na revolta de Kronstadt. O local era uma fortaleza
naval da ilha de Kotlin, no Golfo da Finlândia, cerca de 35 milhas de São
Petersburgo. Ainda em 1921, no mês de março, defendendo os soviets livres, Kronstadt explode a última grande revolta
revolucionária e contra a ditadura do partido bolchevique, durando16 dias e
sendo esmagada pelo Exército Vermelho. O mesmo Exército liderado por Trotsky,
que em 1917 afirmaram que os marinheiros da fortaleza naval eram “o orgulho e a
glória” da Revolução Russa.
A revolta de Kronstadt
está inserida em um contexto mais profundo: a crise do chamado “comunismo de
guerra”. Esse modelo de gestão do Estado revolucionário soviético, adotado ao
longo da Guerra Civil, foi uma brutal centralização política bolchevique,
confiscos e expropriações do Estado sobre os camponeses e operários, sempre
priorizando o abastecimento do Exército Vermelho (em nome da Revolução). Porém,
uma grave crise se abateu sobre a Rússia e o Comunismo de Guerra parecia não
ter mais fim.
No mês de março de
1920, representando o reforço da ditadura leninista, ao longo do IX Congresso
do Partido Comunista, na discussão sobre o papel dos sindicatos no comunismo, é
deliberado que “os sindicatos devem executar essas tarefas [econômicas e
educativas] não mais como força independente organizada à parte, mas no que
respeita à máquina principal do mecanismo governamental, guiado pelo Partido
Comunista”. Trotsky justifica o fim do sindicalismo não-bolchevique afirmando
que “os sindicatos pretendem defender os interesses da classe operária contra o
Estado, mas, uma vez que o Estado é ele próprio operário, essa defesa não tem
qualquer sentido (1). Tal fala não significa apenas que Trotsky defende
abertamente que os trabalhadores não devem possuir mecanismos de defesa na luta
de classe. Representa também que os trabalhadores deveriam continuar assistindo
ao Estado falir junto com a revolução e o fim da possibilidade de melhorias
sobre um novo regime político-econômico que resolveria a crise pela qual
passava a Rússia.
Em 1921, a extração
mineradora e a produção fabril despencaram para 20% dos níveis de pré-guerra,
com muitos itens essenciais tendo um declínio ainda mais drástico, e, no mesmo
ano, a extensão das terras cultivadas encolheu para 62% da área anterior à
Primeira Guerra Mundial, e a colheita era apenas 37% do normal. Dessa forma, os
bolcheviques perdiam o apoio da população, que se tornava mais enfática na
demonstração de seu descontentamento com uma ditadura que em nada melhorava a
situação do país. O próprio Lenin admitia que “a essência do ‘comunismo de
guerra’ consistiu, na realidade, no confisco sobre os camponeses de todos os
seus excedentes e às vezes não apenas isso, mas também parte do cereal que este
necessitava para sua própria alimentação”. Ele afirma ainda que isso ocorreu
para “satisfazer os requerimentos do exército e sustentar os operários” (2).
Não sem razão, considerando somente o mês de fevereiro de 1921, pouco antes da
sedição de Kronstadt, explodiram 180 revoltas camponesas na Rússia (3).
Dessa forma, inserida
nas revoltas de esquerda para acabar com a ditadura bolchevique que estava
minando a revolução e (ainda mais sobre a pressão dos exércitos internacionais)
a própria Rússia, explode nos navios de guerra Petropavlosk e Sebastopol, em
março de 1921, a revolta de Kronstadt, combatendo por soviets livres, nova Assembleia Constituinte, liberdade de
expressão para organizações políticas de esquerda e a libertação de seus presos
políticos, etc. Basicamente, exigiam mais revolução e menos ditadura.
A resposta dos
bolcheviques veio rápida: repressão brutal! Além de temer perder a hegemonia
sobre os rumos da revolução, o Partido Comunista visava impedir que Kronstadt
servisse de “plataforma” para mais uma ação do Exército Branco. De fato, muitos
dos emigrados russos, que articularam a contrarrevolução de outros países, tentavam
encontrar na revolta de Kronstadt uma forma de acabar totalmente com o poder
bolchevique e, obviamente, de restaurar o poder nas mãos dos capitalistas. E
foi esse o argumento leninista contra a revolta na base naval. Atualmente está
fartamente documentado e comprovado que tal ideia era falsa e que, enquanto
durou a revolta, não houve qualquer tipo de associação entre os marinheiros de
Kronstadt, ou seus líderes, e as forças da contrarrevolução. Fora isso, basta
ler as exigências dos marinheiros para constatar que se tratava, sim, de uma
enorme mobilização de esquerda.
Sabendo do perigo que
poderia representar a vitória da sedição, o Exército Vermelho mobilizou mais de
50 mil soldados. Em 17 de março, Kronstadt rendia-se contabilizando milhares de
mortos. No dia seguinte, a imprensa bolchevique comemorava o aniversário de 50
anos da Comuna de Paris, 1871, enaltecendo os rebeldes da capital francesa.
Ironias à parte, o fato é que o levante dos marinheiros acabou constituindo-se
como a última mobilização antiditatorial na Rússia por algumas décadas. Era o
fim do processo revolucionário que se iniciara em 1917.
Posteriormente, Lenin
substituiria o Comunismo de Guerra pela Nova Política Econômica (NEP),
restituindo a iniciativa privada nos setores agrícolas, industrial e comercial
para tentar retirar a Rússia da crise na qual se afogava.
Como slogan, a NEP
afirmava dar “um passo atrás para dar dois à frente”... E dessa forma, mas à
frente, Stalin se consolidaria no poder, sustentando a situação de que a
revolução social na Rússia estava restrita aos desejos clandestinos, aos
exilados e fugitivos políticos de esquerda e aos campos de concentração da
Sibéria. Demonstrando que se o resultado da revolução de 1917 foi que as aldeias
revolucionárias teriam de trilhar novamente o caminho do medo e da
clandestinidade, era necessário, então, que se repensassem as formas de luta em
combate ao capitalismo (pp. 26-29).
(...)
Enquanto essas
discussões se davam no interior do partido, os marinheiros da base naval de
Kronstadt, inclusive os que prestavam serviço no encouraçado Potemkin –
chamados em 1917, por Trotski, de “a glória da revolução” –, revoltam-se contra
o governocentral de Moscou.
A insurreição de
Kronstadt iniciou-se a 3 de março de 1921 e terminou a 16 de março do mesmo
ano.
A irrupção da revolta
de Kronstadt está vinculada à situação do proletariado de Petrogrado. O inverno
em Petrogrado nos anos 1920-21 foi particularmente severo, embora sua população
tenha diminuído em dois terços. O abastecimento apresenta altos níveis de
deficiência, devido ao estado catastrófico dos meios de transporte.
A crise de
abastecimento, especialmente em víveres, está ligada também à degenerescência
burocrática e à corrupção dos órgãos estatais da área.
A Rússia na época
pratica a troca dos produtos industriais, produzidos nas cidades, pelos
produtos agrícolas. O sal e o petróleo urbanos eram trocados por alguns quilos de batatas e um pouco de farinha.
Oficialmente os
mercados não existiam, mas na prática eram tolerados. Contudo, por ordem de
Zinoviev, no verão de 1920, qualquer traço de comércio teria de desaparecer.
Pequenos armazéns e
lojas foram lacrados pelo governo, porém o Estado não tinha possibilidade de
abastecer a cidade. Em janeiro de 1921 a Petrokommouna
(órgão estatal encarregado do abastecimento da cidade) informava que os
trabalhadores da indústria pesada tinham direito a 800 gramas de pão preto e os
carteiros entre 400 a 200 gramas. O pão preto era nessa época o alimento
essencial do trabalhador russo, mas essas rações oficiais eram irregularmente
distribuídas e em quantidades menores que as estipuladas nos papéis.
Parte da população que
possuía família em zona rural fugia da cidade. Esse dado importante desmente a
versão oficial das greves operárias em Petrogrado como consequência da presença
de camponeses não temperados pela ideologia proletária!
Os trabalhadores da
usina de Troubotchni realizam a primeira greve a 24 de fevereiro de 1921. O
governo bolchevique envia contra eles destacamentos de cadetes.
Isso não impede que a
greve se estenda à usina Baltiski, à usina Laferme, à fábrica de sapatos
Skorokhod, às usinas Ademiralteiski, Bormann e Metalicheski, atingindo no dia
28 a usina Putilov, a maior do país.
Enquanto algumas usinas
levantam reivindicações econômicas – como normalização do abastecimento à
cidade dos produtos das zonas rurais, restabelecimento do mercado, supressão da
fiscalização das milícias que se apropriam de alguns quilos de batatas que os
trabalhadores conseguiram em troca de produtos manufaturados –, outras formulam
reivindicações políticas, como liberdade de imprensa e liberdade dos
prisioneiros políticos. Em certas usinas os grevistas cassam a palavra dos
bolcheviques.
Resposta do governo:
medidas militares para enfrentar essas reivindicações através da constituição
de um Comitê de Defesa, que proclama estado
de sítio na cidade de Petrogrado. A circulação de pessoas fica proibida após
as 23 horas, assim como reuniões, comícios e agrupamentos, em locais abertos ou
fechados, sem autorização do comitê.
Infração a essas ordens
implica julgamento, com aplicação de leis previstas em tempo de guerra. São
mobilizados os membros do partido e os grevistas mais ativos são encarcerados.
Os marinheiros de Kronstadt enviam a 26 de fevereiro seus delegados a
Petrogrado, para informar-se a respeito das greves. Visitam inúmeras usinas,
voltando a Kronstadt no dia 28 do mesmo mês.
Quais foram as reivindicações
dos marinheiros de Kronstadt que levaram a base naval a levantar-se contra os
bolcheviques?
KRONSTADT:
A REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO
Kronstadt, considerando
que os sovietes atuais não exprimiam mais a vontade dos operários e camponeses,
reivindicava: imediata eleição com voto secreto, com liberdade de desenvolver
campanha eleitoral; liberdade de imprensa e palavra para operários e
camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda; liberdade de reunião para
todos os sindicatos operários e organizações camponesas; liberdade para todos
os socialistas prisioneiros políticos, assim como marinheiros e soldados do
Exército Vermelho presos durante os movimentos populares; eleição de uma
comissão encarregada de examinar os casos dos prisioneiros e dos internados em campos de concentração; supressão de
todos os departamentos políticos (em cada unidade fabril, militar e de bairro,
o partido possuía um departamento político); nenhum partido deve ter o
privilégio da propaganda política e ideológica nem receber nenhuma subvenção
governamental; no lugar dos departamentos políticos, formar Comissões de
Educação e Cultura financiadas pelo Estado; supressão imediata de todas as
barreiras militares; supressão dos destacamentos comunistas de choque em todas
as seções militares e da Guarda Comunista nas minas e usinas; se houver
necessidade de destacamentos, que sejam nomeados pelos soldados das seções
militares; se houver necessidade de guardas, que sejam escolhidos pelos
próprios trabalhadores; o camponês deve usufruir sua terra, sem empregar
trabalho assalariado.
Os marinheiros de
Kronstadt criticavam a formação de uma nova burocracia, a quem chamavam de comissiocracia, e também a estatização
dos sindicatos. Inúmeros membros do Partido Bolchevique que residiam em
Kronstadt pedem publicamente demissão do partido, aceitando a crítica dos
marinheiros ao governo soviético.
Kronstadt mesmo se
autodenomina a “Terceira Revolução Russa”. Qual a posição das várias facções
políticas russas da época a respeito da rebelião?
Anarquistas
– Embora houvesse entre os membros do Comitê Revolucionário marinheiros que se
definiam como anarquistas, não se verificou intervenção direta dos anarquistas
enquanto grupo ou corrente organizada. A imprensa anarquista não se manifesta a
respeito da insurreição e Iarchouk, antigo anarcossindicalista, nada diz a
respeito no seu livro sobre a insurreição de 1921.
Em caráter pessoal,
anarquistas como Emma Goldman e Ale-xandre Berkman se propuseram a ser os
mediadores entre os marinheiros e os bolcheviques; só a proposta de mediação já
mostra a escassa participação anarquista na rebelião.
Quanto aos sovietes, na
revolução ucraniana Makhno já lutava por sovietes livres.
A posição de Kronstadt
de confiar aos sindicatos tarefas importantes não é idéia exclusivamente
anarquista, pois os socialistas revolucionários de esquerda e os membros da
Oposição Operária também a defendiam. Ela traduzia o consenso daqueles que
pretendiam salvar a Revolução pela democracia operária, opondo-se à ditadura do
partido único.
Mencheviques
– Sempre tiveram escassa influência sobre os marinheiros. Embora tivessem
número razoável de deputados no soviete de Kronstadt, seu nível de popularidade
era baixo, enquanto os anarquistas, com três deputados somente, gozavam de
muito maior aceitação entre os marinheiros (em 1917, numerosos anarquistas não
distinguiam claramente suas diferenças com o bolchevismo, vendo em Lenin um
marxista-bakuninista).
Embora hostis aos
bolcheviques, os mencheviques nunca pregaram a revolução violenta contra o
governo. Tentam agir como oposição legal nos sovietes e no movimento sindical.
Esperavam eles que o término da guerra civil levasse o regime soviético a rumos
democráticos.
Socialistas
revolucionários de direita – Através de seu líder Viktor
Tchernov, apoiava Kronstadt e fazia crítica à ditadura bolchevique, receitando
como remédio aos males dos trabalhadores a convocação de uma Assembleia
Constituinte. Criticavam acremente os bolcheviques de sobreporem os sovietes à
Constituinte e até mesmo de fechá-la.
Socialistas
revolucionários de esquerda – Apoiavam inteiramente as
reivindicações de Kronstadt, enunciadas anteriormente. No seu jornal oficial,
negavam terminantemente qualquer participação na insurreição.
Lenin
– Liga a insurreição de Kronstadt ao elemento camponês, pressionando o governo
soviético. Denuncia a presença em Kronstadt de mencheviques, socialistas
revolucionários e outros antibolcheviques. Atribui a direção da rebelião a um
general czarista, Koslovski. Acusa Kronstadt de receber recursos do capital
financeiro internacional, como tentativa de deslocamento do poder em proveito
dos empresários urbanos e agrários. A argumentação de Trotski caminha no mesmo sentido que a de Lenin.
Porém, após Trotski ter
sido exilado por Stalin, no México escreve seu último livro – foi assassinado
no meio de sua redação por um agente da polícia secreta de Stalin –, intitulado
Stalin, onde confessa que a repressão
bolchevique a Kronstadt fora uma necessidade trágica; o mesmo vale para Makhno
e outros revolucionários, que, segundo ele, tinham
boas intenções mas agiram erradamente.
No real, o proletariado
russo perdera o controle das fábricas, dirigidas por delegados do Estado, a
insurreição camponesa autogestionária da Ucrânia, que derrotara os generais
Denikin e Wrangel, foi contida pelo Exército Vermelho, e a insurreição de
Kronstadt, que definia um programa de objetivos socialistas e libertários, foi
selvagemente reprimida pelo bolchevismo. A repressão fora dirigida pelo general
Tukatchevski, posteriormente fuzilado como “traidor” da Revolução por Stalin,
nos célebres processos de Moscou (1936-38). Diga-se de passagem, nesses
processos Stalin fuzilara todo o Comitê Central de Lenin (pp. 122-127).
(1) AVRON, Henry. A Revolta de Kronstadt. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984, p. 4.
(2) AVRICH, Paul. Kronstadt, 1921. Buenos Aires: Utopia
Libertaria, 2006, 15.
(3) Ibidem, p. 19.
TRAGTENBERG, Maurício.
A revolução Russa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2007.